sábado, 31 de dezembro de 2011

Lido: O Socorro Inesperado

O Socorro Inesperado (bib.) é um conto de ficção científica de Avram Davidson sobre um vigarista, enrascado por ter vendido antiguidades falsas a quem sabia o suficiente do assunto para ter detetado a marosca, que procura socorro num lugar inusitado: o passado. Como? Através de uma espécie de telefone, acompanhado por um tal "compendio dos nomes, rezidencias e ciphras dos dignos e ilustres patronos da machina de communicação magnetica", que tem a peculiar característica de fazer ligações telefónicas com o passado. E claro que não é com pessoas quaisquer; afinal, trata-se de tecnologia em tempos sofisticada, só ao alcance das bolsas mais abonadas e dos espíritos mais esclarecidos. Cheia de referências a figuras da história americana, é uma historinha divertida e irónica (e também um pouco terrível) sobre o desespero. Gostei bastante, mesmo sem ter apanhado todas as referências.

Lido: Samizdat Especial 1

O Samizdat Especial 1 (bib.) é um fanzine em PDF que se propôs juntar a alguns escritores com nome firmado na FC brasileira outros que da escrita de FC têm pouca ou nenhuma experiência. É uma experiência. Já foi feita por diversas vezes e em várias latitudes e, embora seja raro, por vezes até dá bons resultados.

O mais habitual, contudo, é que os novatos mostrem claramente que o são, caindo nas armadilhas que a ficção científica arma aos iniciantes (quer sejam, ou não, também iniciantes na atividade de escrita em geral), e que os não-novatos apresentem textos muitos furos acima dos demais.

E é quase precisamente o que acontece aqui. Os melhores contos pertencem a autores com nome, e os piores a novatos, mas há uma zona intermédia de contos razoáveis que contém tanto contos de gente experiente como de gente inexperiente. A média, contudo, é bastante baixa. Há alguns contos que eu nunca publicaria nem mesmo num fanzine e, dos doze, só dois me pareceram mais que razoáveis.

Por outro lado, é mais ou menos isso o que se espera de um número de fanzine. Este não foi o melhor que eu li, mas também não foi o pior; andou pela média, ou talvez um pouco menos. E isso quer dizer que, no fundo, cumpriu aquilo que dele se esperava.

Eis o que achei dos contos:
Caso estejam interessados, podem encontrá-lo aqui.

Lido: A Princesa nº 46734

A Princesa nº 46734 (bib.), de José Gomes Ferreira, é um conto curto maravilhoso que faz parte das Aventuras de João Sem Medo, de que falei aqui no ano passado. Esta versão que li agora corresponde à incluída no romance fix-up, e não à que saiu originalmente n'O Senhor Doutor, e é pena. Teria preferido ler a versão original, uma vez que também essa foi publicada sob a forma de conto independente, e portanto não teria, suponho eu, alguns pormenores que nesta indicam tratar-se de um fragmento de uma obra maior. Contudo, isso é um pormenor. Esta história é saborosa mesmo assim. O autor brinca com as convenções dos contos de fadas e subverte-as, pondo um João Sem Medo aborrecido, sem aventura que o anime, a desejar poder pelo menos salvar uma princesa, ou coisa que o valha. Mas as princesas estão todas ocupadas... exceto a número 46734, será que o João a aceita? Pois está claro que sim! E lá vai ele por montes e vales em busca da dita princesa, acabando por encontrar um desfecho bastante irónico. Um continho divertido, bem escrito e bem concebido. (Re-)aprovado.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Lido: Asimov's, nº 325

O número 325 da revista Asimov's, já com bastantes aninhos em cima (é de 2003) mas que só agora li, está muito longe de ser dos melhores. Na verdade, é bem capaz de ser a pior Asimov's de sempre para as minhas papilas gustativas literárias. Normalmente acabo a leitura de uma destas revistas com nota positiva em pelo menos metade dos contos nela incluídos. Às vezes em mais. Nesta, só um conto me caiu mesmo bem ao palato, e vários, incluindo, por sinal, o maior de todos, pareceram-me vários furos abaixo de muitas coisas da FC lusófona que tenho lido nos últimos tempos.

Convenhamos, para uma revista que tem a tradição e os pergaminhos que esta tem, isso é francamente mau. A não-ficção é interessante, em especial o olhar de Silverberg sobre a forma como a língua inglesa vai contaminando as outras (ele aponta a espanhola como exemplo). Mas a Asimov's é fundamentalmente uma revista de contos, e os contos deste número deixam muito a desejar. E os poemas também, já agora.

Eis o que achei de cada um deles:
Esta revista foi comprada por assinatura.

Lido: Guerrilha Urbana

Guerrilha Urbana (bib.), de Giselle Natsu Sato, é uma vinheta de ficção científica que descreve um futuro próximo, num cenário profundamente distópico de autêntica guerra civil que começa entre o exército brasileiro e traficantes de droga, mas depois escala, atingindo proporções muito maiores. É um cenário que dá pano para mangas, e o conto acaba, por isso mesmo (mas também porque a autora mostra qualidades no manejo da língua), por ser dos mais interessantes de toda a publicação em que se insere. Ainda assim, pareceu-me que esta ideia e este cenário seriam muito melhor explorados num texto mais extenso e mais visceral, que contasse menos e mostrasse mais, que permitisse ao leitor vivenciar o que a autora imagina em vez de estar na posição de observador externo de algo que já a própria protagonista basicamente observa. Mas não desgostei.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Lido: Hambre

Hambre é um pequeno conto de horror da mexicana Doris Camarena que, confesso, senti dificuldade em entender com uma leitura apenas mas não chegou a interessar-me o suficiente para uma releitura. Acabei-o com a sensação de que há ali subtilezas a que o meu castelhano não chega. Mas chega para perceber que está muito bem escrito e fala de uma série de assassínios com um final surpresa francamente bem conseguido, daqueles que nos forçam a reavaliar tudo o que ficou para trás, ao mesmo tempo que não viola nenhuma das premissas básicas do texto. Subtilezas. Tudo indica que é um bom conto. Mas não garanto.

Se quiserem, podem lê-lo aqui. É o sexto.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Lido: Natal®

Natal® é um conto de ficção científica de Carlos Silva sobre a artificialidade do mundo futuro, o que é o mesmo que dizer sobre a artificialidade do mundo presente. Ou talvez seja apenas sobre a artificialidade das mulheres. Tudo regado a simbolozinhos de marca registada, cuja função é clara mas que são bastante desnecessários, em especial em tal profusão.

O conto descreve uma cena mundana, na qual uma mulher prepara um natal especial para o marido, em rigorosa imitação de um natal tradicional, e este não reage propriamente como ela esperava. O tom é de história exemplar, de apelo ao regresso àquilo que é tradicional e verdadeiro. Nada tenho contra, em princípio, mas achei este conto demasiado óbvio, sem subtilezas. E isso, a somar a um texto que é razoável mas disso não passa (funcionalização não é sinónimo de funcionamento, já agora; significa "tornar operacional"), fez que não gostasse particularmente do conto.

Lido: Morella

Morella (bib.) é um conto curto de horror, de Edgar Allan Poe que, ao contrário de contos mais tardios do autor, incorpora todos os vícios do romantismo. A história é um drama de faca e alguidar, contado de forma sentimental e na primeira pessoa, por um homem que se apaixona por uma mulher que descreve como inteligentíssima mas mórbida, com ela se casa, e a perde quando morre ao dar à luz uma filha. E esta, por seu lado, desde cedo vai mostrando todos os traços da mãe, o que enche o pai de espanto e de algo mais. De tal forma que o desfecho acaba por não ser de todo inesperado.

Dos contos de Poe que li, este é bem capaz de ser o de que gostei menos. Aquele excesso de sentimentalismo típico dos textos românticos, que faz palpitar de deleite alguns leitores, comigo funciona como repelente bastante eficaz. Mesmo quando não chega propriamente à pieguice, como aqui. Por outro lado, está muito bem escrito. Olhando-o apenas por esse prisma reconheço que é um bom conto.

Lido: Termo de Recriação

Termo de Recriação (bib.), vinheta de Marcia Szajnbok, é outro dos tais contos que se nota demasiado terem sido escritos por alguém pouco familiarizado com a escrita de ficção científica. Trata-se de um continho muito católico que ficciona um relatório, que se percebe ser de deus muito antes da assinatura, sobre, obviamente, a experiência Homem. Fica a perplexidade: a quem apresenta deus relatórios?! Que objetivo leva a personagem-narrador, omnipotente, omnipresente e omni-mais-uma-porção-de-coisas a passar a papel esta narração?!

O conto é infodump puro, claro, e está repleto de ideias muito simplistas e banais sobre a espécie humana. E também de alguns rotundos disparates. Exemplo: às tantas o omnisciente narrador diz que a Terra é um lindo planeta porque é azul, e acrescenta que "nenhum outro jamais fora azul". Neptuno e Urano, hello? Azulados por aquele processozinho físico básico chamado dispersão de Rayleigh, que também é responsável pelo azul dos céus terrestres, e por consequência dos nossos mares? E que portanto terá criado biliões e biliões de planetas azuis por este universo fora?

Enfim...

O texto, em si mesmo, não é mau, mas temo bem que seja o que o conto tem de melhor. Achei tudo o resto muito, muito fraco.

Lido: O Corcel

O Corcel (bib.) é uma vinheta de Bruce Holland Rogers sobre um cavalo que não se deixa domar. Ou pelo menos que contrapõe à teimosia dos cowboys em tentar montá-lo uma teimosia idêntica em não se deixar montar. E em suma é isso. O conto está muito bem escrito, claro, mas não gostei muito dele; achei que esta ideia talvez fosse explorada de forma mais eficaz num texto de maior extensão que contasse mesmo uma história de obstinação em vez de nos traçar um simples retrato de um fim de dia de trabalho.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Transignorâncias: Compasso de espera

Tinha planeado, visto os feriados que se seguem coincidirem com fins de semana, publicar as transignorâncias desta semana e da próxima a meio da semana, por volta da quarta ou quinta-feira. Até já tinha texto pronto e tudo. Mas a verdade é que...

... nesta altura do ano ninguém as leria, não é? Não vale grandemente a pena estar a publicá-las agora se não vão ser lidas (ou pelo menos só o vão ser mais tarde), certo?

Então faz-se assim: faz de conta que o anúncio foi uma espécie de número zero e a coisa só começa mesmo a sério em 2012.

sábado, 17 de dezembro de 2011

Lido: Pão de Laranja à Lydia

Pão de Laranja à Lydia (bib.) é uma deliciosa vinheta, digo, uma deliciosa receita de Bruce Holland Rogers que descreve o modo de preparação de pão de laranja, quer sendo-se uma pessoa qualquer, quer sendo-se Lydia e tendo-se acabado com Jamil Becker, esse traste. De novo, o que torna este continho delicioso é a abordagem, a forma como Rogers escolhe o ponto de vista para contar esta história de vingança, e também a suavidade e limpeza com que tudo fica claro para o leitor. Altamente recomendável, em especial àqueles escritores que não sabem transmitir ao leitor a informação que lhe faz falta a não ser através de infodumps e de diálogos improváveis.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Lido: O Pequeno Guia do Céu, de Tristan de Sapincourt

O Pequeno Guia do Céu, de Tristan de Sapincourt é um pequeno conto surrealista de Afonso Cruz, que fala, marginalmente, de uma viagem espacial feita pelo protagonista em 1613 a bordo de um aparelho por si concebido. Mas o que realmente interessa Cruz neste texto é criar uma atmosfera que remete para os mais antigos percursores da ficção científica (e lhes faz diretamente referência, aliás) e para as suas histórias movidas a imaginação pura e não contaminada pelos subprodutos da Revolução Científica e Tecnológica que são o combustível da ficção científica propriamente dita. Isto equivale a dizer que quem esperar encontrar aqui verosimilhança, ambientes planetários tais como eles são, enfim, essas coisas palpáveis da FC, desengane-se. Não há cá nada disso. O conto faz lembrar alguns dos contos das Cosmicómicas de Calvino, e faz lembrar também (na verdade faz lembrar mais) alguns dos contos de Rhys Hughes, muito em especial Os Tritões Lunares. Como eles, está muito bem escrito, como eles roça a ficção científica sem realmente o ser, como eles usa a erudição como pedra de toque.

Gostei, mas não posso dizer que tenha gostado muito. Porque sou daquelas pessoas que acham muitíssimo mais interessante e repleto de maravilhas o universo visto através de lentes de vidro do que da cabeça de Tristan de Sapincourt. O universo, o verdadeiro e palpável, tem revelado assombros que estão muito para além da imaginação seja de que Tristan for. E não há desenho de Saturno feito no século dezassete que chegue sequer perto de uma única das fotografias da sonda Cassini.

Lido: Um Universo Submarino

Um Universo Submarino (bib.) é um conto curto de ficção científica, de Christian Grenier, que faz lembrar um pouco filmes como O Abismo (filmado muitos anos mais tarde, é bom sublinhar-se, e também com uma abordagem bem diferente). Uma expedição desce num submarino a uma fossa oceânica para avaliar as condições aí existentes e determinar se é, ou não, adequada à instalação de um gerador de energia de tipo revolucionário. Mas o que encontra, para sua enorme surpresa, é uma civilização subaquática, completa com cidades e tudo, e habitada por uma espécie até então desconhecida de criaturas telepáticas semelhantes a tartarugas.

Apesar de ser pouco sofisticado e estar algo datado, é um conto com o seu interesse, em especial tendo em conta que se destina a um público juvenil. Não o recomendo a todos; aqueles que acham que a literatura não pode transmitir mensagens claras, em particular, devem manter-se bem longe dele. Mas quem não se incomoda com mensagens talvez leia com agrado este pequeno exemplo de ficção científica ecológica. Eu não gostei lá muito, mas também não desgostei de todo.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Lido: A Última Pergunta

A Última Pergunta (bib.) é um célebre conto de ficção científica de Isaac Asimov, já com mais de meio século de existência, sobre uma série de pessoas (e transpessoas, digamos) que, ao longo dos muitos milénios que vão de um futuro razoavelmente próximo até ao fim térmico do universo, vão perguntando a uma série de computadores cada vez mais sofisticados se é possível reverter a entropia. E a respsta é sempre a mesma. Até que deixa de o ser.

Trata-se de um conto bastante típico de uma certa forma de fazer FC: sem personagens dignas de nota, quase tosco no que toca à escrita propriamente dita, possui, contudo, uma vastidão de cenários quase impossível de atingir noutros géneros e uma profundidade filosófica rara. Debruça-se, tão-só, sobre a origem, vida e morte do Universo. Coisa pouca.

E este conto em concreto consegue ainda manter-se atual. Apesar da idade, apesar dos sinais de obsolescência que nele abundam (numa época em que andamos com computadores no bolso, ligados à internet, os "avançadíssimos" multivacs gigantescos dos anos 50 soam ridículos de tão anacrónicos), apesar das teorias cosmológicas terem nas últimas décadas sofrido fortes reviravoltas, apesar, até, de mostrar algumas das características mais insuportáveis da FC clássica (a tendência para o infodump e alguns diálogos em que as personagens dizem coisas que nunca diriam porque nós, os leitores, precisamos dessa informação) a pergunta que se faz neste conto permanece sem resposta, e por isso ele mantém-se relevante. Entre os contos-ideia é raro isso acontecer, mas Asimov, apesar dos muitos defeitos que tinha nas outras vertentes da literatura, suficientes para tornar as suas obras ilegíveis para muito boa gente, era um mestre neste tipo de história, e mostra-o aqui.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Lido: O Senhor dos Navegantes

O Senhor dos Navegantes (bib.) é um conto fantástico de Ferreira de Castro repleto de entrelinhas. À primeira vista, trata-se de uma história sobre um homem que vai passear para o campo, levando consigo um livro, e para numa capela isolada, sobranceira ao mar, dedicada ao Senhor dos Navegantes do título. Aí, encontra um estranho homem que mete conversa com ele, afirmando tratar-se do Senhor dos Navegantes, ele próprio (ou de deus, mais genericamente), e lhe descreve, com abundância de pormenores e de exasperação com a parvoíce das pessoas, a vida atribulada que foi tendo ao longo dos séculos. Ou por outra: as vidas, pois aparentemente terá ido reencarnando em vários indivíduos.

Mas se cavarmos mais fundo encontramos um apelo à luta contra as injustiças e a opressão. Um apelo à abertura dos olhos, ao fim da resignação com sortes tristonhas. Um apelo claro, sem qualquer ambiguidade, ainda que o resultado desse apelo a tenha. Pois às exortações do Senhor dos Navegantes para que as pessoas agarrem nas rédeas das suas vidas e decidam por si próprias os seus destinos responde a populaça com gritos de "ladrão" e "louco" e completa rejeição.

É um conto filho do seu tempo salazarista, sem dúvida. Mas, para mal dos nossos pecados, está hoje tão atual como no dia em que foi escrito. Devia ser lido, muito lido. Muito bom.

Lido: O Botão

O Botão (bib.), vinheta de José Espírito Santo, é outro dos tais continhos que parecem ter sido escritos por alguém com pouca ou nenhuma prática na escrita de ficção científica. Aqui vamos encontrar um escritor em pleno ato de escrita de uma história de FC, numa cena doméstica, completa com mulher, filhos e alimentação em família e tudo, embora pontuada aqui e ali por termos que sugerem tecnologia avançada e futurista. E logo em seguida temos infodump, um longo infodump. É citação da história que a personagem do conto escreve, é certo, mas não é menos infodump por isso. E depois, o final surpresa que colide de frente com o que ficou escrito antes. E isso transforma-o num desastre. Não é assim que se concebem finais surpresa. A arte está em fazer com que eles sejam inteiramente coerentes com o que ficou para trás, mas mesmo assim apanharem o leitor de surpresa. O conto podia ser razoável sem este final desastrado, mas com ele torna-se muito, muito fraco. É pena.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Lido: Rumores

Rumores é um pequeno conto de ficção científica de Néstor Darío Figueiras. Ao mesmo tempo humorístico e inquietante, mostra um mundo em que receber telefonemas para estudos de opinião é ainda menos seguro do que no nosso. Especialmente para homens facilmente influenciáveis pelas inflexões sedutoras das vozes femininas. É difícil suspender a descrença ao lê-lo, a ideia parece demasiado improvável e não achei o ambiente suficientemente bem construído, mesmo tendo em conta que o que aqui se pretende é principalmente a sátira à prática do telemarketing, levando-a às últimas consequências. Não achei o conto mau, mas tampouco o achei bom. Está disponível para leitura, aqui. É a quinta história.

sábado, 10 de dezembro de 2011

Transignorâncias (1): Se não sei o que não sei, que sei eu?

Tinha pensado começar esta série de textos com temas sugeridos pela resposta abortada ao comentário do Henry de que falei na semana passada. Mas durante a semana li uma frase num dos livros que tenho atualmente em leitura que me fez começar por algo mais genérico. Ei-la: “A ignorância é o terreno do pensamento.”

Esta frase é uma versão de tradutor de algo escrito por Ursula K. LeGuin, muito provavelmente a melhor escritora de ficção científica de sempre e claramente membro do grupo de elite de grandes escritores que o género deu à literatura durante o século XX, mesmo quando retiramos o sexo da equação.

E o motivo que me levou a começar estes textos por aí é achá-la inteiramente certeira ao mesmo tempo que a vejo também como incompleta. E porque me sugeriu o palavrão com que intitularei genericamente estes posts. E, bem, porque me apeteceu.

Sim, a ignorância é o terreno do pensamento. É na ignorância que o pensamento se processa, só a ignorância, aliás, o permite. Um ser que de facto fosse omnisciente, um ser que realmente soubesse tudo o que há para saber, nunca pensaria, limitar-se-ia a saber. Não procuraria respostas porque já as conheceria a todas, não faria perguntas porque também estas conheceria por inteiro. Seria dotado de um acervo estático de conhecimento. Infinito, sim, mas estático. A sua atividade mental resumir-se-ia a encontrar nessa biblioteca infinita as parcelas de conhecimento que lá estariam guardadas e, como também o local de armazenamento de cada informação faz parte de toda a informação que há para conhecer, uma criatura omnisciente nem precisaria de procurar. De novo, limitar-se-ia a saber. E assim, de uma forma muito concreta, criatura que fosse omnisciente pura e simplesmente não pensaria.

Lembrem-se disto da próxima vez que vos disserem que deus é omnisciente.

A não-ignorância, portanto, sufoca o pensamento. Mas a ignorância não basta. É preciso também ter-se dela consciência. Julgar que se sabe as respostas é um inibidor quase tão eficiente de perguntas como sabê-las de facto. Ou seja, se é certo que a ignorância é o terreno do pensamento, este só se processa quando essa ignorância é consciente.

Seria bom se se soubesse sempre por onde passa a fronteira entre o que se conhece e o que não se conhece. Seria bom poder traçá-la, plantar solidamente os pés mentais do lado do conhecido e atirar o pensamento ao desconhecido, mergulhando-o naquilo que se ignora. Mas geralmente não é assim. No máximo, sabe-se que essa fronteira está algures por ali, difusa e pouco nítida. No máximo, há a consciência de que é perfeitamente possível que terreno que se julga sólido esteja minado, cheio de bichezas. De preconceitos, ideias falsas, verdades parciais ou parcelares, carunchos vários. Quando há essa consciência pode-se ir pensando de uma forma interativa, regressando atrás de vez em quando para verificar se as conclusões a que o pensamento leva confirmam ou põem em causa o que se julgava saber. É essa a única maneira de se pensar bem.

Quando essa consciência de terreno minado não existe, quando se julga saber o que na realidade não se sabe, só por grande e afortunado acaso será possível evitar pensar mal. É possível pensar, sim, pois para o fazer basta a ignorância, mas do resultado pouco ou nada se aproveitará. Com base em coisa nenhuma, pode construir-se grandes e detalhados castelos de vento, cheios de torres e muralhas, ameias e adarves, mas só por sorte haverá na sua essência algo mais que nada.

O que quero dizer com isto é que a ignorância será o terreno do pensamento, sim senhora, dona Úrsula, mas a consciência é o seu motor e o combustível que o faz funcionar. A consciência e uma espécie muito peculiar de humildade. A mesma humildade de que os homens de ciência se socorrem quando aceitam submeter as suas elaboradas teorias ao tira-teimas da experiência.

domingo, 4 de dezembro de 2011

Lido: Ilusões

Ilusões (bib.) é um conto curto de ficção científica, de Denis da Cruz, escrito com uma certa competência, que conta uma história distópica sobre um guerreiro biónico que é contratado por uma corporação para roubar a memória de um "ID". É também um conto muito católico, e por conseguinte muito maniqueísta. Isso não ajuda nada a que eu dele goste, porque sou bastante alérgico a maniqueísmos, sejam católicos ou não, mas o que o estraga mesmo, para mim, é o autor achar que tem de esfregar todo o simbolismo na cara do leitor, é ele não confiar na inteligência de quem o lê. É ter de chamar à IA boa "Messias" e à IA má "Lúcifer", à maligna corporação "Satan", e dar a sua liçãozinha de moral no último parágrafo, como se tudo o que ficou escrito antes não bastasse. É não compreender que a literatura, aquela que realmente o é, é um jogo de inteligência entre o escritor e o leitor, e que a inteligência pressupõe subtileza. E é pena. Ele é competente no manejo da língua, e a história tem ritmo, tirando um infodump inicial que me pareceu escusado (ou talvez apenas demasiado longo), e algumas boas ideias. Podia ter gostado desta história. Mas a verdade é que não gostei.

A partir do próximo fim de semana, na Lâmpada

Henry Alfred Bugalho é indiretamente responsável por uma nova rubrica que irá começar a aparecer no próximo fim de semana aqui na Lâmpada. Isto porque comentou um post onde eu falei de um conto dele, que li há dias e de que não gostei mesmo nada, compreensivelmente pouco satisfeito, e levantando uma série de questões pertinentes. E eu comecei a responder ao comentário, também em comentário, até que a páginas tantas parei e pensei cá com os meus botões: não, assim não vamos lá. É preciso ir mais fundo do que isto. De modo que apaguei tudo e decidi fazer uma coisa que já andava com ideias vagas de fazer há algum tempo.

Um conjunto de posts regulares e mais desenvolvidos (e maiores) com opiniões sobre vários temas. Um tema por post.

Esses posts irão sendo escritos ao longo da semana, quando tiver tempo e disposição, e serão publicados durante o fim de semana, provavelmente ao sábado. Não garanto regularidade total, que não tenho vida para isso e porque é possível que alguns temas mais complexos me exijam mais do que uma semana para os tratar convenientemente, mas espero conseguir pôr cá um post na maioria dos fins de semana. Os primeiros serão em parte respostas às questões levantadas pelo Henry.

E por agora é só. O primeiro deverá aparecer no próximo fim de semana.

E uma etiqueta que os agrupe? Hm... 'xa cá pensar...

sábado, 3 de dezembro de 2011

Lido: À Última Janela, que Ninguém Viu, da Última Carruagem, que Ninguém Viu

À Última Janela, que Ninguém Viu, da Última Carruagem, que Ninguém Viu (bib.) é o longo título de uma vinheta de Bruce Holland Rogers sobre um desencontro. Ou melhor, sobre a negativa de um encontro. Julgo que será esta a melhor forma de o descrever. É que o que o conto tem de mais interessante é precisamente essa negativa. O narrador nega. Nega que fez isto e aquilo, nega que viu isto ou ouviu aquilo, nega, finalmente, ter renunciado no último momento a encontrar-se com o pai que nunca conheceu. E nessa negação está toda uma vida. Outro conto muito bom, ainda que o impacto emocional deste seja menor que o do primeiro.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Vaporpunk / dieselpunk, update

Pois é. Vaporpunk já não há. Os três exemplares seguiram viagem para três novos lares e chegaram sãos e salvos. Até me cheira que já alguém os andará a ler e tudo. O mesmo aconteceu a um número maior de exemplares de Dieselpunk, mas desses ainda restam por cá dois. Se houver por aí interessados, já sabem: contactem-me.

Lido: Cemitério Russo

Cemitério Russo (bib.) é um conto curto de ficção científica, de Henry Alfred Bugalho, que comprova que a ideia não basta para escrever FC. É que a ideia não é má, apesar de não ser propriamente original. Uma doença de contágio rápido, cura desconhecida e quase cem porcento mortal, espalha-se pelo mundo, pondo fim à nossa civilização. Mas está executada de uma forma tão pouco inspirada que o conto acaba por ficar muito, muito fraco. O português, básico, não ajuda, mas o que realmente estraga tudo é a estrutura. Começa com um longo e muito aborrecido infodump em que é descrita a progressão da doença. Depois, já a meio do conto, é-nos finalmente apresentado o protagonista, um jovem moscovita que tenta escapar ao contágio. Depressa demais, surge o ponto alto da história, antes de chegarmos a uma terceira parte, séculos mais tarde, no princípio da qual somos informados de que estamos a assistir a escavações arqueológicas. E é nesse momento que o desfecho se torna absolutamente previsível.

Não há ideia, não há história, que resista a ser tão mal contada.

Lido: Consciência de Ébano

Consciência de Ébano (bib.) é uma longa noveleta de Gerson Lodi-Ribeiro, na qual o autor regressa ao seu universo de história alternativa dos Três Brasis, no qual um velho vampiro, Dentes Compridos, se alia a Palmares para garantir a independência da nação negra em terras sul-americanas, e a transformar numa potência. O protagonista é um mulato palmarino, descendente de algumas figuras ilustres da sua pátria que, não obstante, encara o vampiro como a encarnação do mal, e pensa que a sua existência conspurca a própria ideia do seu país.

Trata-se de um regresso de Gerson a um dos temas recorrentes nas suas histórias alternativas: a questão patriótica, e a forma como as lealdades e os idealismos se combinam para levar as pessoas à ação. É, portanto, uma história com bastante interesse, interesse esse que cresce com o uso de expressões num português arcaizante, adequado à época em que a ação decorre (mesmo que esta opção possa tornar mais complicada a leitura para alguns leitores), mas que no entanto é prejudicada pela solução que o autor encontrou para um dilema que cai sobre todos os escritores que escrevem histórias inseridas em séries: deverei partir do princípio de que os leitores já conhecem as histórias anteriores, ou não?

É uma pergunta de resposta complexa. Na verdade, não há uma resposta definitiva; ela depende do modo como as histórias vêm a público, do tempo passado desde a publicação de histórias anteriores da série, e de vários outros fatores. Aqui, Gerson decide partir do princípio de que os leitores não conhecem as outras histórias, e por isso gasta bastante latim a explicar o que está subjacente a esta. Creio que isso acaba por prejudicar a fluidez da noveleta e para um leitor como eu que, se não conhece toda a série, conhece pelo menos a maior parte, torna alguns trechos aborrecidos. Se algum dia o Gerson decidir publicar todas as histórias dos Três Brasis num volume único (o que eu acho ótima ideia, já agora), julgo que seria conveniente fazer uma purga a esta história, retirando dela a informação redundante. Creio que o resultado seria uma noveleta ainda melhor.