quinta-feira, 15 de julho de 2010

Lido: Nação Crioula

Nação Crioula é um romance de José Eduardo Agualusa que recupera tanto o caráter epistolar como a personagem principal do livro Correspondência de Fradique Mendes, de Eça de Queiroz, para contar várias histórias cruzadas. A história do próprio Fradique, por um lado, e suas andanças por Angola, Brasil e vários pontos da Europa. Por outro lado, a história de Ana Olímpia Vaz de Caminha, antiga escrava e descendente de um rei africano, por quem Fradique se apaixona e com quem acaba por casar-se. Mas alargando mais um pouco o âmbito da coisa e penetrando nela mais fundo, o livro conta também a história da escravatura em terras colonizadas pelos portugueses. E a história da formação da atual nação angolana. E também, em boa medida, a da brasileira. E, sim, a da portuguesa, pois também Portugal durante as suas andanças pelo mundo se transformou irreversivelmente numa nação crioula, por mais que isso custe a certos e mui ignorantes defensores de purezas imaginárias.

Aliás, não é certamente por acaso que o angolano lusodescendente que Agualusa é vai buscar uma personagem à literatura portuguesa e conta com ela a história que pretende contar. Confesso ainda não ter lido o livro do Eça (lacuna que este livro muito fez para corrigir; fiquei cheio de curiosidade), não podendo portanto aferir o grau de fidelidade do Fradique Mendes de Agualusa ao original. Mas uma coisa é evidente: esta Nação Crioula aqui descrita até pode ter o seu fulcro no país de quem a descreve, Angola, mas na verdade corresponde a toda a esfera lusófona, com a sua intrincada teia de amores e ódios, de paixões e violências, de cumplicidades e crimes e de sangue, tanto o muito que foi derramado como o outro tanto que foi cruzado, que começou a ser tecida quando os portugueses partiram mar afora em busca de outros países, povos e riquezas. Uma nação com vários polos e vários graus de mestiçagem, mas toda ela profundamente mestiça, tanto no sangue, como em algo de mais fundamental do que o sangue: a cultura.

E é também uma nação em conflito permanente consigo própria. No romance de Agualusa, esse conflito revela-se sobretudo no tema da escravatura (Nação Crioula é, aliás, o nome do navio negreiro em que Fradique foge de Angola), na luta entre a elite tradicional, confortavelmente instalada na escravocracia, e as ideias abolicionistas, mais modernas, mais liberais. Noutro tempo, seria outro o conflito, mas muito semelhantes os protagonistas. E muitos seriam certamente tão contraditórios como o velho escravocrata que surge nas páginas deste livro, a comerciar escravos, segundo dizia, para os salvar, para os libertar, ao mesmo tempo que defendia acerrimamente ideias anarquistas libertárias.

Nação Crioula é um belo e recomendável romance, sim senhores. E isto diz um tipo que não costuma gostar lá muito da técnica epistolar de contar histórias. Há sempre exceções.

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