domingo, 3 de setembro de 2017

Lido: Estados do Vácuo

"Ah, e tal," diz-se, "a ficção científica é subliteratura, paraliteratura, não-literatura, porque em vez de se preocupar com o que realmente importa na literatura, o texto, a linguagem, perde tempo com histórias escritas banalmente e cheias de — que horror! — enredo."

Já todos ouvimos ou lemos alguma variação deste disparate, não é verdade? O que está escrito acima é assumidamente uma caricatura, mas coisas semelhantes, escritas ou ditas muito a sério, são mato em certos meios. E muitas vezes acontece que quem ouve ou lê isto sabe que não é verdade mas sempre que dá um contraexemplo a resposta, invariável, é: "Ah, mas isso não é ficção científica." Pergunta-se porquê? A resposta, plena de lógica (coff coff): "Porque é literatura."

Pois bem, Estados do Vácuo (bibliografia) é ficção científica, sem qualquer lugar a dúvidas. Viu a luz numa revista de ficção científica, foi escrita por Geoffrey Landis, alguém que não só se assume como escritor de ficção científica como até é, nos tempos livres da escrita (ou vice-versa), um cientista propriamente dito. Alguém que trabalha na NASA, nem mais nem menos, o que é coisa para não deixar dúvidas quanto às credenciais científicas do homem. E quanto ao autor estamos conversados.

A história é tão de ficção científica que até é de um dos ramos mais clássicos da ficção científica. A FC dura, de laboratório, repleta de jargão científico e ideias derivadas diretamente do estado corrente (já não, mas na época em que a história foi escrita sim) da fronteira entre o conhecido e o desconhecido, baseando-se na invenção de um método para extrair energia do próprio vácuo. A FC que quase roça a divulgação científica, tentando transmitir ao leitor ideias científicas sólidas de uma forma acessível, algo que já Verne fazia.

E também a FC que traz em si filosofia, o que acontece com frequência, para espanto de quem a desconhece. É que os cientistas envolvidos na experiência estão perante um dilema sobre o qual não conseguem pôr-se de acordo e precisam por isso de uma opinião exterior. E é aí que entra o experimentalismo eminentemente literário de Landis: ele conta a história na segunda pessoa, quebrando a barreira entre história e quem a lê. Narra o que o leitor faz, as explicações que o leitor ouve, o que o leitor pensa. É nas mãos do leitor que põe a chave (literal) do dilema; é a ele que pergunta o que fazer. E isso com recurso a um artifício de linguagem, de forma. Trata-se, portanto, de algo que só um nível ridículo de contorcionismo intelectual conseguiria excluir do âmbito literário. Um exemplo perfeito, portanto, de algo que é indubitavelmente literatura e FC.

E mais: já deixei várias vezes dito por aí que para mim a melhor literatura é aquela que não renega nem forma nem conteúdo, aquela que escolhe a forma em função daquilo que pretende contar. Seria o caso aqui, se a explanação do problema não fosse tão longa. É-o inevitavelmente, talvez, mas mesmo assim a extensão do infodump faz com que não me pareça estarmos aqui perante a melhor literatura. É um bom conto, com uma excelente utilização da segunda pessoa narrativa, um belo exemplo de como ficção científica e literatura não são, nem de perto nem de longe, dois conceitos mutuamente exclusivos, mas é por aí que ficamos. E já não é nada mau.

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