sábado, 31 de dezembro de 2011

Lido: O Socorro Inesperado

O Socorro Inesperado (bib.) é um conto de ficção científica de Avram Davidson sobre um vigarista, enrascado por ter vendido antiguidades falsas a quem sabia o suficiente do assunto para ter detetado a marosca, que procura socorro num lugar inusitado: o passado. Como? Através de uma espécie de telefone, acompanhado por um tal "compendio dos nomes, rezidencias e ciphras dos dignos e ilustres patronos da machina de communicação magnetica", que tem a peculiar característica de fazer ligações telefónicas com o passado. E claro que não é com pessoas quaisquer; afinal, trata-se de tecnologia em tempos sofisticada, só ao alcance das bolsas mais abonadas e dos espíritos mais esclarecidos. Cheia de referências a figuras da história americana, é uma historinha divertida e irónica (e também um pouco terrível) sobre o desespero. Gostei bastante, mesmo sem ter apanhado todas as referências.

Lido: Samizdat Especial 1

O Samizdat Especial 1 (bib.) é um fanzine em PDF que se propôs juntar a alguns escritores com nome firmado na FC brasileira outros que da escrita de FC têm pouca ou nenhuma experiência. É uma experiência. Já foi feita por diversas vezes e em várias latitudes e, embora seja raro, por vezes até dá bons resultados.

O mais habitual, contudo, é que os novatos mostrem claramente que o são, caindo nas armadilhas que a ficção científica arma aos iniciantes (quer sejam, ou não, também iniciantes na atividade de escrita em geral), e que os não-novatos apresentem textos muitos furos acima dos demais.

E é quase precisamente o que acontece aqui. Os melhores contos pertencem a autores com nome, e os piores a novatos, mas há uma zona intermédia de contos razoáveis que contém tanto contos de gente experiente como de gente inexperiente. A média, contudo, é bastante baixa. Há alguns contos que eu nunca publicaria nem mesmo num fanzine e, dos doze, só dois me pareceram mais que razoáveis.

Por outro lado, é mais ou menos isso o que se espera de um número de fanzine. Este não foi o melhor que eu li, mas também não foi o pior; andou pela média, ou talvez um pouco menos. E isso quer dizer que, no fundo, cumpriu aquilo que dele se esperava.

Eis o que achei dos contos:
Caso estejam interessados, podem encontrá-lo aqui.

Lido: A Princesa nº 46734

A Princesa nº 46734 (bib.), de José Gomes Ferreira, é um conto curto maravilhoso que faz parte das Aventuras de João Sem Medo, de que falei aqui no ano passado. Esta versão que li agora corresponde à incluída no romance fix-up, e não à que saiu originalmente n'O Senhor Doutor, e é pena. Teria preferido ler a versão original, uma vez que também essa foi publicada sob a forma de conto independente, e portanto não teria, suponho eu, alguns pormenores que nesta indicam tratar-se de um fragmento de uma obra maior. Contudo, isso é um pormenor. Esta história é saborosa mesmo assim. O autor brinca com as convenções dos contos de fadas e subverte-as, pondo um João Sem Medo aborrecido, sem aventura que o anime, a desejar poder pelo menos salvar uma princesa, ou coisa que o valha. Mas as princesas estão todas ocupadas... exceto a número 46734, será que o João a aceita? Pois está claro que sim! E lá vai ele por montes e vales em busca da dita princesa, acabando por encontrar um desfecho bastante irónico. Um continho divertido, bem escrito e bem concebido. (Re-)aprovado.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Lido: Asimov's, nº 325

O número 325 da revista Asimov's, já com bastantes aninhos em cima (é de 2003) mas que só agora li, está muito longe de ser dos melhores. Na verdade, é bem capaz de ser a pior Asimov's de sempre para as minhas papilas gustativas literárias. Normalmente acabo a leitura de uma destas revistas com nota positiva em pelo menos metade dos contos nela incluídos. Às vezes em mais. Nesta, só um conto me caiu mesmo bem ao palato, e vários, incluindo, por sinal, o maior de todos, pareceram-me vários furos abaixo de muitas coisas da FC lusófona que tenho lido nos últimos tempos.

Convenhamos, para uma revista que tem a tradição e os pergaminhos que esta tem, isso é francamente mau. A não-ficção é interessante, em especial o olhar de Silverberg sobre a forma como a língua inglesa vai contaminando as outras (ele aponta a espanhola como exemplo). Mas a Asimov's é fundamentalmente uma revista de contos, e os contos deste número deixam muito a desejar. E os poemas também, já agora.

Eis o que achei de cada um deles:
Esta revista foi comprada por assinatura.

Lido: Guerrilha Urbana

Guerrilha Urbana (bib.), de Giselle Natsu Sato, é uma vinheta de ficção científica que descreve um futuro próximo, num cenário profundamente distópico de autêntica guerra civil que começa entre o exército brasileiro e traficantes de droga, mas depois escala, atingindo proporções muito maiores. É um cenário que dá pano para mangas, e o conto acaba, por isso mesmo (mas também porque a autora mostra qualidades no manejo da língua), por ser dos mais interessantes de toda a publicação em que se insere. Ainda assim, pareceu-me que esta ideia e este cenário seriam muito melhor explorados num texto mais extenso e mais visceral, que contasse menos e mostrasse mais, que permitisse ao leitor vivenciar o que a autora imagina em vez de estar na posição de observador externo de algo que já a própria protagonista basicamente observa. Mas não desgostei.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Lido: Hambre

Hambre é um pequeno conto de horror da mexicana Doris Camarena que, confesso, senti dificuldade em entender com uma leitura apenas mas não chegou a interessar-me o suficiente para uma releitura. Acabei-o com a sensação de que há ali subtilezas a que o meu castelhano não chega. Mas chega para perceber que está muito bem escrito e fala de uma série de assassínios com um final surpresa francamente bem conseguido, daqueles que nos forçam a reavaliar tudo o que ficou para trás, ao mesmo tempo que não viola nenhuma das premissas básicas do texto. Subtilezas. Tudo indica que é um bom conto. Mas não garanto.

Se quiserem, podem lê-lo aqui. É o sexto.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Lido: Natal®

Natal® é um conto de ficção científica de Carlos Silva sobre a artificialidade do mundo futuro, o que é o mesmo que dizer sobre a artificialidade do mundo presente. Ou talvez seja apenas sobre a artificialidade das mulheres. Tudo regado a simbolozinhos de marca registada, cuja função é clara mas que são bastante desnecessários, em especial em tal profusão.

O conto descreve uma cena mundana, na qual uma mulher prepara um natal especial para o marido, em rigorosa imitação de um natal tradicional, e este não reage propriamente como ela esperava. O tom é de história exemplar, de apelo ao regresso àquilo que é tradicional e verdadeiro. Nada tenho contra, em princípio, mas achei este conto demasiado óbvio, sem subtilezas. E isso, a somar a um texto que é razoável mas disso não passa (funcionalização não é sinónimo de funcionamento, já agora; significa "tornar operacional"), fez que não gostasse particularmente do conto.

Lido: Morella

Morella (bib.) é um conto curto de horror, de Edgar Allan Poe que, ao contrário de contos mais tardios do autor, incorpora todos os vícios do romantismo. A história é um drama de faca e alguidar, contado de forma sentimental e na primeira pessoa, por um homem que se apaixona por uma mulher que descreve como inteligentíssima mas mórbida, com ela se casa, e a perde quando morre ao dar à luz uma filha. E esta, por seu lado, desde cedo vai mostrando todos os traços da mãe, o que enche o pai de espanto e de algo mais. De tal forma que o desfecho acaba por não ser de todo inesperado.

Dos contos de Poe que li, este é bem capaz de ser o de que gostei menos. Aquele excesso de sentimentalismo típico dos textos românticos, que faz palpitar de deleite alguns leitores, comigo funciona como repelente bastante eficaz. Mesmo quando não chega propriamente à pieguice, como aqui. Por outro lado, está muito bem escrito. Olhando-o apenas por esse prisma reconheço que é um bom conto.

Lido: Termo de Recriação

Termo de Recriação (bib.), vinheta de Marcia Szajnbok, é outro dos tais contos que se nota demasiado terem sido escritos por alguém pouco familiarizado com a escrita de ficção científica. Trata-se de um continho muito católico que ficciona um relatório, que se percebe ser de deus muito antes da assinatura, sobre, obviamente, a experiência Homem. Fica a perplexidade: a quem apresenta deus relatórios?! Que objetivo leva a personagem-narrador, omnipotente, omnipresente e omni-mais-uma-porção-de-coisas a passar a papel esta narração?!

O conto é infodump puro, claro, e está repleto de ideias muito simplistas e banais sobre a espécie humana. E também de alguns rotundos disparates. Exemplo: às tantas o omnisciente narrador diz que a Terra é um lindo planeta porque é azul, e acrescenta que "nenhum outro jamais fora azul". Neptuno e Urano, hello? Azulados por aquele processozinho físico básico chamado dispersão de Rayleigh, que também é responsável pelo azul dos céus terrestres, e por consequência dos nossos mares? E que portanto terá criado biliões e biliões de planetas azuis por este universo fora?

Enfim...

O texto, em si mesmo, não é mau, mas temo bem que seja o que o conto tem de melhor. Achei tudo o resto muito, muito fraco.

Lido: O Corcel

O Corcel (bib.) é uma vinheta de Bruce Holland Rogers sobre um cavalo que não se deixa domar. Ou pelo menos que contrapõe à teimosia dos cowboys em tentar montá-lo uma teimosia idêntica em não se deixar montar. E em suma é isso. O conto está muito bem escrito, claro, mas não gostei muito dele; achei que esta ideia talvez fosse explorada de forma mais eficaz num texto de maior extensão que contasse mesmo uma história de obstinação em vez de nos traçar um simples retrato de um fim de dia de trabalho.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Transignorâncias: Compasso de espera

Tinha planeado, visto os feriados que se seguem coincidirem com fins de semana, publicar as transignorâncias desta semana e da próxima a meio da semana, por volta da quarta ou quinta-feira. Até já tinha texto pronto e tudo. Mas a verdade é que...

... nesta altura do ano ninguém as leria, não é? Não vale grandemente a pena estar a publicá-las agora se não vão ser lidas (ou pelo menos só o vão ser mais tarde), certo?

Então faz-se assim: faz de conta que o anúncio foi uma espécie de número zero e a coisa só começa mesmo a sério em 2012.

sábado, 17 de dezembro de 2011

Lido: Pão de Laranja à Lydia

Pão de Laranja à Lydia (bib.) é uma deliciosa vinheta, digo, uma deliciosa receita de Bruce Holland Rogers que descreve o modo de preparação de pão de laranja, quer sendo-se uma pessoa qualquer, quer sendo-se Lydia e tendo-se acabado com Jamil Becker, esse traste. De novo, o que torna este continho delicioso é a abordagem, a forma como Rogers escolhe o ponto de vista para contar esta história de vingança, e também a suavidade e limpeza com que tudo fica claro para o leitor. Altamente recomendável, em especial àqueles escritores que não sabem transmitir ao leitor a informação que lhe faz falta a não ser através de infodumps e de diálogos improváveis.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Lido: O Pequeno Guia do Céu, de Tristan de Sapincourt

O Pequeno Guia do Céu, de Tristan de Sapincourt é um pequeno conto surrealista de Afonso Cruz, que fala, marginalmente, de uma viagem espacial feita pelo protagonista em 1613 a bordo de um aparelho por si concebido. Mas o que realmente interessa Cruz neste texto é criar uma atmosfera que remete para os mais antigos percursores da ficção científica (e lhes faz diretamente referência, aliás) e para as suas histórias movidas a imaginação pura e não contaminada pelos subprodutos da Revolução Científica e Tecnológica que são o combustível da ficção científica propriamente dita. Isto equivale a dizer que quem esperar encontrar aqui verosimilhança, ambientes planetários tais como eles são, enfim, essas coisas palpáveis da FC, desengane-se. Não há cá nada disso. O conto faz lembrar alguns dos contos das Cosmicómicas de Calvino, e faz lembrar também (na verdade faz lembrar mais) alguns dos contos de Rhys Hughes, muito em especial Os Tritões Lunares. Como eles, está muito bem escrito, como eles roça a ficção científica sem realmente o ser, como eles usa a erudição como pedra de toque.

Gostei, mas não posso dizer que tenha gostado muito. Porque sou daquelas pessoas que acham muitíssimo mais interessante e repleto de maravilhas o universo visto através de lentes de vidro do que da cabeça de Tristan de Sapincourt. O universo, o verdadeiro e palpável, tem revelado assombros que estão muito para além da imaginação seja de que Tristan for. E não há desenho de Saturno feito no século dezassete que chegue sequer perto de uma única das fotografias da sonda Cassini.

Lido: Um Universo Submarino

Um Universo Submarino (bib.) é um conto curto de ficção científica, de Christian Grenier, que faz lembrar um pouco filmes como O Abismo (filmado muitos anos mais tarde, é bom sublinhar-se, e também com uma abordagem bem diferente). Uma expedição desce num submarino a uma fossa oceânica para avaliar as condições aí existentes e determinar se é, ou não, adequada à instalação de um gerador de energia de tipo revolucionário. Mas o que encontra, para sua enorme surpresa, é uma civilização subaquática, completa com cidades e tudo, e habitada por uma espécie até então desconhecida de criaturas telepáticas semelhantes a tartarugas.

Apesar de ser pouco sofisticado e estar algo datado, é um conto com o seu interesse, em especial tendo em conta que se destina a um público juvenil. Não o recomendo a todos; aqueles que acham que a literatura não pode transmitir mensagens claras, em particular, devem manter-se bem longe dele. Mas quem não se incomoda com mensagens talvez leia com agrado este pequeno exemplo de ficção científica ecológica. Eu não gostei lá muito, mas também não desgostei de todo.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Lido: A Última Pergunta

A Última Pergunta (bib.) é um célebre conto de ficção científica de Isaac Asimov, já com mais de meio século de existência, sobre uma série de pessoas (e transpessoas, digamos) que, ao longo dos muitos milénios que vão de um futuro razoavelmente próximo até ao fim térmico do universo, vão perguntando a uma série de computadores cada vez mais sofisticados se é possível reverter a entropia. E a respsta é sempre a mesma. Até que deixa de o ser.

Trata-se de um conto bastante típico de uma certa forma de fazer FC: sem personagens dignas de nota, quase tosco no que toca à escrita propriamente dita, possui, contudo, uma vastidão de cenários quase impossível de atingir noutros géneros e uma profundidade filosófica rara. Debruça-se, tão-só, sobre a origem, vida e morte do Universo. Coisa pouca.

E este conto em concreto consegue ainda manter-se atual. Apesar da idade, apesar dos sinais de obsolescência que nele abundam (numa época em que andamos com computadores no bolso, ligados à internet, os "avançadíssimos" multivacs gigantescos dos anos 50 soam ridículos de tão anacrónicos), apesar das teorias cosmológicas terem nas últimas décadas sofrido fortes reviravoltas, apesar, até, de mostrar algumas das características mais insuportáveis da FC clássica (a tendência para o infodump e alguns diálogos em que as personagens dizem coisas que nunca diriam porque nós, os leitores, precisamos dessa informação) a pergunta que se faz neste conto permanece sem resposta, e por isso ele mantém-se relevante. Entre os contos-ideia é raro isso acontecer, mas Asimov, apesar dos muitos defeitos que tinha nas outras vertentes da literatura, suficientes para tornar as suas obras ilegíveis para muito boa gente, era um mestre neste tipo de história, e mostra-o aqui.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Lido: O Senhor dos Navegantes

O Senhor dos Navegantes (bib.) é um conto fantástico de Ferreira de Castro repleto de entrelinhas. À primeira vista, trata-se de uma história sobre um homem que vai passear para o campo, levando consigo um livro, e para numa capela isolada, sobranceira ao mar, dedicada ao Senhor dos Navegantes do título. Aí, encontra um estranho homem que mete conversa com ele, afirmando tratar-se do Senhor dos Navegantes, ele próprio (ou de deus, mais genericamente), e lhe descreve, com abundância de pormenores e de exasperação com a parvoíce das pessoas, a vida atribulada que foi tendo ao longo dos séculos. Ou por outra: as vidas, pois aparentemente terá ido reencarnando em vários indivíduos.

Mas se cavarmos mais fundo encontramos um apelo à luta contra as injustiças e a opressão. Um apelo à abertura dos olhos, ao fim da resignação com sortes tristonhas. Um apelo claro, sem qualquer ambiguidade, ainda que o resultado desse apelo a tenha. Pois às exortações do Senhor dos Navegantes para que as pessoas agarrem nas rédeas das suas vidas e decidam por si próprias os seus destinos responde a populaça com gritos de "ladrão" e "louco" e completa rejeição.

É um conto filho do seu tempo salazarista, sem dúvida. Mas, para mal dos nossos pecados, está hoje tão atual como no dia em que foi escrito. Devia ser lido, muito lido. Muito bom.

Lido: O Botão

O Botão (bib.), vinheta de José Espírito Santo, é outro dos tais continhos que parecem ter sido escritos por alguém com pouca ou nenhuma prática na escrita de ficção científica. Aqui vamos encontrar um escritor em pleno ato de escrita de uma história de FC, numa cena doméstica, completa com mulher, filhos e alimentação em família e tudo, embora pontuada aqui e ali por termos que sugerem tecnologia avançada e futurista. E logo em seguida temos infodump, um longo infodump. É citação da história que a personagem do conto escreve, é certo, mas não é menos infodump por isso. E depois, o final surpresa que colide de frente com o que ficou escrito antes. E isso transforma-o num desastre. Não é assim que se concebem finais surpresa. A arte está em fazer com que eles sejam inteiramente coerentes com o que ficou para trás, mas mesmo assim apanharem o leitor de surpresa. O conto podia ser razoável sem este final desastrado, mas com ele torna-se muito, muito fraco. É pena.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Lido: Rumores

Rumores é um pequeno conto de ficção científica de Néstor Darío Figueiras. Ao mesmo tempo humorístico e inquietante, mostra um mundo em que receber telefonemas para estudos de opinião é ainda menos seguro do que no nosso. Especialmente para homens facilmente influenciáveis pelas inflexões sedutoras das vozes femininas. É difícil suspender a descrença ao lê-lo, a ideia parece demasiado improvável e não achei o ambiente suficientemente bem construído, mesmo tendo em conta que o que aqui se pretende é principalmente a sátira à prática do telemarketing, levando-a às últimas consequências. Não achei o conto mau, mas tampouco o achei bom. Está disponível para leitura, aqui. É a quinta história.

sábado, 10 de dezembro de 2011

Transignorâncias (1): Se não sei o que não sei, que sei eu?

Tinha pensado começar esta série de textos com temas sugeridos pela resposta abortada ao comentário do Henry de que falei na semana passada. Mas durante a semana li uma frase num dos livros que tenho atualmente em leitura que me fez começar por algo mais genérico. Ei-la: “A ignorância é o terreno do pensamento.”

Esta frase é uma versão de tradutor de algo escrito por Ursula K. LeGuin, muito provavelmente a melhor escritora de ficção científica de sempre e claramente membro do grupo de elite de grandes escritores que o género deu à literatura durante o século XX, mesmo quando retiramos o sexo da equação.

E o motivo que me levou a começar estes textos por aí é achá-la inteiramente certeira ao mesmo tempo que a vejo também como incompleta. E porque me sugeriu o palavrão com que intitularei genericamente estes posts. E, bem, porque me apeteceu.

Sim, a ignorância é o terreno do pensamento. É na ignorância que o pensamento se processa, só a ignorância, aliás, o permite. Um ser que de facto fosse omnisciente, um ser que realmente soubesse tudo o que há para saber, nunca pensaria, limitar-se-ia a saber. Não procuraria respostas porque já as conheceria a todas, não faria perguntas porque também estas conheceria por inteiro. Seria dotado de um acervo estático de conhecimento. Infinito, sim, mas estático. A sua atividade mental resumir-se-ia a encontrar nessa biblioteca infinita as parcelas de conhecimento que lá estariam guardadas e, como também o local de armazenamento de cada informação faz parte de toda a informação que há para conhecer, uma criatura omnisciente nem precisaria de procurar. De novo, limitar-se-ia a saber. E assim, de uma forma muito concreta, criatura que fosse omnisciente pura e simplesmente não pensaria.

Lembrem-se disto da próxima vez que vos disserem que deus é omnisciente.

A não-ignorância, portanto, sufoca o pensamento. Mas a ignorância não basta. É preciso também ter-se dela consciência. Julgar que se sabe as respostas é um inibidor quase tão eficiente de perguntas como sabê-las de facto. Ou seja, se é certo que a ignorância é o terreno do pensamento, este só se processa quando essa ignorância é consciente.

Seria bom se se soubesse sempre por onde passa a fronteira entre o que se conhece e o que não se conhece. Seria bom poder traçá-la, plantar solidamente os pés mentais do lado do conhecido e atirar o pensamento ao desconhecido, mergulhando-o naquilo que se ignora. Mas geralmente não é assim. No máximo, sabe-se que essa fronteira está algures por ali, difusa e pouco nítida. No máximo, há a consciência de que é perfeitamente possível que terreno que se julga sólido esteja minado, cheio de bichezas. De preconceitos, ideias falsas, verdades parciais ou parcelares, carunchos vários. Quando há essa consciência pode-se ir pensando de uma forma interativa, regressando atrás de vez em quando para verificar se as conclusões a que o pensamento leva confirmam ou põem em causa o que se julgava saber. É essa a única maneira de se pensar bem.

Quando essa consciência de terreno minado não existe, quando se julga saber o que na realidade não se sabe, só por grande e afortunado acaso será possível evitar pensar mal. É possível pensar, sim, pois para o fazer basta a ignorância, mas do resultado pouco ou nada se aproveitará. Com base em coisa nenhuma, pode construir-se grandes e detalhados castelos de vento, cheios de torres e muralhas, ameias e adarves, mas só por sorte haverá na sua essência algo mais que nada.

O que quero dizer com isto é que a ignorância será o terreno do pensamento, sim senhora, dona Úrsula, mas a consciência é o seu motor e o combustível que o faz funcionar. A consciência e uma espécie muito peculiar de humildade. A mesma humildade de que os homens de ciência se socorrem quando aceitam submeter as suas elaboradas teorias ao tira-teimas da experiência.

domingo, 4 de dezembro de 2011

Lido: Ilusões

Ilusões (bib.) é um conto curto de ficção científica, de Denis da Cruz, escrito com uma certa competência, que conta uma história distópica sobre um guerreiro biónico que é contratado por uma corporação para roubar a memória de um "ID". É também um conto muito católico, e por conseguinte muito maniqueísta. Isso não ajuda nada a que eu dele goste, porque sou bastante alérgico a maniqueísmos, sejam católicos ou não, mas o que o estraga mesmo, para mim, é o autor achar que tem de esfregar todo o simbolismo na cara do leitor, é ele não confiar na inteligência de quem o lê. É ter de chamar à IA boa "Messias" e à IA má "Lúcifer", à maligna corporação "Satan", e dar a sua liçãozinha de moral no último parágrafo, como se tudo o que ficou escrito antes não bastasse. É não compreender que a literatura, aquela que realmente o é, é um jogo de inteligência entre o escritor e o leitor, e que a inteligência pressupõe subtileza. E é pena. Ele é competente no manejo da língua, e a história tem ritmo, tirando um infodump inicial que me pareceu escusado (ou talvez apenas demasiado longo), e algumas boas ideias. Podia ter gostado desta história. Mas a verdade é que não gostei.

A partir do próximo fim de semana, na Lâmpada

Henry Alfred Bugalho é indiretamente responsável por uma nova rubrica que irá começar a aparecer no próximo fim de semana aqui na Lâmpada. Isto porque comentou um post onde eu falei de um conto dele, que li há dias e de que não gostei mesmo nada, compreensivelmente pouco satisfeito, e levantando uma série de questões pertinentes. E eu comecei a responder ao comentário, também em comentário, até que a páginas tantas parei e pensei cá com os meus botões: não, assim não vamos lá. É preciso ir mais fundo do que isto. De modo que apaguei tudo e decidi fazer uma coisa que já andava com ideias vagas de fazer há algum tempo.

Um conjunto de posts regulares e mais desenvolvidos (e maiores) com opiniões sobre vários temas. Um tema por post.

Esses posts irão sendo escritos ao longo da semana, quando tiver tempo e disposição, e serão publicados durante o fim de semana, provavelmente ao sábado. Não garanto regularidade total, que não tenho vida para isso e porque é possível que alguns temas mais complexos me exijam mais do que uma semana para os tratar convenientemente, mas espero conseguir pôr cá um post na maioria dos fins de semana. Os primeiros serão em parte respostas às questões levantadas pelo Henry.

E por agora é só. O primeiro deverá aparecer no próximo fim de semana.

E uma etiqueta que os agrupe? Hm... 'xa cá pensar...

sábado, 3 de dezembro de 2011

Lido: À Última Janela, que Ninguém Viu, da Última Carruagem, que Ninguém Viu

À Última Janela, que Ninguém Viu, da Última Carruagem, que Ninguém Viu (bib.) é o longo título de uma vinheta de Bruce Holland Rogers sobre um desencontro. Ou melhor, sobre a negativa de um encontro. Julgo que será esta a melhor forma de o descrever. É que o que o conto tem de mais interessante é precisamente essa negativa. O narrador nega. Nega que fez isto e aquilo, nega que viu isto ou ouviu aquilo, nega, finalmente, ter renunciado no último momento a encontrar-se com o pai que nunca conheceu. E nessa negação está toda uma vida. Outro conto muito bom, ainda que o impacto emocional deste seja menor que o do primeiro.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Vaporpunk / dieselpunk, update

Pois é. Vaporpunk já não há. Os três exemplares seguiram viagem para três novos lares e chegaram sãos e salvos. Até me cheira que já alguém os andará a ler e tudo. O mesmo aconteceu a um número maior de exemplares de Dieselpunk, mas desses ainda restam por cá dois. Se houver por aí interessados, já sabem: contactem-me.

Lido: Cemitério Russo

Cemitério Russo (bib.) é um conto curto de ficção científica, de Henry Alfred Bugalho, que comprova que a ideia não basta para escrever FC. É que a ideia não é má, apesar de não ser propriamente original. Uma doença de contágio rápido, cura desconhecida e quase cem porcento mortal, espalha-se pelo mundo, pondo fim à nossa civilização. Mas está executada de uma forma tão pouco inspirada que o conto acaba por ficar muito, muito fraco. O português, básico, não ajuda, mas o que realmente estraga tudo é a estrutura. Começa com um longo e muito aborrecido infodump em que é descrita a progressão da doença. Depois, já a meio do conto, é-nos finalmente apresentado o protagonista, um jovem moscovita que tenta escapar ao contágio. Depressa demais, surge o ponto alto da história, antes de chegarmos a uma terceira parte, séculos mais tarde, no princípio da qual somos informados de que estamos a assistir a escavações arqueológicas. E é nesse momento que o desfecho se torna absolutamente previsível.

Não há ideia, não há história, que resista a ser tão mal contada.

Lido: Consciência de Ébano

Consciência de Ébano (bib.) é uma longa noveleta de Gerson Lodi-Ribeiro, na qual o autor regressa ao seu universo de história alternativa dos Três Brasis, no qual um velho vampiro, Dentes Compridos, se alia a Palmares para garantir a independência da nação negra em terras sul-americanas, e a transformar numa potência. O protagonista é um mulato palmarino, descendente de algumas figuras ilustres da sua pátria que, não obstante, encara o vampiro como a encarnação do mal, e pensa que a sua existência conspurca a própria ideia do seu país.

Trata-se de um regresso de Gerson a um dos temas recorrentes nas suas histórias alternativas: a questão patriótica, e a forma como as lealdades e os idealismos se combinam para levar as pessoas à ação. É, portanto, uma história com bastante interesse, interesse esse que cresce com o uso de expressões num português arcaizante, adequado à época em que a ação decorre (mesmo que esta opção possa tornar mais complicada a leitura para alguns leitores), mas que no entanto é prejudicada pela solução que o autor encontrou para um dilema que cai sobre todos os escritores que escrevem histórias inseridas em séries: deverei partir do princípio de que os leitores já conhecem as histórias anteriores, ou não?

É uma pergunta de resposta complexa. Na verdade, não há uma resposta definitiva; ela depende do modo como as histórias vêm a público, do tempo passado desde a publicação de histórias anteriores da série, e de vários outros fatores. Aqui, Gerson decide partir do princípio de que os leitores não conhecem as outras histórias, e por isso gasta bastante latim a explicar o que está subjacente a esta. Creio que isso acaba por prejudicar a fluidez da noveleta e para um leitor como eu que, se não conhece toda a série, conhece pelo menos a maior parte, torna alguns trechos aborrecidos. Se algum dia o Gerson decidir publicar todas as histórias dos Três Brasis num volume único (o que eu acho ótima ideia, já agora), julgo que seria conveniente fazer uma purga a esta história, retirando dela a informação redundante. Creio que o resultado seria uma noveleta ainda melhor.

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Lido: Como um Fim de Tarde Simulado

Como um Fim de Tarde Simulado (bib.) é um conto de FC ciberpunk de Samuel Peregrino que conta, de uma forma tudo menos linear, uma história do futuro próximo. Não sou grande fã de narrativas não-lineares, em especial das que o são muito. É demasiado fácil que essa técnica resulte em detrimento da história, confundindo desnecessariamente o leitor. Mas reconheço que se há estilo a que esse tipo de narrativa se aplica bem, é o ciberpunk, porque a não-linearidade reflete de forma bastante precisa o caráter descontínuo da experiência web. Contudo, para o conseguir é necessário pôr em prática capacidades de que nem todos os escritores dispõem.

No caso deste conto, o resultado não é bom, mas é, pelo menos, intrigante. Para o meu gosto, há personagens a menos (e não me refiro ao número, mas à profundidade) e infodump a mais. O autor, claramente, usa as personagens apenas para falar do desenvolvimento dos acontecimentos. É uma opção legítima, mas não me agrada muito quando é levada a extremos, que é o que julgo que acontece aqui. E também falta uma revisão digna desse nome, pois o conto está salpicado de erros ortográficos que dificilmente se perdoam (erros na crase, o eterno calcanhar de aquiles de tantos brasileiros, e também erros de concordância e noutras construções gramaticais), em especial porque o estilo nem é mau e as partes bem escritas do texto estão mesmo bem escritas, mostrando um autor com potencial, potencial esse que também se revela no facto de conseguir fazer com que as peças aparentemente desconexas da narrativa não-linear acabem por fazer sentido no fim. Em suma: um conto razoável de um autor promissor, caso consiga limar algumas arestas.

Lido: História de Portugal, Director's Cut

História de Portugal, Director's Cut (bib.), de Renato Carreira é, supreendentemente, um livro sobre a história de Portugal. Ninguém diria, mesmo com a bandeira nacional na capa e tudo, mas é verdade. O tema do livro é a história do nosso glorioso retângulo à beira-mar plantado, desde os tempos em que ainda nem existíamos enquanto tugas e o nosso mapa não era em forma de jardim, até aos dias um tudo-nada anteriores aos de hoje. Ainda não inclui o desastre do Passos Coelho, mas já inclui o desastre do José Sócrates, além de uma multidão de desastres anteriores. E também uma ou outra coisinha decente, naturalmente. Afinal, o 25 de Abril não ficou de fora.

Obviamente, como a história de Portugal é uma anedota, trata-se de um livro de humor. Por vezes com piada genuína, que deu aqui a este leitor para esboçar sorrisos e até chegar mesmo algumas vezes a desenhá-los a tinta da china e até um ou outro a óleo. E também, ainda que mais raramente, para soltar uma ou outra gargalhadinha discreta. Para rebentar em gargalhadas não deu, e ainda bem, que não queríamos cá a brigada de minas e armadilhas nem alarmar a vizinhança com rebentamentos noturnos (o livro foi lido principalmente à noite). De outras vezes, porém, a piada não resistiria a uma vistoria da ASAE. Piadolas pirateadas, disfarçadas de piadas, números repetidos tentando passar por novos. Convenhamos que não é fácil manter um humor uniformemente humorístico ao longo de 250 páginas, mas o facto é que esses fraquejos fazem com que o livro não seja tão bom como podia ter sido. Tem piada, mas podia ter mais. Gostei, mas podia ter gostado mais. E não há muito mais que possa dizer sobre ele.

A não ser, talvez, que quem encare a história do nosso país (e o nosso país) como coisa séria, é melhor manter-se afastado desta... hm... versão, chamemos-lhe assim à falta de um termo mais adequado.

Ah, sim, o livro vem incluído numa coleção de literatura fantástica. Porquê?, perguntarão. A pergunta é boa, mas eu julgo saber a resposta. Pelo mesmo motivo por que, mantendo-se as devidas distâncias, A História Universal da Infâmia, de Jorge Luis Borges, pertence à literatura fantástica. Porque se apresenta como história mas mistura facto e ficção, baralhando tudo e voltando a dar. Há algo de história alternativa em algumas passagens, embora não muito; é que neste livro é em geral fácil separar facto de ficção, e para isso nem é preciso ter grandes conhecimentos sobre a história de Portugal tal como nos é apresentada por quem a reputa de verdadeira. Em Borges chega a ser quase impossível, e na HA a premissa ucrónica é clara desde o início. Portanto este livro é, parece-me, algo diferente. Mais humor que qualquer outra coisa. Mas não deixa de ter em si elementos fantásticos mais ou menos relevantes.

Este livro foi comprado, se a memória não me engana. Mas também pode ter sido fruto da tal promoção "leve 3, pague 2".

domingo, 27 de novembro de 2011

Lido: Primeiro Encontro

Primeiro Encontro (bib.), vinheta de Volmar Camargo Junior, é outro dos tais contos em que o autor sente a necessidade de explicar o que se segue logo em subtítulo. Neste caso, trata-se de um continho steampunk, claramente inspirado pelo filme Wild Wild West, e muito, muito pulp: há um vilão estereotipadamente mauzão, um soldado-aranha que tem sete patas por causa de um encontro anterior com a heroína. Esta também é uma personagem bem cliché: a ladra de bom coração. Já Fritz Leiber escreveu história atrás de história (ainda que de fantasia) com personagens do género, começando ainda nos anos 30 do século passado. E depois aparece caído do céu (bem... ou pelo contrário) um nerd que, claro, acaba com a mocinha. Tudo movido a ação, com os tiros, saltos e esquivas na iminência do desastre da praxe. É um conto adolescente. Se o autor também o for, tem muito tempo para crescer e fazer coisas fracas como esta faz parte do percurso. Se não... bem...

Lido: The Grass and Trees

The Grass and Trees, de Eliot Fintushel, é uma novela muito bizarra, que se centra num grupo de metamorfos, capazes de se transformar seja no que for. Têm o nome de shashas, bem ridículo perante olhos portugueses. No meio duma confusa teia de relações interpessoais (ou intermetamorfosais, talvez), o que faz mover a história é a busca que uma personagem particularmente endoidecida leva a cabo, tentando encontrar um irmão. Mas aquilo que esta história tem de interessante é a forma como é utilizado o inglês coloquial e imperfeito dos americanos com fraca instrução, nos diálogos e, em geral, o estilo literário de Fintushel. E temo bem que seja só isso. A história é muito aborrecida, as personagens estão suficientemente mal caracterizadas para nunca se chegar a perceber bem (ou até mal) o que as move, e todo o ambiente dos metamorfos é demasiado disparatado e inverosímil enquanto ficção científica para poder ser levado minimamente a sério. Sim, que é difícil olhar para uma história incluída numa Asimov's como outra coisa que não FC. Mas esta de FC tem pouco, e só não é nada o que tem devido à existência dumas conversas vagamente matemáticas lá pelo meio. Está muito longe de chegar. Não gostei nada desta novela, e o facto de ser tão comprida não ajudou nada a gostar mais. Tem algum interesse literário, mas à parte a qualidade na utilização da língua inglesa não lhe encontrei interesse algum.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

The Bang! wordle

Wordle: The Bang! WordleJá ouviram falar do wordle? É um site que rearranja o texto contido numa página web (com feed), ou aquele que lhe fornecermos, e faz com ele arranjos mais ou menos artísticos das palavras mais frequentes, nos quais quanto maior o tipo de letra maior a frequência da palavra.

Pois este aqui ao lado é o wordle da coleção Bang!, da Saída de Emergência, feito com os títulos tal como se podem encontrar no Bibliowiki. Se quiserem vê-lo em ponto grande, basta clicar nele.

Nada de especial. Só uma curiosidade curiosamente curiosa.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Lido: História Natural

História Natural (bib.) é uma vinheta de Max Mallmann que cheira às Cosmicómicas de Italo Calvino por todos os lados. Porque está bem escrita, porque está imbuída de um humor fino e muito bem conseguido e porque, acima de tudo, parece contada pelo Qfwfq. Escrito na primeira pessoa, o conto traça a história natural de um determinado ser vivo, desde os tempos de molécula, a flutuar entre as suas congéneres na sopa primordial, até aos dias de hoje. E sempre, ao longo de todo este percurso, a molécula, depois célula, depois organismo multicelular e cada vez mais complexo, sempre foi avisando que as coisas não iam dar certo. E não é que não deram mesmo? Não faço a mínima ideia se Mallmann leu ou não as Cosmicómicas, mas se não leu deve ler. Este seu continho sentir-se-ia bem à vontade entre elas. E é um bom conto, e de bónus ainda por cima é divertido.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Lido: O Artista da Carne

O Artista da Carne (bib.) é uma vinheta de Fábio Fernandes que tem como subtítulo "Uma Parábola". Não costuma ser bom sinal quando uma obra literária tem de esclarecer em subtítulo o que pretende ser. Costuma ser sinal de que o objetivo do autor não fica claro no lugar próprio: o texto propriamente dito. Ou pelo menos de que o autor não confia o suficiente na inteligência do leitor para o deixar tirar as suas próprias conclusões. De um ou de outro modo, é sempre mau sinal.

Aqui, a história é uma pequena história de amores infelizes em ambiente de ficção científica, cujo protagonista é um vampiro em busca de um amor perdido. Literalmente. Para isso procura o artista da carne do título, o que trocado por miúdos significa alguém capaz de criar um clone. O clone, claro, da mulher que o vampiro tinha amado. Falha óbvia, em que no entanto tantos autores caem: não é por terem a mesma genética que duas pessoas são idênticas. Cada um de nós é resultado da interação entre a genética e o ambiente. Por isso, um clone é sempre outra pessoa, mas aqui é como se fosse a mesma.

OK, é uma parábola, não é? Uma história com moral, e a moral da história é que é escusado tentar recuperar o passado. Está bem. Aceita-se. Se estivesse particularmente bem escrita, talvez a considerasse uma boa história. Mas o texto não é nada por aí além. Há infodumps escusados. Há construções deselegantes ("até ao dia do seu vigésimo segundo aniversário" é imensamente preferível ao "até ao dia de seu aniversário de vinte e dois anos" que aparece no conto, por exemplo), enfim, há coisas mal conseguidas. O conto é, portanto, razoável. Não passa disso.

Lido: Darwinia

AVISO: Esta opinião tem spoilers

Darwinia (bib.) é um romance de ficção científica de Robert Charles Wilson sobre, como vem escrito na capa, "um século XX muito diferente." Mas se virmos bem as coisas, não é exatamente sobre isso.

A história começa mostrando-nos um acontecimento, assim mesmo, em itálico. Algo de gigantesco e inexplicável, um milagre. A Europa ou, mais precisamente, um círculo de território terrestre que engloba a Europa e partes dos continentes limítrofes, é de um momento para o outro substituída por uma sua versão alternativa, geograficamente semelhante mas totalmente estranha no que toca à biologia. Uma Europa que não tem seres vivos reconhecíveis e, como é óbvio, não tem seres humanos. Nem as coisas que os seres humanos foram fazendo e o impacto que foram tendo na paisagem. Não só a biosfera é diferente, como o mesmo acontece com toda a sua história natural. Um continente virgem e coberto de uma vida como que vinda de outro planeta, embora simultaneamente com todos os sinais de ter evoluído ali mesmo durante os mesmos milhões de anos que nós demorámos a chegar cá. Um continente a que é dado o nome de Darwinia.

Acontece este milagre no início do século XX. O romance centra-se no espaço anglófono, e é logo aqui que reside a sua primeira falha. Porque os EUA surgem como potência dominante em toda a Europa, é como se as potências europeias da época — com a notável exceção do Reino Unido — não tivessem colónias, e como se pelo menos Portugal e a Espanha não tivessem também, à semelhança da Inglaterra, ex-colónias com capacidade e muito provavelmente vontade de intervir nas ex-metrópoles, ou naquilo em que elas se transformaram. Como se só houvesse laços familiares quebrados em famílias anglófonas, numa inverosimilhança bastante etnocêntrica e um bom bocado simplória.

Mas ultrapassada esta pequena irritação, a história é interessante, e mais interessante se torna quando começa a descobrir-se onde é que está, afinal, a FC. É que esta Terra não é a nossa, e nem sequer é uma outra Terra alternativa à nossa, localizada nalgum universo paralelo, a menos que se postule que nós, vocês e eu e toda a gente, vivemos no interior de uma singularidade e que toda a realidade que nos rodeia não passa de ilusão. Porque é precisamente isso que explica Darwinia. Na realidade do romance, todo o planeta, todo o universo, aliás, não passa de uma simulação num sistema informático imensamente poderoso, que no entanto se encontra sob ataque por parte de uns seres que pretendem destruí-lo. Algo de semelhante a vírus. E o acontecimento origina-se aí: foi um ataque, um grão na engrenagem, uma corrupção da informação que provocou uma alteração fundamental no rumo traçado para a simulação.

Não foi por acaso que este livro ganhou o prémio Philip K. Dick. Joga com a ideia de que a realidade é ilusória duma forma bem semelhante à de Dick.

No entanto, julgo que há uma falha no enredo. Ou pelo menos houve uma coisa que eu não entendi. É que depois do acontecimento, essa intrusão violenta, súbita e de escala gigantesca, o combate entre os "deuses" que dirigem a simulação e os que procuram destruí-la desce literalmente à Terra. Esses "deuses" passam a controlar indivíduos que, através dos seus atos, vão preparando o palco para uma batalha final. E eu não consigo entender que motivo poderia levar algo suficientemente poderoso para uma corrupção súbita de grande escala a ter de se reduzir a levar a cabo trabalhinho de sapa através da manipulação de avatares. A não ser, naturalmente, esse facto permitir que mais de metade do romance exista. Mas essa razão não me parece suficiente. As obras de ficção devem ter uma lógica interna, que julgo que aqui é violada. E acho a necessidade de haver uma confrontação final desagradavelmente cliché. E no entanto...

... e no entanto gostei bastante. Talvez andar a ler relativamente pouca ficção científica nos últimos tempos faça com que saboreie melhor quando me vem parar às mãos um exemplo do género com alguma sofisticação. Ou talvez Darwinia tenha mesmo qualidade, apesar das falhas. Não recomendo este livro a toda a gente, mas os fãs de Dick, pelo menos, devem gostar muito de o ler.

Este livro foi adquirido como brinde na promoção "Leve 3, pague 2" da Saída de Emergência.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Lido: Código Denominativo: RG-12

Código Denominativo: RG-12 (bib.) é uma vinheta de FC de Carlos Alberto Ramos cujo protagonista é um robot, numa Terra futura vazia de seres humanos. Não sei que experiência teria o autor na escrita de histórias de ficção científica quando escreveu esta, mas não devia ser muita porque comete quase todos os erros que se podem cometer numa história deste tipo e tamanho. Para começar, não existe história, só a descrição de uma situação, na qual o robot descreve aquilo que sucedeu até chegar àquela situação, que também descreve. Num conto tão pequeno (uma página apenas), ocupá-lo todo com infodump não é grande ideia. Além disso, se o robot fala para outros robots do seu tempo, para quê estar a descrever coisas que serão do conhecimento geral da "maquinidade" sua contemporânea? Sim, porque falar para nós, humanos, não faz sentido: estamos extintos (Extinguimo-nos, precisamente, em 2110). E há mais, mas não vale a pena bater mais no ceguinho. Achei este conto muito fraco.

Lido: A Mosca

A Mosca (bib.) é um conto de ficção científica de Bertrand Solet, aparentemente muito influenciado pelas histórias do James Bond, ou talvez pela BD. Algures no futuro, um supervilão ameaça a Terra com atos de sabotagem e terrorismo, exigindo avultadas somas para não fazer cair satélites gigantes sobre as grandes cidades do planeta. A mosca do título é um aparelho de espionagem em forma de mosca, criado pelo protagonista, especialista nesse tipo de miniaturização tecnológica, e destinado a tentar descobrir quem é ao certo o tal supervilão e, se possível, segui-lo e prendê-lo.

Escrito muito antes do 11 de Setembro, podia ser um conto bastante bom, quase profético até. Mas não é. Pareceu-me razoável, em especial para conto juvenil, mas não acho que passe disso. As coisas desenrolam-se sem grande ritmo, e o protagonista tem um interesse amoroso que parece metido à pressão na história, uma vez que não tem qualquer intervenção nela, limitando-se a aparecer no início e depois no fim.

Lido: Lentidão

Lentidão (bib.) é um conto de ficção científica de Ana Cristina Rodrigues, algo space-operático, com um estilo um pouco antiquado, cujo protagonista é um contrabandista que se associa a um grupo guerrilheiro num planeta distante. A trama gira em volta dos negócios — obviamente sujos — do contrabandista e dos sarilhos em que se mete para cumprir com aquilo que dele esperam... ou não. É um conto razoável, mas não me parece que passe daí. Tem alguns aspetos interessantes, mas a impressão principal que me causou foi de ser um conto apressado, no sentido de não ter sido pensado até ao fim. Exemplifico: o fulcro do desfecho do conto, e aquilo que explica o título, reside na ausência de um motor de dobra na nave que o contrabandista usa para ir encontrar-se com uns contactos alienígenas tão trapaceiros como ele. Nada a opor ao motor de dobra; trata-se de um cliché na FC (em trekês chama-se warp drive, mas é a mesma coisa), mas até é teoricamente possível à luz da física atual e tudo. Só que antes dessa ausência ser revelada, ao mesmo tempo que nos é dada a informação de que em naves daquele tipo tais motores não são autorizados, tinha aparecido como motivo da viagem o teste de... motores de dobra novos. Esta é a pior incongruência do conto, mas há mais algumas, em especial no que toca ao ambiente espacial propriamente dito. Isso, as personagens etereotipadas e um enredo que não me pareceu lá muito bem ligado puxa a qualidade do conto para baixo. Mas, como disse, há alguns pontos interessantes, portanto também não o achei mau.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Lido: O Cágado

O Cágado (bib.), de José de Almada Negreiros, é um conto curto que, se tivesse sido escrito hoje em dia, teria sido englobado sem pestanejar na weird fiction. Conta a história de um homem que era muito senhor da sua vontade, como Negreiros não se cansa de repetir no princípio do conto, parando de o fazer mesmo antes de levar quem lê à exaustão, e que mete na cabeça que havia de apanhar um cágado que de repente se lhe atravessa no caminho e desaparece num buraco. Mas o homem enfia a mão no buraco, depois o braço até ao ombro, e de cágado nem sombra. Desata a cavar, e nada, mas vai cavando, teimoso, até acabar por atravessar o mundo inteiro e sair nos antípodas. Não propriamente naqueles antípodas que acabamos por conhecer se formos para os lados da Nova Zelândia, mas nuns antípodas bem bizarros, bem surreais. Depois... bem, não vou contar o conto todo.

Tirando as repetições do início do conto, que achei demasiadas e chatas, a história é curiosa e até mesmo divertida, em especial no remate. E também é engraçado encontrar os paralelismos entre este conto e obras posteriores de autores como Italo Calvino ou os já referidos weird fictionists modernos. Decididamente, nada há de novo debaixo das estrelas.

domingo, 13 de novembro de 2011

Lido: Mundos, nº 1

O Mundos foi um fanzine do qual só conheço este número 1, editado em 1996 e dirigido por João Vasco Almeida e Nuno Miguel Cruz. De fanzines, e em especial dos números 1 (ou zero) dos fanzines, nunca se espera muito, e de facto não é muito o que este apresenta. Nenhum conto me pareceu bom. Aliás, pondo-me na pele dos editores, eu só teria publicado um deles, o primeiro. Os outros teria devolvido aos autores, pedindo-lhes para trabalharem melhor alguns deles, outros sem mais porque não me parece que deles pudesse sair algo com algum interesse.

Em todo o caso, se de facto este foi o único número do fanzine, é pena. Como muitas outras coisas, um fanzine precisa de tempo para se desenvolver e atingir o seu potencial. Sim, este número é muito fraco, mas essa fraqueza não é esculpida em pedra no momento da conceção. Poderia ter melhorado, e muito, tanto a publicação como os próprios autores. Estes sei que não o fizeram, caso contrário ter-se-iam visto por aí nos últimos 15 anos e, pelo menos num par de casos, é pena. E a publicação também é pena. Mais uma das falsas partidas que tão abundantes são em Portugal.

Aqui fica o que achei dos contos:

- Lusóluna;
- Abraços em Contra-Luz;
- Ao Acaso;
- O Relatório;
- Mundo Interior

Lido: El Extraterrestre

El Extraterrestre, da mexicana Rebeca Montañez, é um pequeno conto em forma de testemunho, cuja narradora é uma mulher que se envolveu romanticamente com um extraterrestre e que assim desabafa. Extraterrestes "de outras galáxias" que só diferem dos terrestres por causa de uns sulcos nas plantas dos pés são das tais coisas que violentam furiosamente a minha capacidade de suspender a descrença. É em grande medida por esse motivo que achei o conto fracote, embora me pareça bem escrito e um final interessante compense até certo ponto a fragilidade da efabulação. Podem verificar pessoalmente dando um salto a esta página e descendo até à quarta história.

Lido: Mundo Interior

Mundo Interior, de João Almeida, é um conto de ficção científica baseado numa ideia que por vezes dá histórias interessantes: as pequenas criaturas que vivem em pequenos mundos e são tão pequenas que nós, habituados ao nosso mundo macroscópico, não as reconhecemos como portadoras de inteligência, ou, até, como seres vivos. Ainda recentemente li uma boa história dessas: Os Besouros de Ouro, de Simak. Esta história de João Almeida, porém, é muito deficiente. Ao conto falta ligação e estrutura. A princípio leva-nos a um lugar estranho onde algo, aparentemente, está a partir o céu, depois salta para uma noite de observação astronómica em Cabo Verde onde tudo se revela abruptamente e de uma forma nada original. Mesmo assim, boa prosa talvez tivesse conseguido salvar o conto. Mas a prosa do autor é tão tosca que isso esteve muito longe de acontecer. Muito fraco.

Lido: A História de Avery

A História de Avery (bib.) é um brilhante continho de Bruce Holland Rogers que nos relata um momento, aparentemente banal mas ao mesmo tempo extraordinário, em que os olhos de duas pessoas se encontram no muito do bulício de uma grande cidade, momento esse que é também o instante em que uma dessas pessoas é atropelada. Carregado de subtileza e poesia, é um conto que transcende em muito a sua dimensão. Muito bom.

Lido: O Relatório

O Relatório é um pequeno conto de Nuno Matias repleto de um humorismo que, ou muito me engano, ou é absolutamente involuntário. É ficção científica, julgo que sobre uma avaria num planeta qualquer, nas não porque fosse hábito do autor escrever contos de ficção científica. Diz que é o primeiro, e atrevo-me a supor que terá também sido o último porque este primeiro resultado é muito, muito mau. Tão mau que não é descritível. Tão mau que me fez rir. Nem tudo se perde.

Lido: Uma Récita do Roberto do Diabo

Sim, eu sei. Não foi há tanto tempo como isso que aqui falei de Uma Récita do Roberto do Diabo (bib.), conto fantástico de Júlio César Machado que acompanha em paralelo uma representação teatral e um relato pessoal e "verídico", que acabam por se confundir, confundindo também real e teatral. Mas calhou, na peculiar ordem que as minhas leituras tomam, pôr esta edição na pilha antes de me dar conta de que a mesma história estava incluída noutro livro que tinha em leitura. Podia tê-la deixado para mais tarde? Podia, com certeza. Mas esta edição inclui também, em jeito de prefácio, um ensaio de Moisés Espírito Santo sobre o diabo e tive curiosidade.

Sobre a Récita propriamente dita pouco tenho a acrescentar ao que escrevi aqui, a não ser que, talvez previsivelmente, gostei menos na segunda leitura do que na primeira. Não só por ser a segunda leitura, mas também porque a edição é pior, com mais gralhas e outros detalhezinhos que a prejudicam. E com vastos espaços em branco destinados a fazer com que um conto, que nem é dos mais longos, ocupe quase cinquenta páginas. É uma edição francamente manhosa.

Quanto ao ensaio/prefácio, achei-o delicioso, cheio de informação sobre o Coisa-Ruim, muita dela de caráter etnográfico mas não só, empacotada num embrulho muito bem-humorado. É um prefácio que vale mesmo a pena ler. Mesmo pouca relevância tendo para o texto que se lhe segue e que, supostamente, justifica a edição.

Este livro foi comprado.

sábado, 12 de novembro de 2011

Lido: Ao Acaso

Ao Acaso é um continho de Miguel Cruz, cheio de angst, que trata das ruminações poéticas do protagonista sobre um amor perdido. É ficção científica, mas apenas de uma forma incidental; há coisas como "materializadores de comida" e "holo-livros", mas nada disso tem a mínima relevância para a história. Mais importante é Cruz cair numa armadilha muito comum nos escritores iniciantes: a tentativa de fazer literatura antes de ter realmente uma história para contar, e o pouco que desta aparece se perder entre frases de efeito que soam a postiço e nada adiantam. Achei muito fraco, e o conto é demasiado curto para avaliar se o autor teria ou não tido potencial, uma vez que tivesse ganho alguma experiência na arte de contar histórias.

Lido: Os Primeiros Aztecas na Lua

Os Primeiros Aztecas na Lua (bib.), de Flávio Medeiros, Jr., é uma movimentada história de espionagem cuja galeria de personagens é composta em grande medida por Júlio Verne, H. G. Wells e respetivas criações. O clima é de guerra fria, entre uma França muito inchada com as suas conquistas na Europa e nos impérios coloniais das potências que engoliu (especialmente o português), e uma Inglaterra hegemónica nas Américas (onde controla pelo menos a maioria do território que no nosso mundo foi espanhol) e na Ásia. Nessa guerra fria têm grande relevo os dois monstros sagrados da ficção científica do século XIX e do início do século XX, ambos com altos cargos nos respetivos governos. As personagens de um e do outro também se mostram relevantes, ainda que nem sempre do mesmo lado dos seus criadores; Para dar um exemplo, Robur, personagem de Verne, lidera as forças aéreas inglesas.

A mim, a noveleta fez imediatamente lembrar o romance de Octavio Aragão, A Mão que Cria, onde também existe esta mistura entre personagens reais e de ficção, mas acima de tudo a novela Não Estamos Divertidos, de João Barreiros. Com efeito, tanto a história de Medeiros como a de Barreiros se focam na rivalidade entre Wells e Verne. Tanto numa como na outra, as personagens de um e de outro têm existência "real" no contexto das histórias e interagem com os seus criadores. Tanto uma como a outra envolvem viagens espaciais, pelo menos em aparência; a trama de Medeiros gira em volta de uma viagem à Lua, a de Barreiros em volta de uma viagem a Marte. Tanto numa como na outra, a cavorite (elemento fictício, criado por Wells, que não é afetado pela gravidade como a matéria normal) é relevante.

Mas esta noveleta é mais movimentada do que a de Barreiros, é muito mais rica em personagens e referências, embora não jogue com a dependência da criação relativamente ao criador com que a novela do português joga e que lhe confere outra profundidade. Apesar da ideia-base ser no fundamental idêntica, a abordagem que sofre é diferente. O facto de ler uma delas tornará a outra reconhecível nos seus elementos-chave, mas não a torna previsível.

Gostei bastante da história de Flávio Medeiros, apesar de um ou outro detalhe que forçou um pouco em demasia o meu sentido de verosimilhança. A páginas tantas, por exemplo, uma personagem enfia as mãos nas entranhas de um cadáver e, embora nunca chegue a limpá-las, a história prossegue como se o homem tivesse acabado de sair do banho. Mas mesmo com um ou dois detalhes deste género, a história é bastante interessante, tem um bom ritmo, e está bem concebida e bem escrita.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Lido: Abraços em Contra-Luz

Abraços em Contra-Luz é um texto estranho de Marina Tavares, algo como uma crónica fantasiosa e íntima, na primeira pessoa, muito feminina, sobre lugares domésticos e o modo como a luz com eles interage, tratando-a, à luz, quase como se de um ser com vontade própria se tratasse (o que a traz para o âmbito do fantástico, suponho). O texto está escrito com uma prosa bastante poética (embora, de novo, mal revista ou não revista de todo) que mostra potencial no uso da língua, mas que usa esse potencial para fazer algo que não me agrada. Por vezes, muitas vezes, a simplicidade é o verdadeiro segredo da literatura. O rebuscamento só atrapalha, em especial quando é exagerado. E aqui pareceu-me exagerado. Achei fraco.

Lido: O Homem que Via o Futuro

O Homem que Via o Futuro (bib.), tradução tipicamente Argonáutica de So Bright the Vision, é uma coletânea de contos de ficção científica, de Clifford D. Simak na qual, também muito típico da Argonauta, cada conto é apresentado como um "capítulo", fingindo que se trata de um romance. Não, quando eu digo "muito típico" não estou a fazer figura de estilo. Não se trata de caso isolado. Quem nos dias que correm barafusta contra a edição que se vai fazendo em Portugal mostra um completo desconhecimento sobre o caminho percorrido desde o tempo em que coisas destas eram norma. E nem falemos de uma capa muito pouco atraente e que, pior um pouco, nada tem a ver com o conteúdo do livro. Mas mesmo nada.

Mas falemos um pouco sobre a tradução. Eurico Fonseca (ou da Fonseca, como era apresentado sempre que ia à TV falar sobre o espaço) dispensa apresentações para leitores de FC de uma certa geração, visto que lhe passaram pelas mãos largas dezenas de livros. Nunca foi um bom tradutor, mas apresentou muitas vezes trabalho razoável. Neste livro, contudo, esteve muito, muito mal. Fiquei várias vezes com os cabelos em pé, e eu tenho cabelo comprido.

Apesar de tudo o que ficou dito acima, as histórias são em geral boas. Algo datadas, dado o seu meio século de existência, mas boas, com aquela mescla de quotidiano e banalidade e de criaturas extraordinárias que vão intrometer-se nessa banalidade, que é muito característica de Simak. Apesar das muitas falhas desta edição, achei o livro bom.

Eis o que disse sobre cada uma das histórias:

- Os Besouros de Ouro;
- Le.Pra:;
- A Mais Brilhante das Visões;
- Tesouro Galáctico;

Este livro foi comprado.

Lido: Tesouro Galáctico

Tesouro Galáctico (bib.) é uma noveleta de ficção científica de Clifford D. Simak, protagonizada por um jornalista ainda iniciante, ao qual são entregues trabalhos aborrecidos e/ou bizarros. A história, escrita na primeira pessoa, lê-se quase como uma história de detetives, pois descreve as investigações que o protagonista leva a cabo para tirar a limpo umas informações estranhas que dão conta da presença de gnomos na cidade.

Pois, gnomos.

Ou pelo menos umas criaturinhas baixinhas e bem-intencionadas, que se dedicam a limpar o que está sujo, a endireitar o que está torto, a consertar o que precisa de conserto, etc. A princípio, o jovem jornalista sente-se cético, convencido de que o chefe o está a mandar numa caça aos gambozinos, talvez para o testar, talvez para gozar com ele. Mas depois, as coisas alteram-se. E muito.

É uma história que consegue manter-se interessante mesmo estando algo datada e mesmo apesar da péssima tradução de que foi vítima. Uma história que nada tem de sombrio; bem pelo contrário, há por ali algo de conto de fadas. Quem acha que a FC para o ser tem de ser negra certamente não irá gostar. Eu, como não tenho tais ideias, gostei. Não muito, até porque a tradução não deixou, mas gostei.

Lido: Lusóluna

Lusóluna é um conto de ficção científica de Ana Rui, de 1996, muito bem escrito (embora muito mal revisto) mas deficiente no que toca à história. Passado na Lua, ou por outra, numa Lua aparentemente terraformada, conta uma história muito mundana sobre um velho moribundo que está prestes a finar-se e a odisseia em que os familiares se metem em busca de um padre que lhe dê a extrema unção. A história é confusa e pouco interessante, os elementos de FC só por vezes são bem usados, parecendo de outras vezes enfiados na história um pouco à força, mas a qualidade e o estilo do texto, a par de algum humor de facto divertido, fazem-me ter pena desta autora não ter vingado. Com mais cuidado na criação dos seus mundos ciencio-ficcionais, podia ter dado uma autora com muito interesse.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Lido: Suitable for the Orient

Suitable for the Orient é um conto de ficção científica de Karen Traviss, centrado num protagonista que explica o título. Mas a coisa é tão britânica que vou ter de a explicar. É que antigamente, nos tempos do império em que Sua Majestade dominava vastos territórios no Oriente (a Índia, claro, mas não só, longe disso), os médicos recém-licenciados eram avaliados como adequados para diferentes tipos de serviço. Numa clara expressão do colonialismo no seu pior, os mais incompetentes recebiam o carimbo de SFTO, Suitable for the Orient, Adequado Para o Oriente.

Neste caso, porém, já não estamos nesses tempos, mas sim no futuro. E no futuro, o "Oriente" é outro planeta, no qual existe uma colónia humana, tolerada por uma espécie nativa primitiva (os "minkies"), vista pelos "nossos" como possuidora de inteligência sub-humana, e eternamente mergulhada em brigas internas. O protagonista é um médico, dos incompetentes, cuja tarefa principal é tratar os alienígenas que lhe aparecem no consultório, feridos em consequência dessas brigas.

Até que um dos humanos caça um dos alienígenas. Aí a coisa muda de figura.

A colonização humana de mundos habitados por espécies alienígenas com um nível de desenvolvimento inferior ao humano é um tema bastante batido na FC, mas apesar disso é frequente render boas histórias. Às vezes são mesmo excelentes; lembro-me, por exemplo, de Floresta é o Nome do Mundo, de Ursula K. Le Guin. Mas aqui, a história não me pareceu mais que razoável, sem grandes surpresas, sem nada que a faça sobressair das outras. Uma historiazinha mediana, que se lê bem mas não passa daí.

Lido: O Nautilus

O Nautilus (bib.) é um conto de Maria Adelaide Couto Viana que adapta partes do romance 20.000 Léguas Submarinas, de Júlio Verne. Trata-se, basicamente, da descrição do submarino Nautilus, feita pelo Capitão Nemo ao seu hóspede forçado, Aronnax, e da engenharia empregue na sua conceção e construção. Se bem me lembro do romance, a intervenção de Couto Viana consistiu em fundir numa só partes de várias conversas que as duas personagens foram tendo ao longo da viagem e que eram frequentemente interrompidas de forma abrupta. Talvez como efeito secundário dessa fusão, talvez por decisão consciente da autora, Nemo aparece aqui bastante mais tratável do que eu recordo, e a tensão entre os dois quase desaparece. A ideia foi claramente realçar as capacidades antecipatórias do escritor francês, e isso é meritório, mas parece-me que se perde demasiado do tom de Verne, ou seja, que ao ler este texto o leitor não fica com uma ideia correta do livro completo. E isso é mau.

Lido: A Estranha Morte do Professor Antena

A Estranha Morte do Professor Antena (bib.) é uma noveleta de Mário de Sá-Carneiro que até se poderia enquadrar numa certa proto-FC, visto que pega em vários dos mecanismos da ficção científica do início do século XX (principalmente o cientista louco, ou pelo menos incompreendido), embora os use de uma forma muito própria. O que afasta este conto da proto-FC da época é o seu ênfase na descrição dos meandros filosófico-esotéricos, da mundovisão repleta de transmigrações e planos de existência, que terá estado na base da morte do Professor Antena, em detrimento da história propriamente dita dessa morte, ou das investigações que a ela terão levado. E em parte por isso, achei este conto bastante aborrecido, apesar da sua inegável qualidade literária. É com contos como este que eu melhor reparo que as minhas preferências caem mesmo para o lado do "mostrar em vez de contar", embora seja nisso bem menos radical do que outros leitores de género. Também terá contribuído para o aborrecimento o facto de todo aquele modo esotérico de olhar o mundo colidir fortemente com a minha própria mundovisão. Quando os contos são tão descritivos como este, não ajuda nada à experiência de leitura que o leitor a passe quase toda a achar as ideias disparatadas.

Tenho a certeza de que leitores mais dados a hermetismos e a deambulações filosóficas se deliciarão ao ler esta história, até porque ela é boa, literariamente falando. Mas eu não gostei. Fiquei curioso com o resto da obra em prosa de Mário de Sá-Carneiro, que ainda não li (mas hei de ler, talvez em breve; há cá por casa um livro que a tem toda), mas deste conto em concreto não gostei.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Vaporpunk / Dieselpunk outra vez

Finalmente, depois duma longa odisseia alfandegária, chegaram cá a casa os Vaporpunks e os Dieselpunks. Quem se mostrou interessado nos livros (nos comentários daqui, no twitter e por email) já foi contactado por email com as condições, e perguntando se o interesse se mantém. Com uma exceção por não ter conseguido encontrar o endereço dele: o Jauch, ao qual peço que me contacte pelo endereço que está ali do lado direito (--->) no caso do interesse se manter.

Depois das respostas que já obtive, resta 1 Vaporpunk (que irá para o Jauch, se ele não tiver mudado de ideias entretanto, portanto está disponível à condição) e 5 Dieselpunks. Os preços são um euro mais caros do que tinha indicado no post original, mais portes quando é caso disso.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Lido: Liber Beneficiorum

Liber Beneficiorum é um continho onírico de Fermín Moreno, que vagueia algures entre o horror, a FC e a fantasia. E, claro, o surrealismo, como convém a contos oníricos. Infelizmente, tem também uma outra característica dos sonhos: a incoerência: E isso que faz com que o texto acabe por ser bastante inconsequente, de tal modo que nem se consegue perceber muito bem sobre o que versa o conto. Sobre um tal Juan, talvez, habitante (provisório) de um mundo de sonhos. Não gostei, confesso. Podem avaliá-lo vocês seguindo este link. É o terceiro conto.

Lido: Os Oito Nomes do Deus Sem Nome

Os Oito Nomes do Deus Sem Nome (bib.), de Yves Robert, é uma noveleta de algo a que eu chamaria fantasia a vapor se outros não lhe tivessem já chamado steampunk. Trata-se no essencial de uma história de espionagem, na qual se veem envolvidos agentes das três grandes potências do universo criado por Robert, Inglaterra, França e Portugal, cada uma com a sua especialização particular numa área do conhecimento. Conhecimento, entenda-se, em sentido lato, pois no mundo de Robert a magia funciona mesmo.

O mistério principal a desvendar pela história é qual a especialização portuguesa, se bem que a espécie de prólogo que abre a noveleta forneça ao leitor atento pistas importantes, em especial quando conjugada com o título. As outras duas especializações, que vão sendo reveladas através da rivalidade e troça mútua dos agentes estrangeiros, funcionam como contraponto da portuguesa.

Apesar de me ter parecido um pouco ingénua e, aqui e ali, não tão "limpinha" em termos de escrita e de conceção do enredo como teria desejado, a noveleta agradou-me. Leve, com um pé solidamente implantado nos velhos pulps do início do século XX (mais, pareceu-me, do que nos grandes da proto-FC do século XIX, que normalmente são usados como referência para o steampunk), lê-se bem e diverte. E como eram claramente esses os objetivos do autor, o sucesso foi alcançado.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Lido: To a Prehistoric Huntsman Dead From Exposure

To a Prehistoric Huntsman Dead From Exposure é um curto poema de Steven Utley. Não lhe encontro grande interesse. O poema é uma pergunta, irónica, e muito pouco ciencio-ficcional, o que não teria grande importância se não se desse o caso de estar publicado numa Asimov's. Não achei nem bom, nem mau, antes pelo contrário. Achei-o muito olvidável. Numa interjeição: meh.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Lido: A Caverna do Fim do Mundo

A Caverna do Fim do Mundo (bib.) é um conto curto de ficção científica pós-apocalíptica e juvenil, de Christian Grenier. Num mundo subterrâneo que sofre com excesso de população, jovens aventuram-se a penetrar numa caverna recém-descoberta, que os mais velhos afirmam poder ser perigosa e até, terror dos terrores, ter ligação com a mortífera superfície. É um tipo de enredo bastante explorado, em especial durante os anos da Guerra Fria (e este conto data dessa época), e que até chegou algumas vezes ao cinema: num planeta cuja superfície foi de tal modo contaminada por algum tipo de apocalipse que deixou de poder suportar a vida humana, a humanidade sobrevive encerrada em bolsas no subsolo... durante tanto tempo que o medo da superfície se entranha na psique coletiva e a vida cavernícola passa a ser encarada como o estado natural da espécie. Apesar de muito explorada, a ideia pode dar boas histórias, mas parece-me que está longe de ser o caso desta. Talvez por a dirigir a um público jovem, talvez por limitações de espaço, o autor não perdeu muito tempo a desenvolver (ou até a pensar, parece-me) o ambiente e as personagens, e houve vários detalhes que me fizeram torcer violentamente o nariz. No geral, pareceu-me um conto bastante fraco.

Lido: A Reencarnação Deliciosa

A Reencarnação Deliciosa (bib.) é um conto de Aquilino Ribeiro que se ambienta algures na Palestina, possivelmente em tempos bíblicos, e trata sobre uma velha. Velha essa que era mesmo muito, muito velha. E que um belo dia é visitada por um mendigo que lhe pede abrigo. Quem tenha tido algum contacto com contos mais ou menos bíblicos e milagreiros começa logo aqui a adivinhar para onde se dirige a história, e Aquilino não desaponta. O mendigo é, de facto, um feiticeiro capaz de operar milagrosas transformações, e após ser bem atendido, sentindo-se grato, decide realmente pagar a amabilidade com a satisfação de um desejo. Que pede a velha? Ser rapariga. Mas é na concretização do desejo e no que dela resulta que surge no conto alguma surpresa e humor, arrancando-o a uma banalidade de enredo que de outro modo seria completa. Isso, e o facto de, como seria de supor atendendo ao autor, estar muito bem escrito, faz com que se trate de um conto com interesse, muito embora não me satisfaça por inteiro. Nem o gosto, nem as expetativas que sobre ele tinha.

sábado, 22 de outubro de 2011

Lido: Polvillo Verde

Polvillo Verde, da venezuelana Ruth N. Abello é um pequeno conto cujo principal interesse está no final, o que tem o efeito de dificultar o ato de se falar dele sem revelar demasiado. Gira em volta de um homem que toma pós. Toxicodependente? É o que se vai descobrir no decorrer do conto. Algures entre o realismo, a fantasia e uma ficção científica bastante suave, tem algum interesse se bem que não me pareça propriamente uma obra prima. Podem avaliar por vocês mesmos indo até aqui e descendo ao segundo conto.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

É de levar as mãos à cara e bradar aos céus

A Leya Brasil não achou por bem enviar-me exemplares da Guerra dos Tronos, depois de ter adaptado (?) ao português do Brasil a minha tradução feita para português de Portugal. É uma cortesia comum, mas eles não a tiveram. Não me perguntem porquê. Não sei. Suspeito, mas de saber sabido não sei.

Por conseguinte, da adaptação só conheço os trechos que vão vazando aqui e ali. E alguns são de levar a cara às mãos e de bradar aos céus.

Então não é que o seguinte trecho, que julgo ser inteiramente compreensível no Brasil:

Há ali cem tipos de erva, ervas amarelas como limão e escuras como índigo, ervas azuis e ervas cor de laranja, e ervas que são como arcos-íris

foi deturpado como:

Há ali cem tipos de plantas, amarelas como limão-siciliano e escuras como índigo, azuis e cor de laranja, e as que são como arco-íris.

Acredita-se?

Soube desta coisa estapafúrdia através deste blogue, cujo autor se escandaliza, e com toda a razão, com aquela estupidez do limão-siciliano num mundo onde não existe Sicília. Já para não falar da deturpação da cadência do original, que procurei preservar na tradução para português.

Decididamente, a tradução que os brasileiros estão a ler não é a minha.

PS - Dizem-me que os livros seguintes, A Fúria dos Reis e A Tormenta de Espadas já não sofrem deste tipo de problemas. Sem os livros, não posso confirmar. Mas espero bem que assim seja!

Lido: A Fazenda-Relógio

A Fazenda-Relógio (bib.) é um conto de Octavio Aragão no qual o steampunk toma um caminho muito interessante: nas plantações do interior cafeeiro do Brasil, a economia baseada no trabalho escravo é abalada pela introdução de autómatos a vapor e montados em carris. Com uma premissa tão interessante, achei pena que o conto fosse tão curto. Com toda a franqueza, o cenário e até mesmo o enredo propriamente dito (a revolta dos antigos escravos, de súbito numa situação em que não têm donos mas tampouco têm meios de subsistência, as reações da escrava de casa grande e dos fazendeiros, etc., etc.), mereciam uma concretização mais extensa, no mínimo uma noveleta longa, mas provavelmente até um romance. Porque há aqui potencial para uma obra maior, que o conto não é. Não é um mau conto, entenda-se; é até um conto de qualidade acima da média, embora não muito. Mas o material de base permitia criar algo muito melhor. O conto é apressado e, em muitos aspetos, superficial, e o autor vê-se nele obrigado a despejar informação que numa obra mais extensa podia ir sendo introduzida aos poucos, ao mesmo tempo que tudo quanto no conto é superficial poderia ser aprofundado e melhor explorado. Numa frase, há demasiado enredo e ambientação para uma obra tão curta. Como consequência, ao terminar a leitura fiquei com a sensação de ter tomado contacto com uma oportunidade mal aproveitada. Mas lá está: não seria o primeiro nem o último conto a ver-se expandido para uma obra mais ampla. Espero sinceramente que isso aconteça. A ideia merece-o.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Uma breve nota sobre feriados

Pedimos desculpa por esta interrupção, o programa segue dentro de momentos.

Tenho uma opinião sólida sobre a questão dos feriados, e é a seguinte: Portugal é um país laico. Como tal não devia ter feriados religiosos, a menos aqueles cuja comemoração esteja tão entranhada na cultura do país que se estende muito para lá do simples âmbito religioso. Há um, e só um, feriado religioso nessas condições: o Natal. Os outros deviam ser simplesmente suprimidos. Todos. Não porque seja preciso trabalhar mais, não por causa da economia ou da crise, mas simplesmente porque Portugal é um país laico que, como tal, não deve promover nenhuma religião, mas sim dar igual liberdade a todas elas e aos crentes de todas elas para prestarem culto quando e como muito bem entenderem. É isso que significa ser um país laico. E não é com feriados católicos que há liberdade religiosa.

O que isto também significa é que os crentes da religião X devem ter a liberdade de se ausentarem do local de trabalho quando existirem motivos (o tal culto, obviamente) sem sofrerem penalizações por isso, a menos que se entre no exagero. Isto deve incluir, claro, as datas de relevo para católicos, mas também os períodos de oração dos muçulmanos, dos judeus, dos protestantes, do diabo a quatro. Liberdade religiosa é isso. Seriam faltas justificadas. Compensadas noutras alturas, mesmo que parcialmente? Com horários adaptados a cada pessoa em concreto? Provavelmente, sim, até para evitar a tentação dos chicos espertos descobrirem de repente profundos sentimentos religiosos onde horas antes só existia interesse próprio.

Agora, quanto a mudar feriados de lugar para evitar pontes, é ideia imbecil típica deste governo de idiotas. As pontes só existem porque as entidades patronais as autorizam. A começar pelo próprio Estado. Não são um direito, são uma benesse que se dá aos trabalhadores. Nada impede que deixe de se dar, já, essa benesse, sem sermos todos obrigados a comemorar o 1 de maio a 2 ou a 3. Mas não tenho dúvidas de que, precisamente porque é ideia imbecil típica deste governo de idiotas, terá grande apoio popular. Afinal, foi o povo quem elegeu este governo de idiotas.

E era isto. Voltem lá aos vossos afazeres que eu tenho um livro para traduzir.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Lido: Os Marcianos Divertem-se

Os Marcianos Divertem-se (bib.) é um pequeno romance satírico de Fredric Brown sobre uma invasão da Terra por uns marciananos muito peculiares. Até a forma de invasão é peculiar: de um dia para o outro, o planeta vê-se repleto de criaturinhas que simplesmente aparecem e para as quais as divisões materiais do espaço parecem não ter qualquer significado. Como se não bastasse, são uns sacaninhas irreverentes e insultuosos. Tratam toda a gente por "Zé", troçam abertamente das pessoas, divertem-se a divulgar segredos e a enfurecer os mais pacatos, etc. Como o próprio Brown diz, por intermédio de Mário-Henrique Leiria, o tradutor:

«Todos, sem excepção se mostravam arrogantes, atribiliários, bárbaros, contrariantes, corrosivos, diabólicos, exasperantes, execráveis, ferozes, guinchadores, grosseiros, hostis, injuriosos, impudentes, irascíveis, jactanciosos, korriganescos. Eram lúbricos, malfeitores, niilistas, odiosos, ofensivos, pérfidos, perniciosos, perversos, quereladores, rebarbativos, sarcásticos, truculentos, ulcerantes, vexatórios, visigóticos, xenófobos e zumbidores ao ponto de tornar doido todo aquele que entrasse em contacto com eles.»

Ou seja: são precisamente o tipo de criatura que hoje em dia se costuma encontrar em certos locais da internet. Trolls.

Assim descritos os marcianos, já se imagina o que o romance é: o relato do que acontece quando essas excelsas pilhas de qualidades chegam ao nosso planeta e das consequências que tem a sua permanência. Por vezes irónico, por vezes sarcástico, por vezes datado (o livro é de 1955, afinal de contas). Há, claro, crítica social e de costumes a rodos, até porque é precisamente essa a ideia, mas parte dela tinha bem mais relevância há 56 anos do que tem hoje. E trata-se mais de uma sátira do que de ficção científica propriamente dita. Mas gostei. Não me parece que o humor funcione com toda a gente, mas comigo funcionou: nunca despreguei bandeiras a rir, mas sorri várias vezes e até soltei uma ou outra gargalhadinha.

Quanto à tradução, há trechos de pura genialidade, mas globalmente desiludiu-me um pouco. Mário-Henrique Leiria era um bom tradutor, um dos melhores que passaram pelas traduções de FC em Portugal, mas aqui, à parte esses trechos, não me parece que tivesse estado ao seu melhor nível.

Acontece aos melhores.

Este livro foi comprado.

Lido: Freefall

Freefall é um conto de ficção científica de Michael Bateman que, embora difira em muitos pormenores, ressoa estranhamente com um conto meu, publicado em 2002, No Vento Frio de Tharsis. Já não é a primeira vez que me acontece ver temas que tratei em histórias minhas tratados independentemente em contos de outros autores. Desta vez a minha saiu primeiro (esta é de 2003), mas nem sempre isso acontece, e é sempre muito estranho. É como se as ideias andassem por aí a flutuar numa espécie de noosfera exterior aos nossos cérebros, à espera de serem apanhadas por qualquer autor que estenda a mão. E se forem vários a fazê-lo, elas não se fazem rogadas.

Além de estranho, é incómodo. Porque este tipo de coincidência costuma dar pratinho cheio aos idiotas da má-língua. Quantas vezes viram já acusações de plágio atiradas a torto e a direito, mesmo que não haja a mais pequena hipótese do autor X ter contactado com a obra do autor Y antes de escrever a sua? Pois.

Como é óbvio, evidente e cristalino, Bateman não me plagiou. Mas o ambiente dos desportos radicais está lá, o risco também, a ambientação em outros planetas idem aspas, as conversas com uma mulher contrária à ideia de pôr a vida em risco por algo que ela não compreende igualmente por lá andam, etc. Quase toda a base dos contos é igual, embora os pormenores sejam diferentes. No meu, o protagonista faz parapente, no de Bateman faz algo de semelhante ao bungee jumping; no meu a mulher fica na Terra, no dele parte com o protagonista para o espaço; no meu o protagonista vai para Marte, no dele para Júpiter; no meu, a história é contada do ponto de vista do protagonista, no dele do da mulher.

E sim, é claro que, apesar da estranheza e do incómodo, gostei do conto. É um bom conto de FC, bem construído e bem executado.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Lido: É Preciso Matar o Spoq

É Preciso Matar o Spoq (bib.) é um conto de uma espécie de ficção científica muito fantasiosa, de Christian Grenier, tão surreal que se torna difícil descrevê-lo de forma que lhe faça justiça. Parece (e sublinho: parece) ter lugar num universo paralelo, ou num qualquer lugar que transcende o conceito de universo, criado pelo tal spoq a que o título faz referência, onde vivem criaturas que parecem ser humanas mas que possuem poderes (de telecinese e teleportação, por exemplo), e que está cada vez mais enxameado por "spoquitos", malcheirosas criaturas de nove patas que causam problemas onde quer que apareçam e que são, também eles, criados pelo spoq. O conto acompanha a viagem de descoberta do protagonista quando parte para tentar matar o spoq. É um conto juvenil, cheio de humor e de imaginação, e como tal é interessante, embora não cumpra os requisitos mais exigentes da ficção científica "adulta" e "séria". Porque privilegia a aventura e a imaginação ao rigor científico. Mas não me parece que isso tenha muita importância. É um conto de FC juvenil interessante, e só não é mais que interessante porque não me parece que o final esteja ao nível do resto do conto.

domingo, 9 de outubro de 2011

Lido: O Mistério da Árvore

O Mistério da Árvore (bib.) é um muito poético conto curto de Raul Brandão que, em jeito de história de fadas, fala de um reino governado por um rei tão malvado que tinha feito secar a água das fontes. No reino havia uma árvore, também ela há muito seca, onde eram há séculos enforcados os condenados à morte. A esse reino chega um dia um casal de mendigos, que muito se amam, e que por isso mesmo (e por serem mendigos) afrontam o rei e são condenados a morrer enforcados na tal árvore. E é o que acontece. Mas o amor é vida e a árvore, morta, ganha vida.

Trata-se de um conto muito bonito, muito doce, muito romântico, mas cuja verdadeira força está no magnífico uso da língua que nele é feito, não propriamente na história que conta (que nem me parece que seja nada de especial). Além disso, tem o tamanho certo. Se fosse maior sairia da dimensão típica dos contos populares de caráter maravilhoso que lhe servem de inspiração, e seria mais difícil evitar que a prosa poética começasse a cansar. Assim, tudo parece estar no sítio que lhe é próprio. Gostei bastante, mesmo não sendo este o tipo de conto que mais me costuma agradar. E recomendo, exceto a quem ache que só as histórias sombrias valem a pena.

Lido: Planetas

Planetas, do mexicano Ricardo Bernal, é um pequeno conto sobre terrestres e marcianos cujo principal interesse parece estar no texto propriamente dito. Não parece nele haver uma ideia, além de uma certa (e muito disparatada) equivalência entre ciência e magia, e tampouco existe uma história propriamente dita. Além de um texto, numa prosa algo poética, que não me parece maltratar a língua castelhana, não encontrei nada neste continho. Para alguns leitores um texto de boa qualidade é suficiente. Para mim não é. Não gostei. Não aconselho, mas se quiserem podem lê-lo aqui. É logo o primeiro.

Lido: A Canção de Kali

A Canção de Kali (bib.), de Dan Simmons, é um romance que já acabei de ler há algum tempo (praticamente dois meses) mas do qual, por um motivo ou por outro, só agora arranjei tempo para falar. Se o mesmo acontecesse com certos outros livros isso causar-me-ia problemas. Há histórias que começam a desvanecer-se da memória assim que o livro se fecha, quando não é ainda com ele aberto, e falar delas alguns meses mais tarde torna-se quase impossível. Mas não é o caso deste romance.

Como o título sugere, a ação desenrola-se principalmente na Índia. O protagonista é um americano, casado com uma emigrante indiana, que é encarregado de investigar o misterioso aparecimento de um novo manuscrito escrito por grande poeta indiano que consta estar morto. Para isso embarca com a mulher e uma filha pequena num avião para Calcutá, uma das maiores cidades da Índia (e do mundo), descrita como um lugar caótico, repleto de miséria e sujidade e centro de um culto à deusa hindu da destruição, Kali, consorte do deus da morte, Shiva.

Mas Simmons, com esta matéria-prima nas mãos, resiste à tentação da facilidade. Não mergulha o leitor de cabeça e à bruta no horror sobrenatural que se poderia supor. Pelo contrário, meio romance é passado em pleno realismo, com não mais que subtis indicações de que algo de realmente invulgar se passa naquela cidade, algo que transcende as simples consequências do sobrepovoamento e do subdesenvolvimento. Algo que não se explique apenas com crime organizado e seitas religiosas clandestinas e fanáticas.

É em boa parte por causa dessa pintura de um cenário inteiramente realista, ao mesmo tempo que vai preparando o leitor para o que está para vir, que este livro está tão bem conseguido. Por causa da subtileza que percorre todo o romance, por ter todos os fios que constituem a trama tão bem amarrados. Por estar muito bem escrito, com um ritmo impecável, com tudo no sítio. No que acontece ao protagonista e sua família, nas várias personagens que se vão cruzando com eles, no retrato — nada lisongeiro — da cidade de Calcutá e da própria Índia, não parece haver nada a mais nem nada a menos. Tudo está onde e como deve estar.

Achei A Canção de Kali dos melhores livros que li nos últimos anos. E é dos poucos livros que recomendo sem reservas a quase qualquer leitor, sejam quais forem os seus gostos, à exceção de quem não goste de livros perturbadores. Porque A Canção de Kali, pese embora toda a sua subtileza, é um livro perturbador. Ou talvez por causa dessa subtileza. É mais fácil acreditar que por trás das aparências algo de negro se move quando essas aparências são tão palpáveis do que quando a descrença é violentada desde o início com as tentativas desajeitadas de chocar com que tantos autores menores se comprazem. E Simmons, basta este livro para o dizer, e bastaria mesmo que nada mais de bom tivesse escrito ao longo de toda a carreira, não é um autor menor.

Este livro foi comprado.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Lido: Perfect Pilgrim

Perfect Pilgrim é uma noveleta de Jom Grimsley que nos apresenta uma ficção científica francamente mística. Num futuro distante em que a Humanidade está bastante alterada em relação ao que é hoje e mostra uma miríade de formas e condições, um rapaz vindo de um mundo distante chega a Sha-Nal, planeta sagrado e centro do universo, para uma peregrinação. Aí vai deparar com uma viagem de descoberta, de si e da sociedade que o rodeia, que não é nada do que estava à espera.

É uma história que me desde o início joga fortemente com o sentido de estranhamento comum a muita FC, mas que a meu ver não o faz lá muito bem. É tudo demasiado. São abordados demasiados temas, desde a descoberta de si mesmo às questões de identidade de género, passando pelos limites do humano, pela ideia de alma e reencernação, por mais uma série de coisas, e tudo num espaço demasiado reduzido, não permitindo que nenhuma delas seja devidamente explorada, embora tanha de reconhecer que o misticismo subjacente à noveleta me teria afastado dela mesmo que não contivesse tanta coisa.

Demasiado. Demasiado em demasiados aspetos, menos... na história propriamente dita. Essa existe a menos, e só podia ser assim, porque com tanto estranhamento no espaço duma noveleta pouco resta para desenvolver uma história. Ou personagens com alguma riqueza.

Quem se delicie com a estranheza, aqueles cujo foco de atenção principal sejam as ideias, provavelmente gostarão desta história. Quem se interesse mais pelo resto quase de certeza não gostará. E eu, intermédio como sou, não tendo desgostado por completo não posso dizer que tenha gostado.