domingo, 17 de dezembro de 2017

Lido: Starfish

É uma velha injustiça da ficção científica que se tenha desde sempre dedicado muito mais a explorar literariamente (e não só) o espaço sideral do que o espaço submarino, apesar de contar, nos seus primórdios, com o clássico Vinte Mil Léguas Submarinas, de Jules Verne. No entanto, este livro deixou muito pouca descendência, comparativamente falando, apesar de as regiões submarinas do nosso planeta serem em muitos aspetos, e ainda hoje, mais desconhecidas do que planetas como Marte ou Saturno. E até mais perigosas para a sobrevivência continuada do Homo tecnologicus do que, digamos, a órbita terrestre.

Pois este Starfish (título que significa, literalmente, "estrela-do-mar"), de Peter Watts, é uma das poucas obras que vai contra a corrente.

Ambientado num futuro razoavelmente próximo, numa estação submarina de monitorização de um sistema de captação de energia geotérmica, situada na dorsal de Juan de Fuca, ao largo da costa ocidental da América do Norte, é daquelas histórias claustrofóbicas de ficção científica que é tão comum encontrar ambientadas no espaço. Histórias em que os seres humanos sobrevivem em habitats limitados, tremendamente longe de qualquer lugar que lhes possa possibilitar a sobrevivência sem auxílio tecnológico. Aqui o isolamento não é tão absoluto como em muita da FC espacial (se bem que ela por vezes o elimine pondo as naves a saltar magicamente de planeta em planeta e estes quase invariavelmente com atmosferas respiráveis e habitados), pois a superfície do planeta está a algumas horas de distância e as personagens têm uma possibilidade maior de sair da estação do que é comum encontrarmos nas histórias de FC hard ambientadas no espaço. Mas se excetuarmos essas diferenças mais ou menos de pormenor a atmosfera é muito idêntica.

Watts interroga-se sobre como seria a vida num ambiente desses. Os seus "e se?", no entanto, vão mais longe: em vez de tripular a estação com os típicos heróis destemidos e inabalavelmente equilibrados de histórias mais simples, Watts pergunta ao leitor "e se a corporação privada que explora esta coisa só conseguir ou só quiser encontrar tripulantes muito desequilibrados da cabeça?" Assassinos, vítimas de abuso, psicopatas, pedófilos... Gente antissocial, em suma, gente que a sociedade civilizada lá de cima rejeita e/ou que rejeita a sociedade comum. O refugo e as vítimas desse refugo com sequelas psicológicas duradouras.

Com esse truque simples, o autor consegue criar logo à partida uma série de tensões, tanto internas a cada personagem como entre elas, que se vão somar à periculosidade do ambiente e ao seu caráter claustrofóbico para sustentarem boa parte do romance. A isso acrescenta-se o facto de não estarmos a falar de seres humanos inalterados mas de pessoas sujeitas a tratamentos de engenharia genética para melhor se adaptarem às profundezas do oceano (facto que Watts aproveita para explicar parte do motivo de serem os inadaptados a descer até lá abaixo; gente bem integrada, com mais amor-próprio, mostra mais relutância em sujeitar-se a tais mudanças... e quebra mais facilmente). E a isso vai acrescentar-se mais um elemento fulcral. Um elemento que faz com que esta história tenha um parentesco evidente com a novela O Destruidor de Mundos, de Charles Sheffield, que foi aqui comentada há pouco tempo.

É que, postula Watts, nas profundezas oceânicas do nosso planeta vivem estranhas criaturas. Micróbios tão filhos da Terra como os da superfície e das pequenas profundidades mas cujos metabolismos seguem outros caminhos bioquímicos. Uma biosfera diferente da nossa, apesar de partilhar o mesmo planeta. Micróbios que, apesar disso, podem entrar em simbiose com os organismos da outra biosfera e que, ao fazê-lo, os alteram, propiciando gigantismo e melhorando as suas capacidades de sobrevivência. E que têm sobrevivido ao longo dos milénios confinados ao fundo dos mares, sem conseguirem sair de lá. Mas o que aconteceria se saíssem? Aconteceriam chatices das grossas, ah pois!

Este é um romance de ficção científica bastante bom. Como em vários outros exemplos de FC claustrofóbica, há nele muitos elementos de horror, e o tom é definitivamente sombrio do princípio ao fim. Quem goste daqueles livros muito movimentados e repletos de ação pode achá-lo pouco apelativo, especialmente na primeira metade (talvez um pouco mais), pois Watts concentra-se aí mais na exploração das tensões psicológicas das suas personagens e na criação do ambiente do que propriamente em fazer avançar o enredo. Na segunda metade as coisas começam a acontecer a um ritmo mais elevado, e a história acaba bastante em aberto (este é o primeiro livro de uma trilogia e há que deixar ganchos para o próximo), e com quase tudo absolutamente em causa. Mas apesar disso achei o final satisfatório, sem aquele sabor a pouco que muitas vezes acompanha os finais em aberto.

Em suma, uma boa leitura. Boa e gratuita, pois Watts tem o livro disponível no seu site sob uma licença Creative Commons. Só vantagens. Recomendo.

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