sábado, 15 de agosto de 2015

Lido: Os Pescadores de Trevamar

Os Pescadores de Trevamar (bibliografia) é um romance de ficção científica de Roger Eldridge, que consegue ser ao mesmo tempo francamente estranho, fascinante, intrigante e aborrecido.

O enredo gira em volta do protagonista, Lumé, ou Mirth. Durante muito tempo, o leitor luta por compreender quem, ao certo, é Lumé, o que de resto é luta que o próprio também tem, uma vez que ele só a custo e defeituosamente se integra na sua sociedade. Esta é uma sociedade primitiva, aparentemente inspirada nas dos povos árticos, mas tem a peculiaridade de desconhecer a navegação e sobreviver presa a uma ilha que parece ser pequena, totalmente rodeada por gelo. Os membros do povo dividem-se em castas bastante estanques, sendo a mais importante e respeitada a dos pescadores.

É a ser pescador que todos os jovens aspiram, e é em jovem, um jovem prestes a executar o perigoso rito de passagem que lhe dará o direito a integrar a casta superior, que vamos encontrar Mirth no início do romance. Não sozinho, pois nesta sociedade cada indivíduo tem um "outro", outro homem que é visto como uma segunda metade de si, alguém que com ele partilha vida, estatuto e até sentimentos e pensamentos. Nada há nisto de sexual; cada um dos membros do par tem as suas próprias relações com mulheres fora da parelha, formando com elas uma espécie de família mais convencional, pelo menos até serem aceites na casta dos pescadores.

É em boa medida na descrição desta sociedade, enquanto vai mostrando as lutas e dúvidas de Mirth e No-Mirth, o seu outro, e os conflitos que os dois vão tendo um com o outro, que Eldridge gasta boa parte do início do romance. E fá-lo bastante bem, conseguindo realizar algo que é sempre difícil de fazer: a descrição de uma sociedade e de uma mundovisão, para nós, os leitores que estamos de fora, a partir de dentro dessa sociedade e mundovisão, sem usar os nossos pontos de referência mas sim aqueles que as suas personagens teriam.

E ao mesmo tempo introduz mais motivos de estranheza. Por exemplo uma tal "rochavida", que é fulcral para a sobrevivência da tribo e que só no fim acabamos por compreender. A "salmoura", que parece ao mesmo tempo ser a simples água salgada mas não o ser, pois ela é apresentada como coisa venenosa, tabu, geradora de doenças e maldições, sem que se perceba bem se se trata de mera superstição, se de um perigo real. Um tal "peixe", coisa gigantesca, monstruosa, com um olho só, que vai levar Lumé a uma espécie de loucura que o leva a afastar-se da tribo, e a uma série de peripécias e aventuras que alimentam a segunda metade do romance. Coisas dessas.

Durante muito tempo, o leitor pode ser perdoado se suspeitar de algo de mágico em tudo isto. De estar perante uma estranha obra de fantasia. Isso é propositado. E Eldridge consegue fazê-lo muito bem.

Onde a meu ver mais falha é em tornar credíveis as reações e atitudes do protagonista (e também de algumas das outras personagens), demasiado teatrais, demasiado exageradas, a cheirar demasiado a dramalhão barato, o que acabou por me provocar uma certa desconexão com os seus problemas e, consequentemente, com o desenrolar das peripécias em que se mete e do próprio romance. O aborrecimento que ele me causou tem essa origem, ampliada pelo final, em que tudo subtilmente se esclarece, em que se percebe que, sim, se trata mesmo de um livro de ficção científica, que as personagens são homens e mulheres, ainda que homens e mulheres algo alterados, mas em que as explicações me pareceram bastante falhas de verosimilhança. Nunca consegui engolir a explicação da picada da aranha radioativa para os superpoderes do Homem Aranha e, embora a um nível bem distinto, as explicações deste romance andam um pouco por aí.

Tudo somado, acabei por gostar do livro, mas não muito. Acabei de lê-lo com uma certa impressão de oportunidade imperfeitamente aproveitada. Eldridge, parece-me, acertou em cheio no mais difícil e conseguiu falhar o alvo no que em princípio seria mais fácil. É, até, irritante.

Mas não dei o tempo por mal empregue, isso não. Ler livros estranhos é fundamental para abrir horizontes ou para os manter abertos. E este é, sem dúvida, um livro estranho.

Este livro foi comprado.

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