terça-feira, 31 de maio de 2016

Lido: Brancaflor

Brancaflor, mais um conto popular português recolhido por Adolfo Coelho, é, de longe a história mais elaborada que se pode encontrar neste início de livro e provavelmente, a crer num folheio rápido das que ainda estão por ler, de todo ele. Conta uma história típica dos contos de fadas: um rei, jogador, perde ao jogo a coroa com um seu criado, e também a filha — Brancaflor, naturalmente — pois esta, por motivos não especificados, decide transformar-se numa pomba e ir-se embora. Sim, a rapariga era bruxa. Tinha herdado a magia da mãe. Segue-se uma demanda em que o criado é enviado, com a promessa de, no fim, casar com a princesa. E onde há demanda há peripécias, já se sabe, ainda que estas possam estar mais ou menos bem amanhadas. Neste caso estão-no bastante bem; tudo faz sentido (bem, o sentido possível em contos de fadas), e o final é também um bom remate para uma história destas. Tudo elaborado e certinho. Uma história infantil pronta a servir, a fazer lembrar as dos Irmãos Grimm.

Contos anteriores deste livro:

segunda-feira, 30 de maio de 2016

Lido: A Pequena Caixa Chega Pelo Correio,

A Pequena Caixa Chega Pelo Correio, e vou ter de escrever aqui alguma coisa que justifique esta vírgula vinda do título, é uma vinheta de Luiz Bras sobre uma caixa, pequena, que chega pelo correio e é aberta, e o que cada um encontra lá dentro tanto pode ser a mais repelente das coisas nojentas como a mais bela das lindezas. E não é a única; mais caixas, pequenas, vão chegando pelo correio, sendo abertas e causando reações extremadas, de êxtase ou repulsa absolutas, e assim rompendo com violência o tecido do quotidiano. Um conto insólito, com toques de horror e qualquer coisa tenuíssima de ficção científica, mas ao mesmo tempo divertido. Bastante bem conseguido.

Textos anteriores deste livro:

Lido: 2014 Campbellian Anthology - Clint Morey

Com Clint Morey regressamos aos excertos de romances e o dele intitula-se

The Outer Rims. Parece tratar-se de uma obra de ficção científica mais ou menos militar, muitíssimo americana, sobre o contacto e coexistência, ou não, entre uma espécie indígena de um planeta, inteligente mas tecnologicamente pouco desenvolvida, e colonos humanos. O protagonista é um "space marshall", uma espécie de polícia planetário independente de elevada patente, que parece seguir o modelo dos federal marshalls dos EUA, o qual é nomeado para o planeta onde os tais indígenas lhe tinham assassinado os pais, missionários evangélicos, que teriam ido ao planeta a fim de evangelizarem os nativos. Eu avisei que isto era muito americano.

O enredo é bem lançado (ainda existe uma mulher doente, que a medicina dos nativos parece poder tratar, e mais uma série de pontos de tensão) e a escrita é competente, mas o excerto não dá pistas sobre o rumo que o romance vai seguir, deixando em aberto muitos rumos diferentes, uns bastante bons, outros bem pelo contrário. No entanto, despertou-me curiosidade, mesmo tendo-me toda aquela americanice deixado de pé atrás; pelo menos essa qualidade tem de certeza.

Lido: Off the Shelf

Off the Shelf é um conto de ficção científica de Steve Redwood que retrata uma sociedade ultramisógina, na qual os homens de baixo nível social vão levantar mulheres à biblioteca sempre que precisam de companhia feminina. Sim, biblioteca, pois o lugar onde se arranjam as mulheres funciona tal qual uma biblioteca: as mulheres estão nas prateleiras, numa espera ansiosa por serem escolhidas por algum homem, e estes têm direito a desfrutar delas durante algum tempo, após o qual ou as devolvem ou renovam o empréstimo. E tudo funciona bem, salvo o facto de as mulheres irem desenvolvendo personalidade com o tempo (enquanto se vão estragando a grande velocidade), o que pode levar a que um dos homens se apaixone. O que é precisamente o que acontece com o protagonista desta história.

Este é um conto que leva a extremos ridículos a noção de mulher objeto, de mulher-bibelô, precisamente para mais ferozmente a criticar. A história está desenvolvida de forma eficiente, ainda que a redenção de todo o sistema pelo amor, um amor que fecha os olhos a toda a degradação e a todas as imperfeições, seja um cliché talvez desnecessário. Mas é essa a mensagem que Redwood quer passar: a de que o corpo pouco importa, só a mente realmente interessa. Fá-lo com eficácia, num conto interessante.

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domingo, 29 de maio de 2016

Lido: O Pescador Cego

O Pescador Cego, de Mia Couto, é um conto sobre o amor, o sacrifício, o machismo e a aprendizagem. E também sobre um pescador cego.

Não começa assim; começa num barco, na faina, com ambos os olhos funcionais, mas com o azar de se ter visto apanhado por uma tempestade e empurrado para mar alto. Aí, perdido, esfomeado e sem forças, depois de a tempestade terminar fica à deriva e sem isco com que apanhar peixe para se alimentar. Até que se lembra: e se usasse um olho? E arranca-o para dar de comer ao peixe e espetá-lo no anzol. É assim que cega. Cega para comer, um olho após o outro e, já cego, consegue, sem saber como, não só regressar a terra, como, milagrosamente (elemento do conto que, como o arrancar dos olhos, poderá ser encarado como fantástico; um fantástico muito dúbio, todoroviano) à mesmíssima costa de onde partira. Mas regressa amputado e por isso imprestável, e é aí que o conto ganha substância. Porque começa por encarar a nova situação com orgulho machista (o quê? Depender da mulher? Nunca!) mas vai aprendendo, aos poucos, graças a uma mulher que por ele se sacrifica até ao limite.

Mia Couto não sabe escrever mal, e por isso este é mais um dos seus bons contos. Mas não creio que seja dos melhores. Falta-lhe qualquer coisa para chegar ao sublime de alguns dos outros.

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Lido: 2014 Campbellian Anthology - Tim Maughan

Tim Maughan está presente nesta antologia com uma quantidade significativa de texto, espalhado entre uma noveleta e dois contos.

Limited Edition, a noveleta, é uma história de ficção científica pós-ciberpunk sobre um grupo de jovens hackers que organiza um ataque a um centro comercial para roubar um carregamento de sapatilhas de gama alta, numa ação, transmitida em direto pela net clandestina, que encaram mais como forma de ganhar nome no submundo e de mandar o sistema ao tal sítio do que de obter coisas para delas desfrutarem ou serem vendidas. Mais como um jogo anarquista ou niilista do que como um crime. E isso é sublinhado quando um deles, impressionado com um vídeo que mostra as condições de trabalho dos miúdos asiáticos semi-escravos que produzem as sapatilhas, decide introduzir no feed da ação uma denúncia geral contra o abuso dos mais elementares direitos humanos que elas comportam. Uma história ágil, entrecortada por comentários ao estilo de tweets, e cheia de diálogos que por vezes se tornam difíceis de seguir (mas ficam muito mais credíveis) devido à quantidade de gírias que trazem consigo. Uma história bastante boa, sob vários aspetos.

Zero Hours é outro conto de ficção científica em futuro razoavelmente (e assustadoramente) próximo, ambientado no submundo pobre de uma sociedade distopicamente ultracapitalista, protagonizado por uma rapariga que sobrevive trabalhando clandestinamente à tarefa, em biscates, naquilo que aparece. O conto limita-se a descrever um dia da vida dela, mas mesmo assim é aterrador pela plausibilidade do que descreve. Outra história muito boa.

Collision Detection, o segundo conto, volta a ser ficção científica de futuro próximo mas aqui o tom é menos político e mais sentimental, ainda que a política (distópica, ultracapitalista, violenta) continue a existir num pano de fundo que acaba por ter um impacto direto (como tem sempre) na história e no protagonista. Este é um homem que se submete a operações cirúrgicas meio legais, meio clandestinas, para a implantação de uma rede neural secundária que lhe permita sentir o toque da amante, que vive a meio continente de distância. E tudo parece correr bem até que o pano de fundo sobe a primeiro plano e o desenlace de duas vidas acontece.

São três histórias francamente boas e carregadinhas de conteúdo. Maughan é um autor a manter debaixo de olho, sem sombra de dúvida.

Lido: A Biblioteca de Babel

A Biblioteca de Babel, de Jorge Luís Borges, é daqueles contos a que nada que seja escrito a seu respeito fará justiça. Uma obra-prima absoluta, de imaginação, de concisão, de especulação tanto filosófica como literária. Descrevê-lo é fácil mas extraordinariamente redutor: ele descreve uma biblioteca infinita, habitada por nações inteiras de bibliotecários, que contém todos os livros que seria possível escrever, tanto aqueles que fazem sentido em alguma língua existente ou por existir, como todos os outros, em muito maior número, que não o fazem nem nunca (talvez) farão. É, portanto, um conto sobre a literatura mas sobretudo sobre a própria noção de infinito e o contraste entre ele e a finitude inerente ao conhecimento. Pois o infinito é sempre desconhecido, dissolve-se sempre em lonjuras inalcançáveis até para a própria especulação.

E tal como quem conhece alguma coisa sobre o que o rodeia fica sempre apenas com uma pálida noção do todo, quem leu estas linhas terá ficado com uma noção igualmente pálida do que é este magnífico conto. Há histórias que só lendo, e esta é uma delas.

Contos anteriores deste livro:

sábado, 28 de maio de 2016

Lido: O Lobo e os Sete Cabritinhos

O Lobo e os Sete Cabritinhos é uma fábula dos Irmãos Grimm sobre um lobo que consegue enganar e devorar seis de sete cabritinhos irmãos deixados sozinhos em casa pela mãe. Trata-se de uma típica história cautelar infantil, daquelas que procuram ensinar às crianças como se devem defender dos perigos que podem vir a correr mas, ao contrário de histórias como O Capuchinho Vermelho ou Os Três Porquinhos, com as quais tem vários pontos de contacto, esta não conseguiu penetrar no imaginário de sucessivas gerações de miúdos. E percebe-se porquê: é uma história menos coesa e com uma lógica menos forte (sim, mesmo histórias cheias de magia como estas fábulas infantis devem ter uma lógica interna forte para funcionarem realmente bem). É um conto com o seu interesse, mas pouco vai além disso.

Contos anteriores deste livro:

Lido: 2014 Campbellian Anthology - Rich Matrunick

Rich Matrunick está presente nesta antologia com um só conto, intitulado

Barren Sky. Trata-se de uma história híbrida, com elementos de ficção científica e de fantasia, passada aparentemente num mundo secundário (ou talvez num planeta distante) cuja cultura também mescla elementos culturais variados, ocidentais, indianos e talvez nativo-americanos. O ambiente é distópico, com a civilização prestes a ruir devido a uma prolongada seca que está a provocar a fome e o desespero, a consequente violência e o inevitável surgimento (ou ressurgimento) de superstições. Mas não é, julgo, uma boa história. Além de não ser literariamente brilhante, deixa demasiadas pontas soltas, demasiadas incongruências lógicas, para realmente funcionar bem. Tem alguns motivos de interesse, mas creio que não passa disso.

Lido: O Fixador de Instantes

O Fixador de Instantes (bibliografia) é mais um conto de horror psicológico de Mário de Sá-Carneiro e volta, a meu ver, a não ser dos melhores. O motivo? A prosa, ultrarromântica, arrebatadíssima, excessivamente cuidada, uma prosa que quase se desmorona sob o peso dos berloques que carrega em cima. Sim, Sá-Carneiro dominava invulgarmente bem a língua portuguesa, mas por vezes caía num tal excesso de poetização que quase destruía os seus textos. É o caso de alguns contos que ficaram para trás e é também o caso deste que, por baixo do fogo de artifício literário, conta uma confissão de um artista enlouquecido, mais um, que procura a arte de fixar para si os instantes supremos da vida. E que instante será mais supremo do que o consumar de uma paixão? Quem não quereria fixá-lo? Ninguém, certamente. O problema é que o modo como o protagonista decide fazê-lo tem a ver com a morte, o que, sendo Sá-Carneiro quem é, não constitui nenhuma surpresa. E esse é outro problema deste conto: ser previsível. Não se encarado individualmente, mas no contexto da obra do autor sim, pois recupera uma vez mais quase todos os seus grandes temas e fixações. Qualidade do português à parte, portanto, este conto pareceu-me fraco.

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quinta-feira, 26 de maio de 2016

Lido: 2014 Campbellian Anthology - Michael Matheson

Michael Matheson também está presente nesta antologia com três contos.

The Many Lives of the Xun Long é uma fantasia urbana fantasmagórica ambientada na comunidade chinesa de Toronto, Canadá, e serve-se dos fantasmas e de uma linhagem hereditária de protetores mascarados, os Xun Long, para fazer uma reflexão bastante interessante sobre as questões de identidade no seio das comunidades imigrantes em terras estranhas. No caso é a chinesa, mas poderia ser qualquer outra. Não é nada de muito profundo, até porque o conto é razoavelmente breve, mas mesmo assim é interessante.

Weary, Bone Deep é um conto de horror, protagonizado por um rapaz que é o único na família a conseguir ver os monstros fantasmagóricos que habitam na sua casa. Dilacerado entre o medo e a curiosidade, o rapaz vive à espreita dos fantasmas, dos portais para dimensões desconhecidas. Contudo, pode não se tratar de nada disso. O horror sobrenatural pode não passar de imaginação, de uma forma de racionalização do impensável. O horror verdadeiro pode ser bastante mais concreto e mais próximo, feito de abuso. Um conto bastante bom, este.

The Last Summer é outro conto de horror protagonizado por um grupo de rapazes quase a deixarem de o ser, cujo líder está a gozar dos últimos dias de saúde, prestes a deteriorar-se por causa de uma doença inescapável mas nunca nomeada. O ambiente é um velho casarão abandonado e com fama de assombrado desde que se descobrira uma série de cadáveres enterrados na propriedade. Vítimas de assassínio. É outro bom conto, com um ambiente opressivo bastante bem criado, e uma história que, não sendo nada de extraordinário, funciona bem. Um daqueles contos de fim de infância, sendo que neste caso o fim é bastante literal para um deles, e quase para todos os restantes.

Matheson parece ser autor a ter debaixo de olho.

Lido: O Coelho e o Gato

O Coelho e o Gato é mais uma lengalenga, esta bastante curta e com um fim bastante abrupto, que começa em tom de fábula com um ato de crueldade e vingança do coelho para com o gato, depois de este ter ganho uma aposta. É um exemplo bastante desinteressante e, parece-me, bastante derivativo de uma espécie de historieta que se baseia numa sucessão de favores pedidos a este e àquele, por quem quer resolver um problema, e que provavelmente terá origem numa prática de economia informal realmente existente nos meios rurais durante largos séculos: as trocas. Infelizmente, e salvo algumas exceções, não resulta nas histórias mais interessantes que se possa ouvir ou ler. Neste caso, encontro no texto um único motivo de verdadeiro interesse: o linguístico. É que ele está cheio de características dialectais do Norte do país, algumas caídas entretanto em desuso.

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quarta-feira, 25 de maio de 2016

Lido: Encrencado

Encrencado é mais um continho de Luiz Bras, embora talvez fosse mais adequado chamar-lhe poema. Não creio que seja dos textos mais eficazes desta coletânea, mesmo tendo em conta que cumpre o objetivo a que se propõe: é um texto confuso sobre uma situação confusa. Esta tem a ver com anomalias temporais, e se vos disser além disso para imaginarem a confusão que seria se o tempo de repente deixasse de seguir a sua previsível linearidade talvez compreendam o que Bras pretende com este texto. Não me parece é que a ideia esteja inteiramente bem conseguida, o que neste livro é uma raridade.

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Lido: 2014 Campbellian Anthology - Samuel Marzioli

Com Samuel Marzioli voltamos aos contos, e no caso dele são três.

A House in the Woods é um conto de horror, muito curto, sobre um casebre assombrado na floresta. Ou talvez, como o protagonista pensa, não propriamente assombrado mas decerto habitado. O conto é demasiado curto para causar realmente algum impacto, mas a ideia varia levemente do tema típico das casas assombradas e por isso tem o seu interesse.

Midnight Visitors é outro conto de horror, este distópico, pós-apocalíptico, que se centra num pequeno (o último?) grupo de sobreviventes humanos num mundo tomado por visitantes noturnos. Trata-se de uma variante do tema dos zombies, e está bastante bem conseguido. Os visitantes, que surgem à meia-noite a bater às portas das pessoas, são suas familiares ou amantes, entes queridos de alguma forma regressados do mundo dos mortos, exercendo sobre os vivos pressão psicológica para desistirem e se lhes irem juntar. Este é um conto bastante bom.

Burning Men é mais um conto em que o horror está bem presente, mas este é uma distopia passada num mundo (futuro?) em que as pessoas inúteis à sociedade são sumariamente executadas por uma espécie de polícias cuja função é queimá-las vivas. O protagonista é um destes últimos, atormentado pela consciência movida a religião, mas o conto volta a ser demasiado curto para ser mais do que interessante. Mas isso é, apesar do óbvio proselitismo antiateu que traz consigo.

Lido: Going Back

Going Back é um conto de ficção científica de Steve Redwood sobre viagens no tempo. Trata-se de um daqueles contos que lidam com paradoxos e com linhas temporais alternativas, e também é um conto sobre o amor, o arrependimento e a violência, focado num homem que, depois de em jovem perder a mulher por quem estava apaixonado, se dedica à ciência e acaba por ser o responsável pela descoberta da viagem no tempo. Não é o primeiro conto construído em volta de uma premissa deste género, e certamente não será o último, mas é ainda assim um conto interessante e sobretudo bem construído, com as quantidades certas de informação a serem entregues no momento certo para ir fazendo avançar a trama, mantendo-a interessante e misteriosa quanto baste. Um bom conto, ainda que longe de ser extraordinário.

terça-feira, 24 de maio de 2016

Lido: 2014 Campbellian Anthology - Kate Maruyama

Kate Maruyama também está presente nesta antologia com um excerto de romance, que no caso dela se intitula

Harrowgate. É um romance de horror, aparentemente com muito de horror psicológico mas também com horror sobrenatural. Uma história de fantasmas que parece ser francamente arrepiante e centrar-se na relação de uma mãe com o seu bebé recém-nascido. Bebé? Nascido? Bem... não propriamente. O melhor será chamar-lhe feto recém-abortado, morto, portanto, o que significa que se alguma relação existe só poderá ser com o seu fantasma. Para piorar ainda mais as coisas, enfiando-as decididamente no campo do mais absoluto pesadelo, a mulher teve de passar sozinha pelo trauma do aborto porque o pai que acabou por não o ser, e que também entra na história, estava ausente de casa em trabalhos científicos de campo. Sim, a tensão é múltipla e omnipresente.

O excerto está bastante bem conseguido. Se o livro conseguir sustentar a qualidade até ao fim, o que não me parece muito fácil — a história tal como aparece no excerto é muito intimista — poderá ser um belíssimo livro. Bem, talvez não belíssimo, que a beleza não é certamente o que aqui se tenta alcançar. Boníssimo, vá. Não sendo o horror o meu género favorito, não me despertou uma curiosidade particularmente grande, mas isso já tem a ver com o meu gosto pessoal, não com a qualidade que o livro me pareceu ter. Fosse eu mais amigo de sustos, arrepios e repugnâncias, tê-la-ia tido em quantidade bastante maior.

Lido: A Princesa Russa

A Princesa Russa é uma história de Mia Couto passada no Moçambique colonial e protagonizada por um assimilado. A história é contada na primeira pessoa, uma confissão do protagonista, já velho, sobre coisas ocorridas muitos anos antes, quando trabalhara como encarregado-geral (uma espécie de capataz, responsável pelos criados) de um casal da nobreza russa que se teria instalado na vila de Manica depois de comprar uma mina de ouro. É uma história de opressão, como quase todas as histórias de que são protagonistas os negros sob o regime não só colonial como ainda por cima fascista, ainda que o seja de forma ambígua, pois o protagonista é não só vítima dessa opressão, como seu agente, dada a posição que ocupava na hierarquia. De facto, nada aqui é maniqueísta, até porque esta também é uma história de amores cruzados e sem esperança.

Em fundo, surgindo também por vezes no primeiro plano, o tema básico é do racismo e das relações de posse, total ou relativa, de alguns seres humanos por parte de outros.

Mais um conto bastante bom, ainda que lhe falte aquele tempero imaginativo, mágico, que eu tanto gosto de encontrar nas histórias de Mia Couto. Este, pesem embora algumas alusões razoavelmente oblíquas, é no essencial um conto realista.

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segunda-feira, 23 de maio de 2016

Lido: 2014 Campbellian Anthology - Michael J. Martinez

Michael J. Martinez é mais um autor que está presente nesta antologia com um excerto de romance, que no seu caso se intitula

The Daedalus Incident. Com este título os leitores mais experientes facilmente situam a obra na ficção científica, e de facto acertam, mas trata-se de uma ficção científica bem diferente do que poderão esperar. Tão diferente, de facto, que haverá leitores que estranharão o rótulo, ainda que talvez estranhassem menos se a palavra ficção fosse substituída pela palavra fantasia. É que este romance parece ser um híbrido de história pré-vitoriana de navegação com space opera, e se isso soa estranho é porque realmente o é. Imaginem uma daquelas histórias, passadas no século XVI ou XVII, em que os intrépidos navios ao serviço de Sua Majestade britânica combatem ferozmente os galeões espanhóis carregados de ouro vindo das colónias castelhanas na América. Imaginaram? Agora transponham-na para o espaço, ponham os navios a navegar não o mar Oceano mas o Vazio, algures nas imediações de Marte, mas sem que a manobra, as armas e até a estrutura das embarcações mude por aí além. É isso que este excerto nos traz. E é isso que este excerto nos traz. O problema é que se for só isso que o romance contém o resultado deverá ser muito, muito insatisfatório. Não sei se assim é ou não. Mas lá que o excerto não me deixou minimamente interessado no livro completo, não deixou.

Lido: Análise da Obra de Herbert Quain

Análise da Obra de Herbert Quain, conto curto de Jorge Luiz Borges, é mais um dos pseudofactuais borgesianos, e este tem o interesse acrescido de ser um pseudofactual autorreferencial, pois a obra fictícia de Quain tem contrapartidas reais na obra real do próprio Borges. O que, aliás, está plasmado no próprio texto, que faz referência direta ao livro que o inclui. E isso faz todo o sentido, pois a obra de Quain é descrita por Borges como tendo uma componente matemática forte, com estruturas narrativas regressivas e ramificadas que o próprio Borges utiliza neste mesmo livro. O Borges que aqui se apresenta ensaísta de um objeto falsificado é na verdade ensaísta de uma versão adulterada de si próprio, o que em si mesmo é um exemplo tanto da regressividade como da ramificação que atribui à obra de Quain.

Já disse algumas vezes que não sou grande entusiasta da ficção pseudofactual, deste tipo de textos ficcionais que mimetizam textos não-ficcionais. Considero difícil fazê-los bem, ainda que algumas variantes, como os textos históricos ficcionais, sejam mais simples do que outras (a história, real ou não, é sempre uma narrativa, e isso ajuda... outras variantes não têm tanta sorte).

Apesar disso, ou talvez por causa disso, quando algum dia me perguntarem por que motivo considero Borges um génio, eu vou apontar para este conto. Este conto é um autêntico monumento intelectual.

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sábado, 21 de maio de 2016

Lido: Conto do Rapaz que Partiu para Aprender a Ter Medo

Conto do Rapaz que Partiu para Aprender a Ter Medo é um conto popular dos Irmãos Grimm, que trata precisamente daquilo que o título indica. Um rapaz, imprestável filho mais novo de um homem sério, adota como objetivo de vida saber o que é ter medo, o que é o mesmo que dizer: arrepiar-se. Para isso, parte da casa do pai, e não nos melhores termos com o resto da família por causa de um lamentável mal entendido ocorrido com o sacristão da terra, que resultou em este ficar com uma perna partida, e vai correr o reino à procura de quem o ensine a arrepiar-se. As peripécias são múltiplas e quase sempre macabras, envolvendo frequentemente os mais variados tipos de fantasmas e criaturas demoníacas, mas o rapaz de todas sai com a mesma intrepidez destemida com que nelas entra. Acaba rico e casado com a filha do rei, a qual decide ensiná-lo a arrepiar-se da forma mais inesperada (e divertida) possível.

Se alguém ao ler estas linhas reconhecer nelas paralelismos gritantes com o romance As Aventuras de João Sem Medo de José Gomes Ferreira não se enganará. É óbvio, pela leitura do conto dos Grimm, e sobretudo das notas com que os irmãos alemães fizeram acompanhá-lo, que o que está na base de uma e outra obra é o mesmo: uma antiga história tradicional que se espalhou pela Europa, vestindo-se de roupagens diferentes nos vários pontos onde se enraizou, mas conservando sempre a mesma ideia de base: um jovem desconhecedor do medo, que um belo dia parte para tentar encontrá-lo. Não sei se José Gomes Ferreira se inspirou na história dos Grimm, se nalguma variante portuguesa que lhe possa ter chegado ao conhecimento (e numa busca rápida ao índice dos Contos Populares Portugueses do Adolfo Coelho encontra-se logo uma variante óbvia, que demonstra que as variantes portuguesas existem: O Homem que Busca Estremecer), mas a verdade é que nas notas dos Grimm se encontra menção a uma variante, que eles localizam na zona de Paderborn, na qual o personagem se chama mesmo João (i.e., Hans, a variante alemã do nome João) Sem-Medo. Por outro lado, nos Contos Populares Portugueses o nome de João é muito comum nos protagonistas, portanto pode ser apenas coincidência. Ou raiz comum. Seja como for, seja qual for a inspiração de José Gomes Ferreira, o certo é que a sátira política contida no seu romance é só dele.

Já se vê que achei este conto particularmente interessante, não é? Pois é verdade, sim senhores. Achei mesmo.

Contos anteriores deste livro:

Lido: 2014 Campbellian Anthology - Helen Marshall

De regresso a esta antologia, hoje falo de Helen Marshall, autora que está nela presente com três contos.

The Hanging Game. É sobretudo um conto de horror psicológico, mas também tem uma discreta componente de horror sobrenatural. Gira em volta de ursos, de estranhas tradições e de coisas que há que fazer para que outras coisas, aparentemente sem qualquer relação, aconteçam. Uma dessas tradições é um jogo infantil, chamado jogo do enforcamento, que consiste nisso mesmo, no enforcamento de um miúdo de uma árvore. Rezam as crenças que, ao ser enforcado, o miúdo vê o futuro. O enforcamento não leva à morte, apenas ao transe... até ao dia em que as coisas correm mal e alguém morre mesmo. É um conto bastante bem construído e inquietante.

I'm the Lady of Good Times, She Said. Outro conto de horror, muito bem concebido, muito bem escrito, até, com um uso muito bom de coloquialismos a servir para ambientar a história no meio em que ela se desenrola, apesar de este ser cliché e fazer imediatamente recordar cenas vistas em road movies pelo Oeste americano e em séries policiais. No meio de tudo está um homem que conduz sob a ameaça de uma arma, e vamos descobrindo aos poucos o porquê da condução e da ameaça. Quem o ameaça é o cunhado, criminoso condenado, e o motivo da ameaça é a traição. O ameaçado, que narra a história na primeira pessoa, é incapaz de resistir a mulheres, e o cunhado soube e não gostou. E não, o horror não é esse. O horror é essas mulheres serem fantasmas.

The Slipway Grey. Mais um conto de horror, contado por um velho sul-africano à sua "bokkie". É outro conto em que o que chama mais a atenção é a excelente forma como Helen Marshall adapta o texto à voz das personagens. Neste caso é a voz de um velho, prestes a morrer, que decide que tem de transmitir à descendência a sua sabedoria, aquilo que foi aprendendo ao longo da vida sobre a morte e as coisas mágicas que a rodeiam. Porque ao longo da vida ele se tinha aproximado muito da morte, não uma, mas duas vezes.

São três bons contos de horror, que mostram uma escritora muito forte na caracterização e nos instrumentos literários dessa caracterização, uma escritora que sabe ir transmitindo a informação necessária para a compreensão da história nos tempos certos, mas que no entanto têm um problema: não há neles nada que seja realmente memorável e por isso esquecem-se depressa.

sexta-feira, 20 de maio de 2016

Lido: A Estranha Morte do Professor Antena

A Estranha Morte do Professor Antena (bibliografia) é uma noveleta de Mário de Sá-Carneiro, de algo de próximo à ficção científica, ou pelo menos à proto ficção científica, que eu já tinha lido há alguns anos. Mantenho em grande medida a opinião que tive nessa altura: é pena que este texto, que começa de forma bastante interessante, acabe por resvalar numa espécie de dissertação quase ensaística sobre a filosofia subjacente à transmigração das almas, tal como Sá Carneiro (ou pelo menos as personagens de Sá Carneiro, o Professor Domingos Antena e o seu assistente anónimo que narra a história) a vê. É pena que à qualidade literária não corresponda uma igual qualidade na construção do enredo; todas estas ideias e especulações poderiam perfeitamente aparecer numa história de outro tipo, menos descritiva, mais... mais viva. É pena que, ao concluir a leitura, fique a sensação de que haveria muito mais a explorar na história do Prof. Antena.

No entanto, desta vez aborreci-me bastante menos com esta história do que durante a primeira leitura, e por isso gostei mais dela. Efeito, decerto, de hoje já ter como a enquadrar no contexto mais vasto da obra em prosa de Sá Carneiro, e por isso compreender melhor certas escolhas e certas ideias. Efeito, certamente, de já saber que esta história é invulgar entre as histórias do autor, pois dela estão ausentes quase todos os tópicos que como que assombram a vasta maioria das restantes. E assim, pese embora tudo o que achava e continuo a achar ser pena, já não posso dizer que não gosto deste texto; digo apenas que não gosto lá muito. Sá Carneiro tem melhores. E também tem bem piores.

Contos anteriores deste livro:

quinta-feira, 19 de maio de 2016

Lido: A Guerra dos Cibernautas

A Guerra dos Cibernautas é um digno representante da tradição mais pulp da ficção científica. Com origem na banda desenhada dos anos 30, o herói, Flash Gordon, criado por Alex Raymond, teve uma ilustre carreira por outros media, que incluiu passagens pelo cinema, pela televisão, tanto em imagem real como em desenhos animados (e sim, eu em miúdo era fã dos desenhos animados do Flash Gordon), até pela rádio e pelo teatro, e também por pequenos romances como este.

Que é, claro, um romancezinho muito mau.

E que, apesar de nesta edição portuguesa da Agência Portuguesa de Revistas vir creditado a Raymond, na verdade foi escrito por Bruce Cassiday.

Tudo começa quando se descobre um planeta à deriva, vindo de outra "constelação", em aproximação ao Sistema Solar. Sim, a incongruência astronómica, a utilização de termos científicos sem qualquer correspondência com os seus reais significados, é de regra. Fala-se de galáxias como se fossem coisas acessíveis e não os objetos quase incompreensivelmente longínquos que realmente são, fala-se de constelações como se fossem mais do que relações arbitrárias entre objetos celestes no céu da Terra, sem nenhuma realidade física subjacente, e por aí fora. Pulp, portanto.

Feita a descoberta, e depois de uma série de naves de exploração terem desaparecido misteriosamente nas imediações do planeta, lá vai o herói resolver o assunto, acompanhado pelo Doutor Zarkov, também personagem habitual nas aventuras de Gordon. E ao chegar ao planeta são imediatamente atacados por robôs que rodeiam o dito numa quase impenetrável camada defensiva. Com grande dificuldade, o herói lá salva a situação e consegue pousar no planeta, ainda que o verbo "cair" talvez tenha aqui uma aplicação mais acertada.

O que os dois terráqueos vão encontrar é um planeta em guerra total entre dois exércitos de robôs, os tais cibernautas do título. Sim, a palavra nada tem a ver com o significado que hoje lhe damos, o que em si mesmo é curioso. Após as previsíveis peripécias, o herói lá consegue chegar à fala com os mais importantes líderes do planeta, duas mulheres, ambas lindas, esculturais e desesperadamente carentes de homem que, como é evidente, não conseguem resistir ao macho terrestre e caem de quatro por ele, apesar de viverem rodeadas de homens... só que esses são ratos de laboratório, os técnicos que constroem e fazem a manutenção das máquinas de guerra, criaturas masculinas que nenhuma fêmea boazona digna desse nome se rebaixaria a olhar duas vezes. Credo, nerds, que nojo!

E no fim, claro, o herói (e o sub-herói) lá arranjam maneira de se safar para poderem prosseguir as aventuras noutra ocasião e noutras paragens exóticas. Como não poderia deixar de ser e como mandam os mandamentos do pulp.

Mas nem tudo é mau e desinteressante neste livro. Apesar de estar mal escrito, apesar da história básica, apesar do machismo, apesar de, tendo sido publicado em 1975, obedecer fielmente à receita das aventuras pulpescas e às características da personagem, estabelecidas quarenta anos antes, este livro contém uma crítica fortíssima e muito pouco subtil à irracionalidade da Guerra Fria. Os dois exércitos robóticos são uma clara alusão aos gigantescos exércitos soviético e americano do tempo, o planeta devastado é um aviso igualmente claro contra o que poderia acontecer se a esses exércitos fosse dada rédea solta, e a irracionalidade de tudo é sublinhada pelo final deprimente. À sua maneira tosca, este romancezinho despretensioso é um libelo pacifista. E essa foi a maior surpresa que tive ao lê-lo.

Mas a verdade é que há melhores. Há muito melhores, tanto na FC ocidental como nas ficções científicas polaca e soviética. Não é isso que salva o livro de ser mau.

Este livro foi-me oferecido por um amigo.

Lido: O Cuco e a Poupa

O Cuco e a Poupa é uma muito sintética fábula sobre uma poupa, casada com um cuco, que não era nada poupada e por isso se meteu, ela e o cuco, em confusões com o mocho, um rendeiro. É uma historinha com moral mas pouco elaborada, que dá a ideia de usar a bicharada como mero disfarce de pessoas reais, envolvidas numa muito campestre história real, centrada em dívidas, abusos e hierarquias sociais, acabando até por envolver juízes e tribunais. Uma história realista e muito banal, coberta com uma fina demão de tinta fantasiosa, e contada com extrema brevidade (ocupa menos de uma página). Não é das histórias mais interessantes aqui contidas.

Contos anteriores deste livro:

quarta-feira, 18 de maio de 2016

Lido: Úio aio / ltm vs

Úio aio / ltm vs é um bizarríssimo miniconto de ficção científica, de Luiz Bras, que relata uma estranha invasão alienígena que vence ao destruir a capacidade comunicacional da humanidade, dilacerando a linguagem. Este texto é um aviso, necessariamente breve e quase incompreensível porque sujeito aos efeitos do ataque, que há que montar como um quebra-cabeças para dele tirar o sentido. E não basta perceber a lógica, o código, para a leitura se tornar fácil. Ela nunca se torna fácil (a menos que o texto seja reescrito, claro; aí é facílima).

É uma experiência interessante e intelectualmente estimulante, mas que não é das mais satisfatórias para quem está do lado do recetor da mensagem. E contra mim falo, que nos tempos já algo longínquos em que andei a fazer spamemas fiz uma experiência de certa forma semelhante. Agora que já estive de ambos os lados de uma coisa destas, posso confirmar que elas dão significativamente mais prazer a quem faz do que a quem lê. E não há nada de errado com isso.

Textos anteriores deste livro:

Lido: VanderMeer 2005

VanderMeer 2005 é um livrinho de 71 páginas que serve como apresentação das obras mais recentes do autor (publicadas ou no prelo), Jeff VanderMeer, à data da publicação, 2005. Sendo uma apresentação é, naturalmente, composto por excertos, não por obras completas, mas mesmo assim estas existem, pois um dos livros apresentados é uma coletânea de contos intitulada Secret Lives. Na verdade não é a única coletânea aqui presente: City of Saints & Madmen também o é, mas as histórias desta última são mais extensas e por isso o que aqui aparece é também apenas um excerto. Completam o volume uma entrevista a VanderMeer, feita por Neddal Ayad, e uma nota do autor.

Estes livrinhos são sempre ofertas e eu, depois de o receber, pu-lo na pilha e nunca mais me lembrei dele até há pouco tempo. Hoje arrependo-me, porque os excertos aqui presentes são francamente interessantes e, uns mais do que outros, como é natural, despertam mesmo a vontade de ir à procura dos livros completos. Fiquei particularmente interessado em Veniss Underground e em City of Saints & Madmen, mas suspeito (risca: tenho certeza) que haverá também histórias muito boas em Secret Lives. Shrek: an Afterward foi o livro que menos curiosidade me despertou, mas mesmo assim despertou-a, até porque há uma coisa que é constante em todos estes excertos: qualidade literária.

Tudo somado, este livrinho que se destina a despertar a quem o ler curiosidade sobre as obras completas, cumpriu em pleno o objetivo. Ou seja: é muito bom. Um dia saberei se os quatro livros a que se refere também o são, como parecem ser.

Eis os comentários que os vários excertos (e histórias completas) me foram despertando:
Como já foi dito, este livro foi uma oferta.

Lido: O Embondeiro que Sonhava Pássaros

O Embondeiro que Sonhava Pássaros é mais um fascinante conto de Mia Couto sobre um homem, negro e pobre, que, no Moçambique colonial, apanhava pássaros armado apenas de uma harmónica e depois os vendia a quem os quisesse comprar, perante a desconfiança das autoridades. Desconfiança justificada, aparentemente, pois com os pássaros chegaram ocorrências estranhas, quiçá até subversivas, e a resposta das autoridades foi aquela que seria de esperar de quaisquer autoridades não só coloniais, mas fascistas: engaiolaram o passarinheiro. E o resto da história tem a ver com um miúdo, uma harmónica e um embondeiro. E pássaros, claro. Muitos pássaros.

O conto, fantástico, é daqueles que subtilmente nos contam como a liberdade acaba no fim por vencer todas as gaiolas e por ultrapassar impossíveis. Subtilmente porque não o diz assim, com todas as letras, e também porque fala de várias liberdades diferentes sem falar declaradamente de nenhuma. De liberdade e de independência. Política, nacional, da infância contra as regras absolutas do mundo adulto, da imaginação, dos pássaros, no fundo, contra todas as gaiolas. Dos contos de Mia Couto os melhores costumam ser estes, os imaginativamente subtis. É o caso.

Contos anteriores deste livro:

segunda-feira, 16 de maio de 2016

Acordo ortográfico: ponto da situação

Em Portugal prossegue a campanha de mentira sistemática sobre o acordo ortográfico levada a cabo pelo caturredo, em petições, moções, livros, raivosos artigos na aldeia gaulesa caturra chamada Público (mas sem druida nem poção mágica), e por aí fora. Uma das mentiras mais constantes, que ressurgiu em força após a marcelada em Moçambique, é a de que só Portugal o ratificou e de que só Portugal o aplica. Será portanto útil sistematizar e divulgar o verdadeiro estado de aplicação do acordo nos vários países lusófonos. É o que faço aqui:

Angola
Assinou o acordo mas ainda não o aprovou no governo nem o ratificou, alegando razões ligadas ao estatuto das línguas nacionais e a "aspetos culturais e históricos." Tem reiterado que o acordo, em si, não está em causa, mas sim a sua adaptação à realidade angolana. As últimas declarações dão conta de "progressos".

Brasil
Assinou, aprovou, ratificou o acordo e tem-no em aplicação plena.

Cabo Verde
Assinou, aprovou, ratificou o acordo e tem-no em aplicação praticamente plena. Está em fase de conclusão da transição ortográfica.

Guiné-Bissau
Assinou, aprovou e ratificou o acordo mas ainda não o aplica na prática, decerto devido à crónica instabilidade política que afeta o país.

Guiné Equatorial
De lusofonia recente, desconheço o estatuto do acordo na Guiné Equatorial. Sei, no entanto, que o português é língua oficial apenas juridicamente, sem qualquer existência prática, com acordo ou sem ele.

Moçambique
Assinou o acordo e aprovou-o no governo mas ainda não o ratificou. Como Angola, alega razões ligadas ao estatuto das línguas nacionais para o atraso e, como Angola, afirma que é só questão de tempo até que o faça. Ao contrário de Angola, já produziu o seu vocabulário nacional (que é um dos instrumentos da implementação do acordo).

Portugal
Assinou, aprovou, ratificou o acordo e tem-no em aplicação plena.

São Tomé e Príncipe
Assinou, aprovou e ratificou o acordo, mas ficou à espera da aplicação plena em Portugal para avançar com a sua. Está agora a avançar com o trabalho.

Timor-Leste
Assinou o acordo, mais tarde devido a não ser independente aquando da sua assinatura original, aprovou-o, ratificou-o e tem-no em aplicação plena, em especial no ensino, onde o acordo tem especial importância devido à dependência de Timor da cooperação portuguesa e brasileira no campo do ensino do português.

Em resumo: o processo de transição da antiga ortografia para a nova vai avançando aos poucos e em ritmos diversos nos vários países, mas vai avançando. E sem volta atrás, segundo o secretário executivo da CPLP, um moçambicano.

E a verdade é esta.

terça-feira, 3 de maio de 2016

Lido: A Lotaria na Babilónia

A Lotaria na Babilónia é mais um magnífico conto de Jorge Luis Borges sobre uma peculiar lotaria que teria começado na Babilónia e se teria ido desenvolvendo ao longo dos anos, e depois dos séculos, até chegar, discreta, aos nossos dias, começando por uma lotaria bastante simples mas indo sofrendo mutações ao longo do tempo, indo tomando formas cada vez mais complexas e acabando por se transformar na explicação para o caos que irrompe pela vida de cada um de nós. Mesmo quando é um caos manipulado.

Muitíssimo bem escrito e concebido, é um conto que foge um pouco (ainda que não totalmente) aos paradoxos tão do agrado de Borges, apesar de ser inteiramente borgesiano na ideia de que a falsidade permeia tudo o que nos rodeia, ou pelo menos que a realidade é intrinsecamente pouco fiável. Outro conto fantástico de primeira água.

Contos anteriores deste livro:

domingo, 1 de maio de 2016

Lido: A Filha de Maria

A Filha de Maria, mais um conto tradicional alemão na versão dos Irmãos Grimm, é o primeiro destes contos declaradamente cristão, ainda que o cristianismo esteja ausente de outras versões do conto apresentadas em notas, oriundas não só da Alemanha mas de outros países europeus, o que leva a supor que terá sido fruto de adaptação razoavelmente recente de uma história bem mais antiga. De facto, há algumas semelhanças entre este conto e o mito grego de Pandora.

Conta-se nele a história da filha de um lenhador pobre que é levada para o céu pela Virgem Maria, que a avisa de que há aí uma porta que não poderá abrir. E claro que abre, e depois mente dizendo que não abriu, o que faz cair sobre ela uma série de desgraças. A moral da história é clara, especialmente quando destinada a crianças: não metas o nariz onde não és chamado e, se meteres, não mintas, que é pior para ti.

Pessoalmente, sou de opinião que devemos meter muito mais do que costumamos meter os narizes onde não somos chamados, porque se não o metermos, aí sim, será pior para nós. Exemplos em que grupos poderosos tentam fazer-nos a folha e encher os bolsos, mantendo secreta informação que devia ser pública, abundam. Ou seja: a história pode não ser má, que não é (está bem contada e os Grimm escreveram-na bem), mas a moral que traz consigo é péssima.

Contos anteriores deste livro: