segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

Lido: O Menino Açafroado

Era uma vez um rei que era casado mas não tinha filhos. E assim começam dezenas de contos populares, este incluído, embora nem sempre se trate de um rei. Invariavelmente, segue-se um milagre qualquer, uma intervenção divina ou de alguma espécie de espírito ancestral, e o infeliz rei (ou não) lá obtém o filho tão desejado. Mas este vem sempre com um senão qualquer.

Com um título como O Menino Açafroado, está bem de ver que este conto recolhido por Afonso Coelho em Coimbra inclui artes mágicas e feitiços. Mesmo que não se perceba de imediato o que raio quer dizer "açafroado". Mas contrariamente ao que se possa supor, não é o menino o filho do rei. A história é mais complexa do que isso.

Sim, este é dos tais contos que dão pano para muitas mangas, com um enredo que percorre três gerações de uma família e uma maldição (o tal senão ali do primeiro parágrafo) que está relacionada com água de açafrão (e cá está a origem da bizarra palavra). Tudo resumido em três páginas, que apesar de tudo até acabam por transformá-lo num dos contos mais extensos deste livro. Os contos populares estão sempre reduzidos ao osso. Enchendo este de carne poderia ficar-se com um texto de fantasia razoavelmente longo... e basta isso para o tornar interessante.

Ah, sim, e no final tudo acaba em bem, claro. Nem precisavam de perguntar.

Contos anteriores deste livro:

domingo, 30 de dezembro de 2018

Leiturtugas da semana...

... ou falta delas.

Pois, esta semana não houve leiturtugas, mas houve novidades no projeto, com a adesão de mais dois blogues e um vídeo de divulgação de iniciativa de um deles. Obrigado, Tita. Querem saber quais são? Visitem a página.

Esse vídeo e o post que o acompanha também transformaram uma suspeita numa certeza: o Google não basta como forma de se ficar ciente de todas as publicações relativas ao projeto. Não me chegou o post com o vídeo, por exemplo, apesar de ter chegado, mais tarde, a inclusão da etiqueta "leiturtugas" no blogue.

O que isto quer dizer é que vamos ter de arranjar outra forma de cruzar informação que no mínimo complemente o Google e não deixe que posts relativos ao projeto passem despercebidos. Estou a pensar num grupo de facebook, mas é ideia que não me agrada lá muito e estou aberto a alternativas que convenham a toda a gente.

Digam coisas.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

Lido: A Seita dos Trinta

Não podia faltar, claro. Um livro de Jorge Luis Borges sem um conto pseudofactual mal pareceria um livro de Jorge Luis Borges.

Neste caso somos apresentados a A Seita dos Trinta, uma peculiar seita cristã que Borges descreve por intermédio da transcrição (e tradução) de um velhíssimo manuscrito datado do século IV. Este, incompleto, é de cariz fundamentalmente teológico, discorrendo com alguma demora sobre as heréticas práticas e ideias da seita, apesar de também se referir um pouco à sua história. Tudo falso, naturalmente.

Não costumo gostar deste tipo de texto pseudofactual, embora haja algumas exceções entre as quais avultam vários contos do próprio Borges, que é, de longe, o melhor escritor a fazer textos destes que eu conheço. Mas esta história não pertence às exceções: nada nela conseguiu realmente interessar-me, e o facto do manuscrito estar incompleto acrescenta a esse pouco interesse uma marca adicional de frustração: quem sabe se a parte interessante não estaria na parte que se perdeu? Reconheço que é precisamente esse o efeito pretendido, e que portanto Borges teve pleno sucesso no que se propôs fazer (ou seja: o conto é bom), mas mesmo assim não me agradou.

Contos anteriores deste livro:

quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

Lido: O Tesouro

Como sabem os que costumam vir à Lâmpada, tenho andado, nos últimos tempos, a ler contos populares, tanto portugueses como os alemães recolhidos e reformulados pelos Irmãos Grimm. E uma das coisas que me tem impressionado é a falta de utilização desses contos, na nossa literatura, como matéria-prima para ficções mais elaboradas, pelo menos fora do universo estritamente infanto-juvenil. Isto contrasta vivamente com o que acontece noutras paragens pois, como se sabe, boa parte da fantasia está solidamente alicerçada nas histórias tradicionais de vários povos. E, como tenho dito repetidamente, haveria pano para muitas mangas.

Pois bem, o Eça, o incontornável Eça de Queirós, também deve ter achado que havia pano para muitas mangas. E com este conto a que chamou O Tesouro mostra o que se pode fazer em literatura adulta com as histórias tradicionais.

A estrutura é bastante típica dos contos populares, apesar de lhe faltar o elemento fantástico que existe (e na verdade que sustenta) a maioria. Três irmãos, fidalgos asturianos muito empobrecidos, um belo dia quando andam à caça encontram um velho cofre trancado com três fechaduras. Aqui temos logo o número três, tão abundante nas histórias tradicionais, e a ambientação para uma história moral fica completa quando os três irmãos conseguem abrir o cofre (pois as chaves estavam nas fechaduras) e encontram lá dentro um imenso tesouro. Segue-se a cobiça. E o assassínio, que nenhum dos irmãos era propriamente boa pessoa.

É bom, este conto? Sim, é. É certo que lhe falta uma das principais qualidades de Eça, a ironia corrosiva, mas está tão bem escrito como seria de esperar e tem outras qualidades que não se encontravam nos textos anteriores deste livro. Afasta-se do estudo de personagem e, ao fazê-lo, adquire uma densidade narrativa mais sólida. E já para não falar da forma como adapta a história tradicional, ou pelo menos a estrutura destas histórias.

Contos anteriores deste livro:

terça-feira, 25 de dezembro de 2018

Lido: O Preto e o Padre

Mais um dos contos recolhidos por Adolfo Coelho com um protagonista preto, mais um monumento de racismo. Neste O Preto e o Padre, o preto não será criminoso, propriamente, mas é malandro e aldrabão, cabendo aos brancos, claro, o papel de pôr "ordem na casa". Neste caso ao padre, que não se deixa enganar, por mais que o preto tente.

Ah, sim, pois, os portugueses não são racistas. Ceeerto...

E o conto, com a sua única página, é basicamente o relato de uma sucessão de manigâncias por parte do preto para se safar de algum castigo por ter comido a perna de uma galinha que preparou para o padre, do qual é criado, manigâncias essas que são sucessivamente anuladas pelo padre. Suponho que a ideia original fosse ser um conto humorístico, mas confesso não lhe ter encontrado nenhum humor. E também não lhe encontrei nada que o integre na literatura fantástica, o que o coloca em clara minoria no contexto deste livro. Será uma historinha interessante como fonte de informação sociológica mas além disso é perfeitamente dispensável.

Contos anteriores deste livro:

domingo, 23 de dezembro de 2018

Leiturtugas da semana

Esta semana, a entrada no leiturtugas foi minha: a coletânea de Carina Portugal O Engenho dos Sonhos que, não sendo globalmente um livro de FC, contém um conto de FC, pelo que é um livro com FC. Mínimos do ano cumpridos também por mim, portanto.

Veem como é fácil cumprir isto? Vá, juntem-se à malta!

sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

Lido: Cannibal Farm

Histórias de detetives são coisa já com provas dadas na literatura, apesar de serem relativamente recentes, só tendo realmente nascido em finais do século XIX. Histórias de detetives futuristas são mais raras mas também estão longe de ser novidade; no fundo é isso mesmo o que o Rick "Blade Runner" Deckard é. Mas se o protagonista de um dos melhores filmes de FC de todos os tempos é um detetive/assassino respaldado pela lei decididamente noir, a dupla criada por Ron Goulart é basicamente cómica. Sim, mesmo com um título tão sombrio como Cannibal Farm.

Estamos no futuro, claro. No território dos estados independentes sucessores dos atuais EUA (e provavelmente noutros pontos do globo também), uma praga, a doença dos cães loucos, está a causar mortes. Nesse contexto, os ultradetetives de Goulart são contratados para investigar o desaparecimento de um tal Dan Lampkin, agente infiltrado da FDA que andava pelo Império do Texas a investigar uma tal Cannibal Farm quando desapareceu.

E fazem-no com a maior das facilidades e limpezas. Meia dúzia de peripécias, e estava o caso deslindado. Esse foi o principal motivo para eu não simpatizar grandemente com este conto. A descrição da investigação é desleixada, tudo é demasiado fácil para uma coisa tão absolutamente problemática que deixa de mãos atadas as próprias agências secretas americanas, obrigando-as a contratar os serviços de investigadores privados. A história resume-se assim a pouco mais que descrições vagamente futuristas, um ambiente político no qual a crítica à sociedade americana é evidente, e uma sucessão de piadas e ironias, muitas das quais exigem um conhecimento sólido sobre o alvo dessas piadas e ironias. Soube-me a pouco, a muito pouco.

Contos anteriores desta publicação:

Lido: A Noiva e o Vampiro

O romance fix-up não é uma tradição muito comum na língua portuguesa, julgo que sobretudo pela fraca tradição de publicação de contos entre nós, sistematicamente remetida para publicações marginais e pouco acarinhada pelos leitores em geral e por quem opina sobre leituras em particular. De tal forma que nem existe, que eu saiba, um termo em português que o designe. Mas como devia existir, deixem-me tentar cunhá-lo: romance-colagem.

E o que é o romance-colagem? É uma obra construída a partir de contos e novelas, geralmente com publicação anterior, embora por vezes os autores acrescentem material novo, nunca publicado, e façam outras alterações ao material já publicado para melhor o adequar ao formato de romance. De notar que romance-colagem não é o mesmo que romance em mosaicos (isto é, romances fragmentários, compostos por várias histórias razoavelmente independentes), ainda que muitos romances-colagem também sejam romances em mosaicos (o Terrarium, por exemplo, é as duas coisas): não só há romances em mosaicos em que nenhuma das suas partes teve existência independente prévia, como também existem romances-colagem que integram de tal forma as histórias anteriores num todo coerente que elas perdem completamente, ou quase, a individualidade.

Serve esta demorada introdução para vos dizer que esta capa que veem aqui à direita pertence a um romance-colagem de Gerson Lodi-Ribeiro. E que o texto de que venho aqui falar um pouco, A Noiva e o Vampiro, usado aqui como prólogo, não parece ter tido vida independente anterior.

Apesar disso, ressoa a qualquer coisa. É que eu ao longo dos anos fui lendo várias das histórias que serviram de blocos de construção deste romance-colagem e outras histórias que aparentemente não fizeram parte da colagem mas pertencem ao mesmo universo ficcional. Até publiquei uma ou outra. E tenho uma vaga lembrança de algo semelhante aos acontecimentos aqui descritos me ter passado pelos olhos. Mas é vaga: não recordo onde. Nem quando.

Seja como for, esta historinha sobre uma noiva e um vampiro tem muito de prólogo. Quero eu dizer com isto que inclui bastante despejo de informação sobre quem é a noiva (personagem que serve para situar o leitor quanto ao universo ficcional em que estas histórias se desenvolvem) e sobretudo quem é, o que faz e que limitações tem para conseguir sobreviver o protagonista deste livro: o vampiro. Por esse motivo não creio que funcione como história independente. Já como prólogo de um romance, seja ele colagem ou não, funciona... desde que a sequência da história reduza bastante a proporção de infodump.

Quanto ao enredo... bem... digamos apenas que quem saiba alguma coisa sobre o que fazem os vampiros quando mulheres jovens e apetitosas lhes caem nas garras já terá uma boa ideia do enredo. Aqui as coisas são um pouco diferentes, porque este vampiro não é propriamente decalcado dos vampiros que estamos habituados a encontrar nas histórias de terror (é um vampiro de ficção científica, basicamente) e existem elementos raciais e políticos a afetar o desenvolvimento da trama, decorrentes do universo de história alternativa que o autor cria. Mas no fundamental, no âmago da coisa, sim, é isso.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

Lido: O Engenho dos Sonhos (#leiturtugas)

Entre o devagarinho e o parado durante anos, dependente em demasia de uma série de autores que produzem pouco ou nada (mea culpa!) e de uma atitude perfecionista de mais valer não fazer do que fazer mal ou até insuficientemente bem, o panorama da ficção científica e fantasia portuguesa recebeu há uns anos nova vida com a chegada de uma série de autores que, entre erros e acertos, se borrifaram para os velhos do Restelo, arregaçaram as mangas e começaram a produzir coisas. E a publicar coisas.

Boa parte desses autores organizou-se em volta do site Fantasy & Co., entretanto desativado (definitivamente?). E Carina Portugal foi uma delas, produzindo uma série de histórias para o site, umas sujeitas a tema, outras nem tanto, as quais vieram depois dar contribuição decisiva para a composição desta coletânea a que resolveu dar o título algo enigmático de O Engenho dos Sonhos.

Mesmo havendo exceções a esta regra, sai-se da leitura com a ideia de que a autora se sai melhor em extensões médias (uma vez que não existe aqui nenhuma história realmente longa), pois geralmente não consegue fazer com que a maior brevidade não venha acompanhada pela sensação de que há demasiadas coisas no ar, ou gratuitas. Será provavelmente sintoma de inexperiência; só tentando e errando se compreende realmente onde estão os nossos pontos fortes e fracos e a experiência ensina a sublinhar aqueles e disfarçar estes.

Mas a verdade é que, pesem embora algumas fragilidades no tratamento da língua, de que fui falando e de que fui dando exemplos ao longo da leitura e comentário dos contos (e um poema), e que em geral pareceram ir diminuindo do princípio para o fim do livro, este não deixa de ser interessante. Não contendo nenhum conto muito bom, tem vários que se podem considerar bons, sobretudo Pintado a Sangue, Sementes de Fada, Pele de Escrava e O Cais do Poeta. Outros há que com uma revisão atenta e pequenas mudanças poderiam juntar-se a este grupo, embora também haja um grupo de seis ou sete mais fracos ou até bastante fracos. O tom geral que fica é de um livro de fantasia sombria próxima do horror, com alguns exemplos de outros géneros e com outras abordagens (até há um conto de FC), de uma autora com potencial mas ainda inexperiente e que nem sempre consegue descolar de caminhos já muito trilhados por autores anteriores.

E se, como eu digo sempre, uma compilação de contos vale a pena se contiver pelo menos uma história muito boa ou três ou quatro boas, esta cumpre. Não chegará a ser uma boa coletânea, não ultrapassará a mediania, mas apesar de ser autoeditada é melhor que algumas das coletâneas de FC&F portuguesa que saíram em livro por editoras de prestígio, contendo vários bons contos. Talvez merecesse uma boa revisão, uma reformulação de conteúdo para remover as histórias mais fracas e talvez acrescentar outras, e uma edição a preceito.

Eis o que achei de cada história:
Este livro pode ser obtido gratuitamente aqui.

Lido: Os Simplórios

Entre os contos recolhidos por Adolfo Coelho, há um tipo que é particularmente raro: contos sem sombra de magia ou sobrenaturalidades. Os Simplórios pertence a esse grupo.

Trata-se de um continho cómico sobre as coisas que fazem e dizem os prodígios de estupidez. Como na época não havia facebook, não estava à vista de todos e estas histórias tinham de ser contadas em volta da lareira. E é história que se conta depressa, pois ocupa pouco mais que uma página. Terá graça? Enfim, suponho que sim, alguma, uma gracinha ingénua sem sombra de sofisticação ou subtileza. Tudo gira em volta de casamentos frustrados, o que não deixa de ser natural numa sociedade sexualmente reprimida como era a sociedade portuguesa do século XIX (altura da recolha; não se sabe quando esta história foi criada mas é de supor que a repressão fosse mais ou menos idêntica). Mas nada que tenha grande interesse.

Contos anteriores deste livro:

quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

Lido: O Casamento da Senhora Raposa

Contrariamente a todos os contos anteriores deste livro dos Irmãos Grimm, e já são muitos (e ainda pouco passa de metade deste volume e ainda há mais dois), este O Casamento da Senhora Raposa não é um conto mas dois.

Trata-se de duas versões, razoavelmente diferentes, de um conto sobre a vida conjugal de uma raposa das das fábulas (logo, antropomorfizada). São dois continhos bastante curtos, com menos de duas páginas cada e cheios de falas em verso, o que ainda os encurta mais, e contam a procura da raposa viúva (num deles estava realmente viúva, no outro apenas se julgava) por um novo marido. Não há grande corropio de pretendentes, como na famosíssima história da Carochinha, mas eles não deixam de aparecer e, quando a raposa faz a sua escolha, dá-se o desenlace, bastante divergente entre um conto e o outro.

É precisamente esse o principal interesse deste(s) conto(s): o facto de um fundo comum poder levar a uma divergência tão acentuada no desfecho e na moral da história. No primeiro, bastante cínico, o raposo não estava realmente morto e reaparece em pleno casamento pondo tudo na rua, mulher, noivo e convidados; já no segundo, delicodoce, a raposa arranja outro raposo e tudo acaba em bem. É como se o primeiro fosse contado com base no ponto de vista de um marido ciumento e o segundo no da pobre viúva. E se calhar foi precisamente assim que as duas versões se originaram.

Tirando isso, porém, estes contos pouco interesse têm.

Contos anteriores deste livro:

terça-feira, 18 de dezembro de 2018

Lido: São Jorge

Mais um conto recolhido por Adolfo Coelho em Coimbra, mais um conto em que o burilamento da língua marca presença, mas sem que esse burilamento da língua venha acompanhado de grande elaboração narrativa. E esta história até que daria para isso.

Trata-se de uma versão da célebre lenda de São Jorge, o matador de dragões venerado pelos cristãos, misturada com outra história cristã, a do pescador que pesca um peixe que lhe pede que o poupe. E mais uma vez temos um rei que promete a mão da filha ao aventureiro que consiga resolver-lhe um problema, o que parece ser dos temas mais comuns neste tipo de história. No caso, o problema é um dragão, ou bicha de sete cabeças (o conto usa os dois termos), que anda a causar grande devastação e o rei quer ver morto. Jorge mata-o, o rei quer casá-lo mas Jorge, por ser santo, recusa, mas tudo acaba em bem como tem de ser.

Além de abrir portas a desenvolvimentos abundantes e potencialmente interessantes, o que mais curioso achei neste conto foi a identificação da bicha de sete cabeças (mais uma vez no feminino e não no masculino, como eu sempre conheci) com o dragão, tratando esses dois exemplos de criptozoologia como uma e a mesma coisa. De resto, é uma história que corresponde ao que seria de esperar, promovendo valores de lealdade e honra numa rápida historinha de menos de duas páginas.

Contos anteriores deste livro:

domingo, 16 de dezembro de 2018

Lido: Biscoitos da Vida Eterna

Sempre fui de opinião que a forma com que se encerra uma coletânea ou antologia é importante, pois embora alguns leitores vão lendo conto a conto, saltitando para trás e para diante ao sabor dos apetites, a maioria não o faz e acaba por ler sequencialmente, começando pelo primeiro e acabando com o último. Assim, se o primeiro conto é como que o átrio de um edifício artístico, que pode atrair os visitantes ou repeli-los, o último é a porta de saída, e a última oportunidade de causar um bom impacto. Assim, julgo importante que tanto o primeiro conto como o último sejam obras fortes. Talvez não as mais fortes de todas, mas fortes o suficiente para causar ou deixar boa impressão ao leitor.

Carina Portugal, aparentemente, não é dessa opinião. É que este texto com que termina o seu livro, Biscoitos da Vida Eterna, está muito longe de ser um dos pontos altos desta compilação.

Reparem que falo em texto, não em conto. É que não estamos perante um conto no sentido tradicional da palavra. Trata-se de uma receita de bruxa, para fazer os biscoitos da vida eterna do título, completa com instruções para a obtenção dos ingredientes mais problemáticos. Meia dúzia de aventureiros ou raspa de escama de dragão, entre outras coisas do género, não são propriamente artigos que se possa ir comprar ao supermercado mais próximo.

A coisa até diverte um pouco, e está razoavelmente bem escrita, mas falta-lhe bastante para poder ter alguma esperança de ser um ponto alto neste livro. É um textozinho divertido e inconsequente, e só pretende mesmo ser isso. Pouco teria a apontar-lhe se o encontrasse no miolo do livro, mas encontrá-lo no fim não me pareceu nada boa ideia.

Textos anteriores deste livro:

sábado, 15 de dezembro de 2018

Finalmente voltei a escrever

É... é isso que o título diz. Finalmente, depois de anos de quase completa seca, voltei a escrever.

Começou em agosto, quando, depois de ter tido aqui a Lâmpada parada durante mais de um mês por causa do trabalho, com toda a acumulação de textos atrasados que isso implicou, resolvi fazer uma experiência: e se em vez de esperar até ter tempo e disponibilidade para escrever textos razoavelmente longos de uma assentada, como era meu hábito e tem levado ao longo dos anos a interrupções mais ou menos longas em tudo o que não tenha diretamente a ver com o trabalho sempre que este aperta, eu começasse a escrever um parágrafo aqui, outro ali, nos intervalos das traduções? Coisinhas rápidas, de cinco, dez minutos de cada vez? Resultaria? Isto é: conseguiria eu ir escrevendo o que tenho para escrever sem pôr em causa o trabalho que paga?

Como sabe quem costuma visitar a Lâmpada, a coisa resultou bastante bem. Desde agosto, com esta técnica de ir escrevendo um parágrafo de vez em quando, descongelei a Lâmpada, recuperei quase por completo o imenso atraso de que as minhas opiniões literárias vinham sofrendo há anos, escrevi mais algumas coisas não diretamente relacionadas com aquilo que vou lendo, e tudo no meio de um período de trabalho intenso (que continua e só terminará em fevereiro), sem que este tenha sofrido minimamente com isso.

Quando me apercebi de que a ideia estava a resultar, perguntei aos meus botões: "e resultará também com a ficção?" No início deste mês resolvi-me a fazer o teste.

De modo que peguei n'A Escolha de Diop, texto que os leitores aqui do blogue escolheram há ano e meio como aquele que gostariam de ver primeiro, revi o que já estava escrito, mais para voltar a situar-me do que propriamente para fazer uma revisão em termos, e pus-me a acrescentar texto novo. Um parágrafo de cada vez.

Nestes 15 dias, entre revisão e texto novo, a novela (ainda não o é, mas vai ser) cresceu 741 palavras. Duas páginas, mais coisa, menos coisa. É pouco, pois é, mas bate aos pontos o zero palavras por mês que tem sido habitual. Há vários anos que não produzia tanto em 15 dias.

Ou seja: o truque também resulta com a ficção. E vou continuar com isto e vou fazer outros posts como este a dar notícia do andamento da coisa. Ou das coisas, que é possível que vá também escrevendo outras coisas a par desta. Provavelmente uma vez por mês, talvez de quinze em quinze dias. Ainda não decidi. Tenho um mês para decidir.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

Lido: Pedro e Pedrito

Pedro e Pedrito é mais um conto recolhido em Coimbra por Adolfo Coelho e, talvez por causa disso, tem uma elaboração literária superior ao que é comum encontrar-se nestas histórias. Mas só em termos de texto propriamente dito, pois a narrativa é tão apressada tem sido em tantos outros destes contos portugueses, deixando a sensação de que ficou aqui muito pano por transformar em mangas.

Trata-se de um conto sobre a lealdade. Pedro é rei e Pedrito não é, mas é seu irmão de leite, e leal sem falta, o que o leva a pôr-se em risco para salvar o rei quando ouve por acaso uma conversa que indica que o este pode vir a morrer. Duas ou três peripécias depois, incluindo umas inconvenientes transformações em pedra, os dois revelam-se leais um ao outro e tudo acaba em bem. Expandida e acrescentada de alguns elementos, esta história podia vir a ser interessante, mas como está aqui não o é lá muito. A extrema brevidade não costuma dar-se lá muito bem com enredos complexos.

Contos anteriores deste livro:

Lido: Civilização

Parece ser praticamente unânime que Eça de Queirós, sendo sempre bom, é melhor quando se carrega de ironia, coisa que fazia com frequência. E neste conto, que tal como os anteriores consiste principalmente de um estudo de personagem, fê-lo de forma particularmente incisiva. Mas só na primeira parte.

Civilização não será um conto sobre a civilização, propriamente (embora até acabe por ser), mas sobre um civilizado. Ou melhor, sobre um ultracivilizado, palavra de Eça, um homem de finais do século XIX fascinado com toda e qualquer inovação saída das engenhosas mentes dos inventores. Autores de steampunk podem encontrar aqui inspiração com fartura porque o homem, podre de rico, instala no seu palacete urbano tudo quanto é engenhoca e assim vive, rodeado de coisas mecânicas.

Que volta e meia avariam.

Nesta fase do conto, a ironia fina de Eça transborda e chega a provocar gargalhadas. Mas depois, uma viagem até à decrépita propriedade rural do ultracivilizado protagonista corre mal e ele é obrigado a descobrir as alegrias da simplicidade da vida campestre. E aí o conto muda radicalmente de tom, tornando-se bucólico e romântico... e perdendo boa parte do interesse que me despertara até aí.

A palavra "romântico" não está ali em cima por acaso. Há muito de romantismo neste conto, mesmo não existindo nele grandes amores... romantismo no sentido literário do termo: a exaltação da natureza e da simplicidade da vida campestre em detrimento da sofisticação tecnológica, por exemplo; a exaltação do indivíduo... Eça chega a mostrar-se quase ludita, mas enquanto o faz com ironia é uma pequena delícia. O problema é que a páginas tantas abandona a crítica e passa à exaltação, e aí torna-se algo monótono, previsível e até um pouco panfletário. O conto continua a estar tão magnificamente escrito como antes, mas isso não é suficiente.

Contos anteriores deste livro:

Lido: There Are More Things

Não, não é engano. O conto está mesmo num livro do argentino Jorge Luis Borges, e tem mesmo este título shakespeariano, em inglês, There Are More Things. Mais: é dedicado a nada mais, nada menos, que H. P. Lovecraft, esse mesmo, o do horror cósmico. E mais ainda: é um conto de horror cósmico muito lovecraftiano e tem, de facto, aquela espécie de horror pintalgado de ficção científica que é característica do subgénero.

Como acontece muitas vezes quando a ficção lovecraftiana é escrita por autores não americanos (e se viu entre nós, por exemplo, na antologia Sombra Sobre Lisboa), Borges como que "nacionaliza" o universo de Lovecraft, ambientando este seu conto na Argentina. Tudo gira em torno de uma casa isolada, vendida pelo narrador da história a um misterioso estrangeiro o que, por o estrangeiro ser misterioso e porque à venda se seguiram obras demoradas que o vendedor sente como um ataque às suas memórias, o vão levar a investigar o que se passa. E o que encontra é o que qualquer leitor que conheça Lovecraft imagina.

Em parte por isso, porque o que vamos encontrar neste conto ser quase precisamente o que esperamos encontrar assim que percebemos que estamos perante uma ficção lovecraftiana, e em parte porque Borges se afasta neste conto do seu próprio estilo e imaginário (embora não completamente) para assumir até certo ponto os de Lovecraft, este é um conto competente mas não é nada de transcendente. O escritor genial que Borges foi cria aqui uma história que poderia ter sido criada por muitos outros escritores. É uma boa história? É, claro, que não é por criar uma obra derivativa que Borges desaprende de escrever. Mas está muito longe das suas melhores histórias.

Contos anteriores deste livro:

quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

Lido: O Príncipe com Orelhas de Burro

O Príncipe com Orelhas de Burro é outro dos contos da minha infância, embora tenha causado menos impacto no pequeno Jorge do que O Pequeno Polegar, de que aqui falei há pouco tempo. Mas, tal como aconteceu com o Pequeno Polegar, também tomei contacto com o príncipe numa versão bastante mais desenvolvida do que a que encontro nos livros de histórias populares que tenho andado a ler. Neste caso, no do Adolfo Coelho.

Fala a história, naturalmente, sobre um príncipe que tinha umas espampanantes orelhas de burro. E explica porquê: o rei andava triste por não ter filhos e pediu ajuda a três fadas que concordaram ajudá-lo; mas se as duas primeiras se contentaram com a convencionalidade dos atributos que deram à criança, já a terceira, não se percebe se por maldade ou matreirice, achou por bem dar-lhe as tais orelhas.

Umas peripécias atrás das outras, sempre com o fito de esconder dos súbditos que o herdeiro ao trono tem orelhas de burro, e tudo acaba por ficar em bem, como é natural neste tipo de história. Este é dos tais contos que dão pano para mangas de desenvolvimento, e neste caso esse desenvolvimento existiu mesmo, que o conto de que eu me lembro (vagamente, é certo) era bastante maior e mais complexo que a página e picos que ele ocupa nesta recolha. E também é conto que literariamente está bem mais elaborado do que muitos dos que o acompanham. Parece ser o padrão habitual nos contos recolhidos em Coimbra.

Contos anteriores deste livro:

terça-feira, 11 de dezembro de 2018

Lido: Doze Doses de Ilusão

E de repente, eis que Carina Portugal surpreende. Depois de um número razoável de contos sempre virados para o horror sobrenatural ou para outras formas literárias em que a magia tem papel de relevo, e mesmo quase a chegar ao fim do livro, eis que neste Doze Doses de Ilusão surge, sem aviso, a ficção científica.

E é um conto de ficção científica bastante interessante, no qual a autora consegue inserir de forma eficaz os territórios que lhe são mais familiares. Por outras palavras, conseguiu encontrar maneira de sair da sua zona de conforto mantendo-se no entanto nela escorada.

Estamos no futuro, claro, e acompanhamos um pai desesperado que perdeu uma filha. A dor leva-o a tomar uma sobredose de umas pílulas claramente inspiradas nas pílulas azul e vermelha da série Matrix, que lhe fornecem uma fuga para um mundo ilusório onde a miúda ainda está viva. O resultado dessa sobredose deveria ser a morte, mas algo de inesperado acontece e, com viagem no tempo à mistura, uma espécie de milagre mediado pela tecnologia surpreende toda a gente.

Apesar de se notar que as principais referências de FC da Carina Portugal são audiovisuais, não literárias, este é um bom conto, razoavelmente bem escrito e bem concebido se suspendermos a descrença o suficiente para ultrapassar algumas inverosimilhanças científicas no enredo (no fundo, o mesmo que o Matrix nos pede), tendo ainda a qualidade de facilmente poder ter caído na lamechice mas ter evitado fazê-lo.

Textos anteriores deste livro:

segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

Lido: Pequena Coleção de Grandes Horrores

Quem olhar para a extensa lista de links que se segue, sem dispor de mais nenhuma informação (além da capa aqui ao lado a indicar que se trata de um livro de contos, provavelmente), facilmente poderá pensar que a Pequena Coleção de Grandes Horrores é um livro volumoso. Mas não. O "pequena" do título é inteiramente adequado para este livro de Luiz Bras que tem apenas 144 páginas.

Trata-se, portanto, de uma coleção de textos muito curtos, raramente ultrapassando as duas páginas, contos quase todos, ou pelo menos algo de híbrido mas mais próximo da prosa que da poesia, ainda que alguns se aproximem mais desta que daquela. O "horrores" do título nem sempre é fiel ao conteúdo, pois várias destas histórias são francamente divertidas, chegando mesmo a provocar a gargalhada, ainda que em muitas o horror esteja de facto presente. Mas também aqui raramente se trata de algo de puro. É um horror que vem quase sempre misturado com outras coisas, e entre estas outras coisas a ficção científica tem posição de relevo.

Mas o que aqui se encontra é sobretudo um conjunto de exercícios com o objetivo de transmitir o máximo de significado com o mínimo de palavras, reduzindo a ficção ao osso e mais além. Nisso, estas histórias aproximam-se muito da poesia, que tem também aí um dos seus principais apelos. E disso há aqui exemplos que chegam quase ao sublime. Alguns, retirados dos últimos contos do livro, e haveria muitos mais para dar, incluem Temporada de Caça, Selvagens, Nas Catacumbas ou Ventania.

Como é natural em qualquer compilação de contos, e mais ainda numa que, como esta, tem no experimentalismo literário um dos seus esteios principais, alguns textos foram mais bem sucedidos que outros. Mas não há aqui textos maus. Há alguns que me parece não terem saído da mediania, mas são poucos; a maioria são bons contos e/ou poemas, e um número razoável é mesmo muito bom. Entre estes, destacam-se, a meu ver, O Homem sem Sombra, Total Recall e Coronel Pança em Pânico.

Em suma: este é um livro francamente bom. Não será para todos os gostos, que não é. Quem goste dos seus géneros bem definidos é capaz de ficar pouco impressionado com as misturas que Bras faz, e quem não ache grande graça a ficção ultracurta provavelmente não achará grande graça a esta ficção ultracurta. Dois exemplos, entre outros possíveis. Mas para os outros, por exemplo para os que, em Portugal, gostam de Mário-Henrique Leiria (apesar de aqui irem encontrar uma acutilância política menor e mais movida a raiva) ou, entre os mais recentes, das ficções mais breves de gente como João Ventura, este é livro que vale muito a pena. Muito mesmo.

Eis o que achei de cada texto:
Este livro foi-me oferecido pelo autor.

Uma pequena história cautelar para autores aspirantes... e não só

... ou como não fazer as coisas.

Há coisa de um ano, dei por acaso pela edição deste livro cuja capa apresento aqui ao lado. Não foi, que eu tivesse dado por isso, divulgada em lado nenhum e não esteve, que eu tivesse notado, à venda em nenhum sítio. Mas é, aparentemente, um livro de ficção científica de um autor de que nunca tinha ouvido falar. E isso, claro, desperta-me a curiosidade.

Há dias resolvi comprá-lo. Como o único lugar onde o livro parece estar à venda (à parte a Amazon, e eu não estou disposto a ir importar da Amazon um livro português) é o site da editora, foi lá que me dirigi. Afinal de contas, estamos em 2018. O comércio eletrónico, em especial de livros, é uma realidade testada e afinada por duas décadas de experiência, certo?

Bem...

Ao entrar tudo parece estar certo. O design é atraente, os livros estão bem categorizados e acessíveis. Os dados sobre os livros são escassos, mas isso é praga que ataca muito mais do que esta editora específica, infelizmente. Às vezes quase parece que demasiadas editoras portuguesas acham que fornecer dados completos sobre os livros que pretendem vender viola alguma espécie de segredo de estado. Que esta também sofra disso não é nem surpreendente nem invulgar.

De modo que eu lá fui encomendá-lo, todo lampeiro. Má ideia.

Em vez de se clicar num botão "encomendar" e o livro ficar adicionado a um carrinho de compras, como é padrão do e-commerce, temos um formulário. Pede-se nome, endereço, email, essas coisas necessárias, e por aí tudo bem. Depois pede-se para indicar o livro. Um livro. Quem quiser encomendar mais que um, não pode... ou por outra, pode encomendar vários exemplares do mesmo livro, mas não pode, por exemplo, encomendar A Fonte da Juventude do Rúben Pais e As Nuvens de Hamburgo do Pedro Cipriano.

Pior: depois de ser obrigado a só escolher um livro, o pobre candidato a cliente tem a opção de comprar também um e só um ebook. Informação sobre o formato em que o ebook virá? Não existe. Pode ser PDF, pode ser um formato decente (EPUB, por exemplo), pode ser um formato bizarro qualquer que ninguém consegue ler, pode ser qualquer coisa. E não é possível comprar ebooks, ou pelo menos um ebook. Quem prefira ler livros digitais está com azar, que se o campo dos ebooks é facultativo, o dos livros em papel é obrigatório.

Mas pronto. Se é assim que querem, assim terão. E eu lá fiz a encomenda: este livro cuja capa está aqui em cima, em papel, e o do Cipriano em ebook, já que este último sei onde poderia comprar em papel se a venda do ebook desse barraca. Sim, que já estava a ver o filme mal parado.

Mas não tanto como acabou por ficar. É que depois da encomenda feita recebi o email de confirmação, típico destas coisas. Tudo bem, portanto? Não propriamente, não. É que o que veio no email foi, em resumo, isto:

Livro - Encomendar Ficção
Versão - 1
Quantidade -
Envio - Envio Ebook - imediato
Preço - 14

Como não encomendei nenhum livro intitulado "Encomendar Ficção", assinalei uma quantidade de 1 exemplar e o preço do ebook (de envio imediato) não é 14 €, assim que vi isto fugi imediatamente para bem longe. Não confirmei o email, evidentemente, e muito menos procedi ao pagamento.

E foi assim que o Rúben Pais não vendeu um livro.

Moral da história: de pouco servem as boas intenções (a carta de intenções da editora é um exemplo a seguir por muitas outras; não estamos perante uma vanity press) quando não vêm acompanhadas por saber-se fazer as coisas. E o facto é que quem vai tentar comprar livros online sai da experiência com péssima impressão, que não se fica pela experiência de compra, antes transborda para outras áreas: afinal, se a venda é assim quem garante que a paginação está bem feita ou os livros não vêm cheios de gralhas (não estão disponíveis excertos, claro) ou não se desfazem assim que forem abertos?

E outra moral da história: seria sensato que os autores testassem as editoras antes de lhes entregar as suas obras. Comprem-lhes qualquer coisa, pelos vários meios (se é que são vários os meios) que elas põem os livros à venda. Verifiquem a qualidade das edições, vejam se e como os livros são divulgados. É que caso contrário pode acontecer-vos o que aconteceu ao Rúben: podem não vender livros que poderiam ter vendido.

E por falar nisso: alguém sabe de algum lugar físico onde eu poderia comprar este A Fonte da Juventude? É que agora já só mesmo tendo o livro nas mãos, sabem?

domingo, 9 de dezembro de 2018

Lido: A Bicha de Sete Cabeças

Há muitos contos populares cuja moral principal se pode resumir na velhíssima máxima "o crime não compensa". E este A Bicha de Sete Cabeças é um deles.

Mas é mais do que isso. Recolhido por Adolfo Coelho em Ourilhe, a tal terreola com um peso absolutamente desproporcionado nesta recolha, também é um conto que desmente de forma categórica a velha ficção nacional sobre os portugueses não serem racistas. Quem juntar as duas coisas percebe imediatamente: há aqui um preto, e é o preto o criminoso. Claro.

O enredo anda em volta de um caçador que caça a tal bicha de sete cabeças, sem saber que o rei instituíra um prémio pela morte de tal monstro: a mão da filha em casamento, como de costume. O tal preto, malandro e vigarista, aproveita-se da ignorância do heroico caçador, apropria-se das cabeças da bicha, leva-as ao rei, afirmando ter sido ele o bravo a matar o monstro. E claro que tudo acaba em bem, com o preto impedido de casar com a princesa e o branco bonzinho recompensado.

Esta é das tais histórias que, a reboque de uma moral positiva (mas falsa, infelizmente; demasiadas vezes o crime compensa mesmo), inculca em quem a lê e ouve uma série de valores francamente negativos, quando não são mesmo repugnantes. E também é uma história com uma curiosidade: o facto de se referir à bicha assim, no feminino. É que eu sempre ouvi falar em bicho de sete cabeças, masculino, uma expressão que se utiliza como sinónimo de coisa muito complicada. E isto desde bem antes de o brasileirismo bicha se generalizar para designar os homossexuais masculinos. Regionalismos, talvez? Não sei.

Contos anteriores deste livro:

Leiturtugas da semana

A primeira semana de Leiturtugas, ainda com um grupo pequeno (há mais interessados? Informem-me), já começou a render leituras e comentários. O estreante do projeto foi o romance de Miguel Vale de Almeida, premiado com o Prémio Caminho e recentemente republicado, Euronovela, lido e comentado pelo Artur do Intergalactic Robot. Mínimos do ano compridos pelo Artur; a partir daqui o que vier é lucro.

sábado, 8 de dezembro de 2018

Já anda por aí...

Eu traduzo profissionalmente desde 2006. Já lá vão uns aninhos, portanto. E já tenho uns quantos livritos no currículo. Ou umas quantas dezenas de livritos no currículo, mais propriamente. Segundo as contas do Goodreads há no momento em que escrevo isto 86 trabalhos distintos associados ao meu nome, embora parte destes trabalhos sejam os que contêm a minha ficção e haja uma praga no Goodreads que torna estes números extremamente imprecisos: a malta que introduz repetidamente os mesmos livros (e não os associa uns aos outros), compensada em parte pela malta que se esquece de que o tradutor é um tipo especial de autor dos livros traduzidos e não o inclui na ficha dos livros que introduz.

Neste tempo todo, contam-se pelos dedos de uma mão as vezes que falei do meu trabalho aqui na Lâmpada. Dei há dias por isso, e seguiu-se imediatamente uma das minhas expressões favoritas: "mas por que raio?!"

É que realmente faz muito pouco sentido.

Bem, acho que isso vai mudar. Se as coisas não fazem sentido faz menos sentido ainda insistir nelas. E por isso, digo-vos que já por aí anda o penúltimo livro que traduzi: o primeiro volume de Sangue & Fogo, do George R. R. Martin. E não é só no site da editora que o podem encontrar, ou seja, já não está em pré-lançamento. Eu já o vi até no Continente.

É o primeiro volume de uma história imaginária sobre o que aconteceu em Westeros entre a Conquista de Aegon e a Rebelião de Robert, e se não sabem que nomes são estes o livro também explica. Tal como O Mundo de A Guerra dos Tronos (título que faz todo o sentido comercial mas que não me agrada particularmente, diga-se de passagem), é, no contexto do universo ficcional do Martin, um livro de não-ficção, escrito por um dos eruditos da Cidadela de Vilavelha. Mas enquanto O Mundo é um livro iminentemente descritivo, uma obra que seria verdadeiramente de não-ficção se não se desse o caso de tudo aquilo que descreve ser ficcional, estes livros de Sangue & Fogo são mais híbridos.

Quero eu dizer com isto que este livro se lê quase como um romance. Há descrições, é certo, como seria natural num livro de História, assim com letra grande, mas também há diálogos e uma voz do homem que narra, o qual, apesar de procurar ser eruditamente objetivo, deixa transparecer a sua humanidade, os seus preconceitos, a sua moral, as suas opiniões, e por aí fora.

Este é um dos truques que o Martin usa para anular o aborrecimento que se poderia esperar do equivalente westerosiano de um livro académico.

Outro é o humor. Ao longo deste livro (e do próximo, que isto são dois volumes a sair com poucos meses de intervalo), há várias personagens, apartes e situações que emprestam às típicas convulsões políticas e militares de qualquer história de qualquer entidade política uma nota de ironia, que por vezes chega a provocar o riso. Por mais sisudo que se tente mostrar o erudito que narra a história, as alfinetadas que atira a um ou outro dos colegas, os comentários que tece sobre a fiabilidade das fontes que utiliza para a elaboração do seu livro, e até algumas citações dessas mesmas fontes, conseguem ser francamente divertidas.

No entanto, se o livro se lê quase como um romance não se lê exatamente como um romance. Sendo como é uma história (fictícia) sobre um período prolongado, de 100 anos, e apesar de várias personagens nos acompanharem ao longo de dezenas e por vezes de centenas de páginas, não existe aqui propriamente o tipo de protagonista que costuma existir nos romances. Ou por outra, o verdadeiro protagonista desta história é a dinastia Targaryen propriamente dita, não Aegon I, a rainha Alysanne ou qualquer outra das pessoas (e dragões) que passam pelas suas páginas.

Pessoalmente posso dizer que foi bom regressar a Westeros. No processo de tradução dos 10 volumes da série, e de mais uns apêndices, passei lá vários anos da minha vida e os Sete Reinos (a par dos Seis Ducados da Robin Hobb, que também já somam vários anos de trabalho) tornaram-se ao longo desses anos uma espécie de casa virtual, pelo que foi uma espécie de regresso a casa. A uma casa um pouco diferente, sem nenhum dos velhos amigos que lá deixei quando terminei a tradução de Os Reinos do Caos, mas mesmo assim foi agradável conhecer um pouco melhor pessoas e acontecimentos que até aqui só conhecia de ouvir contar, de referências dispersas por aqui e ali, ao longo das milhares de páginas das Crónicas do Gelo e Fogo. E também algumas personagens e factos até aqui desconhecidos.

E só vos digo mais uma coisa, um cheirinho não para este livro propriamente dito, mas para o próximo volume: o Martin é uma delícia a escrever anões.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

Em novembro falou-se de...

Aqui temos, pela 11ª vez (e é um espanto que isto esteja quase a completar um ano; o tempo voa), a lista da ficção científica e material próximo que mereceu comentário na internet aberta de língua portuguesa ao longo do mês que passou.

A malta que costuma vir à Lâmpada já sabe o que se segue e já sabe que pode saltar à frente. Vem aí a conversa habitual sobre onde encontrar mais informação sobre o que são estes artigos, que objetivos têm e de que limitações sofrem (no primeiro post da série), sobre o lugar onde se pode encontrá-los a todos, passados, presente e, a seu tempo, futuros (na tag leituras fc) e por fim sobre onde encontrar os comentários que eu tenho a fazer sobre as listas que seguem já a seguir (depois das listas).

Ficção portuguesa:
  1. O Legado de Eros, org. ??
  2. A Nossa Alegria Chegou, de Alexandra Lucas Coelho
  3. Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago
  4. O Homem Duplicado, de José Saramago
  5. Lisboa Oculta, org. Carlos Silva (?)
  6. Tudo Isto Existe, de João Ventura
Ficção brasileira:
  1. As Coisas que Aprendi Depois que eu Morri, de Victoria Aldrin
  2. Desta Terra Nada Vai Sobrar, a não Ser o Vento que Sopra Sobre Ela, de Ignácio de Loyola Brandão
  3. Alien, de Luiz Bras (conto)
  4. Compreendam, Imbecis, de Luiz Bras (conto)
  5. Laboratório Aleatório, de Luiz Bras (conto)
  6. Máquina Macunaíma, de Luiz Bras (conto)
  7. O Robô que Desenha Monstros, de Luiz Bras (conto)
  8. Rodamoinho, Talvez, de Luiz Bras (conto)
  9. The Walking Dead, de Luiz Bras (conto)
  10. Anjos, Mutantes e Dragões, de Ivanir Calado
  11. Mundo Sombrio, de Day Fernandes (3x)
  12. Krystallo, de Raphael Fraeman
  13. Fantástico Brasileiro, org. Bruno Anselmi Mantagrano e Enéias Tavares
  14. O Viajante, de Rafael Marx (conto)
  15. Casulos, de Ricardo Mesquita
  16. King-Poe-Lovecraft, Do Terror ao Horror, org. Rô Mierling
  17. Boas Meninas não Fazem Perguntas, de Lucas Mota
  18. Jardim dos Famintos, de Adams Pinto
  19. Absorção, de Diedra Roiz
  20. Reflexão, de Diedra Roiz
  21. Transmissão, de Diedra Roiz
  22. Deixe as Estrelas Falarem, de Lady Sybylla
Ficção internacional:
  1. À Boleia Pela Galáxia / O Guia do Mochileiro das Galáxias, de Douglas Adams (2x)
  2. O que Acontece Quando um Homem Cai do Céu, de Lesley Nneka Arimah
  3. Eu, Robô, de Isaac Asimov
  4. O Fim da Eternidade, de Isaac Asimov
  5. A História de uma Serva / O Conto da Aia, de Margaret Atwood (2x)
  6. O Ano do Dilúvio, de Margaret Atwood (2x)
  7. Faca de Água, de Paolo Bacigalupi
  8. Mentes Sombrias, de Alexandra Bracken (2x)
  9. Fahrenheit 451, de Ray Bradbury (2x)
  10. Uma Sombra Passou por Aqui, de Ray Bradbury
  11. Fúria Vermelha, de Pierce Brown
  12. A Parábola do Semeador, de Octavia E. Butler (2x)
  13. Despertar, de Octavia E. Butler
  14. A Escolha, de Kiera Cass
  15. A Vida Compartilhada em uma Admirável Órbita Fechada, de Becky Chambers (2x)
  16. A Sentinela, de Arthur C. Clarke (conto)
  17. Abandonado, de Arthur C. Clarke (conto)
  18. Acidente Espacial, de Arthur C. Clarke (conto)
  19. Antes do Éden, de Arthur C. Clarke (conto)
  20. Ao Centro do Cometa, de Arthur C. Clarke (conto)
  21. Encontro ao Amanhecer, de Arthur C. Clarke (conto)
  22. Fora do Berço, em Órbita para Sempre..., de Arthur C. Clarke (conto)
  23. Grupo de Salvamento, de Arthur C. Clarke (conto)
  24. Quem Está Aí?, de Arthur C. Clarke (conto)
  25. Respire Fundo, de Arthur C. Clarke (conto)
  26. As Borboletas, de Edmund Cooper (conto)
  27. Dia de Juízo, de Edmund Cooper (conto)
  28. O Menhir, de Edmund Cooper (conto)
  29. O Enigma de Andrômeda, de Michael Crichton
  30. Vox, de Christina Dalcher (7x)
  31. Espera Agora pelo Ano Passado, de Philip K. Dick (2x)
  32. Nas Asas do Tempo, de Diana Gabaldon
  33. Uma Coisa Absolutamente Fantástica / Uma Coisa Absolutamente Incrível, de Hank Green (10x)
  34. Aqueles que se Afastam de Omelas, de Ursula K. Le Guin (conto)
  35. Nunca me Deixes, de Kazuo Ishiguro
  36. Flores para Algernon, de Daniel Keyes
  37. Quando as Estrelas Caem, de Amie Kaufman e Meagan Spooner
  38. Celular, de Stephen King (2x)
  39. A Balada do Black Tom, de Victor Lavalle (3x)
  40. Justiça Ancilar, de Ann Leckie
  41. Solaris, de Stanislaw Lem
  42. A Floresta Sombria, de Cixin Liu
  43. Os Contos Mais Arrepiantes de Howard Philips Lovecraft, de H. P. Lovecraft
  44. Criaturas da Noite, de Marie Lu
  45. Jovens de Elite, de Marie Lu
  46. Love Star, de Andri Snær Magnason
  47. Wild Cards, org. George R. R. Martin
  48. Omega, de Jack McDevitt
  49. Anjos Partidos, de Richard Morgan
  50. Destiny’s Road, de Larry Niven
  51. O Dom da Lágrima, de Thomas Oden
  52. Quem Teme a Morte, de Nnedi Okorafor (2x)
  53. The Night Masquerade, de Nnedi Okorafor
  54. 1984, de George Orwell
  55. Medo Clássico, vol. 2, de Edgar Allan Poe
  56. Boneshaker, de Cherie Priest
  57. Clementine, de Cherie Priest
  58. Dreadnought, de Cherie Priest
  59. Ganymede, de Cherie Priest
  60. Jacaranda, de Cherie Priest
  61. Tanglefoot, de Cherie Priest (conto)
  62. The Fiddlehead, de Cherie Priest
  63. The Inexplicables, de Cherie Priest
  64. Máquinas Mortais, de Phillip Reeve (2x)
  65. A Praga, de A. G. Riddle
  66. A Cidade Perdida, de James Rollins
  67. Amnésia, de Jennifer Rush
  68. A Noite dos Mortos-Vidos, de John Russo
  69. Ar, de Geoff Ryman
  70. Frankenstein, de Mary Shelley
  71. A Nuvem, de Neal Shusterman
  72. 20 Mil Léguas Submarinas, de Jules Verne
  73. Viagem ao Centro da Terra, de Jules Verne
  74. Artemis, de Andy Weir
  75. A Guerra dos Mundos, de H. G. Wells
  76. A Máquina do Tempo, de H. G. Wells
  77. Marcas da Guerra, de Chuck Wendig
  78. The Underground Railroad: Os Caminhos Para a Liberdade, de Colson Whitehead
  79. Interferências, de Connie Willis (2x)
  80. Sign of the Unicorn, de Roger Zelazny
Não-ficção portuguesa:
  1. José Saramago - Rota de Vida, de Joaquim Vieira (2x)
Não-ficção internacional:
  1. 21 Lições Para o Século 21, de Yuval Noah Harari
  2. Homo Deus, de Yuval Noah Harari
  3. Minha Noite no Século Vinte e Outros Pequenos Avanços, de Kazuo Ishiguro
Novembro vem muito na sequência de meses anteriores. Ainda sem o grupo leiturtugas a funcionar, e ainda sem contributos aqui da Lâmpada, os seis comentários a ficção portuguesa voltaram a ficar bem abaixo dos 10 que me parecem o mínimo aceitável, e a maioria debruçou-se sobre livros que só roçam ao de leve pela ficção científica. Mesmo assim, se contarmos também com as duas críticas de imprensa a uma biografia de um certo autor nobelizado que escreveu FC e coisas próximas à FC, já temos um número que começa a ser razoável. Em todo o caso, isto irá começar a melhorar no próximo mês, espero. Pelo menos a Lâmpada irá dar um contributo para que melhore.

Quanto ao Brasil, o número de títulos comentados, 22, é algo enganador, pois 8 desses títulos correspondem a contos e vieram aqui da Lâmpada. Mesmo assim, os 14 que sobram constituem uma boa melhoria relativamente aos 10 do mês passado (que sem a Lâmpada seriam só 9). Destaque para Luiz Bras, com 7 comentários a 7 títulos, todos vindos da Lâmpada e todos contos, para Day Fernandes, que graças a uma campanha de marketing (livros enviados para leitura) conseguiu obter 3 comentários a um só livro e para Diedra Roiz, também com 3 comentários mas a outros tantos livros.

A ficção traduzida tem menos 8 títulos do que no mês passado: 80. Mas isto não quer necessariamente dizer menos comentários, pois dois desses títulos, sozinhos, somaram 17 comentários. Sim, dois títulos de ficção traduzida foram tão comentados como toda a ficção brasileira que não passou pela Lâmpada e receberam quase o triplo dos comentários dedicados à ficção portuguesa. Se isto não é revelador, não sei o que será. São esses títulos o romance de Hank Green, que se no mês passado já tinha batido recordes com 9 comentários este mês voltou a batê-los com 10, e a distopia de Christina Dalcher, alvo de 7 opiniões.

Além destes dois autores, destaque também para Arthur C. Clarke, alvo de 10 comentários a outros tantos contos, Cherie Priest, alvo de 8 comentários a outras tantas obras e Margaret Atwood, alvo de 4 comentários distribuídos por duas obras. Tanto Clarke como Priest devem estes números a uma única pessoa cada. No caso de Clarke, foram passados em revista os contos que influenciaram o clássico 2001; no de Priest foi lida e comentada uma série completa.

E para o mês que vem haverá mais, embora talvez um pouco mais tarde, que o início do ano é época de muitos balanços.

Lido: Por Ti, Pequenina

Não sei se Por Ti, Pequenina foi conto escrito na mesma altura de Frio, Cada Vez Mais Frio, eventualmente parte do mesmo desafio (sei que a Carina Portugal participou num projeto que tinha numa das vertentes a produção de ficções sujeitas a tema e é possível que esta história esteja relacionada com isso). Mas parece-me claro que, quer tenha sido separada no tempo, quer seja contemporânea, a inspiração é idêntica.

De novo temos um tom delicodoce, a aproximar-se perigosamente da lamechice, uma criancinha moribunda e um brinquedo animado de uma vida secreta. Mas este conto pareceu-me um pouco melhor, por conseguir evitar até certo ponto algumas das armadilhas que este tipo de história tende a armar a quem as faz. Não muito melhor, até porque as tais fragilidades na escrita da autora continuam a cá estar, mas um pouco. O final é menos previsível, por exemplo, e o tom de tragédia, que também aqui é pesado, acaba por ser um pouco aliviado. Este é um conto mediano, bastante pior que o antecedente mas melhor que alguns dos outros contos do livro.

Textos anteriores deste livro:

quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

Lido: The Last Akialoa

A Fantasy & Science Fiction tem o costume de fazer anteceder as histórias que publica por pequenas introduções escritas, presumivelmente, por um ou outro dos editores. Costumam ter alguma utilidade para enquadrar os textos que introduzem, embora por vezes sejam um pouco redundantes. E de outras vezes, mais raras, são algo discutíveis.

Esta, por exemplo, é algo discutível. Começa por aconselhar os puristas a passar à frente, e explica que o faz porque esta história de Alan Dean Foster não é nem ficção científica nem fantasia, uma vez que se podia perfeitamente passar hoje.

E eu, provavelmente por não ser purista, discordo. The Last Akialoa é uma história passada numa região de chuva intensa e persistente numa das ilhas havaianas, um pântano situado na caldeira de um vulcão extinto. As personagens são ornitólogos (e um guia) que penetram nessa região à procura de uma ave que se julga poder estar extinta, o akialoa. Problema: expedições anteriores resultaram invariavelmente no desaparecimento e presumível morte de parte da expedição, porque as condições são de tal forma inóspitas que nem as comunicações modernas lá funcionam nem a tecnologia de busca e salvamento lá consegue chegar com um mínimo de eficácia.

E já sem contar com uma cena, perto do desfecho, que pode perfeitamente servir para enquadrar esta história tanto na fantasia (se for essa a perspetiva do leitor) quanto no fantástico todoroviano (pois existe uma clara ambiguidade quanto à realidade ou irrealidade do que é descrito), uma coisa é certa: existe um elemento claro de tensão e morte iminente que pode perfeitamente ser encarado como horror psicológico, e existe uma referência que me pareceu igualmente clara a um conto de ficção científica de Bradbury, A Longa Chuva. Pelo que a inclusão da história numa revista como esta faz todo o sentido. Nada a ver com a crónica de viagem da outra senhora num dos números da Paradoxo (e esta devem contar-se pelos dedos duma mão os que entenderão).

Mas isso, no fundo é secundário. O que é realmente importante é saber se o conto é bom. E a meu ver até é, mas não muito. Consegue criar a atmosfera de tensão pretendida, é contado com a mão segura de um autor carregadinho de experiência, mas falta-lhe um certo... como explicar? Falta-lhe conseguir que o leitor (ou este leitor, pelo menos) mergulhe realmente na história, se interesse realmente pelo destino das personagens e/ou pela descoberta que estas pretendem fazer. E falta-lhe também ser menos previsível, pois o desfecho vai tendo demasiados prenúncios ao longo da narrativa.

Contos anteriores desta publicação:

terça-feira, 4 de dezembro de 2018

Lido: Ministério da Verdade

E para concluir o livro, uma pequena narrativa metaficcional, na qual Luis Bras, autor, se converte também em Luis Bras, personagem.

E este Ministério da Verdade é mais um pequeníssimo conto de ficção científica. Bras, personagem, está a escrever as últimas palavras do livro quando recebe um aviso no écran a informá-lo de que tudo não passa de um glitch cósmico. E assim, muito dickianamente mas com uma economia de palavras que é mais uma vez notável, põe em causa a realidade, incluindo a própria realidade do leitor. A realidade consensual, no fundo.

E bom, é? Bem, não creio que funcionasse noutro contexto qualquer: é daqueles contos intimamente ligados à publicação a que pertencem. Mas no contexto deste livro funciona em pleno; parece-me que dificilmente se conseguiria arranjar melhor forma para lhe pôr ponto final. Portanto sim, é bom.

Textos anteriores deste livro: