quarta-feira, 30 de junho de 2010

Lido: Que Cavalos São Aqueles que Fazem Sombra no Mar?

Que Cavalos São Aqueles que Fazem Sombra no Mar?, livro que como toda a gente sabe foi escrito por António Lobo Antunes, é um daqueles romances que não se percebe bem se existe porque o autor tem de publicar um livro de xis em xis tempo, para contentar editora, fãs e crítica e manter vivo o velho sonho do Nobel, se nasce porque há uma história para contar, personagens a explorar, enfim, essas coisas de que

(também)

se faz a literatura, o que não parece ser o caso porque a verdade é que história, nele, pouca existe para lá de um conjunto de historietas inconsequentes e desconexas, e as personagens, ainda que se vejam bem em duas dimensões

— Nem todas, nem todas!

quando chega o momento de tentar captá-las na terceira não passam de fantasmas, translúcidos e sem substância, feitos em partes iguais de cliché e de António Lobo Antunes, um pai estroina, perdido entre o jogo e as amantes, um filho que segundo o livro é maricas mas que na realidade é pedófilo e passa a vida à procura de passarinhos, que é como quem diz de rapazinhos, uma filha drogadita, coitadinha, etecetera e mais etecetera, tudo tão marialva, tudo tão faduncho do desgraçadinho

(e chato, tão chato)

que até chateia, tudo a fazer sombra no mar, com cavalos ou sem eles, e tudo a arranjar coisas para estarem tão tristes às três da tarde, casas, corredores, seja o que for, e sem que haja mais que um vestígio de verdadeira individualidade, sem que haja uma característica pessoal, sem que haja um único diálogo, uma troca de ideias, só sentenças sem resposta, sem que alguma das personagens se atreva

— Atrevam-se!

a falar à sua maneira, obrigadas, todas elas, a falar à António Lobo Antunes, a sentir à António Lobo Antunes, a pensar à António Lobo Antunes, até a sonhar à António Lobo Antunes, ao longo de longos parágrafos que quase sempre ocupam o espaço de capítulos, entrecortados, à António Lobo Antunes, por parágrafos

(chatos, tão chatos)

que não o são, propriamente, pontuados por vírgulas e apenas por vírgulas, naquilo a que os presunçosos gostam de chamar o fluxo da consciência mas a que eu, que gosto muito mais dos iconoclastas e dos subversivos, prefiro dar o nome de Alzheimer, porque é como se estivéssemos a assistir a um longo monólogo daquele velho patareco que muitas famílias têm e a quem não ligam pêva, e que fica abandonado a um canto da sala, perdido dos outros e de si próprio, a resmungar incoerências enquanto a lareira crepita calor e afasta o inverno, até que quando o capítulo se acaba o velho finalmente se cala de exaustão e enfim chega o ponto final a que eu às tantas dei por mim a chamar ponto de alívio, alívio porque tinham ficado para trás mais algumas das quase quatrocentas páginas

(chatíssimas, meu deus)

que o livro tem, alívio porque finalmente surge esse milagroso ponto que faz com que se volte a respirar, alívio porque

— Ufa!

bolas, camandro, que coisa impressionante

(de chata, de chata!)

porque a verdade é que o António Lobo Antunes é um grande escritor, pois só um grande escritor consegue a proeza de manter ao longo de dez, doze, quinze, dezassete páginas um capítulo a funcionar

(quase)

sem erros e sem mais do que vírgulas para irem ligando as orações e as ideias, só um grande escritor é capaz desta espécie de malabarismo literário, uma página, duas páginas ao ar a rodopiar, vejam bem, senhores e senhoras, meninos e meninas, como o artista consegue mantê-las perfeitamente

(quase, quase)

controladas, e já vão dez, e já vão quinze, e finalmente recolhe-as num ramalhete em forma de ponto final, faz uma vénia e abandona o palco para regressar tão em forma como sempre, fato de lantejoulas, cartola e tudo, no capítulo seguinte, só os grandes escritores inventam assim estilos bizarros e conseguem fazer com que os fãs não se fartem deles ao segundo livro, e o António Lobo Antunes já leva alguns vinte desde o Fado Alexandrino, pena é que eu não seja um fã, pena é que me tenha cansado do António Lobo Antunes, do estilo resmoneado do António Lobo Antunes, das histórias sem história do António Lobo Antunes, das personagens fantasmagóricas do António Lobo Antunes, de tudo isto, precisamente no Fado Alexandrino, pena que tenha pegado neste livro dos cavalos e da sombra e do mar

(que não é nem sobre cavalos, nem sobre sombras, nem sobre o mar)

para ver se os anos teriam tornado o António Lobo Antunes mais digerível ou a mim mais capaz de o digerir, só para descobrir que não, muito pelo contrário, pena, enfim, que no fundo até ache o estilo facílimo de imitar

(e reparem como em mera meia horita escrevi tudo isto em perfeito macaqueamento sem talento)

embora, calculo, não tenha sido assim tão fácil de criar, pena, em suma, que por mais que o António Lobo Antunes seja um grande escritor, que é, que é

(embora chatérrimo, mas acho que já o escrevi)

não seja, de todo, para o meu paladar e deva levar muito, muito tempo até lhe voltar a pegar.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Saramago

Não se assustem. Isto não vai ser mais um artigo a tecer loas ao nosso Nobel literário. Já existem em quantidade mais que suficiente, na blogosfera e na net em geral, e na imprensa, uns genuínos, feitos por gente que realmente lia Saramago há muitos anos e gostava, outros feitos por pessoinhas que passaram décadas a destratá-lo, mas aproveitam este tipo de oportunidade para se porem em bicos de pés e se mostrarem muito cultos, assim como quem diz "veem, veem, eu também sou um intelectual e sempre gostei da escrita dele".

Não, nada disso.

Isto é só um post para vos dizer que, se quiserem, podem ler um artigo que escrevi há cinco anos para publicar no número zero da revista Bang!. Está no scribd, aqui, e fala, porque foi o aspeto que me pediram para focar, da relação entre a obra de Saramago e a ficção científica. Poderia ter falado muito mais das relações entre a mesma obra e outros géneros fantásticos, porque Saramago sempre foi muito mais dado à fantasia mais ou menos mágico-realista do que à FC, mas pediram-me FC, e sobre a FC foi.

Hoje, um artigo que escrevesse com o mesmo ponto de partida seria praticamente idêntico, embora ele me obrigasse a atualizar-me. É que fiquei suficientemente dececionado com alguns dos romances pós-Nobel para fazer uma pausa de alguns anos na leitura de Saramago, e os livros mais recentes ainda estão aqui nas minhas múltiplas pilhas de material para ler à espera de uma aberta. O Caim, claro, mas também As Intermitências da Morte e A Viagem do Elefante. Mas serão lidos, como todos os outros romances já foram (até o Terra do Pecado, esse romance de Saramago que não é de Saramago), e o Objecto Quase. Têm-me dito que são melhores do que A Caverna e principalmente O Homem Duplicado, os dois livros de que menos gostei. Espero que sim. Mais tarde vos direi se são ou não, na minha peculiar maneira de ver a literatura. E direi só mais tarde, porque também não irei lê-los a correr, como muita gente certamente fará (e as vendas hão de subir à estratosfera, porque há um certo tipo de consumidor que está sempre à espera que os artistas morram para lhes mostrar o seu apreço, comprando, quando eles já não podem beneficiar desse apreço, o que é sem dúvida uma perfeita maravilha).

É que Saramago continua vivo apesar de ter morrido, o que faz com que seja uma idiotice eu ter passado o dia inteiro triste e cheio de mágoa. A vida continua como até aqui. A nossa, e a das palavras que ele nos deixou, ele que foi, de muito longe, o melhor de todos nós, aqueles que fazemos da imaginação o principal motor para aquilo que escrevemos. Apesar dos desapontamentos literários e das opiniões discordantes. Meteu-nos a todos num chinelo, obrigou-nos a todos a confrontar a nossa pequenez e mediocridade. Foi uma maldade da parte dele, com certeza, mas a vida nunca deixou de continuar por causa disso.

A vida, sim, continua. E amanhã é outro dia. Ainda andaremos todos por cá, ele incluído. Até amanhã.

Da mediocridade

Uma notinha muito rápida para dizer uma coisa: não há sintoma mais claro de mediocridade do que a sistemática tentativa de menorização pessoal daqueles que expressam frontalmente opiniões com que não se concorda. Isto é particularmente evidente quando o assunto são escritores e as respetivas obras. Sim, falo de Saramago e das manadas de imbecis que agora se comprazem em comemorar a sua morte. Mas não só.

domingo, 13 de junho de 2010

Lido: O Escaravelho de Ouro

O Escaravelho de Ouro (bib.) é uma noveleta de aventuras de Edgar Allan Poe, a qual descreve uma peculiar caça ao tesouro. Ambientada no sul dos Estados Unidos, o protagonista é um homem que decide afastar-se da civilização e tomar residência numa pequena ilha, acompanhado apenas por um negro, antigo escravo e criado fiel. O narrador é um seu amigo que vai visitá-lo e fica preocupado ao encontrá-lo aparentemente enlouquecido, depois de ter sido mordido por um escaravelho dourado, que o negro insiste ser mesmo de ouro, e cujo peso é repetidamente descrito como excessivo para um inseto normal. Reside aqui o único (e subtil) elemento fantástico que a noveleta contém, visto que a natureza do escaravelho nunca chega a ser completamente esclarecida. O fulcro da história, no entanto, é outro.

O fulcro da história é uma expedição que os três homens acabam por fazer a um determinado local situado nas proximidades, onde o protagonista julga haver enterrado um velho tesouro de piratas, e a longa explicação que se segue sobre o modo como chegou a tal conclusão, incluindo várias páginas dedicadas à decifração do código criptográfico que teria sido utilizado pelo pirata. É, portanto, uma história que ocupa a interseção de vários géneros que se desenvolveram em pleno mais tarde. Por um lado, claro, as aventuras de piratas, as aventuras de caça ao tesouro. Por outro, a descrição da investigação levada a cabo pelo protagonista e a utilização da criptografia apontam para os vários géneros baseados na decifração de mistérios. O policial, acima de tudo, mas também, até certo ponto, as histórias de espionagem ou até a FC de laboratório.

Enquanto (re)leitor, achei particularmente curioso o modo como a memória da minha primeira leitura desta história, já distante de quase três décadas, só veio ao de cima aqui e ali. Foi quase como lê-la de novo. Quase. O esquecimento quase completo significa que já devia ter voltado a pegar nas histórias de Poe há mais tempo, suponho. Talvez fosse novo demais quando as li pela primeira vez. É possível que histórias como esta, hoje, só despertem realmente o interesse a quem tem já alguma perspetiva histórica e é capaz de as colocar no devido contexto. É que nem sequer me lembro se o adolescente que as leu há todos estes anos gostou delas ou não, ainda que o facto de só agora ter voltado a pegar na ficção curta de Poe sugira que não. Mas desta vez gostei. Não muito, mas gostei.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Lido: O Espectro de Canterville

O Espectro de Canterville (bib.) é, provavelmente, o mais célebre dos contos (uma noveleta, no caso) de Oscar Wilde. Trata-se, evidentemente, de uma história de fantasmas, e descreve o que acontece quando um diplomata americano compra um castelo inglês e se muda para lá com a família. O castelo, claro, está assombrado, e a história arranca num tom marcadamente humorístico, narrando os problemas que o pobre fantasma enfrenta, as irritações que apanha, e, sim, os sustos que sofre, ao tentar cumprir o seu dever de assustar aqueles ianques fleumáticos que são demasiado "modernos" para terem medo duma coisa tão antiquada como um fantasma. Boa parte da noveleta é assim: tentativa de assustar alguém atrás de tentativa de assustar alguém, mas ninguém se assusta, o que enche o pobre espectro de uma enorme frustração, de uma enorme sensação de falhanço. Na verdade têm pena dele.

E é nisto que, quando se encaminha para o fim, a noveleta muda de tom. O humor desaparece e surge o romantismo por mão da doçura e bom coração da filha do diplomata, que é desde o início quem mais pena sente do pobre fantasma. Não tenho dúvidas de que é precisamente por isto que este conto conheceu tanto sucesso, mas confesso que a mim esta mudança de rumo não agrada. Preferiria um desfecho menos convencional, mais de acordo com a sátira que se encontra no resto do conto. Sátira às histórias de fantasmas, à literatura gótica, mas também às ideias feitas sobre a natureza e cultura de ingleses e americanos. Contudo, embora eu ache que o desfecho diminui a história em relação ao que poderia ter sido, não me parece que chegue ao ponto de a estragar. É uma boa história, e em geral bastante divertida.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Lido: Segunda Ressurreição

Segunda Ressurreição (bib.) é mais uma noveleta de Gerson Lodi-Ribeiro pertencente ao universo Taikodom. Desta feita, entramos naquilo que à primeira vista parece um cenário de space-opera bastante básico: uma espécie de recuperadora de salvados é atacada e aprisionada por uma nave gigantesca pertencente a uma misteriosa espécie alienígena que tem vindo a travar uma guerra de baixa intensidade com a Humanidade ao longo de múltiplos sistemas estelares nos limites da área de influência humana. A investigadora espera o pior, mas depressa descobre que o objetivo dos alienígenas é apenas recolher informação, pois se os seus atos são misteriosos para os governos humanos, as ações humanas não o são menos para eles. Nem quem atacou quem primeiro fica inteiramente claro. Space-opera? Sim, pelo menos em parte. Mas básica? Não.

É um texto que volta a sofrer um pouco com a necessidade de maximizar a informação prestada aos jogadores do Taikodom, efetivos ou potenciais, a respeito do universo em que o jogo decorre. Esta noveleta sofre também, no livro, por outro motivo: é que alguma dessa informação já tinha sido prestada em textos anteriores. Porquê? Porque a primeira encarnação da maior parte destes textos aconteceu no site do jogo, como textos independentes descarregáveis um a um, e não havia como saber de antemão qual seria a ordem por que os jogadores os viriam a ler. Assim, a redundância compreende-se e aceita-se, embora cause problemas quando os textos são reunidos em livro e dispostos em sequência (que é cronológica).

Mas essa redundância e hiperabundância de informação de base sobre o universo acontecem sobretudo nas primeiras páginas. A partir daí, a história arranca e torna-se bastante interessante, atingindo um ponto alto com uma reviravolta final muito bem concebida, ainda que talvez seja deixada demasiado em aberto, para o meu gosto, quando aparece o último ponto final (maneira de falar; o último ponto é de interrogação). Com todas as parcelas somadas, o resultado final é satisfatório e este leitor fechou o livro com a sensação de ter lido mais um bom conto.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Lido: A Slow Day at the Gallery

A Slow Day at the Gallery é um conto de ficção científica de A. M. Dellamonica que nos mostra um mundo pós-Contacto, no qual a humanidade se vê privada de algumas das suas melhores obras de arte porque algumas espécies alienígenas ardilosas conseguem surripiá-las por intermédio de subterfúgios legais. Uma delas, uma espécie insectoide que me fez desconfortavelmente lembrar o ET deste meu conto, possui um quadro célebre de Monet, e um velhote humano vai ao planeta deles vê-lo... ou talvez fazer mais do que simplesmente vê-lo. A história centra-se muito no choque de culturas, o que em princípio é interessante, mas confesso que não gostei muito. Achei-a demasiado implausível, as descrições demasiado paradas (mais de metade do conto é simplesmente uma conversa que serve para informar o leitor das características e peculiaridades culturais dos alienígenas) e o desfecho, em especial, pareceu-me demasiado absurdo. O conto contém algumas ideias interessantes, é certo, mas fiquei com a impressão de que a autora não soube trabalhá-las da melhor forma. É pena. Mas acontece aos melhores.

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Lido: Celia, a Impaladora

Celia, a Impaladora é um pequeno conto de Rhys Hughes que está definido logo a abrir: "A história de uma mulher que fez amor com seis das Sete Maravilhas do Mundo, fazendo-as desmoronar de exaustão, e de como tenta seduzir a sétima e última, a Grande Pirâmide de Quéops, inconsciente de que esta não pode cair, porque uma pirâmide existe sob a forma de um edifício que já caiu. Contada do ponto de vista da pedra cimeira." E é exatamente isto, o que não deixa de ser curioso. Um conto muito divertido, embora não muito educativo, pois pode levar os mais incautos a ganhar ideias algo oblíquas quanto ao motivo por que, das Sete Maravilhas do Mundo Antigo, só a Grande Pirâmide sobreviveu até hoje.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Lido: Porque é que o Leiteiro Estremece Quando se Apercebe de que Está a Amanhecer

Quem tem acompanhado aqui as leituras da Lâmpada nos últimos meses, vê um título como Porque é que o Leiteiro Estremece Quando se Apercebe de que Está a Amanhecer e percebe logo que se trata de mais um conto do Lorde Dunsany. Desta feita, é um conto curto que promete explicar ao leitor... bem... porque é que o leiteiro estremece quando se apercebe de que está a amanhecer. Está bem escrito, bem concebido e é divertido, o conto. Mas se querem saber porque é que o leiteiro estremece quando se apercebe de que está a amanhecer, eu não digo. Se lerem o conto compreenderão porquê.