terça-feira, 30 de abril de 2013

Lido: Missa do Galo

Missa do Galo, de Machado de Assis, é um conto que tem muito pouco a ver com uma missa do galo. Contado na primeira pessoa por um rapaz de dezassete anos, membro da alta burguesia brasileira da segunda metade do século XIX, fala de uma tal D. Conceição, mulher de um homem que era viúvo de uma prima do narrador e que traía semanalmente a mulher, "indo ao teatro". A ida ao teatro era, claro, um eufemismo que Conceição aceitava com bonomia. Tanto o eufemismo como a traição, aliás. Toda esta situação é descrita em largas e rápidas pinceladas, para se chegar ao que a Assis interessa: a noite de Natal em que Conceição e o narrador (que está alojado em sua casa) entabulam uma perturbadora conversa carregadíssima de tensão sexual, madrugada fora, enquanto este espera uns amigos com os quais combinara ir à missa do galo. É um conto muito curioso pela justaposição da festividade católica, cheia da moral, bons costumes e o mais que as festividades católicas costumam trazer consigo (pelo menos na aparência), ao desejo carnal praticamente explícito, embora não satisfeito. Assis, no entanto, elabora o conto por forma a manter tudo muito subtil.

Ajuizando por esta amostra, Assis é bem capaz de merecer ser muito melhor conhecido do que é deste lado do Atlântico (o que até está a ser feito atualmente, com a inclusão de vários dos seus livros no Plano Nacional de Leitura).

Conto anterior deste livro:

Lido: À Procura do Sr. Green

À Procura do Sr. Green é um conto de Saul Bellow sobre um homem, trabalhador da Segurança Social, que recebe a tarefa de encontrar um tal Sr. Green para lhe entregar um cheque que o beneficiário não tinha ido receber ao lugar próprio. É um conto quase neorrealista, pois Bellow utiliza a busca para nos falar das vidas daquela massa paupérrima, esmagadoramente negra, desconfiada de qualquer forma de poder, que habitava em meados do século XX nas zonas pobres de Chicago. Pois o protagonista bem procura mas ninguém conhece o Sr. Green, ou ninguém afirma conhecê-lo, como se houvesse uma condição de quase clandestinidade na miséria urbana, para a qual o estranho, e, pior, o estranho branco, é visto como ameaça mesmo quando traz consigo um cheque. É um conto duro, mesmo contado com a suavidade que Bellow emprega, um conto que fala de racismo e pobreza, sem falar explicitamente de racismo e só falando de pobreza de uma forma algo oblíqua e é, parece-me, um conto bastante bom. Também por isso.

Contos anteriores desta publicação:

Lido: A Expedição dos Mortos

A Expedição dos Mortos (bib.) é uma noveleta de um certo Joachim Hunot, pseudónimo pulp de uma tal Ana Sofia Casaca, ela própria, provavelmente, pseudónimo de alguém. A história, aventureiresca e cheia de acção, como convém, é um pastiche das ficções pulp de meados do século XX e mistura um vago lovecraftismo com um ambiente e um enredo muito reminiscente dos filmes do Indiana Jones. Resumidamente, a noveleta começa em Lisboa, onde se desenrola uma competição entre várias agências secretas pela captura de um homem, académico, cujo objeto de estudo é o Necronomicon. A ideia é este vir a ser útil na recuperação do livro, que teria sido localizado algures em Goa. Segue-se a expedição a que o título faz referência, um velho templo arruinado com as armadilhas mortíferas a que o velho Indiana tão bem se escapava, etc., tudo temperado com reviravoltas, traições e cenas de pancadaria q.b.

Clichés com fartura, portanto, como seria de esperar. O próprio texto, também como seria de esperar, mostra fragilidades e ingenuidades, embora não seja propriamente mau. E tudo somado, estamos em presença de mais um bom pastiche, dotado de precisamente as qualidades e defeitos da verdadeira pulp fiction. Não posso dizer que tenha gostado, e não vale a pena explicar mais uma vez porquê, mas julgo que cumpre o objetivo de forma inteiramente satisfatória.

Conto anterior deste livro:

Lido: Flores Para o Zé da Naia

Flores Para o Zé da Naia é uma história biográfica de António Cabral sobre um tal Zé da Naia, cidadão português que, como tantos outros, após uma infância campestre nas terras do Douro, se derramou pelo mundo, em parte de moto próprio, em parte por força de imposições alheias. O conto retrata essa vida em traços largos, como não podia deixar de ser num texto curto, concentrando-se em meia dúzia de episódios, usando-os para mostrar o homem, os ambientes e a evolução de valores e circunstâncias que a interação com estes vai causando naquele. Uns no Douro, outros em Moçambique, durante a guerra, outros na Amazónia brasileira onde o Zé da Naia acaba por estabelecer-se "para ganhar dinheiro". Pareceu-me bastante bom, apesar de, de novo, não ser o tipo de texto que mais costuma agradar-me. Gostei principalmente da estrutura não linear, das deambulações pelo tempo como quem, numa conversa, rememora andanças passadas sem ligar grande importância à sequência cronológica. Também gostei do português, apesar de lhe ter encontrado uma ou outra falha, umas vírgulas fora do lugar, coisas assim. Mas nada de importante.

Textos anteriores deste livro:

Dez anos

Hoje, a Lâmpada faz dez anos. Uma década inteira a blogar sobre o que me foi dando na realíssima gana. Ao todo, mais de 2600 mensagens, incluindo contos, poemas (ou algo de semelhante), parvoíces, muitas notas e opiniões de leitura, algumas opiniões sobre outras coisas que não a leitura, algumas alegrias, alguns desesperos, momentos de júbilo, momentos de indizível tristeza. Da mensagem de abertura, pouco resta; o blogue e o seu conteúdo foram mudando com o tempo, a pouco e pouco mas continuamente. Do homem que a escreveu resta o núcleo, ou se calhar mais do que isso. Não sei bem. Digam vocês.

Durará a Lâmpada mais dez anos? Não faço a mínima. Nem sei se eu duro mais dez anos, quanto mais a Lâmpada.

Quando chegar 30 de abril de 2023 logo se verá.

Até lá.

Ou não.

quinta-feira, 25 de abril de 2013

Ismos dos tempos que correm

Nos tempos que correm, é assim.

Diz o otimista:
— Isto é capaz de vir a dar merda.

Diz o realista:
— Isto vai dar merda.

Diz o pessimista:
— Isto vai dar muita merda!

Depois há os doidos varridos, três ou quatro, que dizem:
— Isto está tudo a correr bem.

Viva o...


Porque hoje, mais do que nunca, é fundamental recordarmos e, mais ainda, reavivarmos a nossa bela revolução e os valores da liberdade, democracia e justiça social que a moveram e que tão violentamente têm vindo a ser atacados, sinto a obrigação de expressar aqui bem alto o meu intransigente grito de

VIVA O 25 DE ABRIL!

quarta-feira, 24 de abril de 2013

Só especula quem não sabe; quem sabe informa

O David Soares, caturra ortográfico dos mais ferrenhos, publicou hoje um texto que se compõe de um excerto razoavelmente longo de um dos seus romances, "sem AO", segundo afirma, e de uns considerandos prévios à coisa. Nestes considerandos convida os leitores "à especulação de imaginarem como ficaria o texto que se segue vertido em "acordês"."

Só especula quem não sabe. Como eu sei, posso-lhe dizer precisamente como o texto que lá pôs ficaria vertido na nova ortografia. Podia colocá-lo aqui, inteirinho, com todas as 911 palavras, mas ele era capaz de se chatear. Ele é assim, chateadiço, como todos os caturras. Portanto não o vou fazer. Vou só dizer-lhe exatamente quantas e quais palavras mudariam se ele tivesse usado a nova ortografia. E o resultado é...

(rufo de tambores)

Cinco. Ou quatro, dependendo de como se conta. Ou até três. A lista completa, e sublinho completa, é:
  1. Infetada, em "como quem esvurma uma ferida infectada";
  2. Pelo, em duas frases: "e os torrões que se lhe grudaram no pêlo emprestaram-lhe um semblante pagão" e "sacudindo os grãos de terra que lhe polvilhavam o pêlo";
  3. Caráteres, em "de corpos e carácteres despidos." Mas atenção, que a supressão do c nesta palavra não é obrigatória, portanto ela podia ficar tal e qual como o David Soares a escreveu;
  4. Hemorroidas na frase "Castiguei os filisteus com ratos e hemorróidas."
Cinco, ou quatro, ou três palavras em 911. Dá, quê?, uns 0.5%? Na melhor das hipóteses?

Realmente, o "acordês" é uma catástrofe do caraças, pá! Caneco! Convenci-me!

Mas o que mais vontade de rir me dá, e confesso que soltei uma gargalhada, é o David Soares não usar a ortografia de 43. Usa uma ortografia sui generis, lá dele, mas não usa a ortografia de 1943. É que se usasse a ortografia de 1943 não teria escrito "hás de morrer e ressuscitar, numa das minhas vomições", pois a ortografia de 1943 obrigava ao uso do hífen em "hás-de", cretinice ortográfica que só foi corrigida com o AO90 que o caturra Soares diz não usar. E tampouco escreveria "mas eu não pedi para ser feito, ò Deus", pois aquele "ò" é, simplesmente, um erro ortográfico. Sim, um erro ortográfico. É que existe a interjeição "oh", que indica dor, espanto, etc., e a interjeição "ó", que invoca, e que seria o que o Soares deveria ter ali usado. "Ò" também existe, mas é uma coisinha popularucha, contração informal de "ao", como na frase "eu fui ò mercado". É usada pela mesma gente que diz "prontos, tá bem" e coisas assim. Não pela malta das "vomições."

Em suma, o trecho com quase 1000 palavras que o caturra Soares usa para mostrar às pessoas como ficaria morto como escritor se por acaso passasse a usar a abominação da nova ortografia (acha-a "inconciliável com a [sua] voz autoral, animada por um léxico muitíssimo específico, tão arcano quanto neológico", o que também me fez rir), tem 3 palavras que seriam obrigatoriamente diferentes na nova ortografia, as quais usa um total de 4 vezes, mais 1 palavra que só alteraria se quisesse, mais 1 palavra que alterou mas não devia caso quisesse recusar liminarmente a nova ortografia e ainda 1 erro ortográfico.

De facto, concordo: isto é absolutamente exemplar.

Editado: Chamaram-me a atenção para que "carácteres" também é um erro ortográfico. Toda a razão. O plural de "carácter" é "caracteres", já na ortografia pré-AO, e quem decidir suprimir o c passa a escrever "caráter" e "carateres". Pessoalmente, não gosto, mas é assim. O que torna tudo isto ainda mais exemplar. O Soares conseguiu escolher um trecho com pouco mais palavras mutáveis na nova ortografia do que erros ortográficos dele. É proeza.

O Infinitamente Improvável apresenta...

Sim, sim, bem sei que já passa da meia-noite. Mas não dormi ainda, portanto para mim ainda é ontem... digo... hoje, 23 de abril de 2013. Dia mundial do livro e do direito de autor. Dia ideal, portanto, e cá na minha forma irreverente de ver as coisas, para apresentar aos meus leitores lampadinos que não têm contacto comigo por outras vias (sim, porque para esses isto já nada tem de novidade) esta edição que veem aqui ao lado, gratuita, com os direitos regidos por uma licença creative commons: Improbabilidades de Tempo Chuvoso 2012/2013 de seu improvável título, uma compilação dos contos publicados no Infinitamente Improvável entre outubro de 2012 e março de 2013 e...

... e de um artigo, meu, inédito e exclusivo, que versa sobre coisas muito relevantes para um dia do livro e do direito de autor, motivo pelo qual decidi fazer este post aqui hoje... ou ontem... enfim, vocês entendem. Passei o dia todo a trabalhar (e às voltinhas pela cidade a servir de chofer à família), não tive tempo, etc., patati e patata. Tenho essa desculpa pelo atraso de uma hora e picos, e acho que é boa. Adiante.

Eis alguns excertos para perceberem porque acho o artigo relevante. Por exemplo, ele começa assim:
Se alguma coisa nos ensina a pirataria é que a nova paisagem digital não espera por retardatários. As coisas acontecem à velocidade das redes interconectadas de que se vai construindo rapidamente o futuro. E a nossa escolha é só entre aceitarmos esse facto como algo tão banal como a probabilidade de nos chover em cima ao sairmos para a rua, ou tentarmos fechar-nos e às nossas coisas em cofres, cofrezinhos e cofrezões em que alguém, algures, irá acabar por arranjar maneira de entrar se tiver nisso interesse suficiente.
E se o que fizermos for bom, alguém acabará de certeza por ter nisso interesse suficiente.
Esta é uma lição que o mundo da literatura está prestes a aprender. [...]
Mais à frente, digo isto:
É certo que é no mínimo violentamente antiético estar-se a pôr e a dispor do fruto do trabalho dos artistas sem autorização ou até conhecimento destes, causando-lhes muitas vezes prejuízos de monta, mas também é certo que há fartura de casos de abuso, pela parte empresarial da indústria, das boas ideias que estão por trás dos direitos de cópia. Nada é simples. No admirável mundo novo da cultura digital, tudo é complexo e multifacetado e ninguém consegue ter consigo toda a razão.
E mais à frente...
Ou seja: o risco aparente que a disponibilização das coisas em digital encerra, o de que seja muito fácil roubá-las, é bastante menor do que parece à primeira vista e menor se vai tornando à medida que elas se disseminam. A cópia, por paradoxal que pareça, protege o autor. Especialmente se for uma cópia ética, com a autoria e a proveniência devidamente identificadas. A reutilização de ideias, ambientes e personagens, se devidamente identificada, também. Mas a grande maioria dos autores não tem disto uma compreensão completa.
Já perceberam. Eu sei que já.

Mas além deste artigo há mais motivos de interesse na antologiazinha. Um conto do Gerson Lodi-Ribeiro, um dos grandes escritores de FC do Brasil, um conto meu, mais um conto potente do Miguel Hernâni Guimarães e dois continhos do João Ventura com a sua habitual mistura de ironia e economia de meios. É possível que já os tenham lido, ou que prefiram lê-los na web. Tudo bem. Nesse caso, têm no artigo a vossa desculpa para baixarem o elivro para os vossos sistemas. Está aqui, por cima da primeira destas compliações, em formatos EPUB e MOBI.

Boas leituras. E boas reflexões, também.

segunda-feira, 22 de abril de 2013

Argos 2013

Muitos de vós provavelmente não saberão disto, mas existe um prémio literário de ficção especulativa (ficção científica e géneros afins, se o termo vos confunde) em língua portuguesa. Chama-se Argos, é atribuído pelo Clube de Leitores de Ficção Científica, no Brasil, e destina-se a premiar as melhores obras do ano anterior escritas em língua portuguesa.

Sim, isso mesmo: inclui não só as brasileiras, mas também as portuguesas. E as angolanas, moçambicanas, guineenses, etc., etc., se as houver e delas chegar aos votantes sinal.

Os premiados são escolhidos pelos sócios do CLFC, o que causa um natural enviesamento visto que a esmagadora maioria dos sócios do CLFC é brasileira. Mas nem todos o são: o clube não impõe restrições de nacionalidade a quem quiser fazer-se sócio, portanto o material do lado de cá não é totalmente destituído de possibilidades.

O prémio é atribuído em duas categorias: ficção curta e ficção longa. Ou seja: contos (o que vai do mini-conto à novela) e romances.

O ano passado não foi muito prolífico em termos de publicação de material meu. As ficções muito curtas têm dificuldades em impor-se neste tipo de prémio, e a maioria do que publiquei integra-se nessa categoria. Além disso, as exceções estão, na minha opinião abalizada, algo abaixo do meu melhor: Uma História Verdadeira, Segundo Quem a Contou e Quem Quer ser Super-Herói? Mas se acharem que alguma destas histórias vale o vosso voto, não serei eu que vos irei demover.

Relativamente a obras alheias que publiquei, há mais algumas histórias com dimensão para poderem, eventualmente, ter alguma possibilidade de entrar na competição. Eis a lista:

Decepções da Paternidade, de Miguel Hernâni Guimarães;
Variável da Imponderabilidade, de Tibor Moricz;
O Pacto Macabro da Velha Antonha, de Afonso Luiz Pereira;
A Rapariga de Areia, de G. B. Nunes;
Terra Brasilis, de Gerson Lodi-Ribeiro.

Se acharem que alguma (ou várias, quiçá) destas histórias vale o vosso voto, não se façam rogados. E se não sabem porque ainda não as leram, estão à espera de quê?

Vai o pau

Vai o pau
Vem o pau
Trau!
Mas que mau!

Olhò degrau
Voò calhau
Au!
Que recacau!

Nem carapau
Nem bacalhau
Só de varapau!

Ou noutro grau
Não tão mau
C'um berimbau.


Porquê isto, perguntam vocês? Porque me apeteceu, ora. E haverá mais algum motivo realmente válido?

sexta-feira, 19 de abril de 2013

Uma minúscula janelinha sobre um grande território

Esta imagem que aqui veem ao lado é a capa da Antologia Fénix, Volume I, uma antologia de vinhetas e mini-contos, em ebook, que pode ser descarregada ou lida aqui. Tenho lá uma vinhetazinha, concluída em menos de uma hora de trabalho total, entre conceção, escrita e revisões. Provavelmente precisaria de mais algum tempo para ficar inteiramente a meu gosto, mas o prazo era curtíssimo, o espaço também, e não deu para melhor.

Para já.

Nada me impede de fazer uma segunda versão. Ou uma terceira, ou as que forem precisas.

É uma história de ficção científica, intitulada Miel Lê, sobre... alguém que lê. Mas a leitura do Miel não é exatamente a leitura que vocês estão a fazer agora, muito menos aquela que fazemos todos quando tiramos os olhos de écrans e os fazemos cair sobre papel. É outra coisa.

Uma hora, disse-vos eu? Sim, foi uma hora, mas não está nessa hora contida toda a história. É que aí só cabe uma minúscula parte de um todo muito, muitíssimo, maior.

Acontece que há anos ando a desenvolver aos poucos um cenário de FC bastante vasto, distribuído por vários mundos e até por várias estrelas. Ainda me falta arranjar um bom nome para esse universo; por vezes parece que já está, de outras surge-me outra ideia que me parece melhor, mas pouco depois já não a acho grande coisa e volto à primitiva. Ou a outra. Mas o nome é o menos; há bastante worldbuilding já feito e até várias histórias ambientadas nesse cenário, umas já parcialmente passadas a texto, outras ainda exclusivamente guardadas no grande e empoeirado baú de histórias que é esta minha cabeça. Mas até este momento eram todas histórias razoavelmente grandes. E isso comigo significa que levam eternidades a ficarem concluídas. Ou seja: ainda não concluí nenhuma.

Até este momento. Miel Lê — curiosamente a primeira ideia que tive para uma história passada no planeta Bemia... que foi um dos primeiros a serem caracterizados — inaugura a fase de revelação. Talvez seja um estímulo para me dedicar mais às outras.

E uma delas até é romance e tudo...

Lido: Last Unicorn

Last Unicorn é um curto poema de Jane Yolen sobre a solidão do último unicórnio de que o título fala. Não posso dizer quase nada sobre este texto sem o desvendar por completo, mas suponho que já o título sugere que se trata de um poema sobre o fim. E é verdade. É um poema sobre o fim, que tem o condão de não se referir apenas ao fim da espécie dos unicórnios, mas tem uma abrangência bastante mais lata. Há condição humana ali misturada. Gostei bastante.

Textos anteriores deste livro:

Lido: De Como Fiz a Minha Iniciação Desportiva, Hesitando Entre a Arte de Guarda-Redes e a de Pedróbolo da Quinta do Lopes

De Como Fiz a Minha Iniciação Desportiva, Hesitando Entre a Arte de Guarda-Redes e a de Pedróbolo da Quinta do Lopes (ufff!) é uma divertida historieta de Fernando Assis Pacheco, provavelmente autobiográfica, sobre... bem, sobre o que o título informa: a iniciação do narrador, adulto coimbrão que fala dos tempos de puto coimbrão, na nobres artes de defendedor das balizas improvisadas típicas do futebol de rua e de arremessador de calhaus à gataria da zona. Memórias de infância, possivelmente algo romanceadas, mas escritas com piada, verve e uma certa ternura nostálgica por um tempo que já não volta. Aprovado.

Textos anteriores deste livro:

quinta-feira, 18 de abril de 2013

Lido: O Suave Milagre

O Suave Milagre é um conto bíblico e levemente fantástico, variante milagreira, de Eça de Queirós. Ambientado na Palestina da época de Jesus, é uma daquelas histórias com moral clara, que descreve a busca de três pessoas, cada uma com a sua necessidade, e cada uma com as suas circunstâncias, por um tal Jesus, rabi famoso, que ainda não era Cristo mas já tinha fama de milagreiro, capaz de curar qualquer mazela. Uma dessas pessoas, riquíssima. A outra, poderosíssima. A terceira, nem uma coisa nem outra. E quem souber algo sobre a mitologia cristã logo compreende onde o conto vai dar. E é essa, precisamente, a sua maior fragilidade: a ausência de qualquer surpresa, do mínimo sinal de algo inesperado. Porque de resto está bem escrito, ainda que talvez não tão bem escrito como seria de esperar de Eça, e bem concebido e executado. É um bom conto. Mas...

Lido: Porque Vivo no Posto dos Correios

Porque Vivo no Posto dos Correios é um conto de Eudora Welty, escritora americana (e sulista) que eu desconhecia por completo. Trata-se de uma comédia de costumes, contada na primeira pessoa por uma rapariga filha de boas famílias do Sul americano, obviamente branca e claramente estúpida. O estilo é curioso, centrado na expressão oral, ainda que a tradução não lhe tenha feito justiça (mais que provavelmente nem podia fazê-la) por aquele ser tão especificamente sulista, tão centrado nas peculiaridades linguísticas desse dialeto da língua inglesa. Mas a história que o conto relata é tão desinteressante que a curiosidade do estilo não conseguiu compensar esse desinteresse. Em duas penadas pode contar-se assim: a menina bem, que se tornou chefe dos correios duma aldeola do Mississipi por intermédio de cunhas, conta-nos o motivo por que foi viver para o posto dos correios. E o motivo é ter-se chateado com a família por causa de intriguinhas mesquinhas. E eu encolho os ombros e bocejo: quero lá saber.

É provável que este conto em inglês resulte bastante melhor do que na tradução portuguesa. Nesta, deixou-me totalmente indiferente.

Conto anterior desta publicação:

Lido: História de Gente Grada com Bandidos Pelo Meio

História de Gente Grada com Bandidos Pelo Meio é uma noveleta de António Cabral sobre andanças e desandanças sociais na alta sociedade duriense do século XIX. Exclusivamente histórica, a noveleta socorre-se de personagens e, pelo menos até certo ponto, julgo, de acontecimentos reais, para relatar com profusão de pormenores a tentativa do Duque de Saldanha, uma das mais poderosas figuras de todo o século XIX português, de combinar casamento entre o seu filho e a filha da Ferreirinha, célebre e riquíssima (e que parece estar a tornar-se também legendária) empresária vinícola duriense, empresa com a qual a empresária não está pelos ajustes. Bastante bem escrita, à parte uma ou outra vírgula a mais, e também bastante bem contada, se fecharmos os olhos a uma ou outra divagação que em nada enriquece o fluir da história, antes pelo contrário (em especial uma intromissão do autor na história, plena de nostalgia, sobre os barcos rabelos), é, pareceu-me, um bom conto que relata as peripécias, as insistências, as teimosias, os jogos de interesses, as promessas, as desilusões e até as sacanices que terão rodeado a frustrada tentativa de união.

Apesar de me parecer boa, esta não é das histórias que mais agrada ao meu gosto — não sou grande amigo de ficção histórica — mas o que menos me agradou foi algo que não creio que tenha a ver com gosto pessoal. Antes, é algo que já noutras histórias me incomodou e de que já aqui falei: a emulação dos escritores do passado.

É que esta história, publicada em 2005, se lê como algo escrito no século XIX. Não só o tema é oitocentista, como o próprio estilo o é, em boa medida. Ora, não creio que seja boa ideia estar-se a escrever hoje como se escrevia há mais de cem anos, a menos que se pretenda fazer um pastiche, o que não creio que seja o caso; de então para cá muita literatura passou por baixo das pontes, por assim dizer. E isso, julgo, diminui o valor das histórias. Portanto sim, creio que esta é uma boa história, mas não julgo que o seja muito.

Texto anterior deste livro:

domingo, 14 de abril de 2013

Lido: Glória e Morte

Glória e Morte é um excerto do romance Crónica dos Bons Malandros, de Mário Zambujal. Já tinha lido o romance, mas foi há tanto tempo, ainda na adolescência, que não guardo na memória mais do que uma sensação de leitura divertida e ágil sobre um grupo de pequenos criminosos lisboetas, tão cheios de bom coração como de azelhice. Pormenores sobre personagens, situações, ambientes, tudo o resto? Foram todos para o mesmo sítio onde se sumiram os anos que decorreram desde então. Por isso, de certa forma, ler este excerto foi como ler algo de novo.

O excerto corresponde ao início do nono capítulo do romance, no qual o bando de bons malfeitores dá um golpe no Museu Gulbenkian, de onde rouba uma porção de joias com o auxílio de um enxame de abelhas. Sucedem-se situações mirabolantes e, sim, bastante divertidas. Segundo a minha vaguíssima memória do resto, o excerto não poderia ter sido melhor escolhido para uma antologia de humor. Só peca por um pouco longo em demasia; tivesse acabado meia página antes, e funcionaria às mil maravilhas como história independente e tudo.

Textos anteriores deste livro:

Lido: Contos Assombrosos

Contos Assombrosos (bib.) é uma antologia de novelizações de episódios de uma série de televisão criada por Steven Spielberg, intitulada Amazing Stories, que foi para o ar entre 1985 e 1987. Parece ter passado na TV portuguesa, mas sinceramente não me lembro dela; se o fez, passou-me despercebida. Ao longo das suas duas temporadas, a série somou um total de 45 episódios, e neste volume estão novelizados 11 desses episódios.

São, portanto, onze contos, todos praticamente do mesmo tamanho, genericamente de horror ou de algo próximo, e todos adaptados por Steven Bauer a partir de histórias originais de uma variedade de autores, incluindo o próprio Spielberg. O resultado está muito longe de ser famoso, mesmo para o nível habitualmente fraco das novelizações. Vários destes contos são apressados, com uma transposição demasiado direta de argumento para algo de semelhante a literatura e outros, embora funcionem melhor, nunca chegariam a ultrapassar a mediania mesmo se não tivessem sido sabotados por uma das piores traduções com que me deparei até hoje. Mas foram. O que é ingrato, pois deixa no ar a dúvida sobre qual a principal origem de tão pouca qualidade: será a tradutora? Será Steven Bauer? Serão as histórias propriamente ditas, que raramente se escapam ao cliché?

Seja como for, não há volta a dar-lhe: este é um mau livro, por vezes péssimo, por vezes ridículo devido em boa medida às trapalhadas da tradução, que só a espaços consegue erguer-se um pouco do chão. Um pouco apenas.

Eis o que achei de cada uma das histórias:
Este livro foi comprado.

sábado, 13 de abril de 2013

Lido: Recordações de Família ou o Anjo da Guarda Prisional

Recordações de Família ou o Anjo da Guarda Prisional é um conto de Jacques Prévert, divertido, violentamente iconoclasta, anticlerical, sobre... bem... recordações de família. Provavelmente. No fundamental, trata-se de um conto surrealista que troça descaradamente com os mitos do cristianismo, e faz profusas alusões a episódios da vida de Jesus, ainda que bastante sui generis, os episódios ou as alusões, bastante deformados relativamente à forma como os padres os contam. E retrata uma infância e uma família vistas pelo espelho deformador e episódico do sonho (ou será do pesadelo?). Bem escrito (e bem traduzido), numa prosa rica de imagens inesperadas e paradoxais como convém às coisas surreais. Mas a verdade é que se acaba a leitura e fica pouca coisa além de uma sensação de tempo bem passado a ler não se sabe bem o quê. A história é, toda ela, tão absurda que pouco ou nenhum impacto causa. Exceto, imagino eu, àquelas pessoas que lambem os beiços e salivam abundantemente à simples ideia de escalpelizar sonhos, de arrancar às coisas significados que nelas julgam ocultos. Suponho que essas encontrarão aqui abundante material para horas de divertimento. Para mim, que não sou cultivador de tal passatempo, a coisa esgotou-se em minutos. Mas diverti-me, não há disso dúvida. E acho o conto bastante bom. Não para todos os gostos (imagino que um beato ficaria com a tensão perigosamente alta), talvez, mas para o meu sim.

Lido: Justiça do Acaso

Justiça do Acaso é um conto policial de Anthony Berkeley, do qual ainda não tinha lido nada. Trata-se de uma história policial bastante típica, mas também algo convoluta, cujo fulcro é uma caixa de chocolates envenenados que leva à morte, aparentemente casual, de uma mulher, deixando também o marido bastante doente. É uma daquelas histórias que funcionam como desafio às capacidades dedutivas do leitor (motivo que leva tantos dos fãs de policial a serem-no, afinal), e que vai seguindo a par e passo a investigação do detetive, neste caso um detetive amador que pega num caso que a Scotland Yard não consegue desvendar e, claro, o resolve. Não sou grande fã (nem conhecedor) do género, mas pareceu-me que o conto é eficaz no que pretende fazer. Não gostei muito, mas também não desgostei.

Conto anterior deste livro:

segunda-feira, 8 de abril de 2013

Lido: O Segundo Sol

O Segundo Sol (bib.), de um tal Ruy de Fialho (certamente pseudónimo de alguém, mas é mistério de quem), é uma história adequadamente pulp, entre o (retro)futurismo e a história de espionagem, sobre um hiper-super agente secreto chamado Jaguar Cabala (sim) que, em plena Segunda Guerra Mundial, se infiltra numa base nazi instalada no Alentejo (ah pois), onde uns tipos sinistros estão a desenvolver armas secretas para glória do fürer... e daí talvez não. A coisa mete espaço e tudo. Nada que nunca tenha sido escrito — até já houve filmes com ideias semelhantes — mas a localização lusitana é novidade.

Como já disse e repeti numerosas vezes, não gosto de pulp, com as suas histórias mal escritas, com os seus enredos repletos de chavões, com as suas personagens unidimensionais, e isso quando chegam a tanto. Mas como aqui estamos perante um pastiche, há que verificar se o pastiche está bem feito. E está. Muito bem feito, mesmo: a história é precisamente aquilo que se poderia esperar de uma verdadeira revista pulp editada lá pelos anos 40. Mau, mas bom. Ou vice-versa, nem sei bem.

Lido: O Prometeu Agrilhoado

O Prometeu Agrilhoado, de António Cabral, é uma novela fantástica que tem bastante em comum com um romance que li recentemente: O Centauro, de John Updike. Foi puro acaso, uma consequência dos malabarismos que eu faço com as pilhas de livros que tenho por ler, para evitar que colapsem sob o seu próprio peso e instabilidade. Mas a verdade é que também aqui temos a mitologia grega a irromper por uma situação bem afastada do Olimpo, desta feita uma região rural no Alto Douro em meados do século XVII. Embora esteja bem escrita, esta história soube-me a muito pouco. Em parte pelo mesmo tipo de limitação pessoal que já afetou o completo desfrute do romance de Updike: o meu deficiente conhecimento dos antigos clássicos gregos. O Prometeu Agrilhoado é uma peça de Ésquilo, e certamente que a identidade no título não é coincidência, certamente que Cabral a transpõe para o seu ambiente nortenho. Mas, não tendo lido a obra de Ésquilo, não posso sabê-lo com certeza.

Este é o grande mal, diga-se em jeito de parêntese, de toda a literatura centrada na referencialidade; se é só isso que contém, se não acrescenta qualquer coisa à sua condição de obra derivativa dos mestres do passado, basta que o leitor desconheça estes mestres — e ninguém é obrigado a conhecê-los — para a obra perder para ele boa parte do interesse.

Outro motivo por que a história me soube a pouco foi não lhe ter encontrado um fio condutor suficientemente sólido. A narrativa é dispersa, episódica, entrecortada por poemas em quadra popular, e nela surgem personagens quase fantasmagóricas de tal modo fraca é a sua caracterização. Não foi invulgar dar por mim a pensar "mas quem é este/a agora? Que faz aqui? De onde veio isto?" E isso fez com o texto nunca me prendesse. Fiquei com a sensação de que António Cabral pode não maltratar a língua mas é bastante fraco enquanto contador de histórias.

Talvez seja só sensação. Talvez seja só desta história. Tenho mais algumas neste livro para verificar se assim é ou não.

domingo, 7 de abril de 2013

Lido: Excerto de The Yiddish Policemen's Union

The Yiddish Policemen's Union é um romance de Michael Chabon, de que aparece um excerto no livro em que o encontrei por ter vencido o prémio Nébula em 2007. Trata-se de um romance em que os géneros se mesclam. É um romance policial ambientado num presente de história alternativa, em que a localidade de Sitka, no Alasca, é uma grande metrópole judaica. O excerto, que compreende os dois primeiros capítulos do romance, não permite saber muito mais do que isso relativamente à ambientação ucrónica. Mas, como é de regra nos romances policiais, mostra-nos um homicídio e os polícias que começam a investigação.

A ideia da publicação deste tipo de excerto é fazer nascer o apetite para a leitura do romance. Comigo não resultou por inteiro. É certo que gostei da prosa de Chabon, é certo que a achei rica e com qualidade e que o início da história me pareceu solidamente concebido, mas a verdade é que não me prendeu. Não me deixou em pulgas para ler o que se segue, mesmo tendo-me parecido que provavelmente gostaria do romance. Não é um início bombástico. O que, bem entendido, não diz praticamente nada sobre o romance; não é possível avaliar um romance por um excerto de doze páginas.

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sábado, 6 de abril de 2013

Lido: Excertos de O Que Diz Molero

O Que Diz Molero é a mais conhecida e reconhecida obra de Dinis Machado, e nesta antologia de humor que vou lendo está presente com três excertos, que também são o meu primeiro contacto com a prosa do autor (embora tenha cá por casa os seus policiais, assinados com o pseudónimo de Dennis McShade). O primeiro desses excertos é uma francamente divertida descrição de uma épica zaragata que terá tido lugar no bairro popular lisboeta onde parece passar-se toda a ação do romance. O segundo é como que um ensaio, uma dissertação em modo tasca, sobre o candente tema das tusas. Sim. O terceiro... sobre o que raio é o terceiro? Fiquei sem perceber; é uma confusão pegada, repleta de curvas e voltas e becos sem saída, uma daquelas histórias que se contam entre copos e se esquecem à velocidade a que o álcool evapora. São três excertos divertidos, em especial o primeiro, de um livro que parece valer bem a leitura. Talvez um dia...

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Lido: A Carta Roubada

A Carta Roubada (bib.) é um conto de Edgar Allan Poe que só consta do Bibliowiki porque surge com alguma frequência no meio das histórias fantásticas do autor, em edições de cariz fantástico. Trata-se, não de uma história fantástica, mas de um conto policial, centrado nas capacidades dedutivas de um indivíduo particularmente dotado, C. Auguste Dupin, antecessor dos grandes detetives da literatura policial. O conto é basicamente explanativo. O enredo resolve-se de uma penada, mas o conto prossegue com uma longa explicação, por vezes de caráter quase ensaístico, sobre a natureza humana e o raciocínio de que Dupin se socorre para resolver o mistério (uma carta comprometedora, roubada por uma alta personalidade a outra e usada pela primeira para chantagear a segunda até que Dupin a recupera). O mais curioso deste conto, para mim, é ver o quanto Sherlock Holmes deve a Dupin. Não se trata apenas do emprego da lógica dedutiva como principal motor da história. É também a incontestada superioridade do arguto detetive sobre os demais, o retrato dos agentes policiais como rústicos sem rasgo nem imaginação, e o ajudante/amigo, que serve principalmente de confidente, de interposta pessoa entre o detetive e o leitor, à qual o primeiro se confessa a fim de informar este último. Costuma chamar-se a histórias como esta "seminais", por servirem de semente de onde irá nascer uma árvore completa. Raramente são as melhores histórias do género a que dão origem, mas são sempre fundamentais para ele ser plenamente compreendido. É o caso.

Lido: Pol Pot's Beautiful Daughter (Fantasy)

Pol Pot's Beautiful Daughter (Fantasy) — e sim, o "(Fantasy)" faz parte do título — é uma noveleta de uma espécie de fantasia horrorífica, de Geoff Ryman, que nos apresenta uma filha fictícia do sanguinário ditador cambojano, a viver uma vida de luxo absoluto em 2004, com 18 anos. Sith, assim se chama a filha de Pol Pot, é uma ultrabeta que vive para fazer compras e se recusa a pensar no pai, no que o pai fez, nos generais que o ajudaram a fazê-lo e a que trata por tios, e que ignora por completo as condições em que o seu povo vive e aquilo por que teve de passar.

Mas de repente, surgem os fantasmas dos mortos. Aparecem-lhe em fotografias impressas por impressoras, surgem-lhe na televisão, telefonam-lhe. E, conjuntamente com um empregado de uma loja de telemóveis por quem se apaixona, os fantasmas vão obrigá-la a abrir os olhos, a crescer, e a encarar o passado de frente.

Esta é uma grande história. Uma história sobre o crime, a culpa e a redenção. Sobre a alienação e o consumismo, sobre a solidão, sobre o amor. E sobre a reconciliação, e o que é preciso fazer para que ela aconteça. Não só individuais, mas sobretudo coletivos, pois a filha de Pol Pot é uma representação dos filhos do velho Camboja dos massacres, da loucura e das guerras. Tudo nesta noveleta, aliás, tem conteúdo simbólico, às vezes muito forte. Há muito por baixo do enredo superficial, tanto que talvez não baste uma só leitura para captar todas as pequenas e grandes subtilezas que aqui se escondem. Mas basta para compreender a grande qualidade desta obra. Excelente.

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terça-feira, 2 de abril de 2013

Lido: Luísa Estrela

Luísa Estrela, de Nuno Bragança, é um excerto de um trabalho mais longo, o romance A Noite e o Riso, no qual o autor traça um retrato de uma prostituta. Bastante bem escrito, com um estilo ágil e escorreito, este texto parece-me, no entanto, muito mais triste e deprimente do que humorístico, o que é problemático quando o integram numa antologia de humor. É um pouco o que acontece também com o excerto de Luiz Pacheco que li há tempos, embora este último seja um caso ainda mais extremo do que o primeiro. No excerto de Bragança ainda há algumas situações capazes de fazer nascer um sorriso nos cantos dos lábios, embora não passem disso. Por vezes parece-me que os organizadores da antologia (Nuno Artur Silva e Inês Fonseca Santos, já agora) são de opinião que basta um texto ser transgressor para ser necessariamente humorístico. Se assim é, trata-se de um ponto de vista com o qual não concordo. Há transgressão seriíssima, há transgressão melancólica, há transgressão raivosa, há uma variedade de tipos de transgressão que têm pouco ou nenhum contacto com o humor.

E aqui há transgressão, e farta, há literatura, e boa, mas, à parte uma cena em que a Luísa Estrela, prostituta, expulsa um cliente de dentro de si porque ele começa a rir-se e ela julga que se está a rir do seu trabalho, parece-me não haver humor algum. Desespero há muito, e com diversas facetas. Mas humor? Não me parece.

Em todo o caso, li o texto com gosto. É interessante.

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A FC no II

... ou, para quem anda mal de siglas, a ficção científica no Infinitamente Improvável.

Sim, o II continua ativo. Sem submissões há bastante tempo, visto que o último conto que foi publicado, em meados de fevereiro, chegou logo a abrir o ano, há três longos meses, mas o site continua ativo. Na expetativa do que possa eventualmente aparecer.

Mas não é disso que quero aqui falar. É de FC.

Quando escrevi a proposta, deixei mais ou menos subentendido que haveria alguma preferência por contos próximos da ficção científica. Fi-lo de propósito, não só por preferência pessoal minha, mas também como desafio aos autores. Porque se é razoavelmente fácil escrever contos mágicos, em que se postulam mundos cujas regras de funcionamento estão limitadas apenas pela imaginação do autor, e se é algo mais difícil escrever contos que projetam para futuros ou outras realidades o que a ciência determinou ser plausível, ou pelo menos verosímil, escrever contos próximos da FC que lidem com o impossível parece situar-se numa estreita inteseção de mundos pouco compatíveis, exigindo bastante de quem escreve.

Foi em parte para despoletar essa exigência, para as pessoas não pensarem que eu iria querer coisas do género, que procurei estabelecer um intervalo razoavelmente amplo com os contos meus que escolhi para servir de balizas. A Injeção Financeira é um continho absurdista que sorri da linguagem, e Testemunhas também anda por essas zonas, ainda que seja um pouco mais chegado ao surrealismo e à fábula. Ambos tentam fazer humor, e ambos foram buscar inspiração a Mário-Henrique Leiria, que aliás é, também assumidamente, uma inspiração genérica para toda a ideia.

Mas decidi também mostrar mais ou menos que tipo de conto mais gostaria de receber com Pandorama. Este já mete uma criatura de outro universo, cosmologia, um contacto com outra inteligência e as dificuldades que ele acarreta. Tudo temas típicos da ficção científica. E, claro, o infinitamente improvável sob a forma da queda cosmológica, da transição entre universos.

Depois, recostei-me, à espera de ver o que apareceria. À espera de ver se me surpreenderiam. Foi sem grande surpresa que vi aparecer o terror sobrenatural de O Pacto Macabro da Velha Antonha, ou o realismo mágico de A Rapariga de Areia, etc. Contos que respeitam a proposta do II mas se enquadram em géneros ou subgéneros bem estabelecidos. Contudo, já foi com surpresa que vi chegar ficções científicas bastante clássicas, nas quais a improbabilidade infinita da proposta é usada de forma astuciosa pelos autores. Em especial duas.

A primeira foi Variável da Imponderabilidade, de Tibor Moricz, que postula uma sociedade impossivelmente misógina e centra nesse facto o conflito que faz mover o conto, mas depois desenrola a história segundo as regras da solidez conceptual e de verosimilhança típicas da FC pura e razoavelmente dura. A segunda foi ainda mais subtil, a tal ponto que senti necessidade de perguntar ao autor por que motivo achava que o conto se adequava à proposta do webzine — e também foi depois dela me aparecer que comecei a pensar neste artiguito. É que a história em questão, Para Cada Verdade as Suas Consequências, do Miguel Hernâni Guimarães é, toda ela, uma distopia de Lisboa em guerra, bastante sólida e totalmente verosímil no caso de toda esta coisa do euro e da União Europeia dar o berro com violência, uma história de FC de futuro próximo de um tipo que João Barreiros, por exemplo, já produziu algumas vezes. Guimarães respondeu-me que uma das personagens do conto nunca se deixaria apanhar numa situação como aquela, e que aí residia a sua obediência à proposta. E eu sorri, pensei com os meus botões "bem jogado, pá!", e aceitei-o. Mas aceitei-o com a consciência de que estava a aceitar o que é basicamente uma FC clássica, algo distante da minha ideia inicial para o zine. Ajudou eu ter gostado bastante do conto.

Estas histórias, no entanto, não são as únicas em que a ficção científica está presente. Há o já citado Pandorama, há um outro conto meu, Uma História Verdadeira, Segundo Quem a Contou, cuja ideia básica é inverter o velho chavão do bug-eyed monster que tanta escola fez na FC da Golden Age, pondo um insignificante mosquito como piloto aviador regressado duma catastrófica missão de ataque a um horrendo monstro com dois braços, duas pernas, instintos assassinos e uma gruta privativa (e que é baseada em factos reais, comigo no papel de monstro horrendo), há Terra Brasilis do Gerson Lodi-Ribeiro, conto ambientado num planeta Terra que se vê subitamente alterado de tal forma que todos os países, à exceção do Brasil, se esvaziam de homens e civilização e que também se desenrola como FC pura e dura após a infinita improbabilidade que dá o pontapé de saída ao enredo, há Decepções da Paternidade, também do MH Guimarães, que se passa num futuro (embora troce venenosamente do presente) em que a aprendizagem é praticamente instantânea e os professores foram substituídos por androides, há dois contos do João Ventura, que até são os que mais se aproximam do tipo de material que eu contava receber no zine, Sem Maneiras, conto que anda em volta de conceitos tão científicos como a explosão de conteúdos informativos e os buracos negros, e a piscadela de olho a Flatland que é Uma Notícia Geométrica, e há Cientista, de Fernando Soromenho, que recupera outro velhíssimo chavão da FC, o cientista louco, e as consequências imprevistas e altamente nefastas da sua atividade.

Estas sete histórias são as que melhor correspondem ao que eu esperava receber. Eu não chamaria FC a todas, mas a FC é em todas uma componente. Somando-lhes as duas de que falo acima, são nove histórias em que a ficção científica está presente, de um total de 17 histórias publicadas no zine. Basicamente metade, embora bastante mais de metade se em vez de número de histórias pensarmos em número de palavras. É que, para além do mais, são precisamente as histórias próximas da FC que são as mais extensas, o que não deixa de ser curioso.

E eu gosto que assim seja. Gosto de ser surpreendido, gosto de FC, gosto de quem aplica inteligentemente premissas e limites. Só tenho pena de, aparentemente, o poço ter secado. Se é seca provisória ou definitiva só adiante se verá.

Seja como for, é a vida.

segunda-feira, 1 de abril de 2013

Lido: Titanium Mike Saves the Day

Titanium Mike Saves the Day, de David D. Levine, é um conto de ficção científica bastante interessante. Contado de trás para a frente, do futuro mais longínquo para o mais próximo, revela uma série de historietas passadas ao longo de cerca de 120 anos, que têm como ponto de ligação serem de alguma forma protagonizadas por um tal Titanium Mike, fabuloso explorador do espaço. Nenhuma das façanhas deste legendário Titanium Mike é minimamente credível, e no entanto o mero ato de contá-las contribui para que as perigosas situações em que as demais personagens se veem envolvidas tenham uma solução feliz.

Para lá do detalhe estrutural de fazer avançar o conto do futuro para o passado, aproximando-o cada vez mais do presente, o que esta história tem de mais interessante é ser uma história sobre histórias. Ou melhor: sobre o poder das histórias. Sobre a capacidade inspiradora que elas possuem e que lhes confere um tremenda influência sobre a realidade, chegando mesmo, tantas vezes, a dar-lhes o poder de determinar o futuro. Porque trazem em si uma verdade mais profunda do que a simples verdade, talvez; pelo menos é essa a habitual explicação poética para o facto. Mas talvez seja mais acertado dizer que isso acontece porque nós, os humanos sapientes que tanto gostamos de as contar uns aos outros, evoluímos para lhes prestarmos atenção, pois tempos houve em que as histórias que contávamos uns aos outros à volta da fogueira ou abrigados numa caverna eram a única forma que tínhamos de transmitir informações e cultura.

Sim. Gostei bastante deste conto.

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Lido: Nenhum Dia na Praia

Nenhum Dia na Praia (bib.) é mais um conto de Steven Bauer a adaptar uma história de Steven Spielberg que, uma vez mais, nos leva para a Segunda Guerra Mundial e nos dá a conhecer um grupo de soldados prestes a entrar em ação durante a invasão de Itália pelas tropas americanas. Em especial um: um tipo estranho, que apesar de uma enorme vontade de se integrar é mantido à parte por ser bastante desastrado, socialmente falando mas não só. A história é um pouco como uma adaptação do velho conto infantil do patinho feio, pois o tipo marginal e desajeitado vai revelar-se um herói, embora para isso tenha de sofrer a mais radical das metamorfoses. O conto é assim duma espécie de terror ternurento, algo que Bradbury fez muitas vezes, e muito melhor. Como ideia não está mal, mas como execução não está bem, ainda que não seja fácil distribuir as responsabilidades pelas falhas da história pelo argumentista, pelo adaptador e pela tradutora. O certo é que o resultado final é desconexo e literariamente pobre, o que reduz bastante o prazer na leitura de uma história que, bem contada, poderia ser impactante.

Contos anteriores deste livro: