segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Ano novo

Há uma quantidade enorme de anos, quando este blog era um bebé e eu me entretinha a alimentá-lo com o que a minha cabeça maluca ia retirando dos títulos dos spams que recebia por email, também aconteceu — por estranho que isso pareça a quem vive permanentemente no presente — um ano novo. E o meu spam, simpaticamente, acompanhou a efeméride, fornecendo-me um título que, embora cliché, era muito adequado ao acontecimento: Ano Novo, Vida Nova. Ou algo do género. Com base nesse título e no que eu há muito vinha sentindo sobre este deprimente país em que vivemos, escrevi o seguinte spamema:

Ano novo vida nova

Ano novo
vida nova
bota o ovo
para a cova

Dorme o povo
e não acorda
porque o polvo
se renova

Ano novo
vida nova?
Uma ova!


Isto foi escrito em 2003. Estamos em 2012. Mudou alguma coisa?

Bem, sim, mudou: estamos muito pior do que estávamos nessa época. Com o pior presidente da história da democracia e o pior governo da história da democracia e a pior situação económica da história da democracia gerada por décadas e décadas de roubo organizado por todos os cleptocratas que se foram infiltrando em tudo quanto é partido do dito arco do poder. O arco dos canalhas. O arco dos burlões. O arco da corja imunda e repugnante. O arco dos Relvas, descarados como o Relvas ou mais discretos como os muitos Relvinhas que poucos conhecem mas apodrecem todo o bocadinho da nossa vida coletiva em que têm oportunidade de tocar. O polvo de que ali falava, precisamente.

E o povo, esse, deu tímidos sinais de que talvez, eventualmente, com alguma sorte pudesse vir a acordar, sinais esses corporizados no melhor dia de todos os últimos 365: o 15 de setembro.

Pois o meu desejo, meus caros, é que 2013 seja o ano em que esse povo semidesperto, semiconsciente, semi-informado, semi-inteligente, acorde mesmo. Mesmo. É esse o meu desejo. A esperança, essa, é pouca.

sábado, 29 de dezembro de 2012

Lido: Auto do Extermínio

Auto do Extermínio (bib.) é uma longa noveleta de Cirilo S. Lemos que se pode enquadrar naquele retrofuturismo mais fiel à história alternativa, apesar de conter alguns elementos de outros géneros. E é, diga-se desde já, uma excelente noveleta. Ambientada no Brasil, como aliás tem sido quase sempre o caso no livro em que se insere, mostra-nos o país em plena convulsão política, nos últimos estertores de uma monarquia prolongada até bem dentro do século XX, agitado por comunistas por um lado e fascistas pelo outro, com o exército, republicano, a constituir uma quarta fação, talvez a mais poderosa, talvez a que mais cordelinhos puxa, dominada por um tal general Protásio Vargas que além de ambição pessoal pode, ou não, ser também movido por interesses estrangeiros.

A história em si mesma é uma história sobre a conquista do poder, sobre atentados e movimentações de bastidores, sobre armas secretas sofisticadas (para o nível tecnológico de meados do século XX, entenda-se, embora também haja um clone metido ao barulho) e assassinos orientados por capacidades premonitórias especiais. Uma história cheia de peripécias e reviravoltas, como costumam ser as histórias de todas as revoluções, e que portanto tem do princípio ao fim esse interesse, o interesse de se saber quem sairá vencedor. Mas é, sobretudo, uma história muito bem escrita — salvo um par e meio de erros de revisão —, com um magnífico ritmo e pormenores cheios de algo a que só posso chamar literatura. Tudo, ou quase, muito bom.

Contos anteriores deste livro:

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Lido: Contos Misteriosos

Contos Misteriosos é mais uma das pequenas antologias temáticas publicadas com o Diário de Notícias no verão do ano passado. Já não é a primeira que aqui aparece e está longe de ser a última. Desta feita, o tema é bastante vago, o que permite uma grande variedade nos contos escolhidos. Alguns são contos fantásticos, outros de fantástico nada têm, e as abordagens e objetivos que os cinco autores pretendem com eles atingir são os mais diversos possível. O que, julgo, não é lá muito bom, tendo em conta a proposta subjacente a fazer uma antologia temática.

O certo é que nenhum me encheu as medidas. Todos têm características que me agradaram, e todos têm características que me desagradaram. Na verdade, a coisa foi mais longe: aquele que me pareceu literariamente mais forte, portanto de certa forma o melhor dos cinco, foi aquele que menos me agradou: Roubo. Em menor grau, o mesmo aconteceu com vários dos outros, o que me deixou com uma perplexidade ao acabar a leitura: terei eu gostado desta antologia?

Normalmente é-me fácil responder a este tipo de pergunta. Se uma antologia não tem contos maus e os tem bons, ou pelo menos tem destes em número consideravelmente superior àqueles, gosto de a ler. O gostar de ler está dependente de acabar a leitura com satisfação, de achar em geral bem gasto o tempo nela dispendido, e isso normalmente fica claro ao fechar o livro, e por vezes bem antes de chegar a esse ponto. Mas aqui não. Aqui acabei-a um pouco perplexo, a perguntar aos meus botões se o que tinha acabado de ler tinha valido a pena.

Acabei por concluir que sim. Que suponho que sim. Com dúvidas. É que aprendi com alguns destes contos e tomei contacto com alguns autores que desconhecia — Collier, Coates e Porter, basicamente — e que me deixaram curioso sobre o que poderão ter escrito além do que aqui li. E isso é bom. Suponho.

Eis o que achei de cada um dos contos:
Este livro foi comprado.

Lido: Que Vergonha, Rapazes

Que Vergonha, Rapazes é um hilariante poema (soneto?) de Alexandre O'Neil sobre... bem, sobre esta vidinha à portuguesa que não anda nem desanda por culpa de tudo e mais dumas botas. Não-recomendadíssimo aos puristas da orthographia, que terão uma síncope logo ao primeiro verso ("pràqui"?! T'arrenego, abrenúncio!), muito recomendado a todos os que saibam alguma coisa sobre a língua tal como ela é, bem viva nas bocas dos seus falantes. E em especial a quem tenha sentido de humor, naturalmente.

Textos anteriores deste livro:

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Lido: Guizos

Guizos (bib.), de Bruce Holland Rogers, é mais um conto curto fantástico contado, na primeira pessoa, por um sonho. Não um sonho vulgar, daqueles que se sonham incoerentemente à noite e desaparecem mal o sonhador acorda. Mas um sonho que em tempos tinha sido homem, e que fora transformado em sonho pela violência de uma guerra de conquista. Mas esse sonho muda hábitos, costumes, culturas, até línguas, de modo que quando a guerra acaba — se é que chega a acabar algum dia — não se percebe bem quem é conquistador e quem fica conquistado. Mais um conto magnífico, pleno de subtileza, que se socorre do fantástico para fazer pensar em coisas bem concretas do mundo que nos rodeia. Como acontece quando ele é bem usado. Muito bom.

Lido: O Sr. Magia

O Sr. Magia (bib.) é mais um conto de Steven Bauer, desta feita adaptando um argumento de Joshua Brand e John Falsey. Bastante bom, por sinal. Trata-se de uma história fantástica e melancólica sobre um velho ilusionista que perdeu o jeito e, com ele, o carinho do público. Ganhando a vida em espetáculos quase vazios de assistência numa casa barata, por caridade do dono, o protagonista vê que até isso ameaça fugir-lhe. É então que decide investir em novo material e acaba por comprar um baralho de cartas realmente mágicas, que lhe permitem um derradeiro fulgor de sucesso. Mas nem estas duram para sempre. É uma história muito humana sobre o envelhecimento e a degenerescência e sobre como lidar com eles.

O texto de Bauer parece tratar bem a história em que se baseia e a tradutora até parece não ter cometido argoladas tão grandes como em contos anteriores do livro, de modo que a leitura flui razoavelmente bem. O melhor conto do livro até ao momento.

Contos anteriores deste livro:

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Lido: Ídolo

Ídolo é um conto curto de John O'Hara, autor americano com quem ainda não tinha tomado contacto. O conto passa-se em Washington e parece descrever apenas uma entrevista entre dois velhos conhecidos dos tempos da faculdade, um deles subsecretário de qualquer coisa, o outro à procura de emprego. Com bons diálogos, é uma história sobre o tráfico de influências nas mais altas esferas, sobre o que se pode e o que não se pode dizer, sobre a hipocrisia. Soa interessante, não é? Pois, mas para mim não foi. O'Hara não tem culpa, que escreveu isto em meados do século XX, mas a verdade é que basta assistir de olhos abertos a um episódio de The West Wing ou, num registo bem diferente, a um do Yes, Minister, para deixar de ter ilusões acerca do que realmente se passa nos corredores do poder. E em comparação este conto sabe a muito, muito pouco. A única coisa que retirei desta leitura foi um rotundo meh.

Contos anteriores deste livro:

Lido: O Teste

O Teste (bib.), conto curto de ficção científica de João Barreiros, é ao mesmo tempo sátira e desabafo. Num futuro indeterminado, num Portugal mergulhado no caos e na hiperviolência, um professor prepara-se para arriscar a vida — que pouco vale — para fazer uma avaliação aos seus alunos; o teste do título. Mas, para seu horror, vai descobrir que as coisas não vão correr como espera, embora seja isso mesmo o que o leitor já espera dado tratar-se de um conto de Barreiros. Apesar de seguir um esquema que o autor já usou bastante, o conto é bastante bom: estilo, enredo e dimensão conjugam-se na perfeição e, embora seja previsível que as coisas corram mal, a forma concreta como isso acontece não o é. Já tenho mais dúvidas quanto às ideias que estão por trás deste conto. É que a noção de que a escola caminha para se transformar em zona de guerra povoada por professores que tentam fazer o melhor que podem e sabem mas estão de mãos atadas por um sistema ineficaz e rodeados por hordas de imbecis armados até aos dentes contribuiu decisivamente para a aberração em curso corporizada por um tal Nuno Crato. E o pior é que os dados de comparação internacional entre as nossas escolas e as dos outros — ou melhor, entre os nossos alunos e os dos outros — desmentem essa ideia com grande veemência. Ou seja: este conto, sendo bom, mostra as coisas como poderiam ser se fossem muitíssimo diferentes do que são. Apesar de ser compreensível que um "stor" cansado e farto do que faz se possa sentir assim de vez em quando, especialmente se lhe calharem em sorte aquelas turmas problemáticas que todos bem conhecemos, cheias de miúdos sem quaisquer perspetivas de futuro, sem qualquer sombra de motivação e/ou curiosidade intelectual.

Contos anteriores desta publicação:

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Lido: Ao Perdedor, as Baratas

Ao Perdedor, as Baratas (bib.) é uma noveleta algo estranha de Antonio Luiz M. C. Costa, em parte história alternativa, em parte aventura pulp, em parte utopia política e em parte fantasia kafkiana. Passa-se num mundo alternativo, com um ponto de divergência que nunca fica inteiramente claro mas é antigo, data pelo menos de vários séculos antes dos presentes, tanto o ficcional (que parece situar-se por volta de meados do século XX) como o real. Nesse mundo, a América não se chama assim mas Colômbia — o que, até que o leitor deslinda a diferença das Colômbias, a real e a ficcional, causa alguma confusão — e a sua metade norte não foi colonizada pelos ingleses, mas pelos holandeses. Não é, contudo, aí que se desenrola a história, embora esse facto tenha importância por ser um cidadão da Colômbia do Norte o protagonista da história, e por esse país se encontrar em fase de resvalamento para um regime muito semelhante ao regime nazi da Alemanha da nossa realidade, com todas as implicações que esse facto tem. O protagonista, aliás, não se limita a ser cidadão: é também agente secreto, e tem uma mentalidade muito semelhante à dos nazis. Por seu lado, o Brasil, lugar onde a história se ambienta, é uma república democrática, industrializada e culturalmente integrada, misturando num todo, ainda que não inteiramente pacífico e coeso, as suas heranças índia, portuguesa e africana. O início da história vai encontrar este país em plena campanha eleitoral para umas eleições presidenciais nas quais um candidato comunista (e indigenista) leva vantagem. A tarefa do protagonista é precisamente mudar o rumo da campanha brasileira, impedindo o triunfo da esquerda. Como? Através de um atentado perpetrado por uma arma secreta.

E por aí vai.

Basta esta introdução, que nem chega a falar de muitos outros detalhes importantes para a história, para se perceber que esta noveleta está repleta de conteúdo. Esse, aliás, é o seu maior defeito: não se limita a estar repleta de conteúdo, mas transborda. Tem tanta coisa, é um tal turbilhão de ideias, personagens, ambientação ucrónica, tudo e mais alguma coisa, que o autor se vê obrigado a deixar as personagens mal caracterizadas e a entrecortar a trama com digressões algo longas para situar o leitor na história — e mesmo assim não evita algumas confusões, como no supracitado caso da Colômbia do Norte — enquanto mantém a extensão do texto suficientemente curta para o reduzir a noveleta. O material é simplesmente demasiado. Tudo o que aqui se encontra, explorado de uma forma mais aprofundada, daria para uma novela, e não das mais curtas. Acrescentando-lhe um ou dois arcos de história (ou talvez uns "ramais", umas analepses, uns saltos no tempo, coisas dessas) facilmente se chegaria ao romance. E eu julgo que a história ficaria melhor assim.

Porque não consegui deixar de sentir, ao acabar a leitura, aquela sensação de potencial imenso mas insuficientemente explorado que por vezes sentimos ao lermos ficções curtas que facilmente dariam longas. Porque quis conhecer melhor várias daquelas personagens que fazem aparições fugidias ao longo da trama e até o próprio protagonista, também ele pouco tridimensional. Porque a alternativa histórica me pareceu potencialmente muito rica. Porque, em suma, tudo aquilo me interessou bastante e acabou depressa demais deixando uma sensação de incompletude. Esta poderia ser uma boa novela, até um bom romance. Mas não me parece que seja uma boa noveleta. Sou de opinião que cada história tem um tamanho certo, aquele tamanho que realmente lhe faz justiça, e acho que o desta não é este. Fica a esperança de que o autor um dia o encontre. Porque julgo que a história o merece.

Ah, e Kafka, onde fica? Nas baratas, pois claro. E mais não digo, que isto já vai longo.

Contos anteriores deste livro:

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Lido: «O Acto Sexual é Para Ter Filhos» — Disse Ele

«O Acto Sexual é Para Ter Filhos» — Disse Ele é um famosíssimo e hilariante poema satírico de Natália Correia que transformou em alvo de chacota nacional um tal João Morgado, ao tempo deputado do CDS na Assembleia da República. Morgado defendia em pleno hemicilo a velha e bafienta ideia puritana de que o único fim do sexo é a procriação — a qual, por bafienta e ridícula que seja, continua ainda hoje a assomar aqui e ali —, e Natália Correia improvisou uma resposta em 16 versos que constituem um dos poemas mais poderosos que alguma vez se fizeram em língua portuguesa. Pelo menos entre os que não se destinam a ser musicados. Foi um momento de absoluto brilhantismo, e ainda hoje é impossível não ler estas palavras sem rir dos Morgados que por aí andam. Podem ser lidas na net em vários sítios. Este, por exemplo. Mas o que eu li veio num livro.

Textos anteriores deste livro:

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Lido: O Conquistador

O Conquistador (bib.) é mais um conto curto de Bruce Holland Rogers. Desta feita estamos no reino da fantasia, entre trolls — ou troles, como o tradutor os aportuguesa —, que um belo dia (ou noite; não se sabe bem pois rezam as histórias que o troll é criatura que habita na escuridão eterna das cavernas) sonham com um deus novo chamado Conquistador. Este promete-lhes uma vida mais fácil, à superfície, aquela vida que os homens vivem na sua cidade. Para a obterem, basta-lhes terem nele fé, prestarem-lhe homenagem e fazerem o que lhes ordenasse. Ah, e chamarem-no de vez em quando pelo seu verdadeiro nome. Em troca, ele trataria de os ajudar a conquistar essa nova vida. E os trolls assim fazem, e o deus cumpre o prometido. Mas um deus chamado Conquistador é capaz de não ser inteiramente digno de confiança.

Trata-se de mais uma boa história, com fartas quantidades de conteúdo para quem o souber entender, em especial tendo em conta que Rogers é americano e que se há no mundo de hoje país que tende a ceder aos caprichos do deus Conquistador, esse país chama-se Estados Unidos da América. Não acho que seja dos melhores contos do livro, mas é bom.

domingo, 16 de dezembro de 2012

Lido: Julieta

Julieta (bib.), de Pinheiro Chagas, é um romanticíssimo conto de horror sobrenatural sobre um jovem que se perde de amores pelo fantasma de uma mulher de superlativa beleza. E quando digo romanticíssimo refiro-me mesmo às características (e aos ridículos) da literatura romântica: o absurdamente exagerado sentimentalismo, a inverosimilhança das paixões, a linguagem empolada e pretensiosa, tudo isso. Na prosa de Pinheiro Chagas, as personagens não falam: peroram. Também não vivem: trambolham de cascata emocional em cascata emocional sem qualquer controlo nem o mínimo sinal de inteligência. Tudo, por profundíssimo que se apresente, é duma superficialidade atroz. O protagonista desta história põe os olhos numa mulher — ou naquilo que julga ser uma mulher — e imediatamente passa a amá-la "mais do que à vida". Porquê? Porque é bela, pois então! E haverá mais alguma qualidade feminil capaz de fazer um mancebo perder-se de amores? Claro que não! Só a beleza existe, especialmente se salpicada de uma pitadinha de mistério. Quem é ela, oh, perdição do coração!, quem é?

Perfeitamente ridículo.

E no entanto...

E no entanto há neste conto certos detalhes que me levam a não o renegar completamente como simples exemplo da má literatura romântica. Pinheiro Chagas entrelaça no enredo principal pequenos toques de um humor irónico, apontado às hipocrisias e — sim — aos ridículos da sociedade do seu tempo. E há neste conto uma certa qualidade cinemática. Apesar da banalidade de boa parte do enredo, certos pormenores, certos detalhes descritivos, conseguiram levar-me a pensar em imagens. Expurgado dos exageros de linguagem, melhor explorado aqui e ali e transformado em guião, este conto não daria um filme de longa metragem porque não tem dimensão para tal, mas, bem filmado, com bons efeitos especiais (sim, precisaria deles), poderia dar um bom episódio de uma série fantástica ou uma boa curta.

E isto é uma qualidade.

Este livro foi comprado.

sábado, 15 de dezembro de 2012

Lido: A Viagem do Sr. Culpa

A Viagem do Sr. Culpa (bib.) é a novelização por Steven Bauer de uma história de Gail e Kevin Parent. A história tem algum interesse à sua maneira delicodoce. O Sr. Culpa é isso mesmo, o senhor culpa. A personificação do sentimento de culpa, que vive uma vida de pessoa, com emprego numa espécie de corporação celestial (o qual consiste, naturalmente, em instilar sentimentos de culpa nas pessoas), hierarquia, avaliações de desempenho, enfim, o pacote completo. E férias, claro. É nessas férias que acontece a viagem do título — um cruzeiro —, e é aí que o Sr. Culpa vai deparar com o inesperado. O Amor. Assim mesmo, com inicial maiúscula. Tudo bastante aceitável, tudo construído com imaginação e, aparentemente, pelo menos alguma qualidade literária. O problema é a horrenda tradução. Um exemplo: há uma parte do texto em que Bauer faz uma referência ao ténis, e descreve uma cena como se de um jogo se tratasse. Com a correspondente evolução do resultado. Quem sabe alguma coisinha sobre o assunto, sabe que o resultado é expresso, em inglês, como "fifteen love"; "thirty love"; "fourty love". Qualquer tradutor com um mínimo de competência traduziria como "quinze nada"; "trinta nada"; "quarenta nada". Que fez a tradutora? "Quinze amores", "trinta amores", "quarenta amores."

Sim. A sério.

Contos anteriores deste livro:

Lido: A Lei

A Lei, de Robert M. Coates, é daqueles contos de um fantástico salpicado de humor e surrealismo que encaixariam que nem uma luva na proposta do Infinitamente Improvável. Ambientado em Nova Iorque, descreve o que acontece quando a banalidade quotidiana é interrompida por um afluxo completamente anormal de veículos a uma das pontes que ligam Manhattan a Long Island, gerando longas filas e mais longas esperas, além de um autêntico ataque de nervos aos portageiros. Este acontecimento traz para o primeiro plano do consciente coletivo outros acontecimentos semelhantes que tinham vindo a suceder nos últimos tempos, mas que haviam sido relegados para a categoria de coincidências sem importância. E segue por aí fora, ainda que não por muito tempo — o conto é curto — mostrando uma sociedade que tenta adaptar-se, a custo, à incerteza gerada por aqueles fenómenos inexplicáveis.

Gostei mais da premissa do que propriamente do conto, apesar de este não me parecer mau. Mas pareceu-me que explorou a premissa de uma forma demasiado superficial, tocando apenas pela rama as consequências de um tal acontecimento. Dir-se-ia que o autor, depois de ter a ideia, não teve espaço, tempo, vontade ou arte para a explorar com a profundidade que ela talvez merecesse, impressão que talvez seja acentuada pelo final em aberto. Parece-me que é pena. Haveria muito sumo a extrair deste naco de fruta. Mas ainda assim não desgostei.

Contos anteriores deste livro:

Lido: Pais da Aviação

Pais da Aviação (bib.) é uma noveleta de Gerson Lodi-Ribeiro que consiste de quatro pequenas histórias interligadas, ambientadas num universo alternativo em que a Revolução Francesa teve completo sucesso e a França napoleónica conseguiu conquistar a maior parte da Europa (e consequentemente a maior parte do mundo, dado que à época quase todos os países da Europa Ocidental possuíam vastos impérios coloniais). Como? Graças à tecnologia, bien sûr. É um texto interessante, bem escrito e bem construído, que o autor consegue tornar verosímil apesar de cair numa tendência comum a muitos escritores de história alternativa e que me parece altamente problemática em termos de verosimilhança: a conservação, em linhas históricas profundamente alteradas, dos mesmos indivíduos que ocuparam lugares-chave na nossa. E assim surgem aqui Júlio Verne, os irmãos Wright, Santos-Dumont, etc. Percebo a tendência, percebo a tentação da homenagem, da transmutação da pessoa em personagem, mas não a acho minimamente lógica em termos de coerência, do que está por trás do próprio conceito de história alternativa.

Por outro lado, em literatura vale tudo. E quando o resultado é bom, como me parece ser aqui o caso, há que pôr essas picuinhices um pouco de parte. Como facilmente se poderá deduzir de algo baseado nos atos de Napoleão e sucessores, a noveleta foca-se em peripécias militares, em detalhes geopolíticos, e no efeito de avanços tecnológicos sobre as estratégias militares em cada época retratada (ou sobre as próprias tecnologias e os seus inventores). Como seria a batalha naval de Trafalgar se a frota franco-espanhola dispusesse de navios a vapor? Qual o impacto da aviação ou de agentes químicos ou biológicos nas correlações de forças nos campos de batalha? Que forma assumiria o mundo se fosse dominado tão completamente pelos franceses? Gerson Lodi-Ribeiro responde com uma boa noveleta, cujo maior defeito é ter-me parecido por vezes demasiado concentrada em criar o cenário do que propriamente em contar histórias nele ambientadas. Fica uma certa sensação de esboço de algo maior, de que há ali muito pano para ser aproveitado em mangas que por enquanto — julgo eu — não apareceram.

Contos anteriores deste livro:

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Lido: Vem, Vulva Antiqüíssima e Idêntica

Vem, Vulva Antiqüíssima e Idêntica é, mais uma vez, não um título mas um primeiro verso de um poema de Mário Cesariny de Vasconcelos. Com trema e tudo. Desta feita, porém, e apesar de continuar a haver a descontração no emprego de referências sexuais e do calão que se encontra abundantemente nos textos anteriores, este poema é bastante mais lírico, muito menos divertido e até, sim, muito menos porco. É uma ode à vulva, uma declaração de amor à vagina, mas não uma piada. Julgo mesmo que não tem qualquer intenção de chocar quem quer que seja. Só se expressar um sentimento, e de uma forma bem menos crua do que a empregada noutros textos. Não me fez rir, nem sequer sorrir; fez-me apreciar o belo tratamento da língua — sem nenhum segundo sentido, se me fizerem esse obséquio — que Cesariny aqui faz, independentemente de o fazer usando palavras que as "pessoas de bem" normalmente não usam. Querem saber? Fodam-se as "pessoas de bem."

Textos anteriores deste livro:

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Lido: A Fera

A Fera (bib.) é um conto curto de Bruce Holland Rogers, escrito como se se tratasse de um conto popular, de uma lenda tradicional, mas que não nos fornece a lição de moral típica dessas histórias, antes nos confronta com um dilema. A fera do título, que começa a história livre mas um belo dia é capturada, é mágica. Não só fala como, o que é mais importante, o seu cuspo é mágico e possui propriedades curativas, embora também tenha a perversa propriedade de só funcionar quando a fera é maltratada. E é esse o dilema moral que a história nos apresenta. Como que nos pergunta: que fariam vocês? A fera, criatura obviamente inteligente e sensível, almeja apenas a liberdade, mas só mantendo-a presa e maltratando-a obterão uma vida longa e saudável. Que fariam vocês? O que venceria os vossos dilemas pessoais se fossem vocês os possuidores da fera? O egoísmo? O medo do sofrimento e da morte? A empatia? A bondade? O quê?

Bastaria isto para estarmos perante uma grande história, mas ainda por cima está muito bem escrita. Trata-se, portanto, de um conto absolutamente brilhante. Muito, muito, muito bom.

Lido: Vanessa no Jardim

Vanessa no Jardim (bib.) é um conto sobrenatural de Steven Bauer com uma ambiência novecentista e muito romântica. A Vanessa do título é modelo, musa inspiradora e mulher de um pintor, talentoso e promissor, que acaba por morrer num acidente, mergulhando o pintor numa espiral autodestrutiva. Mas é quando este bate no fundo, alcoólico e sem vintém, que Vanessa o resgata, devolvendo-lhe uma razão para viver e tema para os seus quadros. Vanessa, ou o seu fantasma. Ou eventualmente o seu delírio.

O conto, no original, talvez tenha algum interesse — pelo menos a história é bonita —, mas é vítima de uma tradução de tal forma pavorosa (chega a incluir pérolas como "Então sugiro que te coçes". Sim. A sério. Logo na primeira página) que o leitor fica sem perceber lá muito bem se toda aquela inépcia literária se deve à tradutora ou se Bauer também é parcialmente responsável por ela. Seja como for, o resultado é francamente mau.

Conto anterior deste livro:

Lido: Roubo

Roubo é um conto de Katherine Anne Porter que, de uma forma fragmentária e algo impressionista, constrói uma reflexão sobre a natureza da propriedade e aquilo que a rodeia. No centro de tudo está uma carteira (uma mala?), mas Porter passa o conto inteiro a desviar dela a atenção do leitor, falando disto e daquilo, descrevendo entrecortadamente algumas horas na vida da dona da carteira, a protagonista da história, e traçando em largas pinceladas um esboço do seu entorno social. A criaturinha analítica que habita dentro de mim, o escritorzeco, deliciou-se com a magnífica técnica que Porter aqui aplica. Este conto é um perfeito ato de prestidigitação literária, e a criaturinha analítica ficou fascinada com o modo como ela conseguiu executá-lo. Mas o leitor descontraído que também por cá anda teve uma reação bem diferente. Não detestou o conto, mas quase. Porque nada nele conseguiu realmente prender-lhe a atenção, despertar-lhe o interesse. Nada de nada.

Só posso concluir, portanto, que se trata de um grande conto do qual não gostei nada. Às vezes acontece.

Contos anteriores deste livro:

Lido: Se Acordar Antes de Morrer...

Se Acordar Antes de Morrer... (bib.) é uma noveleta de João Barreiros de que já aqui falei há coisa de ano e meio após tê-la lido noutra publicação. Não tenho grande coisa a acrescentar: esta noveleta e a novela lovecraftiana Por Detrás da Luz são claramente do melhor que Barreiros e o fantástico português produziram na última década. Dito isto, se puderem evitem esta edição: as gralhas são tantas, a revisão foi de tal forma inexistente, que quase estragam tudo. Quase. Felizmente, há mais duas edições por onde escolher, ainda que uma delas seja brasileira e portanto pouco acessível em Portugal.

Contos anteriores desta publicação:

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Lido: Impávido Colosso

Impávido Colosso (bib.) é uma noveleta de Hugo Vera que, no contexto de uma guerra entre a Argentina (apoiada pelo Chile e por... Inglaterra, por inverosímil que pareça) e o Brasil, apoiado pelo Paraguai, introduz a ideia dos mechas no ambiente sul-americano e retrofuturista. Para quem não sabe o que são mechas, eu explico: trata-se de robôs de grandes dimensões, geralmente de formato humanoide, por vezes tripulados, outras telecomandados, outras totalmente autónomos, e desenvolveu-se à volta deles um subgénero completo de ficção científica, muito dirigido para o público juvenil, com especial preponderância na banda desenhada e na animação. Os Transformers, por exemplo, são mechas.

Um pouco à semelhança do que Carlos Orsi fez com a sua história de super-heróis, Hugo Vera "transplanta" para o Brasil a ideia, mais habituada a outros ambientes, e sai-se razoavelmente da empreitada. Pese embora alguns excessos descritivos e principalmente explicativos (até a infame técnica conhecida como "as-you-know-Bob" faz nesta história a sua desagradável aparição na demasiado longa ambientação inicial), e um português de menor qualidade do que o utilizado pelos autores das histórias anteriores constantes do livro de que esta faz parte, chegando mesmo a incluir alguns erros (a crase! a crase!), a noveleta tem qualidades. Há cenas de ação dinâmicas e em geral bem escritas, por exemplo, e há alguns detalhes de enredo bem pensados. É previsível? Em grande medida é: a sua natureza pulpesca, que é evidente desde o início, torna boa parte do enredo bastante previsível. E no entanto, o final é surpreendente. Na verdade, o final é a melhor parte do texto, conseguindo sozinho fazer com que esta noveleta se erga da mediocridade. Não creio que chegue a transformá-la numa boa história, mas resgata parte do que de menos bom ficou para trás.

Contos anteriores deste livro:

Onde andam os brasileiros?

O Ficção Científica Literária é um projeto que me tem dado algum trabalho, embora não tanto como eventualmente se possa pensar, mas que também me tem permitido fazer alguma análise do que se vai dizendo e sobre quê no campo da FC na literatura e, o que é para mim o mais interessante, me tem causado algumas surpresas. Um exemplo de análise, necessariamente básica visto que o apanhado não é nem pode ser exaustivo, está aqui. Este post agora é sobre a surpresa.

A ideia do FC Literária sempre foi reunir num só lugar links para o máximo possível de publicações online sobre as várias facetas da ficção científica com uma relação próxima com os livros em todos os países de língua portuguesa. Naturalmente, uma vez que não só os brasileiros são em maior número, como a publicação e presumivelmente a leitura de FC estavam em alta no Brasil, ao contrário do que se passa em Portugal, no início os posts brasileiros ou ligados ao Brasil que eram compilados no FC Literária foram bastante mais que os portugueses ou ligados a Portugal. Devo dizer que foi com alguma surpresa que encontrei uma proporção inicial de apenas 2:1. Julgava vir a encontrar uma desproporção ainda maior, por tudo aquilo que ficou dito acima.

Entretanto, foi-se passando o tempo, e esta proporção não se manteve. E não, ao contrário do que eu pensava não se alargou. No momento em que escrevo isto, na verdade, aproxima-se do 1:1, o que significa que nos últimos tempos têm sido mais as coisas escritas por portugueses ou relativas a portugueses sobre alguma vertente da ficção científica na literatura do que o seu equivalente brasileiro. Neste momento, há no FC Literária 825 posts com a etiqueta "Brasil" para 761 com a etiqueta "Portugal", uma diferença de apenas 64. Muito pouco significativa.

Mais curiosas ainda se tornam as coisas quando esta proporção é comparada com a brutal desproporção entre o material brasileiro e o português que me chega através do motor de sugestões do scoop.it. Aí, é quase tudo brasileiro... só que quase nada tem a ver com literatura. Parece que, ao contrário do que acontece em Portugal, no Brasil se fala muito sobre a ficção científica no cinema, em séries de TV, em BD, mas não nos livros.

Porquê? Ou, por outra, onde andam os brasileiros?

É possível que parte da explicação resida no Skoob. Trata-se de uma rede social sobre livros muito popular no Brasil, e talvez seja lá que decorre a maior parte da conversa. No entanto, os portugueses também usam uma rede social sobre livros, o Goodreads, e também lá se passa uma parte significativa da conversa. Além do Facebook e de outras redes sociais.(*) Parece-me, portanto, fraca explicação, até porque não explica a diminuição relativa de material brasileiro ao longo dos meses.

Assim, fico-me com a surpresa e sem respostas. Que se passa com os brasileiros? Onde andam eles? Onde escrevem, se é que escrevem, sobre o que vão lendo?

(*) Em parte porque o motor de sugestões do scoop.it normalmente não recolhe material no interior das redes sociais, que tendem a ser ecossistemas fechados em si mesmos, ou pelo menos muito mais destinados à recolha de material oriundo do exterior do que à divulgação de material para o exterior, e também em parte por decisão minha dada a típica fugacidade do que é colocado em redes sociais, e à fraca fiabilidade dos links para material específico que nelas possa existir, o FC Literária não tem ligações para nenhuma rede social. Só para blogues, portais, sites de notícias, etc. Um blogue é o sítio mais adequado para conteúdo. Uma rede social serve para outra coisa: a divulgação.

sábado, 8 de dezembro de 2012

A estupidez revela-se nestas coisas

Andam aí os caquéticos da velha ortografia com tudo aos saltos porque, segundo dizem, "o Brasil meteu o acordo ortográfico na gaveta", ou vai adiá-lo, ou não sei que mais. As versões são múltiplas.

E, como é hábito nesta gente, são um chorrilho de asneiras.

A verdade é apenas a seguinte: um senador brasileiro, repito, um senador, membro do equivalente local ao nosso PSD que, como os de cá, procura qualquer pretexto para criar dificuldades ao governo quando não é da sua cor política, fez no senado uma proposta para adiar para 2016 a entrada plena em vigor da nova ortografia.

Precisam que eu repita?

1) É uma proposta.

2) Feita por um senador.

3) Destina-se a adiar a entrada plena em vigor da nova ortografia. Esta estava prevista para 2013, se não me engano.

Precisam que eu explique?

No Brasil, como em Portugal, como nos demais países lusófonos, não se adota a nova ortografia de um dia para o outro. Existe um período de transição, durante o qual estão as duas em vigor, a nova e a antiga. No Brasil, como em Portugal, estamos agora dentro desse período. Em Portugal, ele vai até 2015. E no Brasil, no caso improvável desta proposta ser aprovada (o PSDB é minoritário), iria até 2016.(*)

O tal senador, que tem tido por lá mais ou menos o mesmo papel que o Graça Moura tem desempenhado por cá, justifica o adiamento com a ideia de que é preciso tempo para reformulações e detalhamentos de alguns pontos da nova ortografia. Nunca fala em abandono ou anulamento. Fala em aperfeiçoamento.

Mas claro que os idiotas da velha ortografia não perceberam nada, como sempre, e fizeram uma monumental trapalhada com base nisto. Já andam por aí a dizer idiotices como "o Brasil meteu o acordo ortográfico na gaveta," "o Brasil deu uma chapada de luva branca em Portugal" e outras coisas do género. Por causa de uma proposta de um senador.

E é assim que se revela a monumental estupidez desta gente. Não é por terem as opiniões que têm sobre o acordo. É por serem incapazes de compreender as coisas mais óbvias e nunca se coibirem de asneirar a partir dessa sua incapacidade de compreensão.

E são isto, as "elites" desta pobre terra. Alguém ainda se admira por estarmos no estado em que estamos?

(*) Segundo diz o tal senador, Dilma Rousseff aceitou a ideia e está a preparar um decreto nesse sentido, o qual dispensa a votação no senado. Não sei bem se acredite: esta malta é bem conhecida por distorcer os factos. Na verdade, tenho estado à espera do desmentido. Mas o caso de já se terem passado alguns dias e este ainda não ter aparecido dá-lhe uma certa credibilidade. A ver vamos se essa credibilidade se concretiza ou não. Seja como for, trata-se, repito, de um adiamento do momento em que a velha ortografia deverá deixar de ser usada e só disso.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Lido: É Importante Foder (ou não Foder)?

É Importante Foder (ou não Foder)? é, como quem vem seguindo este blogue nos últimos tempos talvez adivinhe com facilidade, outro primeiro verso de outro poema sem título de Mário Cesariny de Vasconcelos. De novo, a vontade de chocar é óbvia, de novo o Cesariny é desbocado quanto baste — se é que se pode ser desbocado por escrito — e até, para as almas mais púdicas, muito mais que o razoável, e de novo é divertido para quem tiver um sentido de humor suficientemente irreverente. Ou juvenil, se preferirem. Desta feita discorre sobre a liberdade sexual e outras coisas congéneres, incluindo uma valente dose de autoirrisão. Não consigo deixar de simpatizar com quem não se leva a sério desta forma genial.

Textos anteriores deste livro:

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Lido: Quiabo, Sorgo e Inhame

Quiabo, Sorgo e Inhame (bib.), conto curto fantástico de Bruce Holland Rogers, é uma subtil história exemplar sobre a sabedoria. Escrita como fragmento de uma história maior (começa com "e assim", como quem dá sequência a algo), descreve a forma como uma princesa de um reino longínquo vai ter com um velho sábio em busca de sabedoria, por ordens do pai, para poder casar-se com um belo príncipe. O sábio, contudo, põe-na a fazer coisas que nada parecem ter a ver com a obtenção de sabedoria, e ela, de facto, não a obtém. Mas o leitor, se tiver sensibilidade e inteligência para tal, sim. Além de afirmar que o achei um ótimo conto, quero só acrescentar duas palavrinhas: carpe diem.

Lido: A Missão

A Missão (bib.) é uma novelização de Steven Bauer de uma história de Steven Spielberg ambientada na Segunda Guerra Mundial. O conto acompanha a tripulação de um dos bombardeiros pesados americanos destacados na Europa, provavelmente um B-17, durante a 23ª missão do avião. Detalhe de fundamental importância: nunca ninguém regressou da 24ª... e um dos tripulantes, encarado pelos outros como mascote e dono de um singular talento para o desenho que, espera ele, o levará a trabalhar na Disney após a guerra, está precisamente na sua missão número 24. Montado o palco, desenrola-se a peça, de uma forma tão hollywoodesca como seria de esperar, com a iminência do desastre que já se entrevê pelo que ficou dito acima e algum sobrenatural à mistura num fim repleto de deus ex-machina.

O enredo já não é grande coisa, mas o conto não se fica por aí. Não sei bem se é Steven Bauer que é inepto a transformar um guião em conto, se a pavorosa qualidade da tradução lhe esfrangalha o texto ainda mais do que parece à primeira vista, o certo é que o resultado é péssimo. Não há página em que não surjam frases inteiras que não fazem qualquer sentido. Se os outros contos seguirem pela mesma bitola, temos sério candidato a pior livro do ano de leituras.

Lido: O Pretendente

O Pretendente é um curto conto fantástico de John Collier que se desenrola dentro de uma loja que tem fama de vender produtos de sobrenatural eficácia. Poções, mais precisamente. O cliente, como o título indica, está interessado num tipo específico de poção: uma poção de amor. Mas o conto não nos mostra se ela é eficaz ou não, apenas a conversa que antecede a compra, durante a qual o vendedor procura chamar a atenção do cliente para outros produtos, ao mesmo tempo que assegura a eficácia daquele que o protagonista procura. O conto não me pareceu nada de especial; talvez seja demasiado curto para ter real impacto no leitor (ou pelo menos neste leitor), até porque Collier, autor que eu desconhecia, não parece ser nenhum Rogers. Mas é um conto agradável.

Conto anterior deste livro:

Lido: O Dia em que Virgulino Cortou o Rabo da Cobra Sem Fim com o Chuço Excomungado

O Dia em que Virgulino Cortou o Rabo da Cobra Sem Fim com o Chuço Excomungado (bib.), título que até cansa escrever, é uma noveleta de Octavio Aragão que reinventa os acontecimentos ocorridos numa época conturbada da história brasileira, nos anos 20 do século passado, em que no Nordeste imperava o cangaço e um movimento político-militar chamado Coluna Prestes deambulava pelo interior do país a tentar promover a revolução. O Virgulino do título é o cangaceiro Lampião, provavelmente o mais famoso de todos, e a noveleta conta a história de um recontro (que aparentemente nunca terá acontecido, mas por pouco mais que acaso), e posterior encontro, entre a Coluna e o bando de Lampião. Não, não se trata de simples história secreta, pois uma misteriosa personagem intervém, fornecendo a ambos tecnologia aparentemente mágica: pistolas de raios ou um pó capaz de transformar qualquer coisa com motor numa terrível máquina de guerra.

Enquanto português, o meu principal problema com este conto foi a completa ignorância do contexto histórico em que se insere. Conheço, vagamente, a velha história do Nordeste brasileiro com o cangaço, mas até a encontrar aqui nunca tinha ouvido falar da Coluna Prestes, e não fazia a menor ideia do que tinha sido ou até de quando tinha sido. Para mim, como, julgo, para a generalidade dos meus compatriotas, todo o ambiente histórico em que a noveleta se insere é bastante obscuro. E esta é uma história que precisa de contexto para que as suas subtilezas possam ser devidamente apreciadas. Uma história muito brasileira, que provavelmente não funcionará lá muito bem junto de quem não o seja. Por outro lado, é educativa: pôs-me à procura de informação para ver se a entendia melhor. E quando a encontrei percebi que se a possuísse à partida teria gostado mais da história do que gostei. Porque, por exemplo, só a possuindo teria a consciência de que a coincidência de haver três ou quatro forças em presença simultânea nos arredores de uma cidadezinha nordestina, que causa uma grande confusão e é aparentemente forçada, não saiu da cabeça do autor, e é verdade histórica. Por estranho que pareça.

Contos anteriores deste livro: