terça-feira, 19 de agosto de 2014

Dois pitacos sobre o projeto do Pimentel

Ernâni Pimentel é um professor de literatura brasileiro que pertence àquela fação dos críticos ao último acordo ortográfico da língua portuguesa que o criticam não porque se tenha ido longe demais, mas porque, segundo eles, não se foi longe o suficiente.

Desde há alguns anos que anda a promover a sua visão de como a língua deveria ser escrita. Não é o único: uma das poucas discussões civilizadas e construtivas que tive com opositores do acordo, em que de facto se trocaram argumentos com pés e cabeça em vez da habitual histeria, falácias e ausência de um mínimo de solidez argumentativa que tão deprimentemente comum é na margem opositora, foi com alguém que, muito provavelmente, concordará com Pimentel. Detalhe: era um português.

O que Pimentel propõe é radical. Quer levar a lógica do rompimento com a etimologia às últimas consequências, suprimindo os h iniciais em palavras como homem, disseminando o uso do k, abolindo o u em palavras como quem, dando coerência fonológica ao uso do x e do z, e por aí fora. Duvido que alguém tenha feito um estudo quantitativo do impacto dessa mudança, mas é seguro afirmar o seguinte: o número de palavras cuja grafia se alteraria caso a ideia fosse avante seria em muitas ordens de grandeza superior ao número de palavras alteradas pelo AO90. Provavelmente andará próximo da revolução causada pela reforma de 1911. E é possível que seja até superior.

Julgo que discutir esta proposta, os seus prós e os seus contras, faz todo o sentido, embora não me pareça que o momento certo seja agora. A ortografia não deve nunca ser encerrada numa redoma e, além disso, para muitas das alterações propostas por Pimentel existem precedentes nas próprias línguas latinas. A supressão do h inicial, por exemplo, foi feita na mais latina de todas elas (pelo menos no que diz respeito ao seu território de origem): o italiano. O nosso homem, o hombre dos espanhóis, o homme dos franceses, é o uomo dos italianos. Portanto sim, acho muito bem que a proposta surja, se bem que eu preferisse que ela aparecesse mais tarde, quando esta última alteração das regras estivesse assimilada, e gostaria que fosse discutida pesando bem os prós e os contras.

O Pimentel apresenta um único verdadeiro pró: a simplificação, com a remoção das irregularidades oriundas da etimologia, permitiria facilitar o ensino do português escrito e concomitantemente diminuir a quantidade de erros dados pelos utilizadores. Creio que é uma vantagem real, embora talvez não tanto como ele apregoa. No entanto, vejo também bastantes contras.

Para começar, há a questão do impacto. Se um conjunto reduzido de alterações como o que tivemos no AO90 tem um impacto igualmente reduzido, permitindo a transição sem grandes sobressaltos a quem realmente tem alguma capacidade linguística e/ou um mínimo de vontade para a fazer, uma revolução da ordem da de 1911 seria bem diferente.

Depois, e mais importante, há a questão de me parecer que Pimentel não pensou bem em todas as implicações do que propõe. Tomemos, por exemplo, a ideia de transformar em x tudo aquilo que tenha som de x. Parece lógico, não é? Chuva, por exemplo, passaria a ser xuva e nenhum mal daí viria ao mundo, exceto para quem se preocupa mais com a pegada gráfica das palavras do que com as palavras propriamente ditas.

O problema é que a palavra chuva não tem o som de x em toda a língua portuguesa. A diferenciação entre x e ch, que hoje é apenas etimológica na quase totalidade dos territórios lusófonos, não o é em todos. Ela tem origem em dois sons diferentes que, embora se tenham fundido por quase todo o lado, ainda se mantêm diferentes numa zona do Norte de Portugal. Chuva, em Chaves, diz-se "txuba," não apenas "xuva" como na generalidade dos territórios em que se fala português.

E isto, esta falta de profundidade de base, somada à amplidão da mudança, para mim é suficiente para rejeitar a ideia. Há mais motivos, mas estes dois, para mim, bastam. Não devemos voltar a fazer mudanças ortográficas sem estudos sólidos e aprofundados sobre as realidades dialectais do português, e não só em Portugal e no Brasil mas também nos demais países de língua portuguesa. Depois desses estudos feitos — e bem feitos, por gente competente, por gente que vá à procura do que realmente existe e não apenas tentar arranjar argumentos para uma posição previamente assumida, atitude anticientífica demasiado comum entre nós — poder-se-á então verificar se existem vantagens em fazer mais mudanças que superem os contras que também existem sempre. Com argumentos, para variar. Baseados em realidades e não em fantasias, para não ser sempre a mesma coisa.

Enquanto esses estudos não existirem, que fique tudo como está. O que eu respondo a isto, portanto, é rotundamente não.

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