quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Da violência

É bem sabido que violência gera violência. Era só questão de tempo, portanto, até a inaudita violência deste roubo estúpido e criminoso gerar violência nas ruas deste país. Quem não tenha os olhos tapados tem absoluta consciência disso. Por minha parte, há uns dois anos que ando a dizer a quem me quiser ouvir as seguintes duas frases:

— Isto vai acabar em porrada. Não sei onde, não sei quando, mas isto vai acabar em porrada.

E refiro-me a porrada a sério. Não a pedras e cassetetes. Porrada a sério. Tiros, bombas, guerrilha urbana ou guerra civil. Coisas dessas. Não é possível reduzir à indigência povos inteiros sem que esses povos ripostem. E quem tem o poder na mão ou é completa e irremediavelmente imbecil, ou sabe perfeitamente que assim é. Se for completa e irremediavelmente imbecil, é apanhado de surpresa. Se não for, já se preparou há muito.

Se me pedissem apostas sobre o lugar onde isto acabará em porrada, eu apontaria para a Grécia. Tem todos os ingredientes de uma bomba nuclear prestes a rebentar: metade da população sem meios de subsistência nem qualquer esperança, uma extrema direita do mais extremista que existe e ativamente protegida pela polícia, a parte dominante da classe política profundamente corrupta e sem qualquer crédito, uma boa parcela da população que nem o Syriza respeita, etc.

Mas nós somos a Grécia com um ano de atraso. E toda a gente o sabe, especialmente os bandalhos que estão no governo, apesar de toda a conversa vigarista sobre o próximo ano ser o ano de viragem, conversa essa que já ouvimos o ano passado.

Ou seja: o que ontem aconteceu em frente da AR não foi surpresa para ninguém. Mas mesmo não sendo surpresa, enquanto assistia àquilo pela televisão só senti uma gigantesca fúria contra aqueles imbecis que estavam a desviar as atenções de um monumental cartão vermelho dado ao governo através da greve geral. E bem pode vir agora aquele verme do Coelho congratular os que não fizeram greve, toda a gente sabe que a absolutíssima maioria dos que não a fizeram foi não se poderem dar ao luxo de perder um dia de salário e não terem a possibilidade de arriscar o despedimento num momento em que não há empregos. Porque basta conversar com as pessoas para facilmente se perceber que quase toda a gente compreende e concorda com os motivos da greve, e quase toda a gente tem plena consciência disso.

Sem aquela violência, que à primeira vista me pareceu acéfala, pavloviana, hoje estaríamos todos a falar da inédita paralisação simultânea de vários países europeus e do recado que isso constitui para as lideranças nacionais e europeias, para esta elite criminosa que nos está a roubar a todos o futuro. Mas apareceram 20 ou 30 gajos que passaram quase uma hora a atirar pedras da calçada à polícia, e hoje só se fala dessa violência, não de nenhuma das outras. Daí a minha fúria de ontem. Não achando então que havia ali mais que estupidez. Sei perfeitamente que há, tanto na esquerda como entre os desesperados que só o são, que não têm qualquer espécie de pensamento político a enquadrar o desespero, franjas suficientemente acéfalas para não pararem para pensar nos resultados dos seus atos.

Mas hoje, ao tomar conhecimento de certos acontecimentos posteriores, começa a parecer-me que tudo aquilo foi bem mais sinistro.

Para começar, torna-se cada vez mais claro que o grupo de apedrejadores era um grupo organizado. Que foi para ali com plano traçado, decidido a provocar precisamente o tipo de reação policial que acabou por acontecer. Só isso explica que, ao contrário de manifestações anteriores nas quais este tipo de atitude foi pontual e controlada com maior ou menor dificuldade pelos manifestantes com uma cabeça em cima dos ombros, nesta nada do que os outros manifestantes fizeram pôs travão nas pedradas. Houve uma clara diferença de escala nos ataques à polícia, que tornou a carga praticamente inevitável.

E depois, tudo o que aconteceu a seguir, muito em especial o comportamento da própria polícia. Levando tudo à frente, atacando à cacetada e prendendo gente que nada indica ter tido algo a ver com os distúrbios, a quilómetros da AR, mantendo-os presos durante horas em detenção ilegal, sem acesso a advogados nem acusação formada, etc. São cenas dignas de repressão em ditadura, não num estado democrático e de direito.

Coincidência?

Talvez seja.

Mas não faz sentido que a polícia não tenha desta vez feito as mesmas detenções dos "mais exaltados" que vimos acontecer noutras ocasiões, tanto mais que é treinada especificamente para as fazer. A mesma polícia que se mantém impávida e serena perante os pedregulhos durante bastante mais de uma hora arremete a seguir levando tudo à frente, distribuindo cacetada e torto e direito, sem critério? Cheira a esturro. E os agentes infiltrados que vimos noutras manifestações agindo de forma que, em vez de servir para baixar a tensão, é provocatória, só fazem com que o cheiro a esturro se intensifique.

E depois há o comportamento de claque de futebol. Os cânticos. As caras tapadas. Todos bem sabemos o tipo de escumalha que tem por habitat as claques e onde residem as suas lealdades ideológicas. Só quem nunca viu saudações nazis em estádios de futebol pode ter ilusões a esse respeito.

Somando tudo, fica no ar um repugnante miasma a extrema direita.

E, o que é bem pior, a conluio.

2 comentários:

  1. Não acho que os governantes andem na ignorância ou se andem a preparar a escalada de violêcia - acho mesmo que a desejam.

    Ouvi uns zunzuns acerca dos grupos que atiraram pedras: parece que nesta manifestação não levaram a escolta policial habitual. Porquê?

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  2. Pois, não me admirava nada. Um governo sem qualquer tipo de apoio popular só pela violência se mantém no poder. Só a violência lhe dá oportunidade de encenar o discurso de "ou nós, ou o caos."

    Quanto a não estar lá a escolta, não estava, mas segundo diz quem lá esteve a manifestação estava cheia de polícias à paisana.

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