sábado, 25 de fevereiro de 2012

Transignorâncias 3: Para que raio (não) serve aquilo?

Antenota: Para a Lâmpada regressar por completo depois da pausa de janeiro faltava apenas reatar estes artigos mais longos, globalmente intitulados transignorâncias. É agora. E começo por um tema que já aqui foi falado, ainda que não sob este ponto de vista. A coisa dá muito pano para mangas. Tanto que vai daqui sair mais do que uma transignorância. Conto com três, publicadas em semanas sucessivas.


Vamos a isso? Vamos a isso.

No meio do muito lixo que tem sido escrito contra a nova ortografia do português, tanto por gente que não tem qualquer obrigação de saber mais do que o quase nada que sabe sobre a língua, como por quem estaria obrigado a não produzir tanta asneira (por motivos misteriosos, que um dia a ciência talvez consiga desvendar, estes últimos são carinhosamente tratados por alguns de nós como “graçamouras”), há uma objeção que felizmente não é carapuça, porque se fosse os partidários da atualização ortográfica teriam muita dificuldade para a tirar da cabeça.

É que se disserem que a utilidade do acordo ortográfico tem sido pouco e mal explicada só vos poderemos responder com um “pois”. E isso tem consequências nada misteriosas na atitude de parte do público. Se me disserem que tenho de mudar x e y e não me explicarem porquê de forma que eu entenda e aceite, vou chatear-me, ah pois vou. É natural. É humano. Era de esperar. E devia ter sido acautelado.

Para piorar as coisas, há alguns partidários do acordo que parecem estar tão confusos como os graçamouras, e se põem a disparatar quase com o mesmo grau de incompreensão de que estes costumam dar mostras, ainda que de uma forma, em geral, menos carroceira. Isso só aumenta a confusão. Imaginar utilidades facilmente desmascaráveis está ao mesmo nível rasteiro de debate das catástrofes linguísticas que os graçamouras gostam de inventar e, em vez de ajudar a um esclarecimento cabal do que está em causa e se pretende, só aumenta a confusão. Ora, a oposição ao acordo ortográfico medra na confusão e na ignorância. Tentar combatê-los com confusão e ignorância não é só inútil, mas contraproducente.

Daí que fosse bom que a utilidade da atualização ortográfica fosse claramente explicada duma vez por todas. É o que vou tentar fazer aqui, tal como a entendo. Não faço parte da equipa que preparou o AO, logo não sei o que eles tinham em mente, mas sei uma coisinha ou duas sobre esta língua portuguesa que é o meu instrumento de trabalho, tenho um cérebro funcional na cabeça e fiz umas coisas que a esmagadora maioria dos opinadores que por aí pululam não fez: li o acordo de fio a pavio, li vários materiais respeitantes às mudanças ortográficas anteriores do português, informei-me sobre as questões ortográficas por que passaram e continuam a passar outras línguas, devorei, em suma, toda a informação sobre o assunto que me passou pelas mãos. E, mais importante do que tudo o mais, pensei. Coisa rara, bem sei.

Em resultado, não estarei na posse da verdade completa, mas pelo menos faço uma ideia bastante aproximada dos motivos que levaram à maioria das mudanças e sei apontar para os disparates com um grau bastante elevado de segurança.

Vamos lá então. Começando por desmascarar fantasmas.

Têm dito, uns e outros, e com variadas nuances, que a nova ortografia vai mudar a língua. Uns, entre purismos descabidos e uma xenofobiazinha mal disfarçada, afirmam que essa mudança equivale a uma degenerescência e a um abrasileiramento, o que para eles é a mesma coisa, outros que as alterações ortográficas vão reunificar a língua, e que isso a fortalece. Isto entre muitos outros exemplos de mudanças que eles preveem que virão a ser operadas por via ortográfica.

Os exemplos são, de facto, muitos. Mas estão todos errados. Todos.

Porque a ortografia é apenas uma forma de representar a língua em forma escrita e disso não passa.

Fixem bem. E. Disso. Não. Passa.

Antigamente, quando a linguística não era propriamente uma ciência e os linguistas eram uns senhores formados nas faculdades de letras que não só não percebiam nada de ciência como a odiavam com todas as forças, e tinham uma formação e formatação intelectual que punha a palavra escrita acima de toda a evidência, preferindo portanto procurar respostas em calhamaços empoeirados escritos por ilustres antepassados a ir em busca delas ao mundo real, compreendiam-se até certo ponto as ideias feitas sobre influências ortográficas sobre a fala. Até certo ponto; afinal, a vastíssima maioria dos utilizadores e, portanto, manuseadores e alteradores da língua, eram analfabetos, e já nessa época não fazia qualquer sentido que regras sobre como as palavras se deviam escrever influenciassem o modo como a população analfabeta as pronunciava. Mas enfim; apesar desta incoerência de pensamento, justificada com preconceitos de classe que eram na época muito mais fortes do que são hoje (e hoje ainda são fortes demais, em especial em certos meios), é compreensível que tais ideias subsistissem numa disciplina que ainda permanecia no estado pré-científico.

Mas entretanto, a ciência-a-sério meteu o seu nariz curioso na questão linguística, aprendeu-se um mundo de nova informação e surgiram disciplinas inteiras baseadas parcialmente nas ciências naturais. A biolinguística, a neurolinguística, a pedolinguística até, em parte, a paleolinguística e a sociolinguística, são bons exemplos. E o que estas novidades deixaram claro, comprovado, indiscutível, é que a língua é a fala. Ponto.

Portanto, não será por se alterarem algumas regras na forma de representar a fala que esta vai ser alterada. Tirem o cavalinho da chuva os que falam em reunificação linguística ou os que preveem a chegada iminente dos cavaleiros do apocalipse causada pela supressão de uns cc e de uns pp quando escrevemos certas palavras. Isso não vai acontecer. Nada disso. As pessoas, nos anos mais próximos, vão continuar a falar como até aqui, e as dos vindouros falarão de forma diferente porque a língua, isto é, a forma de falar, vai continuar a mudar como tem vindo a mudar até hoje, tão lenta e irresistível como um glaciar. Poderíamos revolucionar por completo a forma de escrever português, podíamos trocar de alfabeto, podíamos arranjar até formas não alfabéticas de escrever a língua, que esta não mudaria um milímetro que fosse. Isto está comprovado. Mas as velhas ideias custam a morrer.

E antes que me venham com o velho exemplo do sc etimológico, que terá alterado a pronúncia de um conjunto de palavras relativamente numeroso (nascer, descer, etc.), deixem-me dizer-vos duas coisas. Uma: esse é o único exemplo comprovado e indiscutível de uma influência ortográfica sobre a pronúncia das palavras. O único; não há mais. E duas: não foi a ortografia que causou a alteração, mas sim a ignorância e a presunção de uma camada da população.

(Abro um parêntesis para dizer, já agora, que me parece soberanamente ridículo que se apresente um exemplo de uma deturpação da língua ligada à escrita etimológica para contestar que se abandone outros resquícios etimológicos em prol de uma escrita mais baseada na fonética, porque, pasmai senhores!, isso vai deturpar a língua! Fechar parêntesis, abanando a cabeça e sufocando um risinho.)

As línguas mudam oralmente. E há muito que em Portugal existe uma camada de pacóvios de alta e média-alta sociedade, muito mais preocupados com a aparência do que com a substância, que são presas fáceis para modismos disparatados (e se duvidam, leiam Eça). Junte-se as duas coisas, e que temos? Um grupo de gente que se convenceu de que, se se escreve aquele s em nascer, ele tem de ser dito, e toca de alterar a pronúncia. Era um grupo bastante pequeno numa sociedade esmagadoramente analfabeta que pronunciava “nacer” como a língua tende a querer que se pronuncie, mas era também um grupo desproporcionadamente influente. Era dele que saíam os mestres-escola, era dele que saía a maioria dos padres, era dele que saía boa parte da intelectualidade do tempo. E foi assim que a pronúncia dessas palavras mudou: porque essa gente ignorava as correntes profundas da língua, confundiu etimologia com fonética e começou a “corrigir” algo que não queria correção. A culpa não foi da grafia. A culpa foi da ignorância e da tendência muito humana de se dar ouvidos a ignorantes com prestígio social. E a mudança deu-se oralmente. Quando as pessoas ouviram os padres falar. Quando as crianças aprenderam a falar no seio de famílias dessas, e mais tarde no seio das restantes. Quando foram para a escola e foram corrigidas por professores completamente inconscientes de que as correções que estavam a fazer eram disparatadas.

Estamos livres de isso voltar a acontecer?

Evidentemente que não. Mas, e isto é muito importante porque estas alterações nascem de modismos movidos a ignorância, é impossível prever quais se darão no futuro. Não só é impossível prever que modismos surgirão, mas mais impossível ainda é prever quais solidificarão em alterações de longo prazo na pronúncia das palavras, pois a maioria das modas linguísticas tão depressa surge como desaparece sem deixar rasto. Enraízam-se algumas, e à partida ninguém pode adivinhar quais.

Portanto, quando depararem com seja quem for que afirme com toda a certeza que se fizermos isto à língua acontece aquilo, ignorem esse ignorante. É alguém que não sabe nada sobre a língua, que não faz a mais pequena ideia dos motores da sua evolução, que está completamente a leste de tudo isto. Na língua, o máximo que se consegue fazer é analisar o que aconteceu no passado e dizer que, dados os exemplos anteriores, é possível que as condições presentes resultem em x e y. Não certo: possível. E isto funciona tanto melhor quanto mais longo o prazo a que os exemplos se referem. Querem um exemplo para entender melhor? Ei-lo: é muito mais provável que a língua portuguesa continue a desfazer-se de consoantes duplas como vem fazendo há largos séculos, desde a sua separação da raiz latina (provavelmente desde antes, até), do que que a pronúncia separada do s e do c em “nascer” se mantenha por muito mais tempo. Na verdade, não só a pronúncia inadulterada de “nacer” ainda resiste em certas zonas do espaço lusófono, como nas outras o sc tende a fundir-se em x, ouvindo-se frequentemente a palavra a ser pronunciada como “naxer”. Ou “dexer”. Ou “condexender”.

(Outro parêntesis para dizer que ainda bem que o mesmo não aconteceu com a velha sciencia, senão teríamos provavelmente um dia um povo inteiro a falar de xiência, palavra que é, convenhamos, bem mais feia do que ciência.)

Resumindo: não, alterações ortográficas não mudam a língua. Ponto, parágrafo. Não nos porão a falar “brasileiro” nem aos brasileiros a falar “lusitanês”. Não irão fechar mais o português de Portugal nem irão abri-lo. Essas são coisas que só as modas linguísticas podem fazer, e estas podem ter origem em tudo e mais alguma coisa, mas muito em especial na ignorância. E é por isso que o aspeto mais preocupante de toda esta discussão em volta do acordo ortográfico é a brutal ignorância que ela tem revelado, especialmente em certos setores que tinham mais que obrigação de saberem alguma coisinha sobre isto. E é por isso que seria fundamental que quem de facto sabe, em vez de se encerrar nas torres de marfim da academia, interviesse, explicasse, ajudasse a destruir velhas ideias bolorentas encasquetadas nas cabeças pouco arejadas que por aí abundam. Há alguns bons exemplos, mas são insuficientes.

Mas este é só um dos fantasmas que por aí andam. Revela-se de muitas formas diferentes e é exibido com grande frequência, mas é só um. Vamos a outro.

“Ah, e tal, que isto é tudo para fazer negócio.”

Bem, não sejamos ingénuos, sim? A língua portuguesa é fundamental para a economia dos países que a usam. Um estudo feito há uns anos estimou que a língua vale quase 20% do PIB português. Logo, é óbvio que há interesses financeiros envolvidos em tudo isto.

Só que se calhar não são bem os que vocês podem pensar.

Para princípio de conversa, sim, houve editoras que se apressaram a lançar dicionários segundo a nova ortografia, guias disto e daquilo, etc., mas estou aqui capaz de apostar que essas edições tiveram bem menos sucesso do que as editoras estariam à espera. É que toda a informação necessária a quem quer usar bem as novas regras está disponível na net, à distância de um clique. Eu, que trabalho em exclusivo com a nova ortografia já vai para três anos, não tenho um único dicionário com ela. Continuo a usar os dicionários que já tinha, dicionários que obedecem às regras ortográficas instituídas em 1911 e alteradas nos anos 40 e 70 do século passado. Quando estes se estragarem, o que, com o uso que lhes dou, é coisa certa, logo compro novos. Segundo as novas regras.

Sim, os livros escolares têm de vir com a nova ortografia. Mas acontece que eles mudam todos os anos, ou quase, portanto haveria livros novos com AO ou sem ele. Até pode haver bons motivos para achar esse negócio escandaloso, mas já o era antes do AO, e continuaria a ser se nunca tivesse existido nenhum acordo ortográfico.

Sim, houve livros publicados a explicar a nova ortografia. E também houve livros publicados a contestá-la. Tanto dinheiro estão a fazer alguns dos que a promovem como alguns dos que a combatem e a grande maioria das pessoas envolvidas no debate não tem ganho com ela um tostão furado. Para cronistas que já o eram antes do debate ter início, tradutores que já traduziam na antiga ortografia e continuaram a traduzir na nova, jornalistas que idem aspas, e mais uma série de eteceteras, o facto de se alterar a ortografia foi rigorosamente irrelevante em termos financeiros.

A passagem do tempo é muitas vezes coisa chata. Envelhece-se, ganha-se rugas e cabelos brancos, tem-se desilusões e desapontamentos, morrem-nos entes queridos, quebram-se-nos os corações. Mas também tem as suas vantagens, e uma delas está em poder ver-se o que valiam certas posições e afirmações. Uma que apareceu frequentemente há três ou quatro anos dizia que vinha aí uma invasão de brasileiros, que o AO tinha sido concebido por eles para dominar isto tudo.

A-hã… pooooois… Digam-me, que é deles?

Não sei de nenhum caso de editoras brasileiras que se tenham instalado em Portugal desde a entrada em vigor da nova ortografia. Os casos que conheço são anteriores, alguns muito anteriores (há casos de intercâmbio editorial entre Portugal e o Brasil desde… bem, desde sempre), e nenhum dos mais recentes correu particularmente bem. Pelo contrário, a nossa Leya instalou-se no Brasil depois da nova ortografia, e com toda a força. Tenho aqui um dedo que adivinha que o teria feito mesmo sem AO nenhum; afinal, fez o mesmo em Angola, e por lá, embora tenham assinado o acordo como toda a gente, ainda não o ratificaram, portanto ainda não o puseram em prática.

Ponhamos os pezinhos na terra, sim? O Brasil é muito mais apelativo para as empresas do ramo do que Portugal. Porque enquanto nós definhamos sob a botifarra da troika e do Merkozy, eles lá crescem. Porque enquanto nós temos, com muito boa vontade, uns cinco milhões de leitores, eles lá têm talvez uns quinze ou vinte; lê-se proporcionalmente menos no Brasil, é certo, mas, como a população é muito maior, o total de leitores também é. Porque as nossas empresas têm de depender de distribuidoras para cobrir um país que é maior do que às vezes parece, enquanto eles lá nem precisam de cobrir o seu gigantesco território, porque só nas duas maiores zonas metropolitanas, Rio de Janeiro e São Paulo, vivem alguns 30 milhões de pessoas, mais do que suficientes para dar sustentabilidade a pequenas editoras. Querem mais motivos? Olhem que há.

Portanto, se há interesse em penetrar no outro grande mercado da língua, ele existe muito mais do lado português do que do brasileiro. O Brasil, para Portugal, é importante; Portugal, para o Brasil, nem por isso. E se julgam que o AO tem nisso grande influência, desiludam-se.

Posso dar-vos o meu exemplo pessoal. Sim, é verdade que uma das minhas traduções foi comprada pela Leya Brasil e foi publicada por lá, com grande sucesso comercial. Parece que os livros do Martin têm feito no Brasil tanto sucesso como cá, e também lá andam a competir pelos primeiros lugares dos tops de vendas. Mas a tradução foi adaptada, não foi publicada como cá. E este não foi o primeiro caso de uma tradução portuguesa reutilizada no mercado brasileiro, muito longe disso (é outra das tais coisas que existem desde sempre), nem será o último.

E o impacto que isso teve na minha conta bancária… meh.

Além do mais, os mercados estão separados. Quando se compram os direitos de tradução, compram-se para Portugal ou para o Brasil, não para a língua portuguesa como um todo. Porque apesar de falarmos a mesma língua, falamos dialetos diferentes e isso, como já vimos, não é nenhum ajustamento ortográfico que poderá alterar. Com AO ou sem ele, os livros continuarão a ter maioritariamente uma tradução cá e outra diferente lá. Ou várias; há livros que têm basicamente uma tradução por edição. E isto não acontece tanto por uma questão de interesses financeiros, como de realidades linguísticas.

(Mais um parêntesis para uma ressalva: é muito provável que a entrada em força do digital no setor do livro acabe por alterar esta realidade. Mas, de novo, isso acontecerá com AO ou sem ele.)

E acabámos por chegar a quase três mil palavras (que estabeleci como limite absoluto para estas publicações) só falando de duas coisas para que o AO não serve. Vou deixar por aqui. Talvez ainda volte a esta primeira parte, não sei; talvez não valha a pena, uma vez que a maior parte das pessoas fala de uma qualquer variante do primeiro ponto que abordei, e há outras coisas para as quais se diz que o acordo serve que estão só um pouco ao lado daquilo para que realmente serve. Talvez fale dessas na última parte. Mas por hoje fico-me por aqui. Prometendo continuar, claro.

Transignorâncias anteriores:

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Lido: Génesis - Apocalipse

Génesis - Apocalipse é um conto de ficção científica de Roberto Mendes. Na verdade, trata-se de uma fanfic de Isaac Asimov, mais especificamente da sua (e de Silverberg) obra O Homem Positrónico. Pega no universo criado por Asimov, e até na sua personagem robótica NDR-113, aliás, Andrew Martin, mistura-os com mitologia cristã e sobe a escalas cosmológicas, como aliás o próprio título indica. É contado, de forma bastante exclamativa, por um extraterrestre nunca nomeado (aliás, um extra-universal), à boa maneira do vilão cinematográfico que, antes de fazer maldades aos heróis em apuros, as explica detalhadamente. Nada é mostrado; tudo é contado.

O conto tem algumas ideias interessantes, mas não me agradou. Apesar de Mendes resistir aqui aos excessos líricos em que costumava embarcar, acho muito duvidosa (e na verdade muito desnecessária; as ideias que o conto expressa poderiam perfeitamente, e provavelmente deveriam, ter sido incluídas num universo próprio do autor) a apropriação do universo de Asimov, em especial numa obra que se destina a ser publicada em livro. Ainda por cima, essa apropriação inclui algum desrespeito por certas pedras basilares das histórias de robôs de Asimov: as Três Leis e um firme ponto de vista racionalista. Ou seja: tudo somado, achei fraco.

Lido: A Queda de Roma, Antes da Telenovela

A Queda de Roma, Antes da Telenovela é um conto de FC política, de Luís Filipe Silva, sobre um político da velha guarda mergulhado num admirável mundo novo em que a política propriamente dita foi substituída por tecnocratas que gerem a coisa pública como se de uma empresa se tratasse e o sistema tem como base referendos a propostas colocadas online. Há um pouco mais de sofisticação no sistema, descrito num longo infodump, mas em resumo é isto. O protagonista está convencido de que na busca da eficiência levou a sociedade à perda de visão de futuro, e por isso prepara uma última proposta para acabar a sua carreira em apoteose, um ambicioso plano que, julga ele, poderá devolver à sociedade a chama que lhe falta.

É um conto interessante, que coloca questões relevantes e que ressoam com demasiada familiaridade em certos aspetos da atual situação política da Europa, apesar das distâncias e das diferenças. Gostei, embora não me tivesse entusiasmado. Compreendo, por exemplo, o velho obsoleto, isolado e algo ludita, em contraponto com uma noosfera praticamente monolítica, como artifício literário necessário para o autor chegar onde quer chegar, mas acho que tem como consequência uma diminuição da verosimilhança global da história. É que não só não me parece crível que alguma vez se atinja uma tal uniformidade de ideias sem alguma espécie de controlo externo dos pensamentos, como o que normalmente acontece é que é quem tem ideias novas a ficar isolado perante um mar de incompreensão, não quem as tem antigas. Quanto mais não seja porque estas são bastante mais familiares do que aquelas, a menos que a sociedade sofra de alguma espécie de violenta amnésia coletiva.

Afinal, até em Fahrenheit 451, os rebeldes da sociedade alienada que Bradbury descreve são um grupo razoavelmente numeroso de pessoas, não um indivíduo isolado.

Todavia, o próprio facto do conto gerar este tipo de reflexões é testemunho da sua qualidade. Não se trata de uma FC de mascar e deitar fora e isso, para mim, é bom.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Lido: O Caminho

O Caminho (bib.), de José Régio, é mais um conto onírico dos muitos que me têm passado pelas mãos — e pelos olhos — nos últimos tempos. Contado na primeira pessoa, relata o que faz e pensa o protagonista ao achar-se perdido, a pé, numa estrada rural nas imediações, pensa ele, de Vila Meã. É pesadelo típico. O pobre do homem vai andando estrada fora e, ou não encontra vivalma, ou quem encontra age de forma bizarra, recusando-se a ajudá-lo quando lhes pede indicações para voltar à vila. E a coisa vai-se tornando cada vez mais aterradora até que acontece o que costuma acontecer nos pesadelos: o sonhador acorda.

De novo, não gostei muito. Não há no conto qualquer surpresa, ele progride como os pesadelos progridem sempre, termina como os pesadelos terminam, apesar do final pretender deixar no ar uma certa dúvida. Ou seja: uma vez que compreendemos que o que estamos a ler é um pesadelo, estamos em território conhecido (a menos que nunca se tenha tido um sonho destes, o que é pouco provável) e já estamos à espera do que vem a seguir, mantendo-se apenas em dúvida como decidirá o escritor sair do sonho que relata. E o modo como Régio sai não me parece grande espingarda.

Sim, o conto está bem escrito. Por esse lado não há queixas. Mas não me chegou.

Lido: Déjà Vu

Déjà Vu é um pequeno conto de fantasia do espanhol Antonio Cebrián sobre o que acontece ao chegar-se ao fim da vida. Filosófico, como convém, e algo místico, como talvez fosse evitável, o continho responde a essa derradeira pergunta de uma forma que me pareceu bastante irónica, embora não esteja seguro sobre se a ironia terá sido intencional. Não será grande spoiler se a revelar aqui, suponho, uma vez que está claramente indicada no próprio título. Ao chegar-se ao fim da vida, segundo Cebrián, volta a viver-se a mesma vida. A mesma. Pode mudar-se tudo, mas tudo fica igual. E daí a sensação de déjà vu que nos assalta de vez em quando.

Não gostei por aí além, confesso. Achei a narração na primeira pessoa um bom bocado desastrada, por exemplo, e o tema não me pareceu particularmente bem tratado. Mas isso, lá está, sou eu. Vocês, se quiserem, podem avaliar por vocês mesmos o que acham. Está aqui. Em espanhol, naturalmente. É o primeiro conto.

Lido: A Vingança de Nitocris

A Vingança de Nitocris (bib.) é um conto de Tennessee Williams que leva os leitores ao Antigo Egito e conta uma história de vingança e rebeldia. Em Tebas, um faraó atreve-se a ir contra os costumes religiosos instituídos e torna-se por isso odiado pelos seus súbditos. Do ódio nasce uma conspiração e esta resulta em assassínio; o faraó é morto e os que o mataram coroam a irmã. Mas esta vai fazer cair uma vingança cruel sobre aqueles que lhe mataram o irmão.

É um conto interessante, em particular onde toca as relações entre o poder e a religião, o que faz dele um conto surpreendentemente maduro se tivermos em conta que foi a primeira obra publicada de Tennessee Williams, escrita quando o autor tinha apenas 16 anos. Não o considero um grande conto e, na verdade não concordo lá muito com a sua inclusão em antologias de horror, pois de horror pouco me parece ter: trata-se fundamentalmente de um relato ficcionado de acontecimentos descritos pelo historiador grego Heródoto, ainda que a veracidade desses acontecimentos pareça ser duvidosa. Mas é um interessante prenúncio de uma carreira de sucesso nas letras americanas, isso sem dúvida.

Contos anteriores desta publicação:

domingo, 19 de fevereiro de 2012

Lido: Postal de São Valentim

Postal de São Valentim (bib.) é uma pequena historinha de Bruce Holland Rogers, em parte trágica, em parte ternurenta, sobre um homem que, para se redimir de erros antigos que acabaram arruinando-lhe o casamento, decide entregar a uma estranha o postal de São Valentim que não entregara à sua ex-mulher. Mas as coisas não correm bem como ele estava à espera; correm bem pior. Ou bem melhor, dependendo do ponto de vista. É outra história praticamente perfeita, em que Rogers mostra toda a sua subtileza e revela vidas inteiras em meia dúzia de palavras. Muito bom.

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Lido: O Tesouro da Rainha do Sabá

O Tesouro da Rainha do Sabá (bib.), do meu quase conterrâneo Nuno Júdice (é da terra do meu pai, uma das freguesias aqui do concelho, a uns 6 ou 7 km da cidade), é uma noveleta surrealista e onírica que, apesar de estar bem escrita, não me agradou. Júdice é mais poeta que contista, e isso significa que entre a história e a formosura da frase escolhe sempre esta. Os fãs de escrita automática, aquela escrita em que o escritor vai para onde a pena o leva, sem qualquer controlo sobre o destino, ou sequer sobre a viagem, provavelmente gostarão deste texto. Eu não o sou. O surrealismo de que gosto é um surrealismo controlado, no qual se sente que o autor tem um mínimo de noção do que está a fazer, e quer alcançar com o texto mais do que simplesmente ver onde ele o leva.

Júdice, parece-me, não tem aqui mais interesses do que a viagem propriamente dita. Leva o seu protagonista a deambular pela Primeira Guerra Mundial, por Paris, Berlim e Nápoles, pelo Egito, por aqui e por ali, sem propósitos que cheguem alguma vez a ficar realmente claros, e depois como que abandona o conto sem chegar a pôr-lhe fim. Sim, percebo bem que é essa a natureza dos sonhos, que deles não se espera coerência, que acordamos sempre antes de vermos a palavra FIM a encerrá-los, sempre a meio, que talvez tenha sido emular essa sua natureza o objetivo do autor ao escrever esta história e que, se foi, esse objetivo está plenamente conseguido. Mas compreender tudo isto não me levou a gostar mais da leitura. Para sonhos bastam-me os meus; das histórias que leio quero mais estrutura, mais significado. Quero terminar a leitura com a sensação de que não desperdicei o meu tempo, e foi precisamente com a sensação oposta que acabei de ler este livrinho. A sensação de tempo perdido, de que a leitura não adiantou nem atrasou, que nem me distraiu nada que se visse, nem lucrei com ela coisa alguma. E isso é mau.

Este livro foi comprado.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Lido: Cursed City ("degustação")

Cursed City (bib.) é uma antologia temática brasileira, concebida e organizada por M. D. Amado, cujos autores tiveram de usar como cenário aquele que o organizador concebeu: uma cidadezinha no Velho Oeste americano, situada algures no Texas, onde se cruzam os clichés dos westerns com os das histórias de terror sobrenatural. Não li o livro; li apenas um PDF de "degustação" que a editora disponibiliza nesta página, conjuntamente com outro material relativo ao livro. O PDF inclui dois contos (dos vinte que compõem a antologia) que, suponho, o organizador terá achado representativos do livro como um todo.

Este, enquanto objeto físico, tem todo o ar de ser coisa magnífica, ideal para aqueles bibliófilos que se deliciam com edições cuidadas. Não é o meu caso. Embora ache que esse é um caminho possível para as editoras combaterem a erosão do digital, interessa-me bastante mais o texto propriamente dito do que aquilo que o rodeia. Desde que os livros não mostrem erros de paginação e apresentem uma mancha gráfica agradável e um tipo de letra legível, dou-me por contente. Portanto, do ficheiro de "degustação" o que me interessa realmente são os contos propriamente ditos. Seria através deles que eu decidiria se teria muito ou pouco interesse em comprar o livro.

E os contos não me pareceram bons. Ambos têm aspetos interessantes, mas em ambos pareceu-me notar escritores ainda pouco experientes, ainda à procura do que para eles funciona ou não funciona. Apesar disso, e como tenho um fraquinho por aquele ambiente que me vem de velhas tardes de domingo passadas a ver televisão, fiquei com curiosidade sobre o modo como os outros autores o teriam explorado e, se fosse brasileiro e tivesse folga no orçamento, era provável que acabasse por comprar esta antologia.

Aqui fica o que achei dos dois contos que constituem o excerto:

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Lido: Just Like Jesse James

Just Like Jesse James (bib.) é um conto curto de Alliah, também ambientado em Cursed City, cidade assombrada do Velho Oeste americano. Aqui, interagindo com criaturas sobrenaturais dos mais variados tipos, o protagonista é Jesse, um humano vulgar que se enamora num piscar de olhos por uma mulher misteriosa que aparece de súbito no saloon onde se embebedava de cerveja. O conto não é propriamente bom. A escrita de Alliah mostra alguma insegurança, natural numa autora ainda em amadurecimento (à data da publicação tinha apenas 19 anos), e no conto fica por explicar aquele súbito enamoramento do protagonista, nada verosímil. Mas o final é bom, genuinamente arrepiante, mostrando que Alliah tem bastante potencial e, com mais experiência, poderá vir a tornar-se numa escritora realmente boa.

Conto anterior desta publicação:

O Gigante, a Curandeira e a Lutadora de Kung-Fu

Lido: Os Dias da Besta

Os Dias da Besta (bib.), de Eric Novello, é uma movimentada noveleta que parte de um acontecimento real, um conflito entre um comandante naval inglês e o Brasil, para construir uma história algo folhetinesca que mistura steampunk, fantasia urbana e horror, e se centra numa série de mortes violentas causadas por um sanguinário metamorfo. A parte steamer da história reside sobretudo numa profusão de sofisticadas engenhocas, que vão desde armas bizarras a autómatos, passando por veículos, lunetas de longo alcance e outras bugigangas, na maioria manejadas pelo herói, um tal Conde de Tunay, misto de inventor, homem de ação e aventureiro. Estas engenhocas são muito pouco verosímeis enquanto objetos tecnológicos, mas o objetivo não é esse; é terem pinta. E isso têm com fartura.

Apesar de não ser grande fã nem da literatura folhetinesca nem desta abordagem ao steampunk (prefiro a via da história alternativa e, dentro desta, a que for mais próxima da ficção científica), li o conto com prazer. Está bem escrito e bem concebido e, dentro dos parâmetros pré-estabelecidos pela abordagem literária que o autor escolheu, funciona bem. Para uma história que se afasta tanto daquilo que eu normalmente aprecio, acabei por gostar bastante mais do que seria de esperar.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Lido: Eternidade

Eternidade (bib.), de João Ventura, é um conto curto de fantasia, com toques de terror e vagas roupagens de ficção científica. Contado na primeira pessoa, o protagonista-narrador é uma espécie de espírito protetor de um livro ocultista, cujo conteúdo fornece aos iniciados pistas concretas para chegarem à Luz, assim mesmo, com maiúscula inicial. Estruturalmente, intercala passagens no presente, nas quais se vê o espírito (ou a presença, como ele se intitula) a vigiar um estudioso que se vai aproximando perigosamente da verdade, com relatos de tempos idos, nos quais vai aos poucos sendo contada a história do livro.

Não gostei. Além de este tipo de literatura, centrada em velhos catrapácios ocultistas, em vias herméticas para uma verdade oculta só atingível por empoeirados estudiosos, não me despertar o mais pequeno interesse, achei que Ventura se perde demasiado em longos despejos de informação que tornam o texto pesado. Já li coisas suas muitíssimo melhores.

Lido: Regresso à Cúpula da Pena

Regresso à Cúpula da Pena (bib.), de José Rodrigues Miguéis, é uma daquelas histórias fantásticas que deixam o leitor quase até ao fim a coçar o couro cabeludo, tentando entender onde raio está ali o fantástico. A história, contada na primeira pessoa, centra-se no narrador, de regresso à pátria da juventude duas décadas depois de ter partido, confrontado com uma Lisboa (e arredores) simultaneamente familiar e estranha. E prossegue, em pleno realismo, com um súbito impulso para fazer uma viagem a Sintra, viagem essa que noutros tempos era para ele costumeira. Aí chegado, dá-lhe para subir ao zimbório do Palácio da Pena e daí ver a paisagem, o que faz, apesar das objeções do cicerone. E é então que aparece a estranheza no conto, embora ainda em tom realista. Uma luta entre ele e um desconhecido, empoleirados lá no alto? Ou apenas um sonho? O final revela a verdade. Subtilmente.

É um conto, parece-me, muito bom. Está tão bem escrito como seria de esperar, claro, mas além disso está também muito bem concebido e, embora um leitor experiente nestas coisas fantásticas acabe por adivinhar o que se passa alguns parágrafos antes da revelação final, esta funciona muito bem. Gostei bastante.

Lido: O Gigante, a Curandeira e a Lutadora de Kung-Fu

O Gigante, a Curandeira e a Lutadora de Kung-Fu (bib.), conto de Alfer Medeiros, português radicado no Brasil desde a infância, é basicamente uma história de pancadaria com substrato sobrenatural, passada no Velho Oeste americano. A parte que achei mais interessante no conto é uma certa toada de história contada por um companheiro de bebedeira a outro, talvez num saloon, algures. Infelizmente, Medeiros esquece-se frequentemente de a manter, e com isso quem perde é a sua história. E esta não tem nada de especial. O ambiente está muito bem apanhado mas não foi concebido por ele. O conto está ambientado numa cidadezinha do Velho Oeste chamada Cursed City, que serve de antecâmara do Inferno, e onde se juntam humanos de carne e osso a todos os tipos de criaturas sobrenaturais, ideia que fez parte da proposta da antologia em que este conto se insere e foi, presumo, concebida pelo seu organizador. O conto de Medeiros centra-se nas três personagens que o intitulam, as quais chegam à cidade em busca de vingança. E esta acontece num paroxismo de balas, por entre declarações como "não te lembras de todo o mal causado, vil detrator, mas os justos aqui presentes recordam-se dos atos imundos que propagaste em nossos lares."

Sem este tipo de discurso tonitruante e um pouco ridículo, com mais consistência no uso da voz do narrador, e contado de uma forma que levasse a perceber melhor as motivações das personagens, julgo que poderia ter gostado deste conto. Assim, não gostei. Tem aspetos interessantes, mas não me chegam.

Lido: Imprimátur

Imprimátur, do cubano Ángel Arango, é um continho surreal e poético sobre um homem feito de papel. Consiste na sua maior parte de uma conversa entre este, o seu inventor e uma terceira personagem que se deixa fascinar pelo invento. Não gostei lá muito. O conto pareceu-me muito bem escrito, sim, com um ou dois pormenores de deliciosa subtileza, é certo, mas não achei grande graça à ideia (não tanto à ideia do homem de papel, propriamente, mas ao modo como está enquadrada), e o final soube-me a pouco. Se quiserem, podem lê-lo aqui. É o último conto.

Pedimos desculpa por esta interrupção...

... o programa segue dentro de momentos. Literalmente.

Os blogues, particularmente os pessoais, são mesmo assim. Estão sujeitos às oscilações dos seus autores. Às vezes há uma pilha qualquer que se gasta e há que deixá-los de pousio durante uns tempos para que ela recarregue. Escrever todos os dias cansa, disse um dia alguém, e se é escrever o que põe o pão na mesa, mais um pouco escrever cansa. Tanto, que volta e meia há que parar. Há que entrar de férias. Se não do trabalho, pelo menos das escritas adicionais.

Mas todas as férias chegam ao fim. E esta chega hoje ao fim. A Lâmpada regressou, tal e qual como era dantes. Será como se nunca tivesse parado. Até já.