terça-feira, 26 de outubro de 2004

O caso Cachapa

Já há algum tempo que venho sentindo vontade de escrever qualquer coisa aqui na Lâmpada sobre o caso Cachapa, e só não o fiz ainda porque das várias vezes que me sentei a pôr alguma coisa no papel sobre esse assunto achei que a abordagem não estava a ser inteiramente correcta.

Para quem não sabe o que é o caso Cachapa, algum enquadramento:

Possidónio Cachapa escreveu e publicou um livro chamado Materna Doçura que o levou a ser citado num relatório do SIS, ao lado de outros autores como Thomas Mann e André Gide, como um escritor que escreveu livros que "apresentam a pedofilia a uma luz favorável". O caso foi divulgado num certo tipo de imprensa, nomeadamente o Crime e o Correio da Manhã.

Ora bem, eu não li o livro em causa, logo não faço ideia se ele apresenta ou não a pedofilia a uma luz favorável, embora me custe a crer que o faça. Mas o simples facto de uma coisa como o SIS se dar ao trabalho de elaborar um Index inquisitorum de livros "subversivos" é revelador do estado fascizante em que vamos mergulhando cada vez mais profundamente. Desde o 25 de Abril que não havia um corpo de atrasados mentais a vasculhar produtos culturais à procura de indícios incriminatórios. Nessa altura, a coisa chamava-se PIDE e era célebre e notória pela absoluta imbecilidade de que dava mostras naquilo que cortava e deixava passar; hoje, o SIS parece querer ir pelo mesmo caminho, com o beneplácito dos mesmos poderes vigentes que procuram a todo o transe controlar ou, pelo menos, influenciar a comunicação social.

Um livro é uma coisa complexa. Um bom livro é-o mais ainda, e tem níveis de leitura variados e por vezes contraditórios: lido superficialmente parece uma coisa, lido aprofundadamente é outra, muitas vezes bem diferente. Só livros pastilha-elástica são lineares e óbvios como o sabor da própria pastilha-elástica, mas mesmo nestes as leituras possíveis dependem das experiências e sofisticação de quem lê. Em muitos livros (naqueles que têm personagens e pelo menos um esboço de enredo), há gestos, ideias e atitudes que coincidem com as do autor e outras que estão, por vezes, nos seus antípodas. Em livros onde não existe um narrador que comenta e opina, saramaguianamente, sobre aquilo que as personagens vão fazendo, é tarefa no mínimo complexa ter uma ideia, ainda que vaga, sobre a "luz" a que certos factos são vistos pelo autor. Na maior parte dos casos, é mesmo impossível.

Mas claro que os cretinos censores não sabem de nada disto. Para eles, a sua leitura, deformada pelos seus preconceitos e ideologia, é a única leitura possível. Para este tipo de gente, se um escritor procurar explorar os comos e porquês que podem levar alguém, por exemplo, a tornar-se pedófilo, está a fazer a apologia da pedofilia. Um escritor que escreva sobre crimes e não retrate os criminosos como marionetas sem alma, é um criminoso potencial. Um escritor que se debruce sobre terroristas sem fazer deles caricaturas simplificadas do Pinguim, arqui-inimigo do Batman, é alguém que de certeza que financia a Al Qaeda.

A vontade que dá é escrever sobre tudo o que esta gente acha subversivo. Escrever sobre pedófilos, ateus, comunistas, terroristas, homossexuais, apoiantes de John Kerry, opositores a Santana Lopes, cientistas, artistas, pessoas livres. Escrever sobre tudo o que não é eles, sobre a imensa panóplia de actos, coisas e pessoas que eles nunca serão capazes de compreender. Escrever, no fundo, sobre o mundo.

E também escrever sobre eles, mostrando-os como realmente são: uma corja de gente minúscula, mesquinha, subterrânea e emaciada que olha para o mundo através de perversões que tenta esconder até de si própria mas que são bastante evidentes para todos os demais.

E depois há os "jornalistas" do Correio da Manha e do Crime. Mas isso é toda uma conversa nova...

segunda-feira, 25 de outubro de 2004

Blogus interruptus

OK, tenho de dizer isto: o post anterior foi injusto ao atribuir as culpas das interrupções na acessibilidade da Lâmpada ao Blogger e provavelmente terá gerado perplexidades a utilizadores que sempre cá chegaram sem a menor dificuldade.

A realidade é outra. A realidade é que a Netcabo andou vários dias intermitente, deixando os seus utilizadores, e só os seus utilizadores, à beira de um ataque de nervos. Durante os ataques de intermitência, metade da internet estava acessível de forma insuportavelmente lenta, e a outra metade estava inacessível por trás de uma impenetrável barreira de timeouts, incluindo o próprio site da empresa.

Claro que os clientes não foram informados de coisíssima nenhuma. Claro que do telefone da assistência técnica só atendia uma orquestra sinfónica qualquer. Claro. Afinal de contas, estamos em Portugal. Em Portugal só interessa cobrar as contas. Amabilidade e competência é para os outros, não para nós.

sexta-feira, 22 de outubro de 2004

Pedimos desculpa por esta interrupção

Não é bem o caso de o programa seguir dentro de momentos, porque não há propriamente programa, mas pedimos desculpa a quem gosta de ler a Lâmpada e aos que vêm cá à procura de mulheres nuas (ou melhor: de uma mulher nua em particular) por esta interrupção. A Lâmpada, como talvez terão reparado, e tal como os restantes blogs alojados no blogspot, esteve indisponível durante boa parte do dia de ontem. Embora o blogger não me tenha pedido desculpa do facto a mim, peço-vos eu a vocês.

quinta-feira, 21 de outubro de 2004

Os livros que estão ali ao lado

E lá foram lidos mais dois livros, muitíssimo diferentes um do outro embora ambos sejam ficção científica e tenham sido editados pela mesma editora. O primeiro a ir foi Planeta Duplo, de John Gribbin e Marcus Chown (um romance de baixíssima qualidade, temática, estrutural e, talvez, linguística, que é piorado mais ainda por uma tradução absolutamente pavorosa. A única qualidade desta coisa é ser curta), e o segundo foi Guerra Sempre, de Joe Haldeman (muito, muito bom, e quem diz isto é um tipo que não costuma gostar de FC militar e de space opera. Está literalmente anos-luz acima do livro a que responde, o Starship Troopers do Heinlein, editado há muitos anos na Argonauta com o título de Soldado no Espaço. A todos os níveis). Para substituir estes dois livros, chegaram outros dois:

- Sulphira & Lucyphur, de António de Macedo, é um romance que vagueia algures entre a FC e a fantasia, como é hábito no autor, com misticismo e cenários novecentistas à mistura. Edição da Editorial Caminho (1995), 224 páginas.
- Corações na Atlântida, de Stephen King, é um romance bastante grande onde o autor norte-americano explora o legado deixado pela guerra do Vietname. Edição do Círculo de Leitores (2002), 679 páginas.

terça-feira, 19 de outubro de 2004

Outra coisa que gostei de ler

E aqui está mais uma coisa que gostei de ler. Uma crónica cinco estrelas. Bem melhor que muita treta que se lê nos jornais.

segunda-feira, 18 de outubro de 2004

Sobre "O terrível destino de Santana Nobre"

Não há muito a dizer sobre este curto conto. O próprio título já sugere que é uma sátira e o conteúdo confirma essa sugestão. Com a tradicional nota de que isto é um esboço, etc. e tal, só espero que a vossa relação com o conto seja de divertimento.

Spam fiction (11)

O terrível destino de Santana Nobre


Baseado num spam intitulado "miuui Natural peniss enlaarrge"


Santana Nobre era um homem atraente, pelo menos na imagem que tinha de si próprio. As mulheres eram o seu meio, e era no mar de saias, seios e perfumes que se sentia confortável, embora fosse frequente ver-se atirado para a praia pelas ondas desse mar. Quando tal acontecia, resmungava numa voz prestes a desfazer-se em lágrimas que não era possível entender as mulheres, mas rapidamente esquecia estas tristezas e mergulhava de novo entre aquelas que não conseguia entender, lançando-se muitas vezes de costas para ter como dizer mais tarde que fora o mar que o fora a terra resgatar.
De sereia em sereia, de duche de areia em duche de areia, foi Santana Nobre saltitando ao longo dos anos. Nunca ancorou em nenhum baixio, pois cada onda de vestido o arrastava na sua esteira. Mas à medida que os primeiros cabelos brancos iam nascendo, à medida que as entradas se iam entreabrindo, começou a sentir cada vez maior dificuldade em achar-se dentro de águas femininas. Ele bem mergulhava, mas rapidamente a rebentação ia dar consigo encalhado em terra, sacudindo os restos de algas que faziam as vezes de recordações, tentando sem sucesso limpar-se da areia que se lhe entranhava nos calções. E depois aí ficava durante períodos cada vez mais longos, dividido entre a vontade de voltar a mergulhar e o medo de se ver de novo dolorosamente arrastado para terra. Intercalava estas épocas melancólicas e lentas com outras em que se dedicava a mergulhos sucessivos num frenesi de peixe-voador perseguido pela desgraça.
Santana Nobre não entendia o que se passava. Que a idade estivesse a afectar o seu sucesso junto do género feminino, o qual, apesar do que pensava de si próprio, nunca fora grande coisa, não lhe entrava na cabeça. Que diabo, pensava, toda a gente sabe que elas se pelam por uma cabeleira grisalha e uma barriguinha bem tratada. É ou não é?
Um dia teve um esboço de resposta, quando, num dos inúmeros mergulhos no mar de estrogénios que ocupavam por esses tempos a maior parte dos seus dias, surpreendeu duas raparigas a falar dele.
— O Santana — dizia uma — é um desastre.
— E ridículo — ria-se outra. — Reparaste no gel que ele anda a pôr no cabelo para ver se não se nota que está cada vez mais careca?
— Nem me fales — retorquia a primeira. — Mas o pior de tudo nem é isso.
— Pois não — aprovava a segunda. — Não sei como é que ele não se apercebe que aquilo não dá nem para começar.
— Pois é — descambava a primeira — aquilo, decididamente não é pau que se apresente.
— Sabes como é que lhe chama a Aninhas? — ria-se a segunda.
— Diz! — gargalhava a primeira.
— O Pilinhas! — rebolava-se a segunda, logo seguida pela primeira numa revoada de risota que parecia canções de baleias em fast-forward.
Foi então que pela primeira vez na sua vida, Santana Nobre saiu do mar de sua livre vontade e pelo seu pé, arrastando-se lentamente para a praia como um leão marinho exausto e ferido, no fim da migração.
Pilinhas!
Chamavam-lhe Pilinhas!
Sentado num rochedo debruçado sobre o mar, envolto em cheiro a maresia e coberto de salitre, estremecendo a cada onda que se quebrava na praia, julgando entreouvir no seu rugido milhares de feminis gargalhadas, ficou um longo tempo acabrunhado, uma sombra do Santana Nobre confiante de outrora, curvado sob o peso de várias camadas de pena por si próprio.
Pilinhas!
O raio das mulheres chamavam-lhe Pilinhas!
Que fazer?
Passaram-se vários dias nesta indecisão. Santana Nobre descurava-se, deixava que o sol lhe secasse o gel na cabeça em pequenas partículas quebradiças que o vento arrastava para longe, despenteando-o, descaracterizando-o, não reagia quando salpicos da rebentação lhe traziam aos lábios o familiar cheiro a fêmea, o que antes teria sido suficiente para se julgar chamado, desejado, imprescindível, e para se atirar do rochedo para o mar. Decididamente, não era o mesmo. Coberto por uma melancolia incaracterística, Santana Nobre definhava devagar, evaporando-se em desinteresse.
Fosse pelo que fosse, talvez porque estar inteiramente imóvel e inactivo é, paradoxalmente, actividade que cansa mais do que fazer alguma coisa, talvez numa tentativa subconsciente de recuperar algum controlo sobre a sua vida, talvez como terapia de substituição, talvez por outro motivo qualquer, o certo é que Santana Nobre começou aos poucos a prender a sua atenção, todos os dias, nas nuvens de mensagens que lhe passavam pelo céu e a que nunca dera mais que uma fugaz olhadela. Apreciava as suas configurações, avaliava a forma como se sobrepunham, ultrapassavam ou fundiam, vislumbrava nelas significados ocultos, enfim, começava a conhecê-las.
Um dia reparou numa que lhe causou uma viva impressão. Atravessando o céu a grande velocidade, tornando difícil a leitura, esta mensagem vinha numa versão encriptada de inglês e dizia, simplesmente:

"miuui Natural peniss enlaarrge"

Seguia-se um número de telefone e a promessa de "Guarrantied resultss".
Foi o fim da melancolia de Santana Nobre. Por fim, tinha de novo esperança, tinha de novo algo que o incentivasse. Por fim, recuperara a imaginação, que se antes só lhe servira para criar a sua auto-imagem de garanhão irresistível, agora voltava a criar essa mesma auto-imagem, mas desta vez de uma forma diferente, menos centrada na sua figura geral, mais centrada numa particular característica da sua figura. Já se imaginava, nu, ou então vestido de forma reveladora, a exibir o seu novo e multiplicado pénis, rodado de ohs e risinhos, não já de troça mas de admiração.
A ver se alguém iria ter coragem de lhe continuar a chamar Pilinhas!
Telefonou para o número que vinha na mensagem, fez e encomenda e ficou à espera. Durante esse tempo nem se aproximou do mar feminino, limitou-se a aproveitar as noites de vento favorável para subir à varanda recolher o seu cheiro e sonhar com um futuro risonho.
Quando o "mui natural penis enlarge" chegou, descobriu tratar-se de três comprimidos esverdeados, envoltos em papel de prata e acompanhados por uma receita que indicava que o tratamento consistiria de um comprimido ao deitar durante um fim de semana (sexta, sábado e domingo), noites de sono descansado e muito repouso durante os dias. Como não fazia nada que se visse com a sua vida, e como recebera o embrulho a uma terça-feira, Santana Nobre decidiu que não valia a pena esperar pelo fim de semana e nessa mesma noite tomou o primeiro comprimido.
Cumpriu o tratamento à risca nos dias seguintes, passando as noites a dormir e os dias a ouvir música disco, deitado no sofá, e a dormitar. Sempre que acordava, pegava numa régua e media-se cuidadosamente, ao milímetro, anotando o resultado num papel que preparara de antemão.
Os resultados foram-no desapontando. Ainda teve uma alegria quando tomou o segundo comprimido, na quarta-feira, pois o pénis media-lhe mais 4 milímetros do que na véspera, mas ao longo de quinta-feira o resultado da medição foi variando de forma aparentemente aleatória e à noite, após o comprimido, media menos dois milímetros do que na primeira medição. Nessa noite deitou-se deprimido, teve dificuldade em adormecer e acabou por dormir pouco, o que também se terá devido às sestas que dormira durante o dia. A sexta-feira foi, de novo, um dia melancólico e a banda sonora mudou de disco para fado, com Santana Nobre cada vez mais convencido de ter sido enganado, de que os comprimidos de nada valiam e de que iria continuar a ser conhecido por Pilinhas no futuro mais próximo e, quem sabe, no mais longínquo, salvo se se afastasse de vez do género feminino, o que talvez fosse mais deprimente ainda do que ser perseguido por aquela alcunha. Mas decidiu, apesar de tudo, levar o tratamento até ao fim, e foi com uma tristeza obstinada que engoliu o comprimido de sexta-feira e foi para a cama.
Nessa noite teve uma série de sonhos estranhos, que, se ele tivesse algum conhecimento da cultura literária do século XX, teria sem dúvida associado ao escritor checo Franz Kafka. Coisas relativamente normais transformavam-se em coisas decididamente estranhas, o pequeno passava a ver-se gigantesco, braços e pernas transmutavam-se em pequenos bolbos inúteis e cobertos de pêlos rijos, homens metamorfoseavam-se em seres grotescos, cuja forma nunca chegava a fazer-se clara nos filmes que a sua cabeça ia criando. Apesar dos sonhos, dormiu a noite inteira, sem sequer acordar para a tradicional ida à casa de banho das 5 da manhã, o que também teve, à sua maneira, algo de bizarro.
O sábado acordou solarengo e Santana Nobre acordou tarde com o sol a entrar-lhe pela janela. Sentiu-se de imediato estranho, talvez flácido demais e, ainda muito estremunhado, pensou que se calhar o tratamento tinha acabado por fazer efeito, o que serviu de motor e roldanas para que saltasse da cama e se encaminhasse para o maior espelho da casa, tropeçando em pernas que de repente lhe pareciam excessivamente curtas.
Ao olhar para o espelho, ficou horrorizado, cambaleou e acabou por cair, sem sentidos. Esperara ver um grande pénis a sobressair do seu púbis, rodeado do Santana Nobre de sempre, com o físico de sempre, a cara de sempre e o gel de sempre no cabelo (sim, regressara com a renovação da esperança). Em vez disso, no entanto, viu apenas um grande pénis. Apenas um grande pénis a olhar para si através de olhos implantados incongruentemente na superfície da glande, braços fininhos e negros, com uma forma que dava a sensação de encaracolamento e que se projectavam da porção intermédia do cilindro e umas pernas que se pareciam estranhamente com testículos.
Ninguém sabe o que lhe aconteceu depois, porque nunca mais ninguém o viu. De certo, fica só uma coisa:
Nunca mais ninguém lhe chamou Pilinhas.

Uma coisa que gostei de ler

Foi esta. Exactamente, José Carlos. Sem tirar nem pôr.

domingo, 17 de outubro de 2004

Sobre "Uma coisa que nunca te direi"

Neste conto é apresentada uma espécie inteligente, embora não muito, que desenvolveu um esqueleto de cultura sem ter tido possibilidade de ter desenvolvido uma civilização, por vários motivos que — espero — compreenderão ao ler o conto.

Uma palavra que talvez crie alguma perplexidade em alguns de vocês é "telson". Trata-se do nome que tem o último segmento em vários tipos de animais cujo corpo se divide total ou parcialmente em segmentos, como as minhocas, as centopeias ou os camarões. Aquilo a que muitas vezes se chama coisas como "rabo"...

Quanto ao resto, a lengalenga é a de sempre: isto é um esboço, precisa de trabalho, etc. e tal, blá blá blá.

Spam fiction (10)

Uma coisa que nunca te direi


Baseado num spam intitulado "Do you remember me?"


— Não quero trocar fluidos com ninguém! — explodiu a toupeira-furadora enquanto se afastava do cruzamernto o mais depressa que conseguia, fazendo ecoar fantasmas do grito (ninguém-guém-ém) nas paredes do túnel.
A outra toupeira-furadora ficou parada, a ouvir. Pareceu-lhe conhecer aquela voz, mas colheitas e colheitas de vida solitária na vastidão dos túneis enchiam-lhe o cérebro traseiro de dúvidas. Não conseguia ter a certeza.
Esta segunda toupeira-furadora tinha, no entanto, uma característica que a distinguia da maior parte das outras toupeiras-furadoras e que levava todas as que a conheciam a evitá-la. Não que fosse invulgar que uma toupeira-furadora evitasse tanto quanto possível os outros membros da sua espécie, bem pelo contrário, mas no caso específico daquela, as toupeiras-furadoras que a conheciam punham um pouco mais de empenho nesse afastamento, chegando algumas ao ponto de fazer grandes desvios por túneis desconhecidos assim que as respectivas terceiras patas detectavam no chão dos túneis um odor que lembrasse vagamente o seu.
Não, não cheirava mal, ou pelo menos não punha nos túneis um cheiro pior que o das restantes toupeiras-furadoras. Tampouco cheirava desagradavelmente bem, empestando as zonas de trânsito, trabalho e descanso de cheiros enjoativos de tão agradáveis. Não era uma questão de cheiros.
Esta toupeira-furadora tinha o pior defeito conhecido na espécie: era curiosa.
Ou, na versão de todas as outras, era metediça.
Por isso não supreendeu ninguém (ou pelo menos não supreenderia ninguém, se alguém ali estivesse a assistir) que ela, em vez de sacudir o telson numa aprovação da atitude insociável da outra toupeira-furadora e de enveredar por outro túnel qualquer (naquele cruzamento juntavam-se cinco), tivesse esgravatado durante algum tempo o chão com as terceiras patas e depois tivesse resolvido enfiar o seu longo corpo pelo mesmo túnel da outra toupeira-furadora.
Aquela voz parecia-lhe conhecida. Ah, sim, parecia conhecida. E o cheiro, mais ainda.

Antes de ir mais longe, talvez convenha esclarecer que as toupeiras-furadoras não possuem nomes, uma vez que deles não necessitam para viver as suas vidas solitárias. Não só raramente se encontram, como quando o fazem o habitual é passarem a maior parte do tempo a trocar fluidos e o mínimo indispensável de tempo extra a trocar informações, num sistema de comunicação que é mais uma sucessão de dois monólogos do que propriamente uma conversa e onde nada é dito acerca de outras toupeiras-furadoras específicas, antes se fala sobre acontecimentos gerais, ou em acontecimentos particulares mas sem nunca mencionar os seus protagonistas. Diz-se que nasceu uma nova toupeira-furadora no sector xis, ou que foi descoberta uma nova camada de raízes no sector ípslon, mas nada é dito sobre quem esteve envolvido em cada um destes acontecimentos. A protecção da privacidade é encarada muito a sério. E uma reunião de mais de dois indivíduos é coisa nunca vista.
Quase tão inédito é acontecer encontros sucessivos entre duas toupeiras-furadoras. Quando duas se encontram, tratam da troca de fluidos o mais depressa que são capazes, despacham a conversa em dois tempos e depois separam-se sem se despedirem, cada uma segue o seu caminho por túneis diferentes, e passam ambas a evitar-se uma à outra com maior afinco do que o que utilizam para evitar as demais. É como se a troca de fluidos as repugnasse tanto que não conseguissem sequer imaginar a ideia de voltar a encontrar-se, ou como se ficassem submersas em vergonha por ter baixado a guarda o suficiente para dar de caras (é força de expressão) com outro indivíduo da mesma espécie e fizessem o possível para evitar até a memória de tal acontecimento.
Por tudo isto, como logicamente se deduz, a nossa e curiosa toupeira-furadora não possuía um nome. Mas esse facto causa dificuldades à elaboração de um texto acerca dela, texto esse destinado a ser lido por membros de uma determinada espécie de primatas originários do planeta Terra, para os quais o nome é uma condição inseparável da individualidade, e que são incapazes de conceber um mundo desprovido destes sinais convencionais de identificação. Nestas condições há duas hipóteses: pode-se procurar por todos os meios identificar a toupeira-furadora sem o recurso a um nome, usando malabarismos linguísticos cada vez mais complicados e artificiais e nem sempre fáceis de gerir, ou pode-se atrabuir-lhe um nome qualquer, arbitrário ou baseado nas suas características, por uma questão de comodidade. Poderia ficar Curiosa, por exemplo. Ou Gertrudes. Ou Minhoca-de-Vinte-Patas. Qualquer coisa.
Há situações em que a escolha entre estas duas opções é complicada, causa suficiente para um longo processo de avaliação de pesos e contrapesos. Mas neste caso, trata-se apenas de um pequeno conto escrito por um obscuro rapazola que se convenceu um dia de que aquilo que escrevia poderia, talvez, vir a ter algum interesse para alguém mas que bem lá no fundo não acredita nisso. Portanto, em cinco segundos a decisão estava tomada.

Gertrudes, a toupeira-furadora, curiosa por ter encontrado um cheiro e uma voz que causavam ressonâncias na sua memória, pôs-se a perseguir a minhoca-furadora dona desse cheiro e dessa voz. Chamemos-lhe Genoveva. A perseguição foi demorada, não só porque as minhocas-furadoras não são propriamente conhecidas pela sua rapidez, mas também porque Genoveva se movimentava quase à velocidade máxima que as suas vinte curtas patas permitiam.
Enquanto fugia — porque era precisamente isso que aquela correria toda era -, Genoveva tinha ambos os cérebros presos num ciclo contínuo em que recordava a visão súbita da cabeça de Gertrudes a emergir do túnel por onde planeava seguir, o susto, o grito que soltara por instinto, os primeiros metros da corrida, tudo intercalado com velhas e nebulosas memórias que a informavam de que não era a primeira vez que contactava com aquela toupeira-furadora, e de que esse primeiro contacto se perdia na sua juventude, que ela achava longínqua, numa época em que os túneis ainda eram coisas gigantescas, espaços amplos cobertos por tectos que mal se veriam não fosse a fosforescência dos fungos que cresciam nas paredes.
Genoveva, claro, não tentou aprofundar essas recordações. Eram apenas um mecanismo automático que servia para manter a fuga durante o tempo e o espaço considerados convenientes para tornar altamente improvável que o contacto acabasse por acontecer e que pouco dependia da sua vontade consciente. Além disso, e ao contrário de Gertrudes, Genoveva não era metediça.
Por isso, quando dobrou uma curva no túnel e à sua frente apareceu de súbito um conjunto de raízes maduras pendentes do tecto, ao qual chegava agora com a maior das facilidades (na verdade, raspava por ele com o dorso nas passagens mais apertadas — era uma toupeira-furadora bastante grande), o ciclo mental de fuga foi quebrado por uma avassaladora sensação de fome e não mostrou qualquer sinal de ter reparado no desvanecimento das recordações ligadas à toupeira-furadora que encontrara mais atrás. A verdade é que a esqueceu por completo e a todos os acontecimentos relacionados com ela, reajustando o seu mundo interno a uma paisagem plácida de movimentos lentos e progressivos através dos túneis, e dedicou-se à sua actividade favorita: comer.

Para Gertrudes, o mesmo caminho foi um passeio bastante mais calmo. Por um lado, era uma toupeira-furadora mais velha e naturalmente mais lenta, e possuía duas patas que lhe doíam sempre que as mexia e que lhe quebravam o ritmo aos passos. Por outro lado, sempre que se aproximava de uma intersecção de túneis, o que acontecia com alguma frequência, apesar de os grandes entroncamentos serem raros, tinha de parar, esgravatar o solo com as terceiras patas para descobrir o túnel por onde a outra toupeira-furadora enveredara, e combater a vontade de investigar todos os outros cheiros que lhe despertavam curiosidades e, às vezes, velhas memórias, antes de se pôr de novo em movimento. Por outro lado ainda, mesmo na relativa uniformidade dos troços de túnel desprovidos de ramificações, surgia com freequência qualquer coisa que a distraía do seu objectivo, e passava-se algum tempo até que lograsse recolocar o seu confuso cérebro na trilha de Genoveva. Ainda por outro lado, o último, por vezes deixava-se submergir tão completamente em recordações e especulações acerca do cheiro e da voz da outra toupeira-furadora que acabava por não se dar conta dos acidentes de percurso, e tropeçava em pedras ou raízes expostas, ou esbarrava em paredes que curvavam, atrapalhando a sua tendência natural de seguir em frente, ou deixava passar cruzamentos e avançava por túneis errados, às vezes durante algum tempo, o que a forçava a voltar para trás, às arrecuas, fazendo uso do telson como segunda cabeça, modo de locomoção bem menos eficiente e seguro.
Passou-se, por isso, bastante tempo até Gertrudes começar a sentir uma intensificação significativa na frescura do cheiro a Genoveva que a vinha chamando atrtavés dos túneis. Na verdade, passou-se tanto tempo que foi obrigada a parar por duas vezes para recuperação fisiológica e mais quatro para mordiscar velhas raízes que se espetavam das paredes laterais do túnel, alimento que não era propriamente delicioso mas teria de servir à falta das raízes frescas, penduradas do tecto, que constituíam o principal acepipe existente naquela área.
Mas acabou por acontecer. Com a paragem de Genoveva, o seu esquecimento do encontro com Gertrudes, o seu regresso à rotina preguiçosa da sua vida, Gertrudes acabou por começar a ganhar-lhe terreno. E quanto mais próxima estava Gertrudes de Genoveva mais fresco era o cheiro, mais fácil era seguir o rasto que ele criava, menos Gertrudes se distraía com outros estímulos e mais rápida se tornava a aproximação da toupeira-furadora que perseguia à toupeira-furadora que era perseguida. Se a curiosidade da toupeira-furadora e a cultura do seu povo fossem suficientes para chegar a dados tão sofisticados, facilmente teria Gertrudes chegado à conclusão de que estava envolvida num ciclo de retroalimentação positiva. E não era só na eficiência da perseguição que se poderia detectar esse ciclo. Também a curiosidade que sentia pela outra toupeira-furadora estava aser retroalimentada com mais intensidade, e até a memória era estimulada da mesma forma. Era como se o problema de quem, realmente, era aquela toupeira-furadora, possuidora de uma voz e de um cheiro tão familiares fosse a pouco e pouco sobrepujando todos os outros pequenos problemas que ocupam a vida quotidiana de uma toupeira-furadora. Era como se Genoveva andasse pelos túneis cada vez mais depressa e com cada vez maior segurança, presa num ciclo mental que perguntava uma e outra vez "Quem és tu? Quem és tu?"
Há perguntas que não têm resposta. A outras não é possível dar uma resposta com toda a certeza. Outras têm mais do que uma resposta provável. E é impossível saber à partida a que categoria pertence a maior parte das perguntas, antes é necessário ficar à espera que algo ou alguém tente responder-lhes. É até frequente que a mesma pergunta salte de categoria em categoria consoante as novidades que cada lugar do tempo traz consigo. Tudo isto é verdade quer no nosso mundo de macacos sabichões, quer no mundo subterrâneo das toupeiras-furadoras, embora estas sejam bastante menos sabedoras das coisas do universo exterior aos seus buracos do que nós (que, por outro lado, sabemos muito pouco do mundo interior aos seus buracos).
A pergunta de Genoveva, a princípio, pertencia ao grupo das perguntas sem resposta. A resposta tradicional da sua espécie a este tipo de perguntas é, como já terão compreendido, esquecê-las, ignorá-las, fingir que não existem, procurar conforto naquilo que já conhecem ou julgam conhecer, ocupar-se com outras coisas. Mas Genoveva era diferente. Metediça. E por isso parecia que as perguntas sem resposta chamavam por si, especialmente se tinha a sensação, quase a certeza, de ter dentro de um qualquer dos seus dois cérebros exactamente a resposta que procurava. Era o caso. De cada vez que perguntava a si mesma "quem és tu?", era percorrida por uma corrente subterrânea, meio inconsciente, que lhe fornecia um indício de resposta: "eu sei quem tu és". Mas era um saber sem forma, uma coisa ectoplásmica feita de impressões vagas como o espaço vazio entre os planetas. Um quase nada sem substância.
Só quando Genoveva finalmente olhou em frente e viu o telson adormecido da outra toupeira-furadora, as memórias dispersas se começaram a juntar e a formar um fio condutor, uma espécie de túnel entre a porção consciente dos seus cérebros e as zonas onde as memórias antigas dormiam o seu sono solto e, geralmente, eterno. Só então, parada, a escutar o murmúrio que Gertrudes fazia nos seus sonhos e a vasculhar com as terceiras patas todo o cheiro que era capaz de retirar do solo se começou a lembrar.
Antes de tempos vêm tempos e antes deles outros tempos. E na vida das toupeiras-furadoras a cada tempo corresponde um ciclo que começa num encontro e termina no seguinte ou, o que é dizer o mesmo, a vida das toupeiras-furadoras é determinada pelas ocasiões em que trocam fluidos. Não é uma medida rígida como os nossos anos, horas e minutos, não é determinada por ritmos naturais cuja duração muda tão lentamente que parece imutável. Em mundos subterâneos não existem dias e no planeta das toupeiras-furadoras nem sequer as estações sugerem que talvez haja ritmos mais subtis do que a evidente sucessão da claridade e escuridão. Para elas, só os encontros são capazes de pontuar com novidade o fluxo monótono do tempo. Por vezes, muitas vezes mesmo, dessas trocas de fluidos surge nova vida e ficam então conhecidas como trocas grandes; outras vezes nada acontece para além da simples troca de novidades, e essas são as pequenas trocas. A vida que nasce das trocas grades é autónoma quase desde que começa, mas fica sempre nela qualquer coisa da outra vida que lhe deu vida. Um subtil subtom no tom de voz. Uma componente quase imperceptível no cheiro corporal. Coisas assim, subtis e pouco claras, só descortináveis por muito poucas toupeiras-furadoras.
Muito tempo antes, a toupeira-furadora a que chamámos Genoveva tivera uma certa troca grande. Fora oito trocas grandes antes, para sermos mais precisos. E dessa troca grande nascera a toupeira-furadora a que chamámos Gertrudes.
Foi isso que Genoveva descobriu, e foi isso que fez com que tivesse ficado ficou imóvel e silenciosa, a observar a sua filha. Primeiro a dormir, depois a acordar, a comer durante algum tempo e a ir-se embora, túnel adentro, sem chegar a dar-se conta de que tivera a mãe muito próxima de si. E durante todo aquele tempo, pensava, absorvida nessa ideia fixa como é hábito da sua espécie, que ali tinha uma vida que nascera da sua vida mas que nunca lhe diria nada sobre isso. Para quê? De que serviria? E como lhe poderia transmitir essa informação, visto que na sua espécie a comunicação era uma questão acessória da troca de fluidos?
Mas a sensação era estranha. Uma espécie de confusão maravilhada ou de maravilhamento confuso, uma coisa assim. Ali, na sua frente, estava uma grande toupeira-furadora que nascera apenas porque ela própria passara pelos túneis. Que se poderia sentir em casos desses?
Ficou ainda muito tempo imóvel, a matutar neste problema. Mas por fim trincou a uma das primeiras patas em sinal de indiferença: não eram estas perguntas sem resposta que a iriam alimentar.
Uma coisa, no entanto, era certa: não iria prosseguir o seu caminho pelo túnel por onde seguira a sua filha. Então, verificou a consistência da parede da esquerda e saboreou-a, verificou a consistência e saboreou a parede da direita, comparou uma e a outra e pôs-se a escavar um novo túnel na parede da esquerda. Tinha a certeza de que por ali, não muito longe e um pouco mais acima, iria encontrar raízes saborosas, e os três estômagos contorciam-se-lhe com a fome.
Não passou muito tempo até encontrar as raízes, e pôs-se de imediato a mastigá-las. Não demorou muito mais até esquecer-se da perseguição e da descoberta que se lhe seguiu, guardando tudo naquela zona adormecida dos seus cérebros onde ficam guardadas as recordações que não serão necessárias durante muito tempo. E não muito depois foi a sua vez de adormecer, ainda com um resto de raiz preso entre as placas trituradoras.
Afinal, estava muito cansada. Não sabia era porquê.

sexta-feira, 15 de outubro de 2004

Clang

O ruído que acabaram de ler é o som da responsabilidade que me caiu em cima da cabecinha leviana ao ficar a saber que este blog (junto com uma catrefada de outros, é certo) foi parar a uma lista sobre literatura na internet elaborada por uma docente da Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Beja.

Esta, decididamente, fez galo!

quinta-feira, 14 de outubro de 2004

Raios partam o Blogger!

O Blogger anda a atravessar uma fase má. De vez em quando abranda até ficar mais lento que carroça sem rodas puxada por um burro anémico em greve de fome. E nós, ao postar, apanhamos depois de um teste à paciência com mensagens de erro a dizer que a operação não foi concluída. Voltamos a tentar. E a treta do Blogger, que se calhar tinha tido tempo para colocar o post no sistema mas só não tinha conseguido publicá-lo, cospe com o post duas vezes, ou mais. Depois, lá se tem de voltar a editar tudo, ou para apagar os posts extra ou, como neste caso, para editá-lo e transformá-lo em algo totalmente diferente. Raios partam!

Spam fiction

Quem tem vindo à Lâmpada à procura de spam fiction tem saído desapontado nos últimos tempos, provavelmente pensando coisas pouco abonatórias em relação à minha pessoa, coisas como "este sacana largou outra vez o raio do projecto". Não é verdade. O que acontece é que o primeiro conto cresce, cresce e não há meio de chegar ao fim. Neste momento, tem 10 mil palavras, o que equivale mais ou menos a 30 páginas de um livro. E isto levanta um problema: isto é um blog, um local adequado a textos relativamente curtos, não a noveletas, que é aquilo em que Littleton já se transformou. O que levanta um obstáculo evidente à sua publicação.

Neste momento, estou tentado a não o publicar aqui, a deixá-lo inédito para quando (e se) a spam fiction se transformar em livro. De qualquer maneira, muito poucas pessoas teriam a paciência necessária para ler um texto daquele tamanho no blog...

Além deste, três outros contos estão "em obras", um deles com cerca de 3000 palavras, outro com pouco mais de 1000 e outro ainda pequenino, com 500. Todos estes são ainda publicáveis e, julgo, todos eles serão publicados, provavelmente em breve.

quarta-feira, 13 de outubro de 2004

Os livros que estão ali ao lado

Acabei a leitura de mais dois livros, que foram substituídos por outros dois. Um dos velhos, e que já estava há muito tempo em cima da minha mesa de cabeceira, é a colectânea Weirdmonger, de D. F. Lewis, com mais de 60 contos (em inglês, e num inglês muito elaborado, quase barroco às vezes. Não é livro para quem conheça mal a língua, e mesmo para quem a conhece bem não é um livro fácil. Apesar disso, gostei medianamente. Os contos do Lewis têm muita atmosfera, embora seja frequente não terem enredo suficiente para o meu gosto). O outro é a antologia A Viagem, organizada por Silvana de Menezes e António de Macedo (em geral bastante fraca, a mais fraca das antologias da Simetria, salvando-se dois ou três contos da mediocridade geral).Os novos são:

- Outras Histórias..., de Gerson Lodi-Ribeiro é, como vem aliás explícito na capa, uma colectânea de contos de ficção científica e história alternativa. São em número de 12, divididos em 6 secções (2 em cada secção, naturalmente), algo que é característico das colectâneas deste autor brasileiro. Edição da Caminho (1997), 251 páginas.
- Guerra Sempre, de Joe Haldeman, é a célebre "resposta" deste autor ao inenarrável romance Starship Troopers, de Heinlein. Célebre e bem sucedida, visto que lhe trouxe vários prémios. Edição da Europa-América (2004), 242 páginas.

Come-me o cartão e sofre as consequências!

Há por aí uns tipos que teimam que as máquinas são mais rijas e eficientes que estas simples coisinhas de carne e osso que nós somos. Mas eis que de vez em quando uma história demonstra o erro. Esta chega da Ucrânia e tem como protagonistas uma rapariga de 14 anos e uma caixa multibanco. A caixa, na sua mecânica arrogância, achou por bem engolir o cartão da pequena ucraniana, sem dizer água vai. A miúda é que não esteve pelos ajustes: pim-pam-pum, ai não dás? Toma lá!, porrada para baixo, à mão desarmada, e eis que a caixa se vê reduzida a um monte de ferros retorcidos. Bem feita. É para aprender.

O saldo do incidente foi um prejuízo de 4500 libras. Não sei bem a como está o câmbio, mas acho que é mais ou menos o dobro em euros. Cuidado com as adolescentes ucranianas!...

Relação P/U

No Dilbert de hoje (não sou propriamente fã, mas leio), aparece uma coisa interessante: a relação P/U. Que é isto de P/U, perguntam vocês e o pobre do empregado também? É a razão entre a produtividade e a utilidade.

Se calhar era interessante aplicar o conceito à avaliação dos governos. Este, em particular, parece ter uma razão P/U infinita. Vejamos: tem produzido muitas coisas, logo tem tido uma produtividade alta, mas tudo o que tem produzido ou é errado, ou é escandaloso, ou é incompetência ou é poeira para os olhos, o que redunda numa utilidade de zero. Ou, para ser inteiramente justo: não é bem zero, é só infinitamente pequena.

Ora, já lá diziam os meus professores de matemática, quando se divide um valor não infinitesimal por um infinitésimo, o resultado é infinito.

terça-feira, 12 de outubro de 2004

Última hora da última hora

O atrasado mental já não tem concorrência. Que grande espancamento que deve ter havido naquele grupo parlamentar!...

domingo, 10 de outubro de 2004

Falar e fazer

Muito se tem dito sobre a inconsistência entre o que é dito e as acções concretas de quem diz as coisas. Quem nunca ouviu algum amigo ou conhecido a queixar-se, com desprezo mal disfarçado ou não desfarçado de todo, de que "os políticos" dizem uma coisa e fazem outra bem diferente? Ou, até, de que um dia dizem uma coisa e no dia seguinte o contrário? Há actividades e pessoas de que se espera este tipo de comportamento, mas a verdade é que ninguém parece estar imune a ele.

Em geral, isso não causa grandes problemas. Uma conversa a sério, um par de murros na mesa se for preciso, devolvem os pontos aos respectivos is e, com os pedidos de desculpa que forem necessários, implícitos ou explícitos, as coisas ficam relativamente bem. A confiança sofre sempre, mas pode-se continuar a lidar com as pessoas.

O problema é quando a incongruência entre o que se diz e o que se faz se revela um padrão. Há pessoas que falam e escrevem delicodocemente, derramando mel entre cada palavra e a seguinte, mas que passam a vida em conflitos com toda a gente. Há pessoas que se dizem solidárias e leais nas decisões mas procuram deturpar subterraneamente essas mesmas decisões em favor dos seus interesses ou das suas ambições.

Trabalhar com gente desta é possível só com uma dose muito grande de paciência e diplomacia. Paciência para estar permanentemente atento às manigâncias que vão saindo daquelas cabecinhas retorcidas, diplomacia para conseguir controlá-las sem prejudicar seriamente o trabalho. Só que tarde ou cedo as coisas acabam por rebentar. Porque nem sempre se acorda com os reservatórios de paciência cheios, e porque controlar este tipo de pessoas só é possível enquanto elas não se acham com poder suficiente nas mãos para fazerem o que quiserem: quando estão em meio igualitário, rodeadas de pessoas mais normais, ou então quando estão em posições subalternas num sistema hierárquico. Se um gajo destes sobe a chefinho, está tudo estragado.

A dificuldade é detectá-los a tempo. Como os mentirosos, que são capazes de enganar a maior parte das pessoas durante a maior parte do tempo mas não todas as pessoas durante todo o tempo, estes tipos também se costumam disfarçar bem até que qualquer coisa os desmascare perante a maioria. E como os mentirosos que acreditam nas suas proprias mentiras, também muitos destes indivíduos acreditam sinceramente na sua condição angelical e que quando a sua natureza lhes causa dissabores a culpa é dos outros, sempre dos outros.

No fundo, são uns tristes. Realmente tristes, dignos de pena. Há neles uma qualidade trágica importante — poucas coisas devem ser mais trágicas para uma pessoa do que assistir ao desmoronar do seu mundo e ser incapaz de compreender porquê. Mas a pena é uma qualidade abstracta e nada produtiva, que tem tendência a sumir-se quando as acções deste tipo de gente nos prejudicam a nós.

sábado, 9 de outubro de 2004

Aquecimento global?

Estamos a 9 de Outubro. Hoje, pela primeira vez nesta época, vesti uma manga comprida. Estamos a 9 de Outubro.

sexta-feira, 8 de outubro de 2004

Outra coisa que gostei de ler

E aqui está mais uma coisa que eu gostei de ler (obrigado, Goblin). O sacana do atrasado mental escreve bem. E é divertido. Agora ando nos divertidos, para ver se me tiram a cabeça de coisas tristes.

quinta-feira, 7 de outubro de 2004

Mais uma coisa que eu gostei de ler

Foi esta, neste blog que de vez em quando me faz rir à gargalhada, mesmo que não tenha vontade nenhuma disso antes. Como desta vez.

PS - Por qualquer razão que eu não compreendo, o Blogger decidiu repetir este post, dando aos dois URLs subtilmente diferentes e, mais estranho ainda, mantendo apenas um deles (que assim que publicar esta adenda vou descobrir qual é) na lista de posts. Sim, do outro só há sinal no próprio blog; na área de gestão é como se não existisse. Curioso, não é?

PPS - E agora, desapareceu o outro e ficou só este. LOL! É só rir...

quarta-feira, 6 de outubro de 2004

Nau Catrineta

Ali em baixo, disse que a Nau Catrineta era do Gil Vicente. Asneira.

A verdade é que não se sabe quem (e quando) escreveu a Nau Catrineta. O que se sabe é que Almeida Garrett recolheu o texto e acreditava que ele descrevia uma viagem datada de 1565. E também se sabe que Gil Vicente morreu em 1536, o que tem como consequência que, se Garrett tem razão, os versos não podem ser seus.

De onde me veio esta do Gil Vicente? Vinha no email. E eu, parvamente, não confirmei.

Censura

Ao contrário do que se passa ao nível daquela nebulosa, promíscua e rarefeita camada estratosférica onde se misturam os ministros e os patrões da imprensa, e apesar de ser azul, aqui a Lâmpada só censura insultos particularmente brutamontanos e spam.

Se eu acreditasse em alminhas do outro mundo, tinha a certeza de que Salazar estava cada vez mais satisfeito com o que se vai passando neste país que se vai esquecendo em passo acelerado do que significa viver em democracia.

Ou alguém põe travão nestes fachos, ou qualquer dia é preciso fazer outra revolução. E, convenhamos, não há pachorra para revoluções.

Os livros que estão ali ao lado

E lá se foram mais dois livros, olhos adentro. Seria interessante se ficassem armazenados num recanto qualquer do cérebro, palavra a palavra, letra a letra, mas não é isso que acontece, ou pelo menos se é eu não sei como se recupera tanto rigor. O Homem Ilustrado foi um deles (um dos melhores livros de Ray Bradbury, diz muita gente, e eu concordo. É excelente, embora antigo, e inclui contos que são clássicos da FC ou de géneros relacionados), e o outro foi Um Vulto nas Trevas de Simone Saueressig (bastante bom, embora tenha alguns dos defeitos típicos das edições de autor; a falta de uma revisão profissional que assassine todas as gralhas, por exemplo).

Para o lugar destes dois livros, chegaram outros dois:

- O Homem Duplicado, de José Saramago, é um romance (e um autor, naturalmente) que dispensa apresentações. Edição da Caminho (2002), 318 páginas.
- Planeta Duplo, de John Gribbin e Marcus Chown é um romance de FC que envolve um cometa gigante em rota de colisão com a Terra numa época em que a humanidade abandonou o esforço de exploração espacial. Edição da Europa-América (1990), 187 páginas.

terça-feira, 5 de outubro de 2004

Outra coisa que gostei de ler...

... foi este post aguçado do Cachapa.

Novo template

Devido a uma reinterpretação no modo como as regras do css funcionam, que fez com que o template da Lâmpada deixasse de funcionar convenientemente em alguns browsers mais recentes, fui forçado a mudá-lo. E como fui forçado a mudá-lo, resolvi fazer algumas alterações extra, mais na maneira como as coisas são feitas do que propriamente no visual global.

Não o testei em todos os browsers possíveis antes de o pôr em efeito, portanto se há alguma coisa que não funciona com o vosso sistema, avisem.

segunda-feira, 4 de outubro de 2004

A Roménia é um país muito estranho!

Já não chegava o Drácula e o Ceausescu, agora aparecem notícias sobre um homem de 67 anos que, farto de ouvir cacarejar a mais barulhenta das suas galinhas, resolveu, num impulso, cortar-lhe o pescoço. Só que o homem, vá-se lá saber como, confundiu o pescoço da galinha com o seu próprio pénis e schlack, capou-se. Se isto não fosse suficiente para lhe assegurar um lugarzinho nos anais da bizarria, eis que o seu cãozinho resolve entrar na história: talvez por achar apetitosa a "salsicha", quiçá num esforço para manter o galinheiro limpo e em boas condições para as galinhas, o certo é que engoliu o membro decepado. Parece que, apesar de tudo, o velhote se safou. A notícia não diz nada sobre o estado de saúde do cão. Nem da galinha.

Da próxima vez que pensarem coisas como "isto só em Portugal", lembrem-se desta história...

O «roubo do século»

Hoje, o Público traz uma notícia acerca do roubo de dois diamantes, que parece que são valiosíssimos, de uma vitrine na Bienal dos Antiquários, em França. Parece que a coisa foi tão bem feita que as pedras desapareceram bem de debaixo do nariz de uma quantidade de gente sem que ninguém desse por nada. O Público, talvez influenciado por manchetes na imprensa francesa, chama à coisa "roubo do século".

Hum... esperem lá... o século começou, quê, há três anos e meio? Faltam para que ele acabe, tipo, uns noventa e seis anos, mais hora, menos hora? E já houve o "roubo do século"? Já?! Não acham, se calhar, um bocado cedo?

Quando os clichés substituem, nos jornais, a inteligência, acontecem coisas destas.

Chegou-me por email mais uma coisa que gostei de ler

Numa demonstração da existência de sincronicidades várias neste mundo, no momento em que o Paulo Querido publicava um excelente e muito recomendável (sim, também gostei de o ler) texto acerca de blogues, internet, jornalismo e anonimato, parcial ou total, chegou-me por correio electrónico um óptimo texto de um anónimo a glosar a Nau Catrineta do Gil Vicente. Ei-lo:

NAU CATRINETA

Lá vem a Nau Catrineta
Que tem muito que contar

São Paulo Portas à proa
Santanás a comandar

Ouvi agora senhores
Uma história de pasmar

D. Bagão conta o pilim
D. Morais trata das velas

D. Guedes limpa com VIM
Tachos, pratos e panelas

D. Pereira na enfermaria
Conta pensos e emplastros

E o D. António Mexia
Põe vaselina nos mastros

D. Durão deu à soleta
Enjoou de andar à vela

E Santa Manuela Forreta
Largou-os sem lhes dar trela

Aflito El-Rei Sampaio
Com estas novas tão más

Disse aos bobos de soslaio
Chamai lá o Santanás

Aqui estou meu Senhor
Vós mandastes-me chamar?

Soube agora desse horror
D. Durão vai desertar?

Cala-te lá meu charmoso
Não me lixes mais a vida

Troco um cherne mal-cheiroso
Por um carapau de corrida?

Pobre da Nau Catrineta
Já lamento a tua sorte

Esta marinhagem da treta
Nem sabe onde fica o Norte

Parece que já estou vendo
Em vez de descobrir mundo

Ao primeiro pé de vento
Espetam com o barco no fundo

Ou então este matraque
Com pinta de Valentino

Gasta-me a massa do saque
Nas boîtes do caminho

Não se aflija meu Rei
Que agora vou assentar

Pois depois do que passei
Cheguei quase onde quis chegar

E por aquilo que passei
Aqui, que ninguém nos escuta,

Eu quero mesmo é ser Rei
E vamos embora, à luta!!!

sábado, 2 de outubro de 2004

E outra coisa que eu gostei de ler...

... foi esta.

Eu gosto de ler as coisas mais diferentes umas das outras, não acham? Quando era mais novo, julgava que éramos todos assim. Tão ingénuo que eu era nesses tempos...

sexta-feira, 1 de outubro de 2004

A morte da Joana ou o povo

O Luís Ene tem vindo a publicar uns quantos posts sobre este assunto e quero dizer que subscrevo quase cada uma das suas palavras. Mas agora que as coisas estão mais calmas quero acrescentar qualquer coisa que vai para além das queixas que ele debita relativamente à comunicação social. Quero falar do povo.

Tem-se dito por aí que "o povo" isto, e "o povo" aquilo, querendo-se com "o povo" designar aquelas centenas de imbecis que vão, entre insultos, gozar o espectáculo de uma família tragicamente disfuncional (pelo menos isso já está provado) para a Figueira ou para as imediações do tribunal de Portimão. É o mesmo tipo de raciocínio que levou as televisões a fazer directos insuportavelmente longos a partir do Barlavento algarvio. A ideia de que é aquilo que "o povo" quer.

A verdade é que o povo não é aquilo. O povo, os dez milhões de portugueses que o constituem, não tem nada a ver com aquilo. Mesmo se reduzirmos o povo às suas camadas mais desfavorecidas, pouco de comum há entre ele e aquela gente para além de ela ser uma parte dele. O povo terá, sim, ficado chocado com o crime, pelo menos aquele povo que não se esteve nas tintas para ele, mas não se vai amontoar em cima do tribunal aos berros de "assassino", "puta" ou "o que faz falta aqui é a PIDE".

Tanto assim que para que a reunião de imbecis em Portimão tivesse aquelas centenas de componentes foi preciso "importá-los" não só dos concelhos limítrofes de Lagos, Silves e Lagoa, mas até do Alentejo. O povo, na sua esmagadora maioria, ficou em casa. Talvez chocado, mas a tratar das suas vidas e à espera que a justiça funcionasse. Mesmo os 40 mil habitantes do concelho de Portimão (o povo de Portimão), que não teriam de se deslocar muito para se irem juntar à maralha. Ficaram quase todos em casa.

Que é que isto quer dizer?

Quer dizer que quando se aponta para aquela gente e se diz "o povo" está-se a insultar o povo verdadeiro, está-se a imbecilizá-lo, está-se a subumanizá-lo. E isso, meus caros, não é inocente.