segunda-feira, 6 de junho de 2016

Lido: Ressurreição

Ressurreição (bibliografia) é uma novela de Mário de Sá-Carneiro que foge um pouco aos ambientes fantásticos da grande maioria das suas outras prosas, mantendo no entanto bem presentes quase todas as suas outras obsessões. Trata-se de um texto francamente umbiguista, protagonizado por um romancista ególatra, pedante e presunçoso que vive entre Paris, cidade que idolatra, e Lisboa, terreola que despreza, como despreza quase todas as criaturas humanas que calham atravessar-lhe a existência. Mesmo aquelas por quem se apaixona, ou por quem se sente atraído, sendo que neste capítulo voltamos a encontrar aqui uma homossexualidade bastante explícita, ainda que racionalizada (como aliás quase sempre) por fatores exógenos. Neste caso, a homossexualidade deixa de ser apenas platónica como na maior parte das outras histórias que a ela aludem, e cumpre-se, sendo no entanto explicada por uma atração mútua, do protagonista e do homem com quem se entrega ao sexo, pela mesma rapariga, uma atriz.

São, de resto, os ziguezagues sentimentais do protagonista relativamente a essa rapariga que constituem o principal motor da história. Sim, esta é principalmente uma história de amor mundana, ainda que não contenha lá muito amor propriamente dito. Contém, sim, muitos estados de alma, muitas reflexões introspetivas, muitas dúvidas, muita literatura, que em parte é de grande qualidade, mas por outro lado me parece exagerar na adjetivação e, aqui e ali, nos advérbios e tender a tornar-se repetitiva pela insistência nas mesmas construções. Ele é Fulano que "acorda em alma", ele é um romance que é "terminado em auréola", ele é o ambiente que "aumenta em exotismo", por aí fora. Cansa.

Curiosamente, sendo esta história, entre todas, a que tem uma homossexualidade mais explícita, é também daquelas em que a morbidez típica da prosa de Sá-Carneiro menos se faz sentir. É certo que o desenlace, que inclui uma fantasmagoria tão ténue que talvez não seja suficiente para aproximar este texto da literatura fantástica, se segue a uma morte, mas o resto da história chega quase a ser luminosa, por vezes. Sim, encontra-se nela o ennui burguês do ocioso rico, solitário e centrado em si mesmo, mas também se acha aqui triunfo, alegria e um júbilo incaracterístico nesse mesmo desenlace, quando estes, em Sá-Carneiro, são quase sempre bastante sombrios.

É uma história com muitos dos pontos fortes e dos pontos fracos da prosa de Sá-Carneiro. Para o meu gosto pessoal peca por contar uma história que pouco interesse me despertou e pelo protagonista que me é francamente antipático (não posso com pedantes, seja na literatura, seja na vida real). Mas é uma história complexa e naturalmente bem escrita, apesar das ressalvas expressas mais acima, que deverá interessar em especial a quem quiser obter uma compreensão mais profunda da psique do autor. Como não é bem isso o que mais me atrai na literatura, para mim não passou do razoável. Há algumas obras-primas neste livro, mas não creio que esta o seja.

Contos anteriores deste livro:

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