segunda-feira, 1 de março de 2010

Os lamentáveis adversários do AO

Aquele que já foi em tempos um jornal de referência mas se vai transformando aos poucos em mais um desperdício de celulose, o Público, achou por bem abrir hoje as suas páginas a uma iniciativa contra o acordo ortográfico promovida por intermédio do facebook. O artigo é típico artigo de pasquim: nos antípodas do equilíbrio que o jornalismo a sério exige, só dá voz a uma parte, funcionando não como um artigo informativo mas como uma peça de propaganda. E as coisas que nele se dizem...

Deuses!

Afirmam-se coisas como "os tradutores vão perder trabalho porque os brasileiros são mais baratos", por exemplo. Nem pergunto de que bola de cristal o autoproclamado zé-ninguém (a acreditar no artigo, é ele que afirma que não é ninguém, que é um anónimo) que é entrevistado para fazer aquela peça desencantou tal certeza futurológica. Digo apenas que este tradutor que aqui escreve não está nada preocupado. Porque este tradutor que aqui escreve sabe qual é a diferença entre língua e ortografia, e sabe que não é por alterarem-se algumas regras na forma de se escrever a língua que desaparecem os seus dialetos. Por isso, com exceção de algumas áreas muito particulares e extremamente restritas em que o facto de Portugal e Brasil falarem dialetos diferentes da mesma língua não tem importância, o mais certo é que o AO não tenha absolutamente nenhum impacto sobre o trabalho que os tradutores venham a ter no futuro.

Aliás, dá-me uma grande vontade de rir sempre que vejo este tipo de panicozinhos mais ou menos corporativos. Diz muito sobre as pessoas que são por eles assaltadas que em vez de acharem que uma abertura abre um potencial de crescimento até aí fechado, partam sistematicamente do princípio de que a única consequência possível dessa abertura é serem submersos pela invasão. Diz, nomeadamente, que se acham piores que os outros. Que sabem que não têm qualidade suficiente para competir. Que se veem medíocres, incapazes de apresentar um trabalho com qualidade suficiente para resistir às investidas, sejam elas reais ou imaginárias.

Mas há coisas mais ridículas. O homem afirma que esta alteração ortográfica é "profundíssima", dando a entender que não tem comparação com as anteriores. Para azar dele, a profundidade é contabilizável. O "profundíssimo" dele corresponde a 1,6% das palavras que escrevemos. Em cada 100 palavras, há entre uma e duas que sofrem alterações. Num romance de tamanho razoável, com cem mil palavras, haverá cerca de mil e seiscentas que se alteram. Ou menos ainda, pois as palavras que são alteradas são na sua grande maioria palavras pouco utilizadas. Isso pode, aliás, verificar-se com algum rigor, contando as palavras que mudam em textos escritos com o acordo implementado. Este post, por exemplo. Ele talvez seja demasiado pequeno para obter um resultado estatisticamente válido — para isso convém que os números não sejam pequenos demais — mas pode servir como indicação. Portanto vamos lá: o post tem 779 palavras; O AO altera um total de 11 delas. 1.41%, portanto.

Ui, que profundidade!

E quem saiba alguma coisa sobre como foi a reforma ortográfica de 1911, quem tenha alguma vez lido um texto escrito com a ortografia anterior, parte-se a rir quando vê chamar "profundíssima" a esta. Isto é uma reforma pouco mais que insignificante, mesmo comparando-se à de 1911. E outras línguas há que passaram por alterações ortográficas muito mais "profundíssimas" do que aquela por que a nossa passou em 1911. Mudando, por exemplo, de alfabeto. Isso é um pouco mais profundo do que tirar umas letras não pronunciadas daqui e uns acentos dali, não?

Mas o pior é mesmo que usem a mentira para apelar ao mais rasca sentimento patrioteiro de quem não tem conhecimentos suficientes para saber que é mentira. O pior é mesmo a desonestidade sistemática de que os mais histéricos anti-AO têm dado bastas provas. E este artigo do Público não é exceção, quando o tal autoproclamado zé-ninguém afirma que o AO afeta "exclusivamente um lado". Isto nem sequer é uma meia verdade: é factualmente falso, uma mentira completa. O AO não afeta exclusivamente um lado; afeta todas as pessoas que se exprimem em português escrito.

Uma oposição minimamente séria ao acordo poderia dizer que o AO afeta três vezes mais a escrita euro-africana do que a escrita brasileira, visto que esta tem 0,5% das palavras alteradas. Claro que quem é favorável ao dito poderia contrapor com a cedência brasileira durante as alterações de 1971-1973, por exemplo, que foi muito maior do que isso. Mas uma oposição que falasse a verdade ao menos seria séria. Esta, que aquele lamentável simulacro de artigo no Público propagandeia, não é séria. É mentirosa. E mais lamentável ainda do que o próprio artigo.

PS (escrito mais tarde e por isso fora das contas acima): Já agora, no facebook há também uma página exclusivamente sobre o acordo ortográfico, aqui, um grupo de gente favorável ao AO, aqui, uma página sobre a língua portuguesa, aqui. Até há uma "causa", pequena, é certo (e quem é que precisa duma causa a defender uma lei aprovada e promulgada? Nem eu aderi a ela.), a favor do acordo ortográfico. Aqui. Mas nada disto interessa ao Público.

9 comentários:

  1. E então, Jorge Candeias? Deixou «escapar» o meu artigo publicado, no Público, no domingo, escrito por mim, que sou mais um «lamentável adversário do AO»? Se foi o caso, poderá lê-lo em...

    http://www.publico.pt/Media/opiniao-palavras-de-honra_1425152

    ... e fico à espera que me diga que ele é mais um «desperdício de celulose» ou mais um «típico artigo de pasquim».

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  2. Não sei se você conhece a diferença entre um artigo de opinião e um artigo de informação. Eu conheço. E se não comento artigos de opinião nestes termos é porque eles são precisamente isso: opiniões. Os disparates ou as mentiras que neles eventualmente se digam são da responsabilidade do opinador, e não mancham diretamente o jornal. Pelo contrário, quando um artigo de informação é a inenarrável porcaria que aquele é, mancha diretamente o jornal. E, pela parte que me toca, mancha-o definitivamente. Por mim, o Público já era. A sua degradação está completa.

    Ouvi dizer que você é jornalista. Suponho portanto que já tenha ouvido falar desta distinção.

    Quanto ao seu artigo, vi que ele lá estava mas não li uma palavra. Não me causou o mínimo interesse. E continua a não causar.

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  3. O meu artigo não lhe «causou o mínimo interesse»? Típica atitude de extremista, de intolerante. Ou então de medroso. Tem receio de ser convencido, de perceber de que está enganado?

    Já eu tenho lido sempre com muito interesse, entre o divertido e o consternado, as sucessivas «postas» que você tem colocado aqui em defesa do AO. E fico sinceramente espantado com as suas «acrobacias retóricas», com as suas tentativas de justificar... o injustificável.

    Será que não se apercebe de como é ridículo utilizar, escrever, «diretamente», «dialeto», «exceção», «afeta»?

    Pelos vistos, não.

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  4. Jorge, eu, felizmente, sou um tipo ocupado. Não tenho tempo para ler jornais de fio a pavio. Sou obrigado a ser seletivo. Leio o que me interessa, o que não me interessa não leio. Nesse dia (e hoje também) calhou-lhe a fava a si. Azar.

    Estamos por enquanto num país livre. Você não pode obrigar as pessoas a ler o que não lhes desperta o mínimo interesse.

    Quanto ao resto, obrigado pelos seus comentários. Eles são claros como água quanto ao nível do seu "argumentário". Quando não há nada de inteligente a contrapor às "acrobacias retóricas", usa-se os epítetos.

    É sempre assim.

    Quando e se você tiver algo mais do que insultos a contrapor às minhas "acrobacias retóricas" eu talvez lhe volte a dar alguma resposta. Se estiver para aí virado e com tempo livre entre mãos. Até lá, divirta-se.

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  5. Epítetos, insultos? Caramba, que sensíveis que estamos!

    Claro que eu tenho algo a contrapor... mas, lá está, você não está interessado em ler, por isso...

    E tem a certeza de que «estamos, por enquanto, num país livre»? É óbvio que eu não posso, nem quero, obrigar as pessoas a lerem o que não querem. Só que, entretanto, não sei se já se apercebeu, há para aí uma meia dúzia de fanáticos que querem - mesmo! - obrigar quase todas as pessoas a escreverem de uma forma que não lhes desperta qualquer interesse; desperta-lhes, isso sim, revolta. Será isto normal num país livre? Não me parece.

    Já sei que isto, para si, não é um problema. Você revelou ser «mais papista do que o papa»: bastou um editor exigir que você fizesse traduções segundo o AO para passar a escrever tudo dessa forma. Que coerência! Que dedicação!

    Eu, ao contrário de você, sou seleCtivo. E «seleccionei» vir aqui, confrontá-lo neste assunto, porque me custa ver tanta capacidade, tanto dinamismo, tanta criatividade, desperdiçados numa «causa» tão execrável.

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  6. Oh Octávio, ganhe juízo. Quando a Polícia da Ortografia o puser na cadeia por não cumprir os mandamentos ortográficos, venha falar comigo. Até lá, pare de escrever disparates, se conseguir.

    Com exceção de quem escreve o Diário da República e de quem tem a função de ensinar as crianças a escrever, ninguém será obrigado a escrever segundo a nova ortografia, e mesmo estes só no desempenho da sua profissão. A editora X ou o jornal Y exigem os textos na nova ortografia? O escrevinhador Z recusa-se a escrevê-los assim? Há de haver a editora W ou o jornal K que não a usam. O escrevinhador Z que se mude. Os ranhetas hão de escrever à antiga até morrerem e o pior que lhes acontecerá será serem gozados por quem entretanto se modernizou. Como dizem os ingleses, big fucking deal.

    A sério: a asneira devia mesmo pagar imposto. Resolviam-se duma vez por todas os problemas de défice deste país. Irra, que é demais!

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  7. (Então, Jorge? A querer apagar este meu comentário? Isso não me parece muito corajoso...)

    Concordo consigo: a asneira devia mesmo pagar imposto. O problema é que, nessa hipótese, você, e todos aqueles que defendem o AO, provavelmente não conseguiriam pagar tudo o que «deviam».

    E o «cenário» que você próprio concebeu, com as «variáveis» X, Y, Z, W, K, acaba por ser, ironicamente, mais uma demonstração da idiotice e da inutilidade do AO. Um caos, uma rebaldaria, em última instância a auto-destruição de uma língua. Supostamente feito para resolver um problema... que não existe, o AO vai criar inúmeros - e verdadeiros - problemas. Aliás, um dos mais inacreditáveis «argumentos» que você e outros colaboracionistas utilizam é que o AO é «justo» porque afeCta todos os países! Espantoso! Então, não é sempre melhor, preferível, um projecto, uma iniciativa, que beneficie todos os envolvidos, em vez de os prejudicar?
    Quanto à eventualidade de se ser «gozado por quem entretanto se modernizou», isso para mim não é motivo para ter medo. Para si talvez, mas eu não sou imaturo e inseguro. Dispenso esta «modernização», que, no fundo, significa «cobardia».

    E eu, ao contrário de si, tenho mesmo que ter juízo, também porque, ao contrário de si (e peço desculpa se estiver enganado) sou pai. Ter-se filhos obriga-nos a viver no mundo real, o que não é claramente o seu caso. A minha filha mais nova entra na escola este ano, e, a manter-se esta «capitulação cultural», não duvide que vou mesmo enfrentar, por causa dela (e também, em menor grau, pelas irmãs) uma «Polícia da Ortografia» - mesmo que, a princípio, pareça inofensiva e informal.

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  8. Sim, apaguei por duas vezes, é verdade. Tentei dar-lhe uma oportunidade para não se mostrar um completo troglodita. Como você insiste, este comentário fica. Mas é o último. Já me insultou de extremista, intolerante, medroso, agora imaturo e inseguro. Basta. Você não passa dum troll da pior espécie, daqueles que vão de visita a casa dos outros e cospem no corredor e enchem a cozinha de lixo. Como a mais sensata regra da internet é "don't feed the trolls", acabou-se o alimento ao senhor Octávio dos Santos. Todos os comentários que aqui deixar serão sistematicamente apagados. Chama-se a isso higiene. Passe bem. Longe.

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  9. Jorge, fostes claríssimos nos seus argumentos. Concordo com todos, e até acho que o mercado irá se expandir aos tradutores portugueses.

    A polícia da Ortografia foi impagável!

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