segunda-feira, 6 de setembro de 2004

Spam fiction (5)

O teu dia


Baseado num spam intitulado "Your day"


Acordas com o sol a bater-te na cara. É sempre a mesma coisa, pensas, farto de levar estaladas com mãos onde os dedos se escoam em labaredas. Dás um grito que ecoa nas vidraças. O sol assusta-se e foge, amarelo de medo.
Voltas-te para o outro lado. A tua mulher ressona, de boca aberta, fazendo estremecer as orelhas que se enrolam na cabeceira da cama, como todas as noites. Nunca conseguiste entender, nem nunca conseguirás (digo-to eu, que sei), como é possível que ela se sinta confortável com as orelhas naquela posição. Mas anos de ressonar em harmonia e uma série de conversas sobre o assunto ensinaram-te que sente. Fazer o quê?
Resmungas qualquer coisa que nem tu entendes. Depois suspiras tão profundamente que da boca te saem mosquinhas pequeninas. Esticas um olho, no topo de um pedúnculo, até conseguires espreitar o relógio despertador que se esconde por trás da massa cinzenta da tua mulher. Consegues assim apanhá-lo desprevenido, sem lhe dar tempo para fugir. Fixas o olho no despertador, tão frio que congela o ar em volta em flocos de neve que esvoaçam em direcção da janela, soltando trinadozinhos quase inaudíveis de tão agudos. O despertador faz estremecer a sua cara de números vermelhos, e murmura:
— São horas menos dez — acrescentando depois, em baixo volume — palerma! — pensando que tu não o ouvirias.
Ouves, mas não ligas. Suspiras de novo. Pensas, como todas as manhãs, se o que se segue valerá o esforço de saíres da cama. Não chegas a nenhuma conclusão. Nunca chegas. Mas tomas duas drageias.
O sol, entretanto, volta a espreitar da janela, com sorrisos tímidos pendentes dos raios.
— O senhor dá licença? — pergunta-te.
Encolhes os ombros numa indiferença tão grande que os braços se te recolhem e ficas com duas mãos agitadas a sair directamente do pescoço. Custa-te respirar. O ar sabe-te a gelatina de morango e estremece quando lhe tocas, espalhando raios de luz distorcida em todas as direcções. É assim que reparas que o sol continua à espera de uma resposta, meio escondido por trás do reposteiro.
— Ó homem, entre duma vez, não fique aí especado! Tenha só cuidado para não acordar a minha mulher. Ela teve uma noite má. A cabeça até dormiu bem, mas as pernas andaram a passear pela casa a noite inteira.
— Muito obrigado. Com licença. — diz-te o sol, entrando, mas afastando-se com cuidado da tua cara. — Desculpe lá aquilo de há pouco. Foi uma distracção.
Tentas não voltar a encolher os ombros (precisas das mãos) mas é mesmo isso que te apetece fazer.
— Tá bem — dizes apenas.
Com alguma dificuldade, levantas-te da cama. Está calor, e suor irrompe-te de todos os poros, juntando-se num pequeno charco em volta do teu umbigo. Minúsculas rãs saltitam em torno do charco, coaxando alto demais.
— Calem-se — resmungas, arriscando uma palmada na barriga.
As rãs, com a palmada, ganham asas repletas de furúnculos, e erguem-se no ar, coaxando impropérios. Não ligas. Nunca ligas. Se não fosse essa impenetrável indiferença, a tua vida seria um inferno, por isso, todos os dias de manhã, tomas duas drageias de impenetrável indiferença que te duram o resto do dia. Só à noite passas a sentir uma penetrável diferença, mas isso é porque quando o sol se põe te crescem uns bigodes muito longos e fininhos.
Olhas para o espelho, na casa de banho. Os bigodes muito longos e fininhos pendem, com ar triste, das narinas. Ainda pensas em perguntar-lhes o porquê de tamanha melancolia, mas desistes. Impenetrável indiferença.
Fechas o ralo, pões água a correr, mostras ao espelho um esgar. O espelho estremece, principalmente os dentes. Será susto? Não te interessa. Também os teus estremecem nos alvéolos, gerando tornados de comichão por toda a tua boca. Abre-la. Deixa-los sair.
Os dentes mergulham na bacia, um a um, em trajectórias acrobáticas. Os azulejos aplaudem, fazendo soar trombetas numa estridência de piscina coberta. Depois, lavam-se uns aos outros, percorrendo atentamente raízes e coroas, removendo com cuidado os mais ínfimos sinais de tártaro. Só um fica de lado, um molar cariado que é ostensivamente ignorado pelos demais.
Não sabes porquê, nunca saberás porquê, mas gostas muito daquele molar. Se não estivesses desdentado, terias dito isso mesmo naquele instante.
Quando achas que já chega, deixas cair o maxilar, que entra na água com um ploft satisfatório. É o teu oráculo quotidiano, aquele ploft. Pela sua intensidade, duração e harmonia, e pelo número de gotinhas que levanta, sabes como vai ser o teu dia. Os teus dias só existem por via daquele ploft. Aprendeste isso da pior maneira, num dia em que te esqueceste de deixar cair o maxilar com um ploft, não tiveste dia e passaste directamente para o seguinte. Foi mau. Tiveste falta no serviço e um processo disciplinar que, para tua sorte, acabou por se revelar tão indisciplinado que o despediram duas semanas mais tarde.
Esperas, com o maxilar em baixo, que os dentes se acomodem, os de baixo nos alvéolos respectivos, os de cima sobre a língua, em duas longas filas. Recolhes o maxilar, e ao longo da subida os dentes entoam um canto alentejano, oscilando uns de encontro aos outros, criando assim um insólito acompanhamento de rangidos.
Canto alentejano acompanhado a ranger de dentes...
É assim todas as manhãs. Já conheces de cor aquele coro. Já esperas cada uma das desafinações. O friso de baixos não é mau, mas o tenor — um canino, por estranho que possa parecer — é esganiçadíssimo. Um horror.
Em todo o caso, se não estivesses com atenção e cuidado terias encolhido de novo os ombros.
Impenetrável indiferença.
Depois da cara recomposta, ordenas aos cabelos que se ajeitem e acomodem e sais da casa de banho. Já sabes que os quinze minutos seguintes da tua cabeça serão passados em gritaria, enquanto os cabelos se desempeçam sozinhos, insultando-se uns aos outros, por vezes envolvendo-se em breves cenas de pancadaria, que terminam abruptamente assim que os nós de desfazem ou um cabelo se solta ou se parte. Como todas as manhãs, os bigodes muito longos e fininhos vão-se embora, ofendidos, insurgindo-se em francês contra aquela vulgaridade, oh-là-là, sacré bleu! Suspiras. O tédio é tanto que te envolve como um casulo de seda. Já estavas preparado para ele, e sacas da tesoura que tinhas escondida numa cova da pele que te cresce como um coldre, à ilharga. Em gestos hábeis, recortas a seda do casulo, transformando-a numa camisola e numa espécie de calças sem aberturas para os pés. Não há costuras. A seda de tédio tem por supremo valor de existência envolver-te o melhor que é capaz, e és por isso forçado a enrolar as extremidades das duas peças para que a seda não continue a crescer até te cobrir por completo outra vez.
A seda hoje é esverdeada, com minúsculas risquinhas negras. Não gostas, mas não podes fazer nada. Não é como se pudesses substituir tédio verde às risquinhas pretas por tédio branco às florinhas, ou tédio liso azul-metálico. O teu tédio é o que é, embora mude todos os dias.
Regressas ao quarto. A tua mulher já começou a acordar, e tu atiras-lhe um beijo com força e boa pontaria. O beijo vai esmagar-se sobre a boca dela, um pouco descaído para o lado direito, e depois escorre devagar para a almofada.
— Ai! — grita ela, assustada, mas depois a expressão suaviza-se e as orelhas enrolam-se-lhe sobre a testa — Oh, és tu, querido? — um bocejo, devidamente acompanhado pelo sol que estende dois raios e lhe faz tilintar a úvula.
— Sou. Acorda, que está na tua hora.
A tua mulher aninha-se melhor na cama, recobrindo-se de gravetos e pedacinhos de terra, e chilreia:
— Ãin, que não me apetece nada levantar...
— Eu sei — respondes. Tu sabes. Aquele "ãin, que não me apetece nada levantar" é a frase mais típica das manhãs da tua mulher, e reverbera nas paredes daquele quarto em três quartos das manhãs. O quarto restante, a que tu chamas com ironia "quarto minguante", é composto por variações mais ou menos imaginativas da mesma ideia-base. Só uma vez, que te lembres, em todos os anos de acordar no mesmo sítio, mas em separado, a tua mulher acordou cheia de vontade de se levantar.
Foi um dia inesquecível, esse dia. Ainda hoje, tantos anos passados, sentes uma pontada de pânico quando o recordas.
— Vou comer — anuncias. — Vê se te levantas. — E sais, direito à cozinha. O nariz já tinha seguido à frente, enviado pelo estômago vazio que se procurava atapetar de odores antes de receber a sanduíche.
É mais ou menos por esta altura que o teu dia começa a parecer-se mais com o dia de uma pessoa que não tem uma vida surrealista. Sentas-te placidamente à mesa da cozinha a comer a sanduíche com um olhar contemplativo de bovino no rosto. Contrariamente ao que talvez fosse de esperar, não te crescem cornos nem manchas pretas na pele branca e as costas não se te encurvam num garrote. A comida não protesta, nem se transforma em sinais de tempo. Só os cabelos continuam a sua guerrilha, embora cada vez mais compostos e cada vez mais sossegados.
A dada altura, chega o silêncio, interrompido pelo tic tac do relógio na parede e por um monumental bocejo da tua mulher, no quarto. É nessa altura que os cabelos finalmente se aquietam, dispostos em risca ao meio e atirados para trás. Passas a mão por eles, num agradecimento, que eles recebem com sussurros de prazer, depois de acabares a sanduíche e de limpares as mãos a um guardanapo. Levantas-te, vais até à sala, à procura da maleta. Quando chegas, estás vestido de fato e com uma gravata de dez metros pendurada do pescoço. Pensas, como todas as manhãs, que tens de comprar uma gravata nova, enquanto enrolas no pulso a porção em excesso. Sentes-te como um cão que segura a sua própria trela e o teu focinho subitamente distendido capta com absurda nitidez todos os cheiros dos dois quarteirões mais próximos. Soltas um leve ganido, mas depressa regressas à tua forma habitual de funcionário.
É tempo de sair de casa.
Sais de casa aos poucos, peça a peça, com cada bocadinho a integrar-se na longa fita que é o tempo no mundo lá fora. A fita leva-te, sem sobressaltos, directamente até à porta do escritório, e deposita-te aí, na ordem exacta em que nela entraste. É um pouco estranho ver surgir no passeio primeiro um dedo da mão direita, depois outro, e de seguida mais três, e depois ver um braço construir-se no chão e depois erguer-se quando o tronco aparece, quase de repente (e assim voltas a ter braços, o que é sempre boa notícia), e continuarem a juntar-se órgãos àquele corpo em crescimento até estares de novo inteiro e imaculado, com maleta e tudo. Só a gravata fica presa da fita, como todos os dias, e és obrigado a puxá-la ou a deixá-la ficar. Pensas em desistir duma vez por todas de tão incómoda peça de vestuário, mas acabas por desistir da desistência e puxas. Desistir para quê?, pensas, com um abanão de cabeça.
Impenetrável indiferença. O que é preciso é impenetrável indiferença.
Recomposto, entras no escritório na hora exacta, sentas-te, abres a maleta e a janela e pões-te a trabalhar.
Contas pássaros a manhã inteira.
É para isso que te pagam: contar pássaros.
À hora de almoço interrompes o trabalho. Sabes disso apenas porque num momento o relógio marca meio dia e trinta e um minutos e no momento seguinte já marca uma hora e cinquenta e oito. Poderias pensar que era o relógio que resolvera que era tempo de adiantar o tempo, não fora também o sol se ter deslocado no céu (não o sol que deixaste em casa a acordar melhor a tua mulher; outro), e não fora aquilo te acontecer todos os dias. Os almoços são-te sempre retirados da experiência de vida. É como se o teu corpo abandonasse o cérebro à secretária, no meio dos pássaros, e se fosse alimentar sozinho, regressando depois pelo mesmo caminho. Na verdade é isso mesmo que acontece: chegada a hora de almoço, o cérebro esgueira-se pelos olhos, ouvidos e boca como uma névoa cinzenta, deixando o corpo livre para fazer o que bem entenda. O tempo parece não passar porque, na verdade, não passa. Para um cérebro, o tempo só passa quando existe maneira de medir essa passagem (olhos, ouvidos, sensores de movimento, enfim, sentidos). E como tu és, basicamente, um cérebro agregado a um corpo, o tempo que não passa para o teu cérebro não passa para ti.
Percebeste?
Encolhes os ombros com cuidado, para evitar ficar sem braços outra vez. Não te interessa. Nada te interessa. Explicações e pormenores esbarram na tua impenetrável indiferença como num muro sem alicerces nem ameias. Só te interessas, e mesmo isso vagamente, pelo teu trabalho.
É para isso que te pagam: contar pássaros.
Contas pássaros a tarde inteira.
O fim do dia de trabalho vai encontrar-te na mesma posição de todos os dias. O fim do dia de trabalho não te tem em grande conta, e tu sabes disso porque ele nem tenta escondê-lo. Enxota-te para fora do escritório com um desprezo mal contido. E é já depois de te virar as costas que te diz até amanhã, fazendo acompanhar esta frase do blã da porta a bater, e transformando-a, portanto, em até amablã, coisa que não tem qualquer significado. Nunca chega a olhar-te, o fim do dia de trabalho. Acompanha-te fazendo os possíveis por não dar pela tua consistência.
Verdade seja dita, a tua consistência àquela hora já não é muita. Todo o teu corpo estremece, em equilíbrio precário, gotejando no passeio como manteiga derretida. Sentes-te papo-seco antes de ir ao forno, informe, tosco e vagamente amarelado.
Bem sabes que é do cansaço. Ou então é da massa.
E por isso desfazes-te na fita do tempo no mundo lá fora, onde entras agora de repente, como quem mergulha ou se deixa cair.
E é assim mesmo que sais dela, à porta de tua casa, um jorro líquido que se aglomera num charco multicolorido no passeio. Às vezes, quando queres ficar ainda um pouco a beber a luz do entardecer em copos cheios de cor de laranja, recompões-te ainda cá fora, sentas-te no lancil e fechas os olhos, à espera. Mas hoje não te apetece ganhar tempo perdendo-o, e esgueiras-te por baixo da porta. A casa ainda está vazia a esta hora, a tua mulher só chega mais tarde, e tu passeias por todas as divisões ainda em charco, recolhendo o pó e as migalhas do dia. Essa descamação da realidade que todos os dias deixam cair ao passarem pela tua casa como uma rajada é o teu lanche e tens de admitir, embora relutes fazê-lo em público, que é a refeição que consomes com mais volúpia. Adoras o sabor dos ácaros que se agarram a cabelos perdidos como se eles lhe pusessem proteger as minúsculas vidas. Deliciam-te as colónias de bactérias e bolores que tentam instalar-se nas migalhas de papo-seco que a tua mulher espalhou pela casa toda de manhã. Estalas a língua (pelo menos fazes o equivalente líquido de estalar a língua) com os restos se sol e de vento e de tempo que ficaram esquecidos pelos cantos desde o dia anterior.
Quanto a tua mulher chega, a casa está impecavelmente limpa e tu dormes a sesta dentro de um balde com o fundo coberto por uma espessa mistura de tintas de água, tintas de areia e tintas de esmalte. Gostas do cheiro, e o balde envolve-te como as muralhas de um forte, tapando-te os ouvidos já menos líquidos, já gelificados, pondo os sons de castigo fora de ti. Ficam irritadíssimos, os sons, quando os pões fora de ti, mas tu estás-te nas tintas e encostas-te ao cabo da esfregona, ronronando como um gato.
Impenetrável indiferença.
Ainda resiste, a impenetrável indiferença. Ainda se mantém impenetrável. Indiferença.
A tua mulher chega, ruidosa, arrastando as orelhas atrás de si como um véu. Quando estás acordado, gostas de assistir à sua entrada triunfal, gostas de ver o seu corpo balofo a tentar por todos os meios sair de dentro do vestido às florinhas, gostas de olhar para a nuvem de cheiros que ela carrega sempre consigo, presa às orelhas, adejante na aragem que é ela própria que provoca. É quase o único verdadeiro prazer que resta à tua vida de casado. E só funciona quando estás acordado.
Quando dormes a sesta, nas tintas dentro do balde, os trinados que dela vêm irritam-te profundamente.
— Queridinhoooo! — e tu ranges os dentes que se começam enfim a solidificar, embora os rangidos ainda saiam moles, com o som que melaço faz ao discutir com leite-creme.
— Chegueiiiiiiii! — e os punhos encerram-se em torno do teu tronco, espremendo-o como a uma laranja respingosa.
— Onde estááááááás? — e o cérebro acorda, sacode-se da tinta e aglomera-se no topo da massa gelatinosa em que te transformaste, enrolado à volta do cabo da esfregona, esculpindo-se devagar em circunvoluções, circunvalações e neurocircuncisões, bocadinhos de pele neurológica cortados e desencarapuçados.
— Ah, estás na tua sesta? — e é então que regressas à tua forma habitual de todas as noites (o sol já se pôs, bem mais discreto na partida do que na chegada), um homem de cabelos revoltos e um bigode fininho deitado sobre os lábios, molhado, coberto de pedacinhos de tintas de todas as cores, que tentas sacudir para dentro do balde sem mais sucesso que o de um lançador do disco a correr os 100 metros.
— Estava — resmungas, mal humorado, de cenho carregado como uma camioneta das mudanças, a testa orlada de mesas e cadeiras, uma cama de espaldar onde as tuas ideias dormem a sesta e uma estante coberta de bibelôs e com uma televisão desligada a um canto.
— Dá cá um beijo — exige a tua mulher, pondo-se em bicos dos pés à tua frente. Tu dás-lhe o beijo. Pegas nele com um esgar de asco (nunca gostaste de pegar em beijos, sempre os achaste vagamente asquerosos ao toque) e colocas-lho com indiferença sobre os lábios.
— Bem podias dar-me um beijo com um bocado mais de alma, que diabo! — queixa-se ela, tricotando um beicinho amuado. Era rápida: ficou pronto num instante.
— Desculpa — desculpas-te — tenho andado um bocado seco de alma ultimamente. Deve ser do calor. A alma evapora.
— E por falar nisso — acrescentas, depois duma pequena pausa — vou tomar banho.
Tomas um banho longo e fumegante, a água tão quente que a pele se te encaracola e desprende, deixando-se erodir como areia debaixo de chuva, cavando longos regos, cada vez mais profundos, até cair no fundo do poliban, rodopiar duas ou três vezes como bailarinas, envoltas em tutus de pele de bactéria, e mergulhar ralo abaixo soltando gritinhos de excitação e volúpia.
A lavagem é profunda. Chega-te aos ossos, especialmente os do crânio, que são os que estão normalmente mais próximos do mundo exterior, e em breve estás exangue e branco como uma caveira. Mas manténs o bigode fininho, não já deitado sobre os lábios, mas deitado sobre os dentes do maxilar superior, enroscando as pontas no arco zigomático.
Depois, submerges por completo, esqueleto e fiapos de carne, para que o corpo se te reconstitua envolto em sabonetes e loções. Acabas o banho como novo, limpo e perfumado como um bebé. Bolsas um bocadinho e sentes-te triste e alegre ao mesmo tempo.
É nessa altura que a tua impenetrável indiferença se deixa penetrar por uma penetrável diferença, e recolhes-te em ti mesmo, presa de todos os sentimentos que não tiveste ao longo do dia. Irritas-te ao mesmo tempo que te ris, deliciado, das coisas divertidas que te disseram ou fizeram, choras de tristeza enquanto tentas sem sucesso reprimir um bocejo do mais completo tédio (contar pássaros é uma seca) e ficas de boca aberta durante longos minutos, as cordas vocais em funcionamento contínuo num longo, looongo, looooooongo som, mais semelhante a um urro do que propriamente a um bocejo, que ainda por cima resolve andar a passear de parede em parede como macaco entre ramos, ampliando-se em ecos e reverberações que te põem as orelhas a abanar
Dura algum tempo, o teu momento de penetrável diferença, e quando enfim termina és apenas mais um homem, miserável como todos os homens, rodeado de silêncio, como todos os homens, ainda que no teu caso esse silêncio seja cortado por um zumbido grave, quase inaudível, o zumbido que fazem as tuas orelhas a abanar.
Mas é limpo e rosado que sais da casa de banho. Ouves os ruídos de cozinha que a tua mulher faz na cozinha, presa de um papel feminino que as outras mulheres recusam mas a tua desempenha com vontade e alegria, o de proporcionar ao seu homem bem-estar e segurança à custa do seu próprio bem-estar e segurança. Abanas a cabeça e ela protesta abanando-te a ti e é todo sacudido que pensas, como todos os dias, que não sabes bem se hás-de agradecer-lhe se de sentir pena dela, das barras que a rodeiam sem que ela as veja, uma gaiola em que ela, ave canoira, lança trinados saltitando de poleiro de mármore em poleiro de mármore, entre a bancada, o frigorífico e o fogão.
O pior de tudo ainda são os trinados.
Arrastas-te até à cozinha com dificuldade, deixando um rasto de chão molhado atrás de ti e sentindo-te caracol, com as costas enrugadas numa sugestão de espiral. Paras à porta e respiras fundo. A tua mulher chilreia num espanejar de orelhas, fazendo movimentos ritmados com as penas da crista. No fogão, algo frita, atirando ao ar uma mão-cheia de cheiros que convergem sobre ti como setas. Não resistes. Já aprendeste à tua custa que ao lidar com cheiros agressivos o melhor é não fazer ondas, deixar o soalho liso e fazer tudo o que os cheiros ordenarem. Até porque raramente ordenam coisas mais complicadas do que "senta-te!" ou "aqui!" ou "come!" ou, no fim, "arrota!", e tu estás quase sempre de acordo em fazer precisamente essas coisas. Deixas-te ir. Em breve estás sentado à mesa, de garfo na mão e um relógio a dar horas no estômago (ao segundo sinal serão dezanove horas, vinte e cinco minutos e quarenta e três segundos, piip, piip), enquanto a tua mulher pára de imitar uma sinfonia de melros (finalmente!), perde a penugem, deixa cair o bico na sopa como tempero final, mexe a panela mais um pouco e dá por terminado o trabalho, com um sorriso satisfeito a estender-se pelas bochechas em espirais iridiscentes.
Comes em silêncio, fazendo grandes pausas entre as garfadas e as colheradas, para dar tempo a que os alimentos se te aquietem no estômago. Costuma ser uma regatice pegada sempre que uma nova colherada ou garfada cai do esófago e aterra em cima das garfadas e colheradas que já se encontravam no estômago, indo lá encontrar resmungos, impropérios, aquilo que para o bolo alimentar faz as vezes de cotoveladas e muitos empurrões enquanto não se descobre, algures, um lugar para os recém-chegados que não incomode os que já lá estavam, satisfeitos nas suas saunas de ácido.
Comes em silêncio, salvo a barulheira que vai pelo teu estômago. A tua mulher, por sua vez, come também em silêncio, depenicando a comida como só ela sabe fazer, com uma delicadeza de grou. Em tempos, as perguntas sobre "o teu dia" entrecruzavam-se, abraçando-se no ar que vos separava, soltando gritinhos de reconhecimento (há tanto teeempo!) e apertando as bochechas aos pequerruchos. Mas vocês fartaram-se de ouvir sempre as mesmas respostas, de dar sempre as mesmas respostas, da barulheira cada vez mais falsa, mais postiça, mas irrealista que as perguntas faziam ao se encontrarem, e agora comes em silêncio com o longo bigode fininho a roçar, tristonho, as bordas do prato, ao lado da tua mulher, que come em silêncio, as longas orelhas acachapadas sobre a cabeça como um véu muçulmano.
Allahu akbar.
É ainda em silêncio que acabas de comer, levantas a mesa e segues com ela até à máquina de lavar, onde a sacodes, fazendo cair nos receptáculos respectivos pratos, copos e talheres e enchendo tudo de lixo. Nada se parte. Nada nunca se parte na tua casa, a não ser que seja acidentalmente que o desequilíbrio e a queda acontecem. Se por acaso dás um encontrão num copo, por mais fraco que seja, ele imediatamente se atira da mesa abaixo, guinchando ao longo da queda (ooooooh nãããuuuuuu!) e estilhaçando-se no chão em mil cacos que ficam a ralhar-te, estendidos de costas, esperneando espículas de vidro, enchendo-te os ouvidos com acusações de desastradodesastradodesastrado. Até com os talheres acontece o mesmo: se apanham um encontrão atiram-se para o chão e aí se espatifam numa miríade de bocadinhos quase invisíveis de aço inoxidável. Houve um tempo em que isto te afligia, mas aprendeste a não ligar importância e a voltar costas quando um dia em que algo te chamou a atenção para longe destes pequenos dramas reparaste que bastou deixarem de ser o alvo das tuas dores de cabeça para que as coisas partidas se recompusessem, os cacos maiores a passear dum lado para o outro a agarrar nos mais pequenos e a engoli-los atirando-te impropérios de encontro às costas (cabrão! Tanto que fazemos por ele, e não nos liga nenhuma! Cabrão!). Mas, se é de propósito que as coisas são atiradas ou deixadas cair, permanecem inteiras como se nada fosse.
Na tua vida, é assim que as coisas são.
Quando acabas de tratar da cozinha a tua mulher pendura-se a ti como um badalo e seguem os dois até à sala, tu em passos arrastados e ela a badalar (bloing bloing) de encontro às tuas pernas ao mesmo tempo que te vai lambuzando a cara. Às vezes dá-lhe assim para a ternura e enrola as orelhas no teu pescoço como se se quisesse transformar numa gravata. Tu vais protestando com suavidade (querida... não... vá lá... não... ouve... uff... espera...) enquanto começas a encurvar as costas por acção do peso que carregas. Chegas à sala corcunda e um pouco vesgo, com uma crista dorsal feita de vértebras cuja substância óssea se deslocou para o exterior do teu corpo, por falta de lugar livre de pressão no interior.
Derramas-te depois no sofá numa onda de espuma sólida na qual a tua mulher flutua. Procuras o telecomando às apalpadelas. O telecomando esquiva-se, rindo baixinho o seu riso escarninho. Consegues raspar por ele um par de vezes até que, finalmente um dedo que fizeste crescer desproporcionalmente ao tamanho não só de ti ou do sofá, mas da própria sala, logra apertar num botão, qualquer botão. De súbito obediente, o telecomando aquieta-se e ordena à televisão que se acenda. A atenção da tua mulher sofre uma viragem que já esperavas e ela murmura um que liiindo! e abranda o seu enlace, embora continue deitada sobre ti. Começas então a recompor-te, solidificando na tua forma verdadeira, ou pelo menos naquilo que em ti passa por uma forma verdadeira, meio reclinado sobre o sofá, com os pés assentes na pequena mesa que está no meio da sala precisamente para que tu lá abandones os pés enquanto o teu cérebro se vai apagando devagarinho à medida que as imagens da noite se vão sucedendo no écran.
Começa assim a parte menos surrealista do teu dia.
São três as horas que ficam os dois despejados no sofá, estáveis na forma e nas posições que vão mudando só de longe a longe, como se estivessem na cama, a sonhar com calma, e se virassem de vez em quando de barriga para cima ou de barriga para baixo. Mas para ti é como se fossem quinze minutos, porque desde que se te apaga o cérebro tu desapareces para qualquer lado e o tempo dá um salto sem que nele existas, propriamente. Com a tua mulher, passa-se o mesmo, tanto quanto saibas, e é como se a televisão enchesse a sala de pixels azulados em permanente frenesi de mudança, desalojando de lá tudo o que não fosse feito de pixels azulados em permanente frenesi de mudança. Se calhar, é mesmo isso que acontece. Tu não sabes, e nem tens como saber. A verdade é que nem quererias saber, se pudesses. Simplesmente, não te interessa.
É o regresso da impenetrável indiferença.
O feitiço, se feitiço é, quebra-se com o primeiro grande bocejo da noite. Solta-o um dos dois, nunca se sabe bem qual, mas a esse primeiro sucedem-se outros em cascata, cada vez mais dissonantes, cada vez mais volumosos, cada vez mais absolutos. E a sala, cada vez mais incomodada, começa a rebelar-se contra tal enlouquecimento (enrouquecimento?) de bocejos. Primeiro é o sofá, que desata em ondulações cada vez mais enjoativas; logo depois é a mesa que se esgueira de debaixo dos vossos pés, deixando-os cair e bater no chão com um poft mole. Depois são todos os objectos que cobrem a sala de uma camada de habitação que começam a vibrar, a ranger, a raspar, tentando contrariar dessa forma o vosso ruidoso ataque de tédio. E por fim, é a televisão, que se apaga, obedecendo com relutância às ordens do telecomando, até ele já farto dos vossos bocejos.
É então que a tua mulher se levanta, resmungando:
— Ai, que dor de cabeça! Acho que vou tomar um comprimido.
E se arrasta até à casa de banho, onde ficam as tocas de quase todos os seus comprimidos. Tu ainda ficas mais um pouco em frente da televisão, observando o modo como o écran negro reflecte o contentamento da sala, recém-regressada à sua placidez habitual. Mas também acabas por te levantares e seguires, cambaleante, o caminho do quarto.
Aí chegado, esperas que a roupa se te dissolva num pijama com aspecto velho e muito coçado e deixas-te cair sobre a cama. A tua mulher chega pouco depois, e tu ficas a observá-la pelo único canto de olho que ainda permanece livre de pálpebra, enquanto a roupa dela se dissolve num pijama não menos velho e coçado do que o teu, apenas mais florido. Há muitos anos que aquela visão não te desperta vontade de a ver nua, talvez pelo que vislumbras por baixo do pijama, talvez porque já sabes que não vale a pena, ainda que o teu pénis acorde e te pergunte o que se passa ao que tu respondes que não se passa nada. O teu pénis vira-te as costas, resmungando que nunca se passa nada e libertando depois um par de impropérios contra a puta da vida que lhe havia de calhar, caralho, enquanto que tu encolhes os ombros, segurando bem neles para que os braços não se encolham também.
A tua mulher murmura então um até amanhã e fecha a luz como quem fecha a porta. Tu revês o teu dia durante cinco minutos, pensas ociosamente que foi um dia menos mau e soltas um suspiro, não sabes se de resignação se de desalento.
Depois, deixas-te dormir.

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