quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Típica conversa ao telemóvel com a minha mãe

As minhas conversas ao telemóvel com a minha mãe são todas mais ou menos assim:

Telefono eu. Ela atende. Levo meio minuto a ouvir ruídos de fundo e entretando vou dizendo:
— Tou?... Tou?... Tou?...
— Tou?
— Tás-me a ouvir?
— Tou?
— Tás, sim. Tás-me a ouvir ou não?
— Tou?
— Arre! Tás!
— Lá está outra vez esta bodega avariada.
Desliga. Eu volto a ligar. Repete-se a cegarrega de ruídos de fundo e de tou-tou-tás-tou, até que eu, já farto, berro:
— TOU!
— Ai, Jorge, para que estás aí a berrar? Que disparate é esse?
Eu engulo em seco.

E paciência, vende-se?

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Lido: Discurso Inaugural

Discurso Inaugural é um conto de ficção científica do argentino Fabián Labeau, já com uns aninhos em cima, que é precisamente aquilo que o título indica: o discurso de um cientista de renome que inaugura uma conferência. Como todos os contos do género, trata-se de infodump puro, e aí reside a sua principal fraqueza, embora haja bem pior. O orador conta, para benefício da plateia, a história de uma peculiar família de moléculas que terão a propriedade de causar nas pessoas distúrbios comportamentais violentos e que teriam sido usadas no dinheiro durante boa parte do século XX. Quem acha que a FC se resume a ideia talvez goste desta história... ou não, no caso de achar a dita disparatada. Eu, confesso, não acho que a ideia seja das melhores e não gosto mesmo nada (e cada vez gosto menos) deste tipo de contos. Não gostei. Quem tiver curiosidade, encontra-o aqui.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Lido: Noite de Paz

Noite de Paz é um conto curto de Nuno Markl, escrito em jeito de sketch como seria de esperar dos antecedentes do autor, no qual o Pai Natal e o Menino Jesus se encontram inopinadamente numa dada casa nas vésperas do natal e se põem a discutir um com o outro sobre qual deles teria direito a dar ali presentes. É, topa-se à légua, um texto de Markl, repleto das peculiaridades que o autor põe no que escreve para a rádio e a TV. É um texto escrito para ter piada, não para ter valor enquanto objeto literário. E tem alguma, mas confesso que não lhe achei muita. A culpa, nisso? É tanto minha como do conto, parece-me.

O efeito placebo e os casmurros

Toda a gente sabe o que é o efeito placebo: dá-se um comprimido de qualquer coisa inócua a um doente, convence-se o pobre de que se trata de um medicamento, e o comprimido tem realmente um efeito terapêutico, apesar de não servir para nada. Li ou ouvi algures há algum tempo que o efeito placebo é responsável por qualquer coisa como 40 a 60 porcento da eficácia dos tratamentos médicos. Embora ainda ninguém saiba com toda a certeza como é que o placebo funciona, parece que tem a ver com a ação das hormonas de stress que, como toda a gente sabe, têm um efeito inibidor sobre o sistema imunitário. Ao convencer-se o doente de que está a ser tratado de uma forma eficaz, os seus níveis de stress reduzem-se e é o próprio sistema imunitário do seu corpo que produz a cura, ou pelo menos a atenuação dos sintomas e da gravidade da doença.

Infelizmente, isto também quer dizer que existe uma espécie de efeito placebo inverso. Se o doente mete na cabeça que o tratamento que está a receber não tem nenhum efeito positivo ou, pior um pouco, que só o põe mais doente, é certo e sabido que acaba mesmo por piorar ou pelo menos por não obter do tratamento todo o seu potencial. É ele próprio que combate a cura. É ele próprio que causa a deterioração da sua saúde por pura falta de crença na eficácia da medicina.

E é por isso que é tão desesperante lidar com doentes casmurros, daqueles que metem uma coisa na pinha e não desbancam. Especialmente quando se trata de pessoas que queremos ter por perto para sempre. Porque queremos ajudá-los mas eles não deixam e não percebem (ou talvez não lhes importe) que ao não deixarem estão não só a prejudicar-se a si próprios mas também a esfrangalhar-nos os nervos a nós. Porque lhes explicamos as coisas e não acreditam. Porque acham que sabem melhor do que toda a gente como as coisas são, apesar de tudo indicar o contrário. Porque, porra, são casmurros como o raio que os parta.

É um desespero. É uma frustração que se vai acumulando até parecer que a única coisa que nos preenche é a vontade de gritar. É insuportável. E não há solução. Apesar de apetecer enfiar-lhes as coisas na cabeça, à marretada se necessário, isso de nada serve. É inútil sequer tentar. Nada entra.

E isto também se aplica, diga-se de passagem, embora de uma forma mais suave, a outros casmurros que, não estando doentes, também beneficiariam sobremaneira da ajuda que lhes poderíamos dar.

Lido: O Mundo de Jon

O Mundo de Jon (bib.) é uma noveleta de Philip K. Dick sobre viagens no tempo. Como muitas vezes acontece, o motor da história é a vontade, por parte de um grupo de cientistas, de regressar a um ponto do passado e alterar um acontecimento crucial que terá desencadeado uma sucessão de outros acontecimentos que terão desembocado num presente de pesadelo. Neste caso, presente deles, futuro nosso. Já todos vimos variações desta história no cinema e na TV (nos filmes da série Terminator e na série Sarah Connor Chronicles, por exemplo), e é bem sabido que quando isso acontece estamos já no reino do cliché. Ora, o facto de ter no seu fulcro um cliché tantas vezes utilizado reduz significativamente o impacto desta história de Dick, mesmo sabendo-se que ela tem já mais de meio século de existência e que a transformação das ideias em cliché foi posterior.

Mas mesmo descontando esse fator não me parece que esta seja uma das boas histórias de Dick. Porque o forte de Dick, aquilo que o içou à condição de monstro sagrado da FC, é a criação de uma atmosfera paranoica e os enredos complexos e imprevisíveis, e aqui não encontramos nem uma coisa nem a outra. De facto, a história é bastante previsível desde o início, o que só é amplificado pelas visões de que o filho do protagonista sofre, filho esse que só aparece na história para, precisamente, nos "mostrar" as tais visões, uma opção que me parece algo contraproducente. Como além do mais há uma série de diálogos tão didáticos que roçam a velha pecha de muita FC que é o como-sabes-Bob, acabei por achar o todo bastante insatisfatório.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Lido: The Melancholy Death of Oyster Boy & Other Stories

The Melancholy Death of Oyster Boy & Other Stories é um pequeno (115 páginas) livro de Tim Burton que tem desde 2007 edição portuguesa, mas eu li no original. Trata-se de um livro de pequenos poemas que contam histórias igualmente pequenas sobre bizarras criaturinhas cheias de desespero existencial. Crianças, quase todas, e quase todas dotadas de uma ou mais características insólitas que as separam da vulgaridade e as transformam em párias. O rapaz que é meio ostra do título, a rapariga feita de lixo, a outra que é uma boneca de vodu, a que olha fixamente, etc.

Há horror nestas historinhas. E melancolia e insólito com fartura. E o desespero existencial de que falei acima. Mas o que achei mais interessante no livro foi a estranha mistura entre um ritmo e uma atmosfera tão sugestivos das histórias e rimas infantis com o humor bem negro que perpassa por quase todos os poemas e historietas. Um exemplo muito curtinho, traduzido por mim agora mesmo num instante:
James

Insensatamente, o Pai Natal ofereceu a James um ursinho de peluche, sem saber que
ele tinha sido mutilado por um urso pardo alguns meses antes.
Estão a ver, não é? São pequenos textos muito sugestivos, muitos dos quais resultariam igualmente bem em verso e em prosa, independentemente das rimas que contêm. E além disso, todos estão profusamente ilustrados pelo próprio Burton, com desenhos que, não raro, dão às historinhas uma camada adicional de significado. É um livro muito bom. Compreendo perfeitamente quem o adora.

Independentemente disso, esta não é propriamente a minha praia. Julgo que gostei o mais que me seria possível gostar de um livro deste tipo, mas não o terminei com aquela sensação de satisfação emocional que se obtém das leituras de que gostamos mesmo. Ou talvez tenha sido uma questão de timing. Talvez na altura em que o li não estivesse com abertura de espírito para este tipo de macabro, que por mais doce que seja não deixa de ser isso mesmo: macabro. Talvez. O certo é que gostei, mas não muito.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Lido: O Anibaleitor

O Anibaleitor é uma curta novela de Rui Zink que acompanha as desventuras e o crescimento de um jovem aventureiro e ignorante, o qual, depois de se ver obrigado a embracar por causa de uns mal-entendidos com a polícia (mal-entendidos nenhuns; o puto era larápio), vem a descobrir que o navio em que se engaja tem um comandante enlouquecido, à Ahab, o qual tem por único objetivo na vida a captura de um estranho animal gigantesco e mitológico, que ele afirma a pés juntos que existe, e que se chama "anibaleitor".

Depois não há propriamente o naufrágio das histórias de aventuras, mas o protagonista é atirado ao mar por uma onda enorme e claro que vai mesmo encontrar o tal anibaleitor, que se vem a revelar um gorila gigantesco, falante, sem paciência para parvoíces e amante da literatura que obtém dos livros que vão dando à costa na sua ilha.

A partir daí, a história transforma-se num hino à leitura e à literatura, numa autêntica aula sobre o que significa ler, a sua utilidade, qual a relação que existe entre o escritor, o que ele escreve e o que o leitor vai ler, a subjetividade inerente ao ato de leitura e o que é, de facto, a qualidade. Uma aula a que muita gente muito senhora do seu nariz, que anda por aí a debitar disparates sobre estas coisas, teria toda a urgência em assistir. Tudo muito cheio de referências, claro, começando pelo próprio Anibaleitor, que é uma versão muito zinkiana do King Kong.

À semelhança de Firmin, aqui comentado há um par de meses, é mais um livro que se socorre do fantástico para tecer comentários sobre a sociedade em que vivemos e, também como em Firmin, fá-lo através da relação entre a nossa sociedade e os homens que a constituem, por um lado, e os livros pelo outro. Ainda como em Firmin, está também aqui tratado o tema da aceitação da diferença ou da intolerância para com ela. Mas as semelhanças acabam aí. O livro de Zink é mais divertido e menos melancólico, apesar de também ter a sua dose de melancolia, em especial na visão do mundo que o Anibaleitor tem (bastante cínica, e quem pode censurá-lo?) e no desenlace da história.

Tudo somado, gostei bastante. Não é nenhuma obra-prima, tem um tipo de humor que nem sempre ressoa bem com o meu mas que quando ressoa chega a ser capaz de me pôr a gargalhar. Além disso tem conteúdo, e um conteúdo francamente interessante, o que nem sempre acontece. E lê-se duma penada, com a fluidez e limpidez dum riacho de montanha. Recomendo.

domingo, 19 de dezembro de 2010

Lido: A Conspiração dos Abandonados

A Conspiração dos Abandonados (bib.), livro de "contos neogóticos" de António de Macedo, conforme se esclarece à laia de subtítulo, contém as seis ficções listadas abaixo, com links para as opiniões sobre cada uma. Apesar da unidade sugerida pelo título da coletânea e pelos títulos das histórias, estas são bastante diferentes umas das outras e vão desde registos próximos ao conto tradicional até exercícios que se achegam ao horror cósmico à Lovecraft, passando pela recuperação de temas e ambientes que o autor já antes tinha explorado.

É um livro em que as qualidades e defeitos das prosas de Macedo estão bem patentes. Como acontece quase sempre, agradaram-me muito mais as histórias em que Macedo se dedica a um fantástico mais tradicional do que aquelas em que trilha outros caminhos, sempre mais ou menos esotéricos. Curiosamente, ou talvez não, aquelas são as histórias mais curtas que este livro contém e o grosso do volume é composto por estas. Para o meu gosto pessoal isso é problema sério e faz com que, embora tenha mais ou menos gostado de dois dos contos não tenha gostado do livro como um todo. Gostos diferentes terão opiniões diferentes, como é natural. Mas há um problema que é mais objetivo e teria sempre impedido que eu tivesse gostado muito deste livro: os diálogos. Com raras exceções, falta aos diálogos de Macedo a naturalidade, o saber usar o registo oral, que lhes daria vida e interesse. Todas as personagens falam da mesma forma, e todas soam insuportavelmente presunçosas. E eu cada vez gosto menos de quando isso acontece.

Quanto às histórias, são estas:

Lido: A Cidade Abandonada

A Cidade Abandonada (bib.) é uma noveleta de António de Macedo que ressoa com a miríade de histórias que foram sendo escritas ao longo dos séculos XIX e XX sobre escavações arqueológicas e as coisas diabólicas, perigosas e/ou inesperadas que os imprudentes arqueólogos ou caçadores de tesouros nelas encontram. Tem, contudo, a originalidade e o interesse (note-se que este interesse é genérico; não significa necessariamente que me tenha interessado a mim) de passar-se no Iraque, entre portugueses, na época que se sucedeu à guerra e em que esteve estacionada no país, concretamente em Nassíria, uma companhia da GNR. Tem também a originalidade e o interesse de acabar por envolver viagens no tempo, com paradoxo e tudo. E tem também, naturalmente, aquelas coisas habituais no autor: uma dose elevada de hermetismo, dimensões paralelas e criaturas sobrenaturais, e diálogos que eu acho quase sempre demasiado explicativos e forçados. Para quem gosta dos temas e escrita do autor, esta noveleta deve ser um belo acepipe altamente recomendável. Eu, que só raramente gosto, achei-a chatíssima (e não há nada mais subjetivo do que o que é chato ou deixa de o ser), não só porque o tema propriamente dito não me interessou, mas também porque me pareceu tratado de forma demasiado demorada e arrastada. É bastante provável que este segundo porquê seja em boa medida consequência do primeiro. E quanto ao primeiro, o problema está mais em mim do que em António de Macedo: não me lembro de ter lido alguma história deste género que me tivesse realmente despertado o interesse, fosse qual fosse o autor. Arqueologias amaldiçoadas despertam-me sempre vontade de bocejar.

Lido: Enquanto Durar o Sol

Enquanto Durar o Sol (bib.) é mais um conto de Italo Calvino protagonizado pelo eterno extraterrestre Qfwfq, embora neste caso talvez seja mais correto dizer-se que é protagonizado pela família do eterno extraterrestre Qfwfq, pois o conto debruça-se sobre as desavenças conjugais entre o avô de Qfwfq e a avó, a pretexto da decisão sobre onde passar a residir depois de a família inteira ter sido expulsa do anterior local de residência pela explosão duma supernova. Passa-se isto nos primórdios do sistema solar, na época em que a própria estrela ainda se ia condensando a partir da sua nebulosa original, e a talhe de foice Calvino vai transmitindo aos leitores umas noções elementares de cosmologia que até nem distorce muito, para variar. Apesar disso e da ironia "familiar", ou talvez por causa de ambas as coisas, não gostei por aí além deste conto.

sábado, 18 de dezembro de 2010

Adamastor

Com certeza não haverá muitos leitores deste blogue que não saibam já da iniciativa, mas como me pediram para divulgar, cá vai. Até porque eu acho a ideia boa, embora de concretização francamente complicada no que toca às autorizações, em especial de material mais antigo mas ainda sujeito a direitos de autor e/ou de material recente cujos autores pretendam reeditar... o que na verdade é mais um motivo para que a coisa tenha toda a divulgação que for possível. Quanto mais gente houver a conhecer o que se passa, mais fácil, em teoria, será encontrar-se alguém que saiba como contactar Fulano ou Beltrano para obtenção das tais autorizações.

Trata-se do Projeto Adamastor, que pretende criar uma biblioteca virtual de ficção especulativa elaborada mais ou menos nos moldes do Projeto Gutenberg. Julgo que não vale a pena reproduzir aqui na Lâmpada o texto que apresenta a ideia. Podem lê-lo aqui. No mesmo local têm acesso a uma sondagem sobre se a ideia vos interessa e de que forma vos interessa.

Vão lá até lá, andem. Andor. A Lâmpada não foge, podem ficar descansados.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Pedimos desculpa por esta interrupção...

... o programa segue dentro de momentos.

A conjugação de uma tradução em fase de conclusão (concluída hoje, pim pam pum, fogo de artifício e acrobatas), tradução essa puxada por mais do que um motivo, com problemas familiares sérios e uma série de outras confusões, sarilhos e turbulências na vida offline levou à paralização deste blogue durante quase um mês. A gerência lamenta e promete despertá-lo muito em breve. Talvez ainda não para regressar à atividade normal, mas quase.

Até já.

domingo, 21 de novembro de 2010

Desafio 5: Sustenta-me o olhar

O quinto desafio que me propuseram foi fazer uns versos em volta da frase "sustenta-me o olhar". E eu atirei umas memórias ao ar, misturei-as com palavras, e saiu isto:

Sustenta-me o olhar

Sustenta-me o olhar
se conseguires
porque ele é fogo, é aço, é ácido
que não corrói
é tornado em violência
que não destrói

Sustenta-me o olhar
se conseguires
porque dele nascem mundos inteiros
mares e rios, plantas e animais
e tudo o mais
e mesmo embrulhados em ligeireza
podem ser pesados demais

Sustenta-me o olhar
se conseguires
eu quero pôr-to inteiro nas mãos
para com ele fazeres
o que bem entenderes
basta para isso que sejas capaz
de me sustentares o olhar

Sustenta-me o olhar
Se não conseguires
não te esqueças de acrescentar mais uma letra
ao epitáfio do homem infeliz
Reza assim:
“quem o quis não o mereceu
quem mereceu não o quis.”

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Desafio 4: Insetos

O quarto desafio que me propuseram foi escrever uns versos sobre insetos. Quem mo propôs é uma notória bichófoba (todo e qualquer bicho, parece, não só insetos), e eu estive tentado a causar-lhe arrepios escrevendo uns versos cheios de bicharada a rastejar por cima da pele do(a) leitor(a), a ficar-lhe presa nos cabelos, a enfiar-se-lhe na roupa, enfim, estive tentado a fazer-lhe uma grande maldade.

Mas como a moça até é boa moça acabei por decidir ir por outra via, que até, quem sabe, possa mesmo chegar a contribuir para melhorar um pouco a noção de inseto que ela tem. E aqui fica o resultado:

Ah, que bom que é ser inseto

Ah, que bom que é ser inseto!
Ter mil imagens de ti nos meus olhos facetados
um milhar de lentes todas elas fitas em ti
ver-te em cores, mil elas também
construídas com azuis, vermelhos, verdes e ultravioletas
e tentar decidir se és cato ou se és flor
ou flor com espinhos, que também as há assim

Ah, como é boa toda esta queratina!
Ouvir a tua voz em estéreo ultra-surround
vibrações de jazz, dissonâncias, melodias
que através de todas as seis patas
me chegam direitinhas ao tubo cardíaco
e o obrigam a pulsar ao ritmo que definem

Ah, que delícia o teu cheiro nas antenas!
Moléculas de ti que agora me pertencem
moléculas que nem sabes que perdeste
mas que eu guardo como pedras preciosas
e que bom ter asas, poder abri-las e lançar-me à aragem
poder batê-las e lançar-me à voragem
poder orbitar-te como a Terra orbita o Sol
preso da refulgência de quem és
e alimentar-me da tua luz mascarado de girassol

Ah, tão bom, tão, tão bom é ser inseto!
Na verdade só o tamanho ma atraiçoa
por isso te escrevo estas linhas na esperança de que as leias
e assim saibas, quando por fim pousar em ti
que não pico nem aferroo, que só desejo o teu bem
e assim resistas ao instinto primeiro de todos os mamíferos
e me poupes ao destino provável de todos os insetos
o de acabar esborrachado, apanhado do chão
e deitado para o lixo sob o peso insuportável
de um esgar de nojo e inabalável repugnância

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Desafio 3: Vida

O terceiro desafio foi-me dado pelo twitter. Já agora, aproveito para esclarecer uma coisa em relação aos temas: prefiro que eles me sejam dados aqui no blogue, mas podem vir por qualquer outro meio e, seja qual for a via, é o primeiro a chegar que conta. Se me chegar mais do que um num dado dia, o segundo poderá ser utilizado se não me ocorrer nada para o primeiro; se não for fica de reserva para algum dia que não apareça nenhum desafio. E quem diz "dia" diz dois ou três, porque não vou fazer sempre isto todos os dias.

Dito isto, o tema que me chegou ontem foi a vida. Pano para mangas, não é? Pois. Mas como a inspiração não era muita fui buscar um par de versos excelentes do John Lennon e o lego seguiu a partir daí.

A Vida

A vida é aquela coisa que nos acontece
quando estamos distraídos planeando coisas diferentes
é o que fazemos mesmo se não apetece
é a soma dos sins e dos nãos, dos provavelmentes
é um navio aos tombos
e nós, os que a vivemos
os que nela nascemos e por ela morremos
de sua festa somos os bombos

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Desafio 2: O Banquete

Eu sabia que me iam logo atirar com coisas escorregadias. Acho muito bem.

Pois acontece que aqui há dias escrevi um tuito em que dava conta do meu desagrado quando me deparava com descrições pomenorizadas de comida nas minhas traduções. Dá uma trabalheira e abranda a velocidade da tradução. É uma chatice. E aqui está alguém a propor-me como tema de uns quantos versos um banquete, pois que mais havia de ser? Lembrando-se de um certo autor de que eu não digo o nome (coffgeorgerrmartincoff), mas que vai falando de comida com grande profusão ao longo da série de livros de fantasia que traduzi.

Então tá bem. Cá ficam eles, os versos sobre um banquete:

O banquete

No centro da larga mesa, uma bandeja
onde um javali se derrete em gordura
à volta gritos, risos, arrotos e bocejos
a um canto um casal enovela-se em ternura
e há quem apalpe seios entre beijos
pratos tilintam, bebe-se seja o que seja

Criados circulam por ali sem serem vistos
a menos que se estatelem, imprevistos
levam pratos vazios, trazem-nos cheios
eles ligeiros e sisudos elas num vento de chilreios
trovadores dedilham harpas e trauteiam
belas melodias que os outros só desfeiam

E junto à lareira, entre as sombras oculto
um vulto monumental de imensas barbas
entre pernas de frango e tragos de cerveja
vai observando com olhos vivos o tumulto
e murmurando “é isso mesmo, é mesmo assim”
rabisca num papel, com uma pena de marfim
“No centro da larga mesa, uma bandeja…”

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Vou precisar da vossa colaboração, meus caros

Há coisa de hora e meia, não interessa porquê, pus-me a ler os meus velhos spamemas. Para quem não acompanha este blogue há tempo suficiente, explico de que se trata: poemas, com ou sem pseudo, que fui fazendo ao longo de um ano inteiro, baseados no spam que me ia chegando à caixa do correio no dia em causa. O ano era bissexto, portanto acabaram por somar 366. Foi principalmente assim que alimentei a Lâmpada durante esse ano, e na época houve quem me dissesse que gostava.

Pois bem, agora estive a reler alguns desses spamemas, e fiquei com saudades de fazer algo do género. Mas o tempo não volta para trás, e a fase da spamesia está encerrada e não deve ser reaberta. Mas apetece fazer algo do género.

Pus-me a pensar, e acho que encontrei a solução. Peço-vos a vocês temas, títulos, frases que devem ser incluídas, e construo uns versos à volta deles e delas. O primeiro pedido é que vale, a não ser que por mais voltas que dê à cabeça não me sugira nada. O resultado aparecerá na Lâmpada no próprio dia ou nos dias seguintes, e assim que apareça está aberto o desafio seguinte.

Como é, rapaziada? Vamos nessa?

Para começar, apanhei uma amiga no messenger e pedi-lhe um tema. Ela deu-mo. E aqui está o resultado:

Cai a Lua

Cai a Lua, presa de fios invisíveis às estrelas
elásticos de noite que se esticam para o infinito
desenhando constelações assustadoras de tão belas

Cai a Lua, amarrada ao centro dos teus olhos
por girândolas de canções, alecrim aos molhos

Cai a Lua, e o céu tem pena
pois sem lua sente-se sem alma
Mas há que ter calma
há sempre a calma

domingo, 31 de outubro de 2010

Lido: Bruce en la Casetera

Bruce en la Casetera é um conto já algo antigo de Pablo J. Muñoz que pode ser encontrado aqui. Trata-se de uma história pós-apocalíptica ambientada ou na Argentina ou no Chile e centrada à volta de três personagens: o protagonista, que se chama Nico, outro homem chamado "el Taino", e Marisol, uma rapariga que é encontrada semimorta por Nico e el Taino bastante depois destes dois, julgando-se os únicos sobreviventes de um holocausto nuclear, pelo menos nas redondezas, terem encetado uma relação homossexual. El Taino, ao que parece, é mesmo homossexual, ao passo que para Nico aquele foi o seu primeiro amante do mesmo sexo, com o qual tem uma relação que parece obedecer à máxima "quem não tem cão caça com gato". Isto é importante para o desenrolar da história visto que o aparecimento de alguém do sexo oposto vai criar um triângulo que a empurra para o desenlace.

Não sendo uma grande história de ficção científica (enquanto FC até deixa algo a desejar; não se percebe bem, por exemplo, onde eles estão e como é que tanto tempo depois do holocausto que destrói a civilização ainda há eletricidade para os eletrodomésticos e os jogos de vídeo), é uma boa história, bastante bem escrita, com personagens bem construídas e credíveis, e uma situação que é ao mesmo tempo banal e iconoclasta dada a idade do conto. E o fim é muito, muito bom. Está aprovado.

Lido: Nanny

Nanny (bib.) é um conto de Philip K. Dick que faz lembrar um pouco os contos dos Superbrinquedos do Brian Aldiss ou alguns contos de Bradbury, especialmente aquele sobre o quarto holográfico, A Selva. Todos estes contos têm como premissa a entrega do ato de cuidar dos filhos, em todo ou em parte, a dispositivos automáticos, em especial robots. Mas Dick leva o seu conto num sentido bem diferente, como seria de esperar. Nanny é, como já terão entendido, um robot. É sua a responsabilidade pelos filhos de um casal, cabendo-lhe discipliná-los, acompanhá-los e protegê-los. Mas a sociedade é ferozmente capitalista, e as nannies são construídas por várias corporações rivais. Ora, qual é o objetivo primário duma corporação? Maximizar o lucro, evidentemente. E que melhor forma haverá para maximizar o lucro do que destruir as nannies produzidas pelos rivais, reduzindo a competição, aumentando a procura e melhorando a imagem de qualidade? Afinal, qualquer pai vai querer para os filhos a melhor nanny do mercado, ou não será assim?

Só não é um conto excelente porque sofre demasiado do fator "como sabes, Bob". Dick põe demasiadas vezes as personagens a dar umas às outras informação que ambas conhecem, para benefício exclusivo do leitor. Mas ainda assim, é uma ótima crítica ao capitalismo e às consequências da corrida aos armamentos que tanto obcecava a América durante os anos 50. Boa e muito recomendável leitura nestes tempos de roubalheira desenfreada.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Lido: Firmin

Firmin (bib.) é um romance do escritor americano Sam Savage. Firmin é, também, o nome do protagonista desse romance. Firmin é, ainda, uma ratazana.

Sim, trata-se de um romance protagonizado por uma ratazana e mais: trata-se também de um romance narrado por uma ratazana, pois está escrito na primeira pessoa. Mas não é uma ratazana qualquer. É uma ratazana bibliófila e, ocasionalmente, bibliófaga, que nasceu e viveu a vida toda num velho edifício em cujo andar térreo funciona um alfarrabista. E é essa contingência da existência que vai solidificar na ratazana protagonista um amor pelos livros (e também, até certo ponto, pelo cinema, pois no mesmo bairro há também um velho, gasto e porco cinema onde a ratazana vai alimentar-se) que nada fica a dever a qualquer de nós, os macacos bípedes que normalmente os lemos.

A história acompanha toda a vida de Firmin e, através dela, a decadência final do bairro, condenado para ceder lugar a grandes investimentos imobiliários. E em parte também a decadência de uma certa forma de relacionamento quer entre as pessoas e a cidade, quer entre as pessoas e a palavra escrita e os locais a ela consagrados na cidade. É também uma história de paixões, pois é de paixão em paixão que a nossa ratazana vai vivendo a sua vida. Primeiro pelos livros, depois pelo dono da livraria, mais tarde por um escritor de ficção científica que mora por cima da livraria e sobrevive vendendo ele próprio os livros que escreve e publica em edições de autor, e assim sucessivamente. E é uma história sobre a diferença e a solidão, porque a ratazana, com os seus modos de rato sábio, vai tornar-se estranha para a sociedade das ratazanas, mas não vai nunca conseguir ser aceite pelos seus irmãos de espírito humanos pelo facto inalterável de ser uma ratazana.

E é isto o que o livro tem de melhor: esta multiplicidade de camadas e de temas.

Basta isso para me parecer ser um bom livro, embora nem tenha gostado muito dele. O estilo de Savage não me enche propriamente as medidas, e parece-me, aqui e ali, que o ritmo narrativo fraqueja um pouco. Nada de grave, e embora não tenha gostado assim muito, gostei desta leitura. Não acho o livro uma obra-prima, mas é um livro simpático, que se lê com um certo gosto. Uma fábula moderna muito ligada a este vício de virar páginas para ver o que acontece naquela que vem a seguir. Não será livro imprescindível, mas julgo ser livro recomendável.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Lido: O Caixão Abandonado

O Caixão Abandonado (bib.) é um conto de António de Macedo sobre um homem, alcoólico, que trabalha como jardineiro num convento por ser o único lugar que conseguiu arranjar e um belo dia (ou nem por isso) encontra abandonado no jardim um caixão em perfeito estado de conservação. Após a descoberta inicial, durante o resto do conto decorre uma lenta procura de informação sobre o caixão, o convento, as freiras, etc. Apesar do desfecho ser algo óbvio, é um conto com interesse, que a meu ver vale sobretudo pela construção do protagonista e é algo estragado por algum humor que me pareceu deslocado na atmosfera agoirenta que sem ele seria construída. Coisas como a barbuda piadola que transforma hackers em ácaros, para dar um exemplo entre vários possíveis. Não tendo desgostado, portanto, também não se pode dizer que tenha gostado.

Lido: A Lua Como um Cogumelo

A Lua Como um Cogumelo (bib.) é outro conto de Italo Calvino no qual prontifica o eterno extraterrestre Qfwfq. Este trata do nascimento da Lua, e descreve uma movimentada história que começa numa Terra antiquíssima e sem Lua, coberta por um oceano pouco profundo habitado por um povo de pescadores, na qual começa a dada altura a surgir à superfície uma bolha de rocha que vai crescendo e se torna território cobiçado por um dos mais famigerados bandidos da época. Após um conjunto de peripécias mais ou menos aventurosas, essa bolha de rocha, essa maré sólida, acaba por transformar-se na Lua, deixando a Terra, cá em baixo, separada em oceanos e continentes e não já sob as águas de um oceano global. Uma história surreal e imaginativa, como costumam ser as histórias de Qfwfq, ainda que não tão divertida como algumas das outras.

domingo, 24 de outubro de 2010

Lido: Contos Acrónicos

Ao contrário do que o título parece indicar, Contos Acrónicos, de António Eça de Queiroz, não é um livro de contos, mas sim um romance. Nem sequer é um romance em mosaicos, uma coletânea de contos interligados, um romance fragmentário, como queiram chamar-lhe. É um romance, ponto.

Trata da história de um tal Lamas, bibliotecário, contada por um tal "o outro", fantasmagórico interveniente na história que em geral funciona apenas como narrador e no qual se reconhece sem qualquer dificuldade a pessoa do autor. Mas também no Lamas (com o qual, aliás, o narrador por vezes se mistura) esse reconhecimento acontece, o que dá à história um tom marcadamente autobiográfico — há, pelo menos, bastantes coincidências entre a história de vida de Lamas e o par de parágrafos biográficos sobre o autor que vêm na contracapa do livro —, se bem que falar-se aqui de história talvez seja levar o significado do termo um pouco longe demais. Com efeito, o romance é, mais que uma história, uma coleção de episódios desencontrados e em grande medida desenquadrados, historietas, pinceladas que não chegam a formar um todo coerente. O objetivo parace ter sido criar com a palavra uma espécie de retrato impressionista da personagem principal, mas não me parece ter tido sucesso, ou pelo menos esse sucesso não é mais que parcial.

Entremeados no romance, aqui e ali, aparecem toques de fantástico, de um tipo que em geral remete para o realismo mágico apesar de também surgirem por vezes referências à ficção científica. Adotando a definição todoroviana do termo que diz que fantástico é tudo aquilo que deixa dúvidas sobre se a sua natureza é real ou sobrenatural, talvez haja passagens suficientes neste livro a pretender deixar essa incerteza no ar para que se possa inscrevê-lo na literatura fantástica. Pessoalmente, porém, não é assim que penso nele. Pareceu-me um exercício não particularmente bem sucedido e bastante desconexo de romantizar uma história de vida, no qual o fantástico é introduzido como forma de a tornar menos desinteressante. É uma abordagem que não me agrada e não gostei do resultado. Foi com dificuldade, e devagarinho, que levei a leitura até ao fim, apesar da língua portuguesa não sair em nada maltratada desta centena e meia de páginas. Basta isto, julgo eu, para fazer com que haja quem aprecie esta leitura. Não foi o meu caso.

Lido: O Livro do Deslumbramento

O Livro do Deslumbramento é provavelmente a mais conhecida obra do Lorde Dunsany, e é certamente aquela que o transformou num dos grandes percursores da fantasia moderna. Não este Livro do Deslumbramento que a Saída de Emergência publicou, note-se. Este é uma espécie de coletânea de coletâneas, pois reúne num só dois livros diferentes, publicados originalmente em 1912 e 1916.

A edição faz todo o sentido. O segundo livro original é uma espécie de sequela do primeiro, mantendo em grande medida o tom e o(s) ambiente(s) daquele. Mas também é verdade que há diferenças. As histórias do primeiro livro têm uma frescura e um humor, muitas vezes autorreferencial, muitas vezes fazendo pensar na possibilidade do autor se estar a referir, sinuosamente, disfarçadamente, ironicamente, a situações e personagens com que se teria ido deparando no decurso da sua vida, que em boa parte falta às do segundo. Estas são mais variadas, tanto em ambiente e atmosfera como até em extensão. As do primeiro são todas bastante curtas, e várias parecem autênticos esboços de subgéneros inteiros da fantasia que foram aprofundados mais tarde por autores como Robert E. Howard ou Fritz Leiber, ou mesmo outros que se apropriaram do lado mais surrealista destas fantasias. Ao lê-las, se por um lado se reconhece nelas um imenso potencial não explorado por Dunsany, por outro vê-se também uma frescura e novidade que estão muito para além do alcançado por autores posteriores. No segundo livro há menos de tudo isso. De frescura, como já foi dito, mas também de potencial não explorado.

Contudo, há coisas que unem estas 33 histórias. O estilo do autor, claro, que pouco muda entre 1912 e 1916; Uma certa abordagem comum às histórias fantásticas, que vai buscá-las quase diretamente às lendas e aos contos populares. E o facto de quase todas terem interesse. É certo que os leitores mais dados ao aprofundar minucioso da ficção poderão sentir-se frustrados por muitas delas, as mais esboçadas, é certo que qualquer leitor com alguma experiência de fantasia já conhecerá muitas das ideias que aqui encontra, mas há sempre algo de especial na água que brota duma nascente. E várias destas histórias são muito boas. Este é um bom livro.

Para saberem o que achei de cada história, aqui têm uma lista completa:

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Ainda sobre edição, agora mais a sério

Há uma citação, atribuída a um almirante americano chamado Hyman Rickover, que reza assim: "Great men talk about ideas; Mediocre men talk about things; Small men talk about people." Traduzindo: "Grandes homens falam sobre ideias; Homens medianos falam sobre coisas; Homens pequeninos falam sobre pessoas." Isto, embora todos nós façamos as três coisas de vez em quando, tem muito de verdadeiro. Quando se desce das ideias para as coisas está a reduzir-se o nível da conversa, e quando destas se começa a falar de Fulano ou Beltrano ela bate no fundo. Quanto mais medíocre é o indivíduo, mais frequente é trazer a conversa para este nível rasteiro do diz-que-disse, e isto pode observar-se em todos os campos, da vida do dia-a-dia de cada um de nós aos níveis pretensamente mais elevados da política das nações.

Adaptando a coisa à literatura e à maneira de se falar do que é editado, esta máxima poderia ser adaptada a algo como isto: "Grandes homens falam dos livros; Homens medianos falam da vertente criadora dos autores; Homens pequeninos falam das editoras." E, claro, os homens realmente rascas não falam nem de livros, nem de autores, nem de editoras, mas das qualidades ou defeitos que os autores têm, em seu entender, enquanto pessoas.

Que quero eu dizer com isto?

Que o que importa é a obra. Falar-se do autor, mesmo que enquanto criador, não pode nunca substituir-se à leitura de cada um dos livros que ele escreveu, individualmente considerados. Porque o talento não se revela ao só escrever-se obras-primas, mas sim na proporção de material de qualidade que é produzido ao longo de uma carreira (de toda a carreira, o que faz com que as pessoas realmente inteligentes evitem fazer juízos de valor apressados sobre autores enquanto estes ainda estão capazes de criar) relativamente ao que não a tem, ou a tem em menor quantidade. Cada livro é um livro. Cada conto um conto é. Cada poema um poema. Todos diferentes, todos merecedores duma análise individualizada (a não ser que façam parte de séries, claro, ou quando se está fazer um apanhado da obra do autor X).

E se falar-se do autor enquanto criador deve ceder lugar à obra, por maioria de razão falar-se da editora em que a obra sai ou deixa de sair é atirar completamente ao lado. Porque se aquilo que envolve a obra (capa, marketing, distribuição, rigor e cuidado na edição, etc.) depende da editora, a obra propriamente dita não depende. Sendo verdade que a qualidade média das obras publicadas vai diminuindo das boas editoras para as más, não é menos verdade que há obras muito más editadas por editoras muito boas e vice-versa. Miguel Torga, grande escritor português do século XX, várias vezes nomeado para o Nobel, publicou boa parte da sua obra em edições de autor; ao Cristiano Ronaldo não faltam editoras ansiosas por fechar contrato.

De editoras pode e deve falar-se quando o assunto são as práticas comerciais desonestas em que algumas incorrem, ou aquilo que delas depende no processo de edição. Quando o assunto é a obra, falar-se seja do que for que não seja a obra é mostrar com toda a clareza que se está a Leste, que não se percebe nada do assunto, que não se tem a mais pequena credibilidade. Ou, pior, que a má-fé que por vezes move quem assim age pega no que encontra com o único fito de atacar obras ou autores que não consegue atacar de outra maneira. E assim voltamos à adaptação da citação do senhor Rickover.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Guia Candeias Para a Taxonomia Editorial

Tenho notado de há algum tempo a esta parte que há por aí uma grande confusão, em boa medida deliberada, em torno do que são e como funcionam as editoras deste país. E dos outros, que nisto, como em tantas outras coisas em que nos julgamos únicos e especiais, não há nada que nos separe dos outros. Não sendo uma autoridade inatacável na matéria, mas tendo alguns conhecimentos sobre ela, resolvi deixar aqui o meu modesto contributo para que quem opina saiba melhor sobre o que opina e possa ter uma breve referência básica.

A editosfera subdivide-se em três géneros. Os dois primeiros subdividem-se em várias espécies cada um, o outro constitui uma espécie única. São eles:

  • Genus Professionalis - editoras profissionais, aquelas que servem de ganha-pão pelo menos aos donos, e muitas vezes também a equipas de funcionários e colaboradores;
    • Professionalis comercialis - editoras que publicam tudo o que venda, seja bom seja uma porcaria. O best-seller é deus e o dinheiro que ele gera é seu profeta. Com várias subespécies, algumas especializadas em certos habitats (especialmente em mercados maiores, naturalmente), é uma espécie muito abundante, e por vezes os exemplares atingem grandes dimensões;
    • Professionalis amiculivrus - editoras que, entre o que vende, procuram publicar apenas aquilo que lhes agrada. Os exemplares tendem a ser muito pequenos e ágeis, sempre a tentar roubar aos P. comercialis e aos P. amantissimus um naco de comida particularmente apetitoso;
    • Professionalis amantissimus - editoras que usam edição comercial, por vezes de coisas por que nem têm grande respeito, para financiar a edição de livros que sabem à partida que vão dar prejuízo mas que acham que devem publicar, ou porque acham que fazem falta no mercado ou porque realmente os adoram. Tendem a atingir dimensões superiores às dos P. amiculivrus, mas não atingem nunca o tamanho dinossáurico de alguns dos P. comercialis. O seu modo de alimentação é semelhante ao do P. amiculivrus, mas costumam ter mais força para defender os acepipes;
    • Professionalis predatorius - as aves de rapina do meio editorial. Publicam qualquer merda desde que alguém lhes pague. Normalmente a vítima principal é o pobre autor iludido que julga que só assim poderá ter uma oportunidade e que ao mesmo tempo que é sugado até ao tutano fica com o nome manchado no mercado;
  • Genus Amatoris - editoras amadoras, aquelas que, embora possam gerar algum lucro, não geram o suficiente para a sobrevivência de ninguém;
    • Amatoris amantissimus - editoras que só publicam aquilo de que realmente gostam, frequentemente mostrando grande brio nos acabamentos e em todo o processo. Uma subespécie, A. amantissimus ridiculus, tenta mimetizar a pertença ao género Professionalis; os especialistas divergem na interpretação deste curioso fenómeno;
    • Amatoris nichianus - editoras muito proximamente aparentadas às A. amantissimus (alguns autores consideram-nas uma única espécie, apontando como prova, entre outras características, para a existencia, também aqui, de uma subespécie ridiculus); caracterizam-se principalmente por adotarem uma grande especialização ecológica;
    • Amatoris desenrascus - editoras que publicam o que calha, como calha, quando calha. São a espécie de vida mais curta em toda a editosfera;
    • Amatoris ideologicus - editoras que publicam tudo o que promova as ideias dos seus editores ou donos. Muitas mimetizam com grande eficácia a pertença ao género Professionalis, mas um exame mais atento às suas características fisiológicas revela que o dinheiro provém não da edição propriamente dita mas de quem quer promover as ideias;
    • Amatoris milionariaborrecidus - editoras que não têm falta de dinheiro porque possuem um mecenas forte; aparentadas com a A. ideologicus, diferenciam-se desta por não publicarem exclusivamente obras a promover as ideias dos donos, embora também o façam;
    • Amatoris predatorius - editoras que sonham ser P. predatorius mas não conseguem;
  • Genus Setinstrumentus
    • Setinstrumentus individualis - espécie isolada, vive em simbiose com gráficas e casas de print on demand; dotada de enorme variabilidade interna, cada indivíduo é uma subespécie, ainda que uma boa maioria se possa agrupar de uma forma pouco rígida num agrupamento chamado minitalentus inteligentis, por não caírem nas malhas dos P. predatorius. Uma boa maioria, note-se, não a totalidade: a subespécie mais valiosa é a S. individualis migueltorgus, várias vezes nomeada para o Nobel.
E pronto. Imprimam este pequeno guia e estudem-no bem. Ser-vos-á útil.

Pessoalmente? Há algumas espécies aqui que me interessam. P. amiculivrus, P. amantissimus, A. amantissimus, A. nichianus e S. individualis, basicamente. As outras dispenso, e de algumas fujo a sete pés.

Adenda: por lapso, tinha-me esquecido de incluir no esquema a A. predatorius. Já está corrigido.

domingo, 10 de outubro de 2010

Lido: As Três Piadas Infernais

As Três Piadas Infernais é um conto do Lorde Dunsany sobre um pobre coitado que o narrador encontra numa estrada secundária na Escócia e que é vítima dum negócio que terá corrido terrivelmente mal. Um negócio, está bem de ver, sobrenatural. Com efeito, o protagonista desta história teria sido portador do raríssimo dom de achar todas as mulheres feias, e um diabólico estranho propusera-lhe um negócio que ele, irrefletidamente aceitara: trocar esse dom por três piadas que matariam de riso todos os que as ouvissem. Literalmente, embora o protagonista não o tenha compreendido — daí ter aceite a troca. É mais uma boa história do nosso lorde, esta com um pendor para o horror que não é pequeno, apesar de urdido com algum humor à mistura.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Lido: Realidad Esquiva

E a vigésima e última história da tal página, Realidad Esquiva de Carlos Feinstein, é ao mesmo tempo uma das mais curtas e absolutamente brilhante. Trata das consequências que a descoberta da viagem no tempo tem sobre o tecido da realidade, e o conto está executado duma forma que só posso qualificar de soberba. Não tem descrição, só lendo. Muitíssimo bom.

Lido: La Mujer del Astronauta

No décimo nono conto da mesma página volta a encontrar-se um nome português, desta vez o de Luís Filipe Silva. O conto, La Mujer del Astronauta, não tem, que eu tivesse encontrado, versão online em português (quando procurei, o Tecnofantasia não estava a carregar; é possível que se encontre aí), portanto terá que ser a espanhola. É uma pequena mas engraçada anedota que não tem a ver com as viagens no tempo, propriamente, mas sim com os paradoxos relativísticos: um astronauta que partiu em exploração de uma estrela distante regressa, passados vários anos do tempo de nave mas muitos mais do tempo terrestre, e vai encontrar alguém que não esperava voltar a ver... a mulher. Um continho bem concebido e divertido.

Lido: El Lántura

O décimo oitavo pequeno conto da tal página que já ando a visitar há uma porção de tempo chama-se El Lántura e foi escrito pelo espanhol Miguel Ángel López Muñoz. É um conto estranho, passado nos tempos de Roma, que parece mais uma fantasia mais ou menos pura do que um conto de viagem no tempo como os outros. Não gostei por aí além. Pareceu-me que aquilo que o autor queria contar não cabia num conto tão curto.

Lido: O Pagamento

O Pagamento (bib.) é uma noveleta de Philip K. Dick que quem vai ao cinema ver FC já conhece de certeza, pois foi nela que se baseou o filme Paycheck. O conto é francamente bom, das melhores ficções curtas de Dick que já li, e o argumento do filme segue-o de perto, embora não lhe corresponda por inteiro. Um homem, ao terminar um contrato muito especial que implica o apagamento dos últimos dois anos da memória, recebe, em vez da avultada soma de que estava à espera, um saquinho cheio de objetos aparentemente inúteis "enviados" pelo seu eu pré-apagamento. Mas vai-se apercebendo aos poucos de que aquelas coisas lhe abrem portas, e do que está por trás delas. Argumento puro, escrito com grande economia de meios, a noveleta é vertiginosa sem no entanto parecer apressada, e tem em si tudo aquilo que elevou Dick a figura de primeiro plano na FC americana: a paranoia, a desconfiança da autoridade, um enredo complexo mas bem amarrado, etc. Muito bom.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Lido: O Códice Abandonado

O Códice Abandonado (bib.) é uma longa noveleta de António de Macedo sobre uma série de peripécias que giram em volta do códice abandonado do título. Trata-se de uma sequela do romance em mosaicos que Macedo publicou em 1993, Contos do Androthélys, ambientada anos mais tarde, mas com parte das personagens e dos ambientes em comum. Tal como o romance, esta noveleta é uma espécie de fantasia urbana e mística com ténues toques de horror (ténues porque não causam medo nenhum) e, tal como o romance, envolve "criaturas transdimensionais", sílfides, demónios e coisas do género, e acaba num estertor quase apocalíptico. Mas começa de outra forma; começa quando um dos protagonistas encontra no metro de Lisboa um exemplar dum calhamaço antigo, mágico e indecifrável, um tal "Codex Tashniquanus", e entra em luta contra o tempo para salvar uma série de coiros, o dele e o de todos os outros visitantes e habitantes da zona de Lisboa ou até, quiçá, de boa parte da Península Ibérica.

Não gostei, embora tenha gostado mais do que do romance. É das tais histórias em que sinto que Macedo exagera na dose, e das quais não só não consigo gostar como é a custo que leio. Há, além do exagero de hermetismos e astrologias, mais algumas coisas que contribuem para esse afastamento, acima de tudo o facto de boa parte do enredo e do texto ser composta por pessoas a explicarem coisas umas às outras, calmamente paradas no mesmo sítio. Só no fim a história ganha algum dinamismo, e mesmo então bastante menos do que o caráter emergente dos acontecimentos aconselharia. Mas a outra face da moeda vai encontrar diálogos que são em geral mais credíveis do que em algumas das outras histórias do autor e um texto basicamente correto. Qualidades que, a somar à incontestável erudição de António de Macedo nestes tipos de temas mais ou menos cabalísticos, podem servir de base para que alguns leitores gostem desta história. Acho mesmo provável que quem se interessa por eles goste. Não é o meu caso, infelizmente.

Mais duas resenhas a Flor do Trovão nos últimos dias

Isto é basicamente um post referencial, para registar que foram acrescentadas à lista duas novas resenhas à antologia Imaginários 2, na qual tenho um conto. Bom ver que, um ano depois, o livro continua a gerar opiniões. E, claro, que estas mantêm um tom geralmente positivo, quer quanto ao livro como um todo, quer quanto à minha participação nele.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Lido: As Filhas da Lua

As Filhas da Lua (bib.) é mais um conto de Italo Calvino contado por Qfwfq, o extraterrestre. Desta feita vamos encontrar uma mirabolante historieta sobre Luas sucessivas, que os habitantes da Terra tendem a arrancar do céu de tempos a tempos porque lhes desagrada à vista, ocupada com coisas mais limpas e úteis do que aquelas velhas sucatas que vogam pelo céu sem préstimo para ninguém. A história concentra-se na época duma dessas remoções, durante a qual surgem por todo o lado umas moçoilas nuas, as filhas da lua do título. E vai por aí fora de ideia surreal em ideia surreal até que o ciclo se completa. Não foi dos contos de que mais gostei, confesso com toda a franqueza. Não me agradou particularmente a forma como a ideia foi concretizada. Mas é um conto de Calvino, o que quer dizer que não pode ser mau.

domingo, 3 de outubro de 2010

Lido: O Clube dos Exilados

O Clube dos Exilados é um conto do Lorde Dunsany no qual um cavalheiro, por descuido, faz uma afirmação que o leva a ser convidado a fazer uma visita a um estranho mas distintíssimo clube. Trata-se de um clube que reúne uma sortida coleção de cabeças coroadas no exílio, entre reis depostos, pretendentes a tronos extintos e até a tronos de países que já não existem. Mas, no decurso da sua visita, o nosso protagonista vem a descobrir que o clube não é bem o que parece. Este conto, fantástico como os demais apesar de não parecer pelo que ficou escrito acima, não é tão divertido como muitos dos que o acompanham no livro a que pertence mas tem um final surpresa muito bem trabalhado. E é provável que dizer isto já seja estar a falar demais, pois parte da eficácia do final surpresa consiste em não se saber que no fim há uma surpresa.

Lido: La Primera Vez

O décimo sétimo conto da tal página em espanhol intitula-se La Primera Vez e foi escrito pelo argentino Hernán Domínguez Nimo. Trata-se de uma daquelas histórias muito privadas de viagem no tempo com que toda a gente já deve ter sonhado pelo menos uma vez: "Ah se eu pudesse voltar atrás no tempo e dizer ou fazer ao meu amor isto e aquilo em vez daquilo e daqueloutro". E quem fala de amor pode falar de chefes, colegas, família, desconhecidos que se encontram na rua, qualquer coisa. Qualquer arrependimento serve, e quem não tem arrependimentos na vida?

O protagonista deste conto consegue fazê-lo, e com isso ganha a inveja de todos os que o lerem. Pelo menos essa qualidade o conto tem. E tem mais algumas; não sendo um conto extraordinário, que não é, é ainda assim um conto interessante.

sábado, 2 de outubro de 2010

Lido: Deste Mundo e do Outro

Deste Mundo e do Outro, livro de crónicas de José Saramago escritas em 1968 e 1969 e publicadas no jornal A Capital, é um livro curioso, para mim, por me mostrar um Saramago antes de ser o Saramago. Não pela primeira vez, é certo, visto que já antes tinha lido o primeiro romance que ele escreveu, Terra do Pecado, e também O Ano de 1993, um texto algo experimental que está algures entre um longo poema e um conto. Mas os textos aqui reunidos são decididamente prosa, e foram escritos muito depois de Terra do Pecado, mostrando já (aí é que está, aliás, o principal interesse do livro) parte dos temas e da abordagem que Saramago viria a explorar mais tarde quando conheceu o sucesso e se tornou escritor a tempo inteiro. Faltava ainda o estilo. Aqui, Saramago já escrevia bem mas ainda não tinha decidido mandar ao ar algumas das convenções que regem o texto escrito na língua portuguesa.

E não, não é a pontuação como tantas vezes diz quem nunca o leu. É fundamentalmente a supressão gráfica da separação entre os diálogos e o texto descritivo.

Curioso é também ver aqui tão claramente um Saramago amante, e até certo ponto conhecedor, de ficção científica. Um Saramago que chega mesmo a fazer umas visitinhas ao género ao longo desta páginas, muito embora seja mais frequente "ficar-se" pelo fantástico que acabaria por explorar mais consistentemente mais tarde. Um género cujos praticantes portugueses, a maioria deles, pelo menos, mostram uma tendência desconcertante para renegar este antigo fã, que uma ilustre academia sueca elegeu como o melhor prosador português do século XX. Talvez se lessem este livro mudassem de opinião? Talvez, só talvez.

Quanto a mim, há muito que defendo que Saramago foi dos nossos. Que, entre outras coisas, também escreveu FC. E que a maioria das outras coisas se integram com toda a naturalidade na grande família da literatura fantástica. Também por isso foi com gosto que encontrei todas essas vertentes já esboçadas nas páginas deste livro se bem que, claro, a maioria destes textos sejam não-ficcionais, sejam crónicas propriamente ditas, algumas com referência direta à atualidade de há mais de 40 anos, outras mais genéricas. Mas também as há ficcionais, pequenos contos em que Saramago utiliza frequentemente os mecanismos da ficção para fazer valer um argumento ou uma ideia. Por isso, mesmo não sendo um livro extraordinário, mesmo não sendo um verdadeiro Saramago no que toca ao estilo, é um livro bastante recomendável. Foram poucas as crónicas de que não gostei mesmo, foram mais algumas as que me deixaram indiferente, da maioria gostei e de algumas gostei muito.

Dado o seu grande número, não farei aqui a lista de links para as opiniões que fui deixando na Lâmpada sobre cada uma delas. Desculpem lá. É trabalho a mais. Mas uma busca por "José Saramago" na caixinha ali em cima deve dar aos interessados os resultados relevantes.

Lido: O Verão

O Verão é uma crónica brilhantemente escrita e muito poética de José Saramago, um hino ao verão que há que ser lido para se lhe fazer justiça. De nada serve dizer mais do que isto, bem pelo contrário. Muito bom.

Lido: O Sorriso

O Sorriso é uma crónica inócua de José Saramago, na qual ele tece considerações e faz um pouco de literatura sobre o sorriso e as diversas formas que ele toma. Confesso não lhe ter achado grande interesse, por não me ter parecido que saísse muito de banalidades que qualquer um poderia pensar numa noite ociosa daquelas em que nos dá para a filosofia, ainda que talvez não deitar ao papel as suas reflexões exatamente daquela forma.

Lido: A Cadeira Abandonada

A Cadeira Abandonada (bib.) é um conto curto de António de Macedo que parte de uma ideia e cria uma ambiência muito próxima dos contos tradicionais, o que é tão assumido que a história até começa com o tradicionalíssimo "era uma vez". Um homem arranja uma cadeira mágica, que dá ideias a quem nela se senta mas, como costuma acontecer neste tipo de contos, não as dá de forma gratuita: o ato de sentar na cadeira e obter ideias, se muitas vezes repetido, torna-se perigoso. A partir desta ideia base Macedo cria uma série de peripécias divertidas e irónicas, e constrói um conto igualmente divertido e irónico, cujo principal defeito talvez seja ser um pouco longo demais. Uma página e um par de peripécias a menos, e seria mesmo, mesmo bom. Mas é um bom conto. Com humor e inteligência q.b. e sem excessos de esoterismo. Aprovado.

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Lido: A Casa Quieta

A Casa Quieta é um romance de Rodrigo Guedes de Carvalho que nem sequer se esforça para esconder a sua afiliação a um estilo e perspetiva literários liderados por António Lobo Antunes. Um longo exercício de estilo com comparativamente pouco conteúdo, repleto de repetições e ruminações das mesmas ideias, consegue ainda assim ser menos encerrado na forma do que livros como Que Cavalos São Aqueles que Fazem Sombra no Mar? Mas, apesar disso, ainda o é muito em demasia para que eu consiga gostar dele.

Não é um mau livro, note-se. Literariamente é até um bom livro, na medida em que Rodrigo Guedes de Carvalho faz bem aquilo que se propõe fazer. Há pormenores interessantes, como alguma adaptação do estilo que é usado àquele que estava em voga entre os lobantunianos na época que está a ser representada em cada parte do romance (este abrange um período de 20 anos, entre 1985 e 2005), ou o facto de começar pelo fim e a ele regressar, no fim. Mas tudo isto se refere à forma. O conteúdo é um fado do desgraçadinho quase insuportavelmente deprimido e deprimente, com uma história familiar de mortes e enlouquecimentos que daria para 50 páginas, se tanto, caso não fosse esticado e re-esticado, torcido e retorcido quase até ao ponto de rotura pelos artifícios da forma. O livro tem 250. 250 longas, lentas, palavrosas páginas que pouco atam e nada desatam, sobre a decadência duma família da alta burguesia lisboeta (não da antiga, porém; da nova-rica). Não há um pingo de humor, há apenas um lento desespero ao som gemebundo das guitarras.

Sim, está bem feito. Mas. Não. Há. Pachorra.

Não há pachorra para nenhuma daquela gente, cujo traço de personalidade realmente marcante é ter muita, muita, muita pena de si própria. Não há pachorra para uma análise tão superficial sobre a condição humana que nos reduz a meros bocados de carne à espera da morte. Não há pachorra para todo aquele pessimismo oprimente, para toda aquela choradeira sem redenção, para todo aquele silêncio. Só dá vontade de abrir as janelas da casa quieta e berrar "tirem-me daqui!"

Este é dos tais livros que apesar das qualidades que possam ter, acabam por se tornar detestáveis. Para mim, bem entendido. Há quem se pele por coisas destas.

Mas mais detestável ainda é tanta da literatura mainstream portuguesa das últimas décadas ser precisamente assim. Forma sempre sobreposta ao conteúdo (e nisto salva-se o Saramago, que criou a sua forma, o seu estilo, e depois se dedicou a explorá-lo com conteúdo, e às vezes conteúdo de primeiríssima água), e o pouco conteúdo que consegue a duras penas quebrar a barreira da forma a sair deprimente, deprimido, negro como catacumbas. O resultado? Estátuas literárias que até podem estar muto bem esculpidas por fora mas que por dentro estão ocas, sem um soprozinho de vida, sem sequer uma aragem, um rebentar de ondas. Coisas mortas. Caixas vazias.

Meus senhores, escritores, editores. Leitores. Quero dizer-vos que. Não. Há. Pachorra.

Lido: A Mole Lua

A Mole Lua (bib.) é um conto curto de Italo Calvino sobre aquilo de que o título já fala: a Lua mole. Sim, mas não se pense que estamos aqui no reino da lua enquanto bola de queijo. Não. É mais uma história sobre a formação do nosso planeta, contada pelo inefável Qfwfq. Antigamente, diz ele, a Terra era toda lindinha, feita de materiais impermeáveis, limpos e duros, mesmo como deve ser. Mas eis que acontece uma desgraça. A Lua, então um planeta como os outros, girando livre em torno do Sol, aproxima-se demasiado da Terra e não só fica presa à nossa volta como as marés geradas pela inaudita aproximação entre os dois planetas vão fazer com que caia na Terra uma quantidade incrível de material lunar (e vice-versa, bem entendido). Que material lunar? Nhanha, pois então, às toneladas, aos milhares de toneladas. É mais um conto surrealmente divertido, sem dúvida, mas este é bem capaz de ter sido o que menos me agradou entre os que até agora li neste livro.

Lido: O Gambito dos Três Marinheiros

O Gambito dos Três Marinheiros é um conto do Lorde Dunsany sobre xadrez. Ou, mais propriamente, sobre um mistério que o narrador encontra numa taberna de "Over" (cidade inventada... mas é bem provável que a semelhança do nome com Dover seja tudo menos acidental): um grupo de três marinheiros, sempre os mesmos, que jogam xadrez com qualquer um que queira desafiá-los, do aprendiz ao mestre. E ganham. A todos. Mas só quando jogam os três juntos. É um conto fantástico movido a mistério (como é que três homens rudes, ignorantes, analfabetos, são de tal modo invencíveis num jogo tão intelectual como o xadrez?), que por isso mesmo não será aqui revelado por mim, bastante bem concebido e bastante bem executado. Menos divertido do que muitos dos contos mais curtos do nosso lorde, mas tão interessante como eles. Bom, francamente bom.

Lido: Prisioneros de la Eternidad

Regressando à tal página em espanhol e descendo até ao décimo sexto conto encontra-se Prisioneros de la Eternidad, do argentino Hugo José Bano. Trata-se de um conto lovecraftiano que realmente cumpre a matriz de pensamento de Lovecraft no que diz respeito ao incognoscível de certas coisas, neste caso do tempo. Para isso, finge-se de artigo e termina com um poema. Tem o seu interesse no campo das ideias, mas não me agradou por aí além. Em parte porque é muito raro que coisas lovecraftianas me agradem realmente, mas principalmente porque não me pareceu lá muito bem executado.

sábado, 25 de setembro de 2010

Lido: As Férias

As Férias é mais uma crónica estival de José Saramago, na qual ele nos oferece, claro está, a sua visão das férias, mostrando algum ceticismo pela cultura da viagem, mas não pelas descobertas que lhe estão subjacentes mas podem ser muito mais singelas do que ir ver a Torre Eiffel ou as Pirâmides. É uma crónica ligeira e intimista, sem nenhum interesse especial, que se lê bem mas com igual facilidade se esquece. Uma crónica estival, portanto. Fácil e passageira como o próprio verão.

Lido: A Noiva Abandonada

A Noiva Abandonada (bib.) é uma noveleta de António de Macedo com um complicado enredo sobre uma noiva abandonada no altar, uma velha monja morta muito parecida com ela e cujo espírito pretende ocupar-lhe o corpo, um par de estudantes de antropologia amigos do noivo, o próprio noivo, o diabo a sete. O esteio da história é a tentativa da monja para se apoderar do corpo da noiva, e as investigações e deduções herméticas (claro) dos estudantes. Não gostei. Diálogos forçados são algo que cada vez mais me desliga das ficções que vou lendo, em especial quando os ambientes são contemporâneos, e aqui o ambiente é contemporâneo e muitos dos diálogos (não todos, curiosamente) são bastante forçados. Ninguém diz coisas como: "O ritual católico do matrimónio, tal como é praticado em Portugal, não inclui essa sacramental pergunta!..." Ninguém fala assim, a não ser que esteja a gozar com a má literatura. Outro problema é o caráter aleatório de toda a investigação. As ideias vão caindo frequentemente do nada à medida que vão sendo necessárias para fazer avançar o argumento. E ninguém erra desde o erro inicial que desencadeia a história, ninguém se engana, no máximo há uns atrasos sem consequências. A acrescer a isso, como se não bastasse, há mais alguns detalhes no conto que são tremendas machadadas na minha capacidade de suspender a descrença e apreciar a literatura. Note-se que ao contrário dos diálogos que, esses sim, são um problema bastante objetivo, isto das machadadas na minha suspensão de descrença não quer dizer que o conto seja mau; afinal, trata-se dum conto de horror (embora não me assuste nada). É suposto que haja detalhes inverosímeis, fantásticos, irreais, mágicos, macabros, o pacote completo. Mas para mim Macedo exagera (o que só raramente não acontece) e isso reduz a zero a minha capacidade para gostar desta noveleta.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Lido: A Feiticeira do Douro

A Feiticeira do Douro (bib.) é uma novela de fantasia de Eduardo Augusto de Faria já bastante vetusta pois foi originalmente publicada há mais de cento e cinquenta anos. A história tem um ambiente medieval que só não é inteiramente banal porque para os leitores de fantasia de hoje os ambientes medievais típicos remetem para o norte da Europa e não para o norte de Portugal. Este livro, como o próprio título indica, passa-se na região do Douro, e centra-se numa velha bruxa que foi vítima de um hediondo crime passional muitas décadas antes e, depois de andar pelo mundo a alimentar o ódio, regressa para se vingar de quem cometeu o crime e da sua família, armada de feitiços.

Grande tragédia, ao gosto romântico da época, claro está. Sentimentos superlativos e violentos, tiradas tonitruantes, muitos ohs, muita faca e muito alguidar. Quem sabe alguma coisa sobre os velhos clichés das histórias românticas depressa deduz todo o enredo quase aos mínimos detalhes, e Faria segue-o fielmente. Não é grande coisa como escritor, infelizmente, para não dizer que é francamente mau. Ops. Já disse. Falta-lhe rasgo e sobra-lhe banalidade de ideias e de execução. E para piorar as coisas, aqueles diálogos forçadíssimos talvez fossem ao gosto da época (duvido) mas para os olhos de leitores modernos (bem, pelo menos deste leitor moderno) chegam a parecer ridículos. E há muitos, e confusos.

Para mim, a maior curiosidade do livro residiu em algumas formas de organizar as frases, em expressões como me faz, me diz, esse tipo de coisa, que para a maioria dos leitores portugueses de hoje soa muito brasileira, mas não o é. É certo que Faria viveu no Rio de Janeiro (onde esteve envolvido numa série de falcatruas e de onde acabou por fugir para Londres), mas isso foi só depois de ter malamanhado um dicionário de língua portuguesa em Portugal, de ter feito um conjunto de traduções do francês que ao que parece eram horrendas, e de ter escrito e publicado este livro. O homem era português, desonesto e incompetente, não necessariamente por esta ordem. Mas a forma de organizar as frases que muitas vezes apresenta tem, hoje, ressonância brasileira.

Curioso, não?

De resto, o livro só tem o interesse histórico de mostrar que já em meados do século XIX se escrevia em Portugal fantasia de inspiração medieval. Fora isso... É um mau livro, com uma má história mal contada por um mau escritor. Está longe de ser o único. Mas isso também é educativo, porque há por aí muita gente que parece estar convencida de que tal fenómeno é coisa dos últimos 5, vá, 10 anos no máximo. Não é. Muito, muito longe disso.

Lido: Os Cristais

Os Cristais (bib.) são mais um conto de Italo Calvino sobre o alienígena Qfwfq e as suas várias andanças pela história da Terra. Desta vez, acompanhamos a lenta solidificação da crosta, a formação dos diamantes, rubis, topázios, quartzos e ametistas ao mesmo tempo que vamos observando a frenética vida de Qfwfq em Nova Iorque, rodeado de grandes estruturas geométricas de aço e vidro, reminiscentes das estruturas cristalinas geológicas. É, pois, um conto em dois tempos, a que se acrescenta uma sempiterna discussão entre Qfwfq, que admira a pureza do cristal e defende que é essa a essência de tudo, e Vug, uma velha namorada, que pelo contrário tem atração pela impureza. Um conto bastante complexo, ainda que curto, e muito bem construído, mas que me deixou mais frio do que os anteriores.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Lido: Outros Brasis

Outros Brasis é uma coletânea de história alternativa bastante "impura", de Gerson Lodi-Ribeiro. E chamo-lhe impura porque as suas quatro histórias, duas a representar um universo ficcional, e outras duas a representar outro, são primordialmente HA, com certeza, mas também são outras coisas, o que só lhes empresta mais riqueza. O universo dos Três Brasis vai beber (beber, topam? Trocadilho!) ao horror por intermédio do protagonista da maior parte das suas histórias, o vampiro Dentes Compridos. Mas, como este não é propriamente sobrenatural, antes uma criatura criptozoológica oriunda, presume-se, da Terra, também pode encarar-se estas histórias como FC. Já o outro universo, Pax Paraguaya, é por vezes abordado como HA razoavelmente pura, nomeadamente no primeiro conto aqui presente, mas por vezes também é fortemente contaminado com conceitos e abordagens de ficção científica.

Também por isso é uma boa coletânea. As histórias, embora por vezes se tornem muito descritivas, são inteligentes e estão bem escritas. Se o seu caráter descritivo pode afastar alguns leitores mais orientados para a ação, não é menos verdade que para outros a quantidade de pormenores que Lodi-Ribeiro fornece só torna a leitura mais saborosa. Pessoalmente, gosto mais das histórias da Pax Paraguaya do que das dos Três Brasis (refiro-me, claro, às presentes neste volume; o universo dos Três Brasis inclui mais histórias), mesmo apesar de me faltar, como português que sou, informação de base sobre a história real que a alternativa altera. Mas tanto umas como as outras valem bem a pena e quando foram reunidas neste livro cada um dos universos alternativos teve ainda direito a uma introdução, também ela interessante.

O que achei das histórias pode ser lido aqui:

Lido: A Ética da Traição

A Ética da Traição (bib.) é outra noveleta de Gerson Lodi-Ribeiro, pertencente à sua série de história alternativa Pax Paraguaya, tal como Crimes Patrióticos. Mas é uma daquelas histórias alternativas que podem enquadrar-se com igual propriedade na ficção científica. A ação decorre muitos anos depois da de Crimes Patrióticos, em pleno século XX, mas num século XX necessariamente diferente do nosso. O protagonista é um genial físico brasileiro, negro, que decide desertar do seu país após ter destruído a pesquisa que aí realizara porque os seus governantes estavam a pretender usá-la para fins que não considerava éticos. Há esta continuidade de tema entre os dois trabalhos: as decisões individuais sobre lealdade e identidade e aquilo que está certo, postas em confronto com o comportamento que a sociedade como um todo (ou cada sociedade individual, pelo menos) espera dos seus membros.

Mas aqui é dada ao argumento uma volta muito ciencio-ficcional. O trabalho do físico desertor tinha a ver com o tempo. Primeiro em teoria e depois na prática, ele tinha construído uma espécie de "janela" que lhe fornecia uma visão de outros períodos históricos... só que quando apontava essa janela para o seu próprio tempo não via o mundo que o rodeava, aquele em que o Paraguai ganhou a guerra da tríplice aliança, mas sim o nosso, em que a perdeu. Universos paralelos? Precisamente. O Brasil dele é muito mais pequeno do que o nosso, mas ao mesmo tempo muito mais justo. E quando as autoridades brasileiras procuram levá-lo a investigar uma forma de transformar a linha temporal em que vive na nossa, ou em algo de parecido à nossa, ele vê-se confrontado com um dilema.

Esse dilema é a parte mais interessante da história, aquilo que lhe confere coluna vertebral e estrutura. O resto, a camada superficial da noveleta, é uma história de espionagem. Logo ao iniciarmos a leitura encontramos o físico incógnito num barco fluvial que o levará ao Paraguay, mas rodeado de agentes secretos das várias nações interessadas no desenlace da história. E esses agentes não vão ficar de braços cruzados, naturalmente.

É uma história excelente. Se não for a minha história preferida do Gerson, está certamente num top qualquer. Muito bom.

Lido: Como Plash-Goo Chegou à Terra Indesejada

Sim, senhores. Adivinharam. Como Plash-Goo Chegou à Terra Indesejada é, de facto, um conto do Lorde Dunsany. E conta, por tremenda coincidência, o modo como Plash-Goo chegou à Terra Indesejada. Nunca o adivinhariam, certamente. Lendo-o ficamos a saber que Plash-Goo, não sendo propriamente um gigante, é um descendente de gigantes, e portanto a atirar para o grande, e que um belo dia tanto se irritou com um anão que vivia ali perto e se chamava Lrippity-Kang que se pôs à bulha com ele. E parece que foi assim que foi parar à Terra Indesejada. É mais um dos pequenos e divertidos contos de fantasia de Dunsany, é sim senhores.

Lido: Paisaje

Ainda na mesma página, desce-se mais um bocadinho e encontra-se o décimo quinto conto. Intitula-se Paisaje e foi escrito pelo argentino Claudio Alejandro Amodeo. É um pequeno conto escrito numa prosa bastante poética, com um ambiente mais surrealista do que propriamente fantástico, no qual a viagem no tempo não faz mais do que entrever-se. É também um conto bastante inconsequente, que acabou por não me dizer grande coisa. Não posso, portanto, dizer que gostei. Tem algumas imagens curiosas, mas pouco mais. Soube-me a pouco, e não por causa do tamanho.

Lido: La Primera Máquina del Tiempo... y la Última

Descendo mais um conto na tal página, até ao décimo quarto, encontramos La Primera Máquina del Tiempo... y la Última, de José Carlos Canalda. Trata-se de uma homenagem ao livro de Wells, ou mesmo duma espécie de fanfic. O viajante no tempo chega ao futuro longínquo e depara com um edifício identificado com um letreiro que ele consegue (milagrosamente) decifrar. "Indústrias Cárnicas Morlock", diz o letreiro. E o viajante no tempo, confundido com um eloi, vai ser obrigado a enfrentar o seu destino. Não gostei lá muito deste conto. Não me pareceu particularmente bem construído, e toda a ideia me pareceu algo óbvia demais.

Lido: Una Antigua Máquina del Tiempo

Ainda na mesma página, descemos até à décima terceira história e encontramos Una Antigua Máquina del Tiempo, do espanhol Raúl Alejandro López Nevado. Trata-se de um conto irónico e bem concebido, repleto de subtileza, e que, levando o leitor pela mão numa determinada direção, lhe acaba por apresentar precisamente o que o título indica: uma antiga máquina do tempo. Realmente antiga. E por aqui me fico; o conto é muito curto e dizer mais seria revelar demais. Muito bom.

Lido: El Libro

A décima segunda história daquela página em espanhol que tenho visitado bastante nos últimos tempos intitula-se El Libro e foi escrita pelo espanhol José Vicente Ortuño. Trata-se de uma brincadeira com um dos principais paradoxos das viagens no tempo: o do viajante para o passado que interfere com o seu curso normal. Se a intenção do conto não fosse humorística, podia-se pegar numa série de buracos que o argumento contém (o principal: então algum cientista viajante no tempo, necessariamente consciente da possibilidade de paradoxos, iria contactar H. G. Wells e agradecer-lhe pela inspiração? Nem por sombras.) para contestar a qualidade da obra. Mas é, e o final do conto funciona como um remate da piada muito bem conseguido. Uma história divertida, portanto.

Lido: Noite de Verão

Noite de Verão é também uma crónica de José Saramago, esta intimista, onde ele revela que tinha planeada uma crónica amarga sobre o estado no mundo, mas foi dar um passeio e, perante a bonança da noite de verão e o doce abandono dum casal de namorados deitado na relva de um jardim, não conseguiu dar sequência à crónica que estava prevista. Um texto bonito e, para variar, esperançado. E realmente convém variar de vez em quando. As coisas sempre iguais tornam-se chatas.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Lido: Cada Vez Mais Sós

Cada Vez Mais Sós é outra crónica de José Saramago em que ele faz referência ao espaço e à FC. Aquilo que lhe deu origem terá sido a passagem pelo planeta Marte, com seis dias de intervalo, das sondas americanas Mariner 6 e 7, e que terão enviado para a Terra fotografias que provavam sem margem para dúvidas que Marte era um planeta morto. Ainda que essas dúvidas se tenham reacendido várias vezes desde então, na época as fotos das Mariner representaram um fim definitivo para a imagem bradburiana (e lowelliana e wellsiana e de tantos outros) de Marte como um planeta moribundo, carente de água, habitado por uma raça antiga em lenta mas inexorável decadência. Na sua crónica, sem deixar de fazer uma referência a Bradbury, Saramago manifesta o seu desapontamento por estarmos sozinhos no sistema solar, rodeados de mundos sem vida. Vai saltando de mundo em mundo, para acabar por descer à Terra, único local de vida, e à responsabilidade humana por a manter viva. Para mim, hoje, o mais chocante é um número. Quando escreveu a crónica, há pouco mais de 40 anos, Saramago vivia neste planeta acompanhado de três mil milhões de seres humanos. Hoje somos seis. O dobro. É aterrador.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Lido: Um Salto no Tempo

Apesar do título, Um Salto no Tempo não é uma história de FC, embora com ela tenha a ver. Trata-se de mais uma crónica de José Saramago, de novo sobre a primeira alunagem, mas mais ainda sobre o modo como o cronista vê a Terra. Depois de ver a alunagem, diz Saramago aos seus leitores, a sua imaginação sugeriu-lhe que o que realmente vira não tinha sido uma viagem no espaço, da Terra à Lua, mas uma viagem no tempo, da Terra de agora a uma putativa Terra futura cuja paisagem, apropriadamente apelidada de lunar, em tudo se assemelharia à Lua que os astronautas visitaram. Uma Terra destruída pelos atos dos homens, cujas crateras, supõe-se, ainda que ele não o afirme, seriam o resultado do aniquilamento da guerra. Vivia então Saramago num país que travava três guerras; no Vietname outra guerra se enfurecia, e entre EUA e URSS a guerra fria ameaçava tornar-se quente a qualquer momento. Bem se compreende a angústia do cronista.

Lido: A Lua que eu Conheci

A Lua que eu Conheci é uma crónica de José Saramago, na qual ele conta uma historiazita que se terá passado com ele quando mais jovem, uma historiazita de campismo selvagem e de efeito de horizonte (aquele efeito que faz com que a Lua pareça maior quando está perto do horizonte), tudo isto a propósito do pequeno passo do Neil Armstrong. Quando Saramago escreve a crónica andam Armstrong e Aldrin aos saltos na Lua, e o cronista manifesta-se dividido entre o entusiasmo pelo feito e a pena por o desvendar de um novo mundo real e palpável roubar à Lua a sua condição de símbolo poético. Não sendo dos melhores textos do livro, tem o seu interesse.

Lido: O Mosteiro Abandonado

O Mosteiro Abandonado (bib.) é um conto curto fantástico de António de Macedo, ambientado na Guerra da Restauração, numa das muitas escaramuças fronteiriças em que esse conflito terá sido fértil. No conto de Macedo, um destacamento militar espanhol entra por Portugal adentro por teimosia do seu comandante, à revelia dos maus presságios que teriam aconselhado contra a incursão. E, claro está, os presságios cumprem-se: o destacamento vai sendo engolido pela terra, homem a homem, numa noite de trovoada e chuva torrencial, deixando vivos apenas o comandante e o padre às portas dum velho e fantasmagórico mosteiro vazio.

E daí talvez não, talvez as coisas tenham acontecido de forma bem diferente.

Foi um conto que me agradou, confesso que com alguma surpresa. Não costumo gostar das prosas de António de Macedo, embora já tenha acontecido, quase sempre quando ele se dedica ao fantástico mais tradicional e não abusa dos esoterismos, como neste caso. O conto não me terá agradado assim muito, propriamente, mas achei-o bom.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Lido: As Intermitências da Morte

Apesar de já ter ouvido dizer que este livro era bem capaz de ser o mais ligeiro de todos os livros de Saramago, mesmo assim me senti surpreendido com o quão ligeiro As Intermitências da Morte (bib., muito incompleta) consegue ser, ainda para mais tratando um tema, a morte, precisamente, com um peso intrínseco tão grande. Este romance quase pode ser classificado como comédia. Bem longe de nos mostrar a morte com as suas tradicionais roupagens tristonhas, terríveis e macabras, apresenta-nos uma personagem muito humana, muito feminina, muito cheia de vida, que começa por querer pregar uma lição à humanidade e acaba por ser ela a aprender algo de novo.

Para quem não sabe, porque há sempre quem não saiba, o enredo começa num acontecimento dos mais inesperados: num belo dia de ano novo a morte para de trabalhar. As pessoas simplesmente deixam de morrer. Moribundas, sim, podem ficar. Em coma, até. Em situações irreversíveis. Mas morrer mesmo, dar o passo final, colocar o derradeiro ponto final nas histórias das suas vidas, isso ninguém faz. Não por todo o lado, note-se. Só num país em particular que, embora em muitas coisas se pareça muito com o nosso, não é o nosso. Do outro lado da fronteira, tudo continua a acontecer como sempre aconteceu e as vidas acabam como sempre acabaram. Do lado de cá, seja lá este cá onde for, não.

A primeira parte do romance vai descrevendo o impacto que esta inesperada ausência de morte vai tendo no tecido social. Com um humor bastante corrosivo e não pouco cínico, há que dizê-lo. São aqui revelados os interesses corporativos, os conflitos entre aqueles que com o fim da morte veem o seu ganha-pão ameaçado e os que, pelo contrário, encontram aí uma nova oportunidade de negócio. Muito em particular os que desenvolvem os negócios à margem da lei.

Mas a páginas tantas o romance muda de figura e de caráter. Aí, somos apresentados à personagem principal propriamente dita. A morte, que entretanto voltou ao trabalho ainda que em moldes algo diferentes. Uma mulher que daí em diante vai servir de esteio para o livro. Ela e um músico que por qualquer motivo que escapa a ambos se recusa a morrer. A ele, o motivo escapa porque provavelmente nada sabe sobre ter a vida em causa (ainda que haja algumas referências a ter 500 anos de idade, elas não são muito claras e de qualquer maneira, mesmo que seja de facto extraordinariamente longevo, é claro que não sabe porquê); a ela porque não percebe o que se passa, porque não funciona o sistema com aquela pessoa em particular. Chamem-lhe brio profissional, chamem-lhe o que quiserem, o certo é que a morte não aceita deixar as coisas assim e vai tentar descobrir o que se passa com a morte adiada daquele homem, se bem que o que acaba por realmente encontrar seja algo bem diferente duma resposta. Algo que justifica a vida. O amor.

Ou seja, o livro acaba por ter duas caras bem diferentes uma da outra, acaba por ser dois livros num só, e foi precisamente esse corte, essa mudança radical de abordagem, que nele me pareceu menos interessante. É como se Saramago se tivesse cansado da sociedade, se tivesse fartado de ser irónico e corrosivo, se tivesse subitamente suavizado e decidido contar uma história diferente, mais centrada nos sentimentos do que nas grandes tendências sociais. Não será por acaso que o livro é dedicado a Pilar del Río. Não que essas duas partes não sejam interessantes, cada uma à sua maneira; mas a sua união num livro só não me convenceu por inteiro.

Mas é um romance de Saramago, sem dúvida. Melhor: é um romance de Saramago cheio de humor e de alfinetadas bem dadas. E embora esteja algo distante dos melhores dos seus livros, também me pareceu bem melhor do que romances como A Caverna ou O Homem Duplicado. Não acho que seja obra-prima, nem perto disso. Mas gostei bastante.

Lido: Os Meteoritos

Os Meteoritos (bib.) é um delicioso conto curto de Italo Calvino que descreve a formação da Terra de uma forma muito peculiar. Contado, claro está, pelo eterno alienígena Qfwfq, informa-nos que quando o nosso planeta nasceu o dito Qfwfq achou a coisa toda uma grande maçada, porque a Terra foi crescendo graças à queda contínua de todos os tipos de lixo e porcarias. O conto está tão semeado de listas de detritos como a terra de então estava de detritos, "tapetes, dunas de areia, edições do Alcorão, poços de petróleo, uma mixórdia absurda das mais díspares bugigangas", como se diz a páginas tantas. Qfwfq estava então casado com uma tal Xha, que fazia prodígios para ir mantendo o planeta em ordem apesar da chuva de tralha. Viviam, julgava ele, sozinhos na Terra. Mas depois descobre que não, descobre que também existe outra mulher, com uma atitude bem diferente relativamente a toda a confusão do nascimento do planeta. E a consequência de tal descoberta é aquela que tinha de ser. Divertidíssimo, muito surreal e muito bem escrito. Excelente.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Lido: Por Outros Mundos

Quando leio um livro, seja de que género for, há poucas coisas que me irritam mais do que sentir que o autor está a gozar com a minha cara, que está a escrever disparates com plena consciência de que é isso que está a fazer, cinicamente convencido de que para quem é bacalhau basta, de que os leitores não são suficientemente conhecedores ou inteligentes para detetar as asneiras.

Justamente ou não, foi assim que me senti ao ler este Por Outros Mundos (bib.), de A. A. Attanasio.

O romance está cheio de referências, é certo. Há quem ache que isso é uma qualidade em si mesma, mas para mim só o é se essas referências se integrarem num todo válido. São referências à banda desenhada, são referências às histórias aventurescas da era da FC pulp, são referências ao surrealismo, em particular ao pictórico, etc. O núcleo é o de uma história de fantasia caótica, daquelas carregadinhas de deus ex-machina, daquelas em que sempre que surge no enredo alguma complicação súbita o autor arranja mais um passe de mágica, mais um abracadabra, para que a história possa prosseguir. Literalmente. Há partes da história em que o protagonista anda pela Terra (ou por uma Terra alternativa) revestido por uma "armadura" mágica e de varinha igualmente mágica na mão. A cobrir este núcleo de fantasia, há uma camada extremamente disparatada de FC. O protagonista é sugado para o interior da singularidade dum buraco negro, onde há umas ilhas flutuantes (skyles, ilhas de céu, que o tradutor, João Barreiros, resolveu deixar em inglês) e vivas, uma espécie de aranhetas (dez anos antes das do Barreiros, pois) más como as cobras que se alimentam duma espécie de pessoas que não são bem pessoas (e porque raio haveria de haver pessoas num buraco negro?! Ou aranhetas? Ou ilhas flutuantes?!) e onde alguém se esqueceu de que devia haver também uma gravidade tão forte que nem a luz de lá consegue sair. Pois é essa a definição de buraco negro.

Tenho uma enorme dificuldade em entender como é possível que se teça rasgados elogios a uma coisa destas ao mesmo tempo que se ataca ferozmente o pobre autor X ou Y por ter tido o desplante de escrever contos passados na superfície de Júpiter. Pois o calibre da asneira, aqui, consegue ser ainda maior.

O que mais irrita é que o cenário construído para o interior do tal buraco negro é imaginativo e consegue, a espaços, ser fascinante. Podia ter sido o melhor do livro. Podia até tê-lo salvo, talvez. Tivesse o autor evitado colocar a ténue pátina da FC sobre a história de fantasia que queria contar, tivesse tratado este livro como a história de fantasia que realmente é, tivesse metido as ilhas flutuantes num qualquer universo paralelo imaginário em vez dum buraco negro, tivesse removido toda a muito pateta pseudociência com que o encheu, muito mais facilmente se suspenderia a descrença, não haveria o choque da asneirada porque esta não existiria, e toda a história seria bastante mais palatável. Mas não. Resolveu fazer um daqueles livros que surgem em lugar de destaque naquelas prateleiras para onde os cientistas apontam quando querem mostrar até que ponto a FC consegue ser parva e representar mal o mundo real. Com fórmulas e tudo, bendito seja o Monstro do Esparguete Voador! Se calhar achou que enfiando à pressão umas fórmulas sem nada a ver não nos aperceberíamos do disparate. Não resultou.

A isto soma-se uma história de amor artificiosa — e também aqui o adjetivo é literal pois o amor é inculcado no protagonista por uma das ilhas flutuantes — uns esboços sociológicos sobre como seria uma Terra mais pacífica e unida do que a que temos no mundo real, uns toques de universos paralelos e viagens no tempo, umas personagens que nem de cartolina são, pois a cartolina tem duas dimensões e não apenas uma, e tem-se um livro demasiado ambicioso que procura tratar demasiados temas ao mesmo tempo e não consegue tratar bem nenhum deles, que portanto falha catastroficamente e me deixou uma fortíssima impressão de desonestidade, de não tratar os leitores com um mínimo de respeito. Talvez seja injusta, esta impressão, admito. Mas foi a que ficou. Achei o livro quase detestável. Não fora o cenário surreal das ilhas voadoras e correntes de fluxo, que como disse chega a ser fascinante (embora surja sempre a lembrança: "mas isto está supostamente num buraco negro, raios partam o Attanasio!"), e sê-lo-ia mesmo. Para mim. Mas eu sei o que é um buraco negro; quem não saiba ou esteja disposto a ignorar esse tipo de detalhes talvez até consiga gostar desta história.