sexta-feira, 19 de janeiro de 2007

O prazer da língua também é errar

Hoje, no Cuidado com a Língua, a malta do Ciberdúvidas voltou a um tema de que já tinham falado no site pelo menos uma vez: a correção, ou não, de usar-se "solarengo" para querer dizer "soalheiro". Dizem eles, e com toda a razão, que soalheiro é que é a palavra que tem como significado "cheio de sol", referindo-se a palavra solarengo aos solares, esses velhos e tantas vezes decrépitos edifícios da paisagem rural portuguesa (e não só).

Eles têm razão, mas há um mas por aí, algures. E o mas é, claro, que a língua evolui e sempre tem evoluído por meio dos erros que se disseminam, gerando palavras novas e novos significados para palavras antigas. Para uns hipotéticos ciberduvidosos do latim, o português estaria errado de cima a baixo, e o mesmo aconteceria com todas as outras línguas neo-latinas, por mais palavras derivadas por via erudita que contenham.

Pois bem, este parece-me um caso típico de uma palavra que está em processo de mutação de significado. Não só se ouve nas bocas de gente inculta, como se escuta na comunicação social e dita pelas elites, de tal modo que até já encontrou o seu caminho até se tornar verbete de um dicionário como o próprio Ciberdúvidas admite. E além disso, é uma palavra bonita. Enche-se a boca ao dizer solarengo. é uma palavra seca e brilhante como as coisas soalheiras devem ser, o que contrasta com a humidade gotejante da palavra mais correta. Solarengo tem mais sol que soalheiro, por paradoxal que pareça. E é provavelmente por isso que tanta gente a adotou como sinónimo.

Por isso e também, quer-me parecer, pela erosão do significado primário da palavra. Quem se importa com solares hoje em dia? Quantas vezes se fala deles ao longo de um ano? Uma? Duas? A verdade é que ao mesmo tempo que a realidade social que gerou os solares vai entrando nos estertores finais, o mesmo acontece aos próprios solares, que de locais de vida vão transitando cada vez mais para a ruína ou a morte suave do "património arquitetónico", com um punhado de exceções transformadas em locais de turismo rural. E essa morte lenta dos solares é acompanhada por um caminho idêntico percorrido pelos termos que lhes dizem respeito. Solarengo entre eles.

Salvo, claro, se mudarem de significado. Salvo se o erro se transformar em variante e a língua a acolher. Salvo se solarengo passar a significar, também formalmente, como tantas vezes já o faz na informalidade, algo cheio de sol. Pois neste país solarengo não teremos nunca falta de oportunidade para usar essa palavra, e até a poderemos usar em cunjunto com a outra, a certa, a que diz que o dia hoje esteve soalheiro pelo menos por estas bandas.

O prazer da língua também está em errá-la, desde que a erremos de modos esteticamente agradáveis e úteis e que não propiciem confusões. E, a meu ver, este erro em concreto possui todas estas qualidades.

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