quarta-feira, 30 de junho de 2021

Ângelo Brea: O Sol no Horizonte

Este conto de Ângelo Brea não é tão fraco como o anterior, apesar de sofrer de muitos dos mesmos problemas, salvo em boa medida por um cenário francamente bom. É uma pena que esse cenário, que daria para histórias tão interessantes, seja desperdiçado numa conversa entre pai e filho, infodump puro, onde nem falta o famigerado "como-sabes-zé", aquelas informações que os conversadores estão fartos de saber mas os autores lhes põem mesmo assim na boca para as transmitirem ao leitor. Não é só na FC portuguesa que há potencial desperdiçado.

O Sol no Horizonte é o Sol, esse mesmo que brilha lá fora. Mas nesta história de ficção científica não é a bola de plasma quente que te aquece quando sais à rua e sim uma estrela distante, ainda que brilhante. Estamos noutro planeta, onde uma colónia humana estabelecida gerações antes por uma nave automática se mantém em funcionamento no limiar da sobrevivência, pois o planeta só marginalmente se mostra adequado à sobrevivência de criaturas terrestres. Sem que ninguém saiba porquê, não se consegue comunicar com a Terra. O cenário é este, e a imaginação explode em possibilidades.

Brea, no entanto, não as explora. Limita-se à construção do cenário e a pouco mais. Isso, infelizmente, não chega; a literatura faz-se também (ou talvez principalmente) de outras coisas. E Brea sabe-o; contos como O Bonsai provam que sabe. Mas por vezes, como aqui, parece esquecer. E é pena.

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Mia Couto: Escrevências Desinventosas

E voltamos às crónicas que o são mesmo, voltando também à ironia. Mia Couto, o trocadilhento Mia Couto, aquele que quando lê "deter gente" se lembra logo de "detergente", sempre foi dado a meter palavras na invenficina, abrir-lhes o motor e ver que botas brotam das suas cambotas. Mas sempre foi também muito criticado por isso, que há por aí uns homens-aranhas da língua, sempre prontos a trepar paredes sempre que ela lhes aparece à frente de alguma forma transfigurada. Todos os conhecemos; é fauna abundante e vociferante. E Couto, talvez farto de os combater ou simplesmente de os ouviler, resolveu gozar com eles.

Começa logo no título de Escrevências Desinventosas, e vai por aí fora até ao fim. Couto põe-se ironicamente do lado dos que o criticam, afirmando que é inadmissível fazer-se com a língua o que ele faz... enquanto o vai fazendo. O resultado é daquelas crónicas muito divertidas para quem as percebe e muito irritantes, imagino, para quem lhes serve de alvo. Tudo bom.

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terça-feira, 29 de junho de 2021

José Viale Moutinho: O Tricô de Constança

Creio que nunca tinha lido nada de José Viale Moutinho antes de mergulhar neste O Tricô de Constança e, se este conto é representativo do estilo do autor, desconfio que não vou ficar fã. Ou talvez fique, não sei. Veremos. Vêm aí mais sete contos para formar uma opinião.

Não que Moutinho escreva mal, bem pelo contrário. É até bastante hábil não só no manejo da língua mas no entretecer da história que conta à primeira vista, a de uma tal Constança, senhora antiga e burguesa em fim de vida, com aquela que conta nas entrelinhas, a do período em que o fascismo se instalou em Portugal, para ficar até que uns tipos de cravo ao peito deram cabo dele. O problema é outro; é ser tão detalhista e miudinho na narrativa que depressa consegue aborrecer-me.

Trata-se, como facilmente se depreende, de uma daquelas situações descritas pelo velhíssimo cliché de "não és tu, sou eu". Pessoas mais dadas aos detalhes provavelmente adorarão este tipo de escrita. Eu gosto de detalhes até que o ambiente se solidifica e tridimensionaliza, com perdão do palavrão; quando ultrapassa esse ponto, os detalhes adicionais parecem-me redundantes, formam uma espécie de mapa que obscurece a paisagem e começo a perder o interesse, não só neles mas na história que vai abrindo caminho a custo, à catanada. Ora, não sei ainda se é comum nele, mas aqui Moutinho ultrapassou esse ponto. E bastante.

E esta até é uma história fantástica, de certa forma. A princípio não parece nada, mas no fim surgem elementos oníricos (trate-se ou não do derradeiro sonho) que a afastam de um realismo mais estrito. A ver vamos se assim continua nas outras histórias. E se o resto das características desta se repete.

segunda-feira, 28 de junho de 2021

Irmãos Grimm: João com Sorte

Ao ler contos como este por vezes interrogo-me sobre o motivo que leva tantas histórias farsescas mais ou menos populares (mais ou menos uma vez que aqui se incluem não só as histórias populares propriamente ditas, mas também histórias escritas para consumo das massas, através do teatro, etc.) a basearem-se em prodígios de estupidez tão prodigiosos que se tornam inverosímeis. Será o reconforto de se poder olhar para o idiota e pensar "ok, eu não sou assim tão parvo"?

Possivelmente. Mas se assim for, eu devo ser razoavelmente imune porque é rara a história destas que consegue realmente divertir-me. Por vezes aflora um sorrisinho, um tanto ou quanto condescendente, mas daí quase nunca passa. E sim, foi precisamente o que aconteceu com esta história que os Irmãos Grimm encontraram algures e pouco parecem ter alterado.

João com Sorte é um idiota chapado que passou sete anos (claro que tinham de ser sete) ao serviço do seu amo, após os quais resolve que quer voltar para junto da família. O amo recompensa-o com uma pepita de ouro do tamanho da sua cabeça e o bom do João lá zarpa estrada fora de regresso a casa. E ao longo dessa estrada vai fazendo negócios. O problema é não ter a mínima noção do valor das coisas, pelo que a cada negócio fica mais pobre, até que acaba de mãos a abanar. Mas sempre satisfeitíssimo com todos os negócios. E eu, que percebi onde a história ia dar ao segundo negócio estúpido, lá fui lendo até ao fim, abandando a cabeça e pensando no que poderá levar as pessoas a gostar de histórias destas. Não por acaso, foi precisamente assim que abri este texto. E é assim que o fecho, pois continuo sem uma resposta que me satisfaça.

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domingo, 27 de junho de 2021

Leiturtugas #108

Mais uma semana com Leiturtugas a relatar, a 108ª. O tempo voa.

Entre os participantes oficiais do projeto, quem apareceu esta semana foi a Tita, que nos trouxe a sua opinião (desta vez em texto e em vídeo) sobre Prisioneira do Tempo: Recife, um romance de Patrícia Madeira que parece muito inspirado em Outlander. Publicado logo no início do mês pela Cultura, este tipo de livros baseados em viagens no tempo costuma conter um leve ou levíssimo cheirinho a FC e vou considerar que é o caso deste, pelo que a Tita passa a 6c6s... e é a primeira a cumprir os mínimos do projeto. Daqui em diante, tudo o que chegar a mais é lucro. Boa!

Entre os oficiosos, a semana começou com a opinião da Isabel Daires sobre Os Canibais e Outros Contos, coletânea de Álvaro do Carvalhal publicada pelos Livros do Brasil em abril último. São contos fantásticos, se não todos pelo menos vários, mas, que eu saiba, nada têm de FC.

E quanto àquela dúvida com que eu andava sobre alterações nos sorteios entre o pessoal participante nisto, pois vou deixar tudo como está, pelo menos por agora. Fiz aqui umas simulações e, mesmo com as alterações que eu andava a avaliar, os oficiosos nunca conseguiam ganhar nada muito simplesmente porque ainda não acumularam material suficiente. Com dois livros com FC, ou quatro sem, conseguem chegar a um coeficiente de 1, mas só quando chegarem a cerca de 5 poderão começar a ter alguma hipótese, mesmo que ainda pequena, e mesmo com as alterações que eu estava a imaginar. Vai demorar.

Portanto decidi em vez disso que o próximo sorteio (a menos que apareça entretanto alguma oferta de algum editor ou autor, caso em que poderá haver rearranjos de datas) será um exemplar de Sally a sortear exclusivamente entre os oficiosos, provavelmente em outubro.

(Já agora, para aqueles mais dados às matemáticas e/ou mais curiosos — os outros não perdem nada por ignorar este parêntesis — o facto de o coeficiente mais elevado no último sorteio ter sido 29 e o mais baixo 0,25 não significa que quem tem 29 tem 116 vezes mais hipóteses de ganhar que quem tem 0,25. Eu não uso diretamente os coeficientes, mas sim a raiz cúbica do quadrado dos coeficientes, o que tem o efeito de reduzir bastante as diferenças. Assim, quem tem coeficiente de 29 tem um pouco menos que 24 vezes mais hipóteses de ganhar que quem tem 0,25. Continua a ser uma diferença bastante grande mas não tão intransponível como seria se usasse os coeficientes sem uma formulazinha em cima. E com tempo e o acumular de leituras essa diferença tende sempre a reduzir-se bastante. Com mais uma leitura para cada lado, por exemplo, passando o de 29 a 30 e o de 0,25 a 0,5 — supondo que é leitura sem FC; seria 0,75 se fosse com —, a vantagem desce logo de 24 vezes para um pouco mais que 15.)

E é tudo o que tenho para vos dizer esta semana. Siga para a próxima.

Mia Couto: Sonhar de Bicho

Existirá o mito do lobisomem em geografias que os lobos não habitam? Ou, talvez mais apropriadamente, será possível nesses lugares fazer literatura baseada nesse mito sem a deixar com ar de coisa artificialmente transplantada? Mia Couto dá a resposta neste pequenino Sonhar de Bicho, e a resposta é sim.

O truque é simples: em lugares onde não há lobos há outros tipos de canídeos, alguns dos quais têm uma vida social e um comportamento razoavelmente semelhantes aos dos lobos. Em África, por exemplo, há os mabecos, também conhecidos como cães-caçadores, e são esses os animais que Couto usa para este seu continho fantástico, quase de terror, no qual um homem sozinho na mata depara com uma matilha de extraordinários homens-mabecos.

Em menos de duas páginas, este é daqueles continhos que quase se resumem a um só episódio. Mas Mia Couto sabe do seu ofício e por isso nada falta a esta historinha, ainda que eu tivesse ficado com vontade de ler coisas mais desenvolvidas baseadas nesta ideia, mesmo que isso a levasse a perder, ou pelo menos a atenuar, o seu lado mais alegórico, e especialmente se deitasse fora a desculpa do sonho, um cliché demasiadas vezes usado por quem quer introduzir o fantástico na literatura mas não quer ser por isso julgado pelos desimaginativos. É assim tão boa.

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sexta-feira, 25 de junho de 2021

Olha... descobri mais um


Depois de descobrir que tinha ajudado a descobrir (sim, descobri que descobri) um mundo pequenino chamado 2004 LV31 e outro mundo um pouco menos pequenino chamado 2004 LW31,e de vários anos mais tarde ter achado o meu nome na longa lista de descobridores de um terceiro mundinho, talvez um pouco mais pequeno que o segundo e com o nome igualmente desinspirado de 2004 LU32, descubro agora que andei a olhar para fotografias de um quarto mundinho até aí desconhecido.

Não esperem grande coisa do nome, que é o do costume. Responde por 2004 LT32 e parece ser o maior dos quatro, devendo rondar os 180 km de diâmetro. Já é um tamanhinho razoável. Como os outros, orbita lá longe, na região transneptuniana do Sistema Solar, a uma distância média do Sol de 49 unidades astronómicas. Julgo que ainda é perto o suficiente para poder considerar-se membro do Cinturão de Kuiper, mas está mesmo no limite mais distante, e sai do cinturão durante parte da órbita (vai quase até às 65 UA; o cinturão termina por volta das 50).

E vão quatro. E pode ser que ainda haja mais.

quinta-feira, 24 de junho de 2021

Ângelo Brea: O Efeito Smith

Estou bem longe de ser um fundamentalista do "show-don't-tell", pelo menos como é comummente compreendido (ver parêntesis), essa fórmula mágica que há quem julgue que quando aplicada vai resolver todos os problemas de enredo numa história. Pelo contrário: penso que, como de resto acontece com boa parte das fórmulas deste género (ou talvez mesmo todas), ela é fundamentalmente errada, quanto mais não seja porque fornece uma saída fácil para quem não quer pensar a sério no que se pretende alcançar com a literatura, seja na condição de escritor, seja na de leitor ou crítico. A verdade é que há literatura ótima que obedece à fórmula... e também a há ótima a violá-la.

(eis o parêntesis: na verdade creio que essa formulação costuma ser mal compreendida, sendo encarada como um anátema generalizado contra a escrita descritiva. Na realidade, parece-me, ela é um alerta contra a tendência para explicar demasiado, roubando ao leitor o prazer de investigar as entrelinhas e encontrar nelas surpresas, o que tanto pode acontecer na escrita descritiva como na narrativa. E com isso eu concordo. Fecha parêntesis.)

Dito isto, contos como este O Efeito Smith, de Ângelo Brea, parecem feitos de propósito para ilustrar as desvantagens do "tell" relativamente ao "show".

Quem lê regularmente ficção científica certamente já deparou com histórias nas quais a Humanidade é olhada de fora, por olhos alienígenas. É uma tática comum no género, mas não é nada fácil aplicá-la bem, sendo muito mais numerosos os falhanços do que as aplicações bem sucedidas. Especialmente quando, como acontece com este conto de Brea, a história consiste simplesmente num alienígena a explicar aos outros por que motivo a Humanidade perdeu a guerra travada com eles e praticamente se extinguiu. "Tell" puro, um longo infodump, cheio de uma ironia demasiado óbvia para conseguir atenuar a secura do despejo da informação.

O resultado é uma história muito fraca, claramente entre as piores que o livro apresentou até ao momento. E, desconfio, das piores que apresentará até ao fim.

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Mário de Carvalho: A Algaravia

E cá estamos de volta ao Beco das Sardinheiras, onde o seu cronista, Mário de Carvalho de seu nome, nos narra uma história fantástica e insólita sobre A Algaravia. Que não, não tem nada a ver com o Algarve.

O protagonista é um canalizador, Quim Ambrósio de seu nome, que tem a incómoda característica de ser falador em grande excesso. Todos conhecemos o género, certo? Claro que sim. Pois o caso é que ao Quim acontece um acidente: uma telha vem por aí abaixo despencada de um telhado e pumba, acerta-lhe em cheio na cabeça. Lá vai o acidentado para o hospital, sem sentidos, e regressa dias depois... sem saber falar português.

Fala uma algaravia qualquer que ninguém entende, ainda que aparentemente compreenda o que os outros lhe dizem. Problema bicudo, como vamos resolvê-lo?, alguém tem uma ideia, que põe em prática mas, claro, o resultado não é aquele que espera.

Não é dos contos mais divertidos desta compilação, e também não é dos mais imaginativos. Ou seja: não é dos melhores. Mas não deixa de ser bom. Ou bonzinho, vá.

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quarta-feira, 23 de junho de 2021

Virgílio Vieira: Encantamento

Como não percebo quase nada de poesia, o que reafirmo sempre que me surge a oportunidade, pouco posso dizer de substancial sobre este Encantamento de Virgílio Vieira. Digo só que me pareceu ser um poema sobre os Açores e a sua natureza e que não me pareceu particularmente inspirado. Ou então simplesmente não me disse grande coisa.

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terça-feira, 22 de junho de 2021

Mia Couto: A Derradeira Morte da Estátua de Mouzinho

Uma estátua não é um bocado de história. É a exaltação desse bocado de história, geralmente corporizada num indivíduo concreto. E é por isso que todos os protestos contra iniciativas que visam derrubar estátuas, afirmando que estão a querer "apagar a história" são essencialmente tolos. Não é apagar história nenhuma que se pretende. Pretende-se, isso sim, não exaltar bocados de história, ou personagens históricos, que possam ser problemáticos. É que a exaltação tem esse efeito secundário: esquece, deliberadamente, tudo o que possa haver de discutível no objeto exaltado, apresentando-o de uma forma imaculada, heroicizada. E tantas vezes esses objetos não merecem ser assim tratados. E tantas vezes, quando o entorno social muda e a história é realmente compreendida em toda a sua complexidade em vez de ser simplificada para efeitos de propaganda nacionalista, essas estátuas passam a ser essencialmente embaraços públicos à vista de todos. Mais vale derrubá-las, talvez, ainda que a ideia de deixá-las em pé como retrete de pombos e gaivotas também tenha a sua validade. Há uma certa poesia na visão de uma figura detestável coberta de excremento de pássaro.

Pois este A Derradeira Morte da Estátua de Mouzinho é precisamente uma crónica sobre o derrube de uma dessas estátuas. Nela, Mia Couto reflete ao seu jeito brando (pelo menos na aparência) sobre o que significa derrubar uma estátua e que impacto esse ato tem em quem a ele assiste. No caso, a estátua é a de Mouzinho de Albuquerque, oficial de cavalaria e herói do Portugal colonialista por ter comandado a captura de Gungunhana, imperador de Gaza, o último grande reino africano a cair nas mãos dos portugueses no território que atualmente é Moçambique. Que tal captura e a "pacificação" que se seguiu tenha sido pródiga em crueldades e brutalidades múltiplas e variadas é geralmente omitido, preferindo-se realçar o facto do próprio Gungunhana estar longe de ser alheio à crueldade, num muito típico olhar enviezado sobre a história. Viés que também existe do outro lado, de resto, pois Gungunhana foi transformado em herói pelos movimentos de libertação moçambicanos, o que não deixa de ser natural pela inspiração obtida no espírito de resistência de Gaza à força superior do colonizador europeu, mas também tem a sua ironia, uma vez que o próprio Gungunhana era herdeiro de um exército invasor, composto por guerreiros zulus, que submeteu pela força as tribos e povos locais a fim de formar o seu império.

Mas a crónica de Mia Couto não é diretamente sobre nada disto. Isto é pano de fundo para uma reflexão sobre as teias complexas que a colonização tece e a descolonização desfaz de uma forma que nunca pode chegar perto de ser total. É uma crónica com personagens portuguesas, órfãs de um mito que lhes impuseram e aceitaram sem crítica. O mais interessante para quem lê hoje este texto é descobrir que ele é também uma crónica sobre o Portugal contemporâneo, um Portugal que ainda se recusa raivosamente a olhar com alguma frieza e objetividade para a maior parte da sua história, refugiando-se em mitos e fechando determinadamente os olhos a tudo o que possa pô-los em causa. Não deixa de ser deprimente que assim seja. Mas que um texto datado de finais dos anos 80 possa gerar hoje reflexões deste género é testemunho da sua qualidade.

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domingo, 20 de junho de 2021

Leiturtugas #107

Mais uma semana de Leiturtugas, e mais uma sessãozinha de divulgação do que foi sendo escrito por aí. Mas antes, o resultado final do sorteio:

Apesar dos denodados esforços do excel, que parecia decidido a entregar-lho, o Artur não quis o livro. Já conhecia a obra. Por conseguinte, passou à Carla Ribeiro, que o quis, e será portanto ela a ficar com ele e com a penalização no próximo sorteio.

Tenho andado a matutar na ideia de alterar estas penalizações para aumentar a hipótese de algum dos oficiosos levar um livro para casa. Neste momento, o vencedor fica no sorteio seguinte com o coeficiente reduzido a um terço do que teria se não tivesse ganhado o livro, voltando ao normal no outro a seguir. Ou seja: se o coeficiente não penalizado fosse 30 (e estamos a chegar lá), o penalizado seria 10, voltando à casa dos 30 logo a seguir. Mesmo penalizado, ainda tem 10 vezes mais possibilidades de ganhar que o mais prolífico dos oficiosos. A ideia que tenho estado a avaliar é alargar o prazo de validade da penalização, e a própria penalização, mas reduzindo-a com o tempo. Isto é: Fulano ganhha um livro agora. No sorteio seguinte ficaria com o coeficiente reduzido a um quarto (i.e., em vez de 30, tem 7,5), no outro a seguir a um terço (i.e., 10 no lugar de 30) e no outro a metade (15 em vez de 30, portanto). Isto teria o efeito de reduzir as possibilidades de três dos participantes oficiais ao mesmo tempo, aumentando por conseguinte a de todos os outros, incluindo as dos oficiosos, mas pode tornar-se bastante complicado bastante depressa. É que mesmo com os coeficientes reduzidos é possível ganhar e depois temos de lidar com penalizações compostas. E mesmo com os coeficientes reduzidos os oficiais mantêm muito mais possibilidades que os oficiosos, e mantê-las-ão até que estes acumulem leituras suficientes para reduzir a desproporção. De modo que não sei se mude, se fica como está. Aceito opiniões.

Mas adiante.

É da mesma Carla Ribeiro a única leiturtuga oficial da semana. Ela opinou sobre Bairro sem Saída, um romance de Fernando Ribeiro (sim, o dos Moonspell) publicado pela Suma de Letras em maio último, que parece ter pelo menos um pé firmemente plantado no realismo mágico. O que não tem é nada de FC, pelo que a Carla passa a sinalefar 1c9s.

Mas esta semana houve várias oficiosas.

Começou com uma opinião da "Charneca em Flor" sobre outro livro que também tem um pé firmemente implantado no realismo mágico: O Ano Sabático, de João Tordo. Trata-se de um romance publicado originalmente em 2012, que a Charneca parece ter lido na edição de 2018 da Companhia das Letras, sobre o velho tema dos duplos tratado, entre muitos outros, por Saramago n'O Homem Duplicado. Como os livros sobre este tema costumam ter um cheirinho de FC, mais ou menos leve, vou supor que este também tem.

Depois, chegou uma opinião da Fernanda sobre Deus, Pátria, Família, título assumidamente salazarento que Hugo Gonçalves usa para situar o seu romance numa realidade alternativa do Portugal salazarista. Ou seja, tudo indica que este livro, publicado pela Companhia das Letras em maio último, é uma história alternativa. Ora a HA conta como FC, portanto a Fernanda começa bem.

O terceiro ofiocioso da semana é a Adelaide Bernardo, que opina sobre um livro que já tinha aparecido por aqui: a distopia Tropel, de Manuel Jorge Marmelo, edição da Porto Editora datada do ano passado. Mais um livro com FC. E a Adelaide também começa bem.

É tudo? Não, não é tudo.

Também tivemos outra ótima estreia, a da "Ladyxzeus", que nos traz uma breve opinião sobre Saúde e Fraternidade de Campos Monteiro, um livro de 1923 que imagina Portugal entre 1924 e 1926. FC? FC, ainda que não particularmente científica, um daqueles casos em que as técnicas da FC (ou algumas delas, pelo menos) são usadas para fins satíricos. E ainda por cima a "Ladyxzeus" parece ter lido o livro na edição original da Livraria Civilização, com quase 100 anos de idade.

É tudo? Não, que também tivemos a estreia do Nuno Ferreira a opinar sobre os dois romances que encerram a primeira série de Allariya, de Filipe Faria, livros que também já tinham aparecido por aqui. Intitulados O Fado da Sombra e Oblívio, foram publicados pela Presença em 2009 e 2011, respetivamente, e nada têm de FC.

E agora, é tudo? Sim, sim, agora é tudo. Até para a semana.

Afinal tenho mais notas de rodapé nas ciências astronómicas


Alguns de vocês já saberão, até porque o mencionei aqui na Lâmpada não há muito tempo, que tenho estado a construir devagarinho um índice remissivo de todas as opiniões que fui aqui publicando ao longo dos anos. Mas embora seja esse o conteúdo principal deste blogue não é o único, e ao preparar o índice tenho reencontrado coisas que, muitas vezes, já tinha esquecido. Como esta, onde proclamo com indisfarçado gozo que sou oficialmente um descobridor de mundos. Reencontrei-a agora, e resolvi ir tentar ver se haverá mais algum mundinho lá fora codescoberto por mim. E numa pesquisa rápida e mais que provavelmente incompleta realmente encontrei um.

Mais que provavelmente incompleta porque nessa pesquisa não aparece a publicação original, a que deu origem ao meu post de 2012. A qual existe e continua lá, o que levanta uma hipótese muito concreta de haver mais. Mas para já, temos mais uma.

Pois parece que também ajudei a descobrir 2004 LU32, um mundinho com cerca de 85 km de diâmetro, classificado como objeto transneptuniano, que dá uma volta ao Sol a cada 311 anos.

E vão três!

E agora vou tentar saber se há alguma forma eficaz de fazer uma pesquisa nas Minor Planet Electronic Circulars, que se houver mais coisas destas terão certamente sido publicadas aí. Se houver, podem contar com mais gabarolice.

domingo, 13 de junho de 2021

Leiturtugas #106

Olá, olá. Bem-vindos a mais uma semana de Leiturtugas, que desta vez vem com brinde. Mas primeiro, o mais importante: as leituras propriamente ditas.

Ora, quanto a isso esta foi mais uma semana razoavelmente fraca. Dos participantes oficiais não temos nada a registar; vindos dos oficiosos apareceram dois textos.

O primeiro foi a opinião da Francisca Moura sobre Palavra do Senhor, um exemplo de fantástico cristão de Ana Bárbara Pedrosa onde é dada, literalmente, a palavra a deus. Mais ou menos o que o João Cerqueira fez nas Reflexões do Diabo, suponho, ainda que as ideias de base pareçam ser completamente distintas. Ou talvez não, não sei. Seja como for, este livro foi publicado já este ano pela Bertrand e, obviamente, nada tem de FC.

O segundo foi a opinião da Daniela sobre mais uma obra da Patrícia Morais. Publicado em 2016 pela Coolbooks, Chamas é um romance de fantasia urbana que, uma vez mais, nada tem de FC.

E é tudo. Até para a s...

Ah, sim, já me esquecia. O sorteio de Projecto: MOTHER, da Mónica Cunha. Cá está ele:


Este estava determinado a ir parar às mãos do Artur Coelho: das 5 listas geradas 4 vieram encimadas por ele. A outra teve no topo a Carla Ribeiro, que acabou por ficar em segundo. Parabéns a ele, e agora é contactá-lo a ver se quer o livro. Se não quiser, segue-se a Carla e por aí fora, como sempre. Para a semana digo-vos como foi.

E pronto, já não há livros para sortear. Gostaria de fazer outro sorteio depois do verão, lá por volta de outubro ou novembro, e estou, como sempre, aberto a propostas de autores e editores. Já sabem que embora não seja obrigatório é bastante provável que uma oferta tenha como resultado uma leitura e uma opinião. Caso não haja nada vindo de fora, talvez volte a sortear um dos meus livros. Veremos. Por agora ficamos assim, e até para a semana.

Frank Herbert: Filhos de Duna

Eu leio habitualmente vários livros em simultâneo. E quando digo "vários" é mesmo vários; raro é o período em que não estejam em leitura à volta de uns 10. É certo que a maioria tende a ser livros de contos, que leio conto a conto por vezes com intervalos longos entre uma história e a seguinte, mas não é incomum haver misturados com os livros de contos três ou quatro romances ao mesmo tempo.

A consequência evidente desta forma saltitante de gerir a leitura é cada livro demorar significativamente mais tempo a ficar lido do que quando a leitura é sequencial. Principalmente quando se trata de livros de contos, pois aí os intervalos entre uma sessão de leitura e a seguinte tendem a ser maiores. Mas também quando se trata de romances. Não é raro demorar mais que um mês, ou até que dois, a ler um livro que de outra forma se leria numa semana ou até menos.

O que é raro — raríssimo, quase inédito — é demorar praticamente um ano.

Mas foi isso o que aconteceu com este Filhos de Duna (bibliografia). Sim, é certo que esse ano foi pródigo em acontecimentos que me afastaram da leitura, como de resto o insucesso em cumprir os mínimos do meu próprio projeto leiturtuguento o atesta sem deixar margem para dúvidas. Mas mesmo assim... não é bom sinal.

A grande questão, creio, é Frank Herbert se afastar neste livro, tal como de resto já tinha feito no segundo volume da série, daquilo que mais me agradou em Duna. Este romance original é um livro em que há jogos de poder, e bastantes, mas estes têm lugar sobre um pano de fundo francamente interessante, com uma cultura bem estruturada, entrecruzada com uma ecologia específica, um protagonista dilacerado, em luta sobretudo consigo mesmo, além de mais uma série de detalhes que o romance introduz para tecer uma tapeçaria rica e multifacetada. É isso o que transforma o livro num dos grandes clássicos da literatura de ficção científica. E os tomos subsequentes da série não o são porque disso pouco resta.

O que temos aqui é um livro que, bem espremido, daria para uma novela de cem páginas, não para o calhamaço de mais de 500 que na realidade é. Um livro tão parado que até eu, que não sou propriamente o leitor mais apreciador de ação, nada tendo contra, por princípio, longas páginas de literatura contemplativa, que até eu acho demasiado parado. Um livro em que as questões ecológicas que giram em volta dos vermes de Arrakis e dos seus desertos têm uma importância fulcral em termos de base narrativa mas são tratadas pela rama. Um livro em que é demasiado óbvio que o que interessou a Herbert foi sobretudo a exploração da ideia do kwisatz haderach, i.e., a capacidade sobre-humana de ter acesso à memória genética de cada indivíduo, e das suas consequências. Isso e a luta pelo poder — e pela sobrevivência — que lhe vem associada.

É um livro bastante filho do seu tempo, na verdade. Publicado originalmente em 1976, está muito imbuído de ideias direta ou indiretamente ligadas aos movimentos razoavelmente místicos da época. Ia falar em hippies, mas hesitei, porque não é bem isso. Claro, o misticismo nunca deixou de estar no fulcro de toda a série. A droga que dá acesso a estados de consciência não só alterados mas sobre-humanos é o grande motor dos acontecimentos do primeiro livro, e todas as linhas de enredo relativas à presciência e às seculares maquinações destinadas a ganhar acesso a um grau de controlo sobre o futuro que só uma capacidade profética realmente potente poderia conferir são desde o início parte fulcral de todo o universo ficcional que Herbert cria. Mas no primeiro livro esses elementos estão rodeados de outros, em número e com relevância suficientes para a impressão que fica ser de uma riqueza muito maior do que a que este romance deixa. Especialmente para quem nem os aprecia por aí além, como é o meu caso.

Os protagonistas da história são Leto e Ghanima Atreides, irmãos gémeos, filhos de Paul Atreides, o Muad'Dib, protagonista do primeiro volume da série. Ambos têm acesso total às memórias genéticas dos antepassados, tal como a tia Alia, a protagonista do segundo volume, em cujas mãos estão as rédeas do poder em Arrakis: é a regente, governando em nome de Leto. Mas ao contrário desta, os irmãos são capazes de controlar as vozes internas, evitando assim o estado de marioneta — aquilo a que na mitologia prevalecente se designa por Abominação — em que a tia caíra. Entretanto, no feudalismo planetário do universo de Herbert raro é o poder, mesmo aquele que se limita a um potencial futuro, que não vem associado a ameaças. Consequentemente, a vida dos gémeos corre perigo; um perigo que não vem apenas da tia, ansiosa (ela ou a personalidade que a domina) por se livrar da condição de regente para assumir por completo o controlo, mas também de inimigos de outras casas nobres.

Só que como os gémeos, apesar da sua tenra idade, têm acesso total às memórias dos antepassados e pelo menos parcial à teia de futuros possíveis, sabem perfeitamente o que se prepara e concebem um plano. E é a progressiva execução desse plano que o livro narra. O que constitui, na verdade, um dos seus principais pontos fracos.

É que um dos principais motivos de interesse da literatura centrada no enredo, como supostamente será o caso desta, é levar o leitor a envolver-se o suficiente com a história para querer saber o que acontece a seguir. Para o conseguir, o método mais eficaz é gerar em quem lê incerteza quando ao desfecho da história como um todo, ou pelo menos das sucessivas situações que os progatonistas atravessam. Ora, quando se cria personagens com poderes divinatórios totais, essa incerteza basicamente desaparece: se os protagonistas sabem tudo, vão sair por cima, inevitavelmente, o que torna pouco mais que irrelevantes as peripécias necessárias até lá chegarem. É que se é certo que há histórias cujo desfecho é conhecido de antemão mas geram no leitor a curiosidade de saber como raio se chegou ali, para o fazer é necessário utilizar truques literários bem mais sofisticados do que os que Herbert emprega. De resto, este parece muito mais interessado em tentar gerar uma incerteza quanto ao desfecho que não poderia nunca existir do que em tornar interessante o caminho que a ele leva.

E isso é um problema. Não será problema que impeça o fruir desta história para quem aprecie intrigas palacianas ou histórias fortemente apoiadas na vertente mística, mas para os outros leitores, entre os quais me incluo, é um problema sério porque lhe retira uma componente importante que poderia torná-la interessante para eles. Restaria o estilo literário. Só que o estilo literário de Herbert nunca foi bom, nem no Duna. Este é um clássico e um romance francamente bom, mas por motivos que nada têm a ver com o estilo literário; se dependesse dele mal estaríamos.

E neste Filhos de Duna, alguém com um estilo literário melhor que Herbert teria provavelmente conseguido tornar emocionante o único acontecimento realmente inesperado de todo o enredo: o modo como Leto transcende a sua condição humana para se transformar noutra coisa... uma coisa imbatível. Mas nas mãos de Herbert esse acontecimento fica... bem... creio que a melhor palavra é chocho.

Desapontante.

E depois há todas as ramificações políticas da ideia do ditador benevolente (e sê-lo-á?) que Leto parece corporizar no desenlace da história. Sim, que se há coisa que este livro tem com fartura é política. Mas isso dava para uma tese inteira e não temos tempo.

Não será necessário, mas concluo resumindo: não saí desta leitura satisfeito. Longe disso, na verdade. Sei que esta é uma opinião minoritária, mas acho este livro bastante fraco.

Mas vou ler os seguintes. Perdido por cem...

sábado, 12 de junho de 2021

Mia Couto: Os Anjos Embriagados

Depois de andarmos a passear por territórios croniquentos, eis-nos, com este Os Anjos Embriagados, de regresso a uma ficção mais assumida, mesmo se baseada em casos reais, e o "se" está ali em vez de um "que" porque não sei se é o caso. E aqui, de novo, Mia Couto escreve divertido, com um sorriso no canto de cada palavra.

A história é sobre um tal Joca, bêbado empedernido, e o seu irmão mais velho, Aússe. Este é sacristão, e assume a missão de retirar Joca da vida etílica levando-o consigo para a igreja. Só que na igreja há doses generosas de sangue de cristo, ou seja, de vinho, o que vai ter consequências para ambos os irmãos. O tempo, aparentemente, é ainda colonial, ou talvez não se acaso a igreja manteve linhas de demarcação raciais mesmo depois da independência (de novo não sei), pelo menos nos primeiros anos — Aússe lamenta-se por ser o único negro. Seja como for, há uma pitadinha de crítica social neste conto, temperado por uns pozinhos de ironia sobre a impotência da igreja perante as tentações mundanas. Mas sobretudo há muito humor, envolto no texto típico de Mia Couto.

Ou seja, este é mais um bom conto. Nada tem de fantástico, o que para mim é sempre pena (bem... quase sempre), mas é bom.

Textos anteriores deste livro:

domingo, 6 de junho de 2021

Leiturtugas #105

Mais uma semana de Leiturtugas. E esta é especial porque vem dividida em duas partes desiguais, uma com um dia e a outra com seis.

A que teve um dia é a que termina o mês de maio e marca o fim do período que conta para o próximo dos nossos sorteios. Mais sobre isso mais adiante. Esse período contou com uma opinião da Tita, de novo apenas em vídeo, sobre um romance distópico de Rute Simões Ribeiro. Intitulado Ensaio Sobre o Dever, foi editado pela própria autora no já algo distante ano de 2017. É, como se compreende, um livro com FC, pelo que a Tita termina o mês com 5c6s.

E na que teve seis dias... não houve nada entre os oficiais. Mas um dos oficiosos, a Katrina, marcou o ponto, trazendo-nos a sua opinião sobre um conto em inglês de Patrícia Morais, também autoeditado pela autora. Intitulado The Banshee Cries, trata-se de uma fantasia YA que, por conseguinte, nada tem de FC.

E agora falemos de sorteios.

Sim, preparamo-nos para sortear mais um livro, Projecto: MOTHER, de Mónica Cunha, o segundo livro oferecido pela Cristina Alves. Para tal, o esquema é o que já conhecem: aos participantes, oficiais e oficiosos, são atribuídos quocientes calculados com base na quantidade de leituras completadas e esses quocientes servem para ponderar a sorte que cada um terá. O resultado é uma lista ordenada, as pessoas serão contactadas sequencialmente ao longo da lista, e o livro irá para o primeiro a aceitá-lo.

Conto ter o vídeo pronto já para a semana e os primeiros contactos serão feitos logo a seguir.

A tabela com as publicações a concurso e os coeficientes respetivos é a maior de sempre, o que não tem nada de surpreendente, visto que estão sempre a aparecer opiniões em lugares novos. O Senhor Luvas, vencedor do último sorteio, tem por esse motivo o quociente reduzido a um terço, e eu sou o único dos participantes oficiais que vai atrasado e tenho também a penalizaçãozinha respetiva.

Publicação Já cumprido Falta cumprir Quoc.
Rascunhos 4c6s 2 (2c) 29
O Prazer das Coisas 4c6s 2 (2c) 24
Intergalactic Robot 4c5s 3 (2c) 29
As Leituras do Corvo 1c8s 5 (5c) 27
O Senhor Luvas 0c9s 6 (6c) 5,67
A Lâmpada Mágica 3c1s 8 (3c) 26
Marcador de Livros 2c0s - 1
Livros e Saltos 0c4s - 1
Book Tales 1c1s - 0,75
Livros de Cabeceira e Outras Histórias 1c1s - 0,75
A Viciada dos Livros 0c3s - 0,75
Por Detrás das Palavras 1c1s - 0,75
Atmosfera dos Livros 0c2s - 0,5
Gotika 1c0s - 0,5
No Conforto dos Livros 1c0s - 0,5
Postal do Algarve 1c0s - 0,5
Palavras Sublinhadas 1c0s - 0,5
Quando se Abre um Livro... 1c0s - 0,5
Portugueses Contemporâneos 1c0s - 0,5
Deus me Livro 0c2s - 0,5
D311nh4 0c1s - 0,25
Estante de Livros 0c1s - 0,25
Livros 2009 0c1s - 0,25
O Livro Pensamento 0c1s - 0,25
Papéis e Letras 0c1s - 0,25
The Girl Who Reads Books 0c1s - 0,25
Bloguinhas Paradise 0c1s - 0,25
As Leituras do Fiacha 0c1s - 0,25
Geocrusoe 0c1s - 0,25

Ainda tive a esperança de que a iniciativa #lerpt levasse os números dos oficiosos a subir de forma visível durante maio, mas foi esperança vã, como se vê, e os quocientes deles continuam ainda muito abaixo dos demais, o que lhes retira quase todas as possibilidades de chegar ao topo da lista. Quase. Às vezes há surpresas.

Para a semana, se tudo correr como planeio, já veremos se houve ou não. Até lá.

Mia Couto: A Culatra Saiu Pelo Tiro

É outro conto-crónica, este A Culatra Saiu Pelo Tiro. Um conto-crónica com muito de insólito mas também muito de realista, não sobre tiros e culatras, propriamente, mas sim sobre ladrões e assaltos. E um conto-crónica que começa como crónica, metamorfoseia-se depois em conto, só para que o leitor no fim acabe por perceber que nunca deixou de ser crónica. Não propriamente.

Mia Couto começa por divagar. Uma página de crónica pura, perplexa com o estranho fenómeno da multiplicação das armas em Moçambique, o que num texto de três páginas e meia é muito. De seguida passa à história propriamente dita, uma história insólita sobre um roubo.

Ora, este roubo é uma alegoria de expropriação, e é por isso que Couto, ficcionando, nunca chega propriamente a sair da crónica. Um fulano qualquer chega calmamente a casa de um vizinho do narrador e diz-lhe que a casa agora passa a ser sua. Sim, com todo o recheio. Porquê? Porque é a vida. E o conto acaba com o vizinho, agora ex, a roubar ao outro a sua própria televisão. A ironia é clara, a ideia de base também. E o texto está tão bem escrito como é habitual, embora eu tenha algumas dúvidas sobre se me agrada a ideia de começar um texto em crónica para o seguir em conto e no fim nunca chegar a sair de crónica. Fica um bocadinho desengonçado.

Textos anteriores deste livro:

sábado, 5 de junho de 2021

Escrita de maio


O que há a contar sobre o que escrevi em maio resume-se a duas palavras: não escrevi.

Não que tenha estado parado, ainda que a atividade não tenha, de facto, sido grande. Mas houve. Tenho andado a fazer revisões de um projeto que está em fase de acabamento, aquelas coisas chatas de tira frase, mete frase, corta parágrafo ao meio, muda vírgula de lugar, troca vírgula por ponto final, e etc., e etc., e por aí fora. Corte e costura e remendo e remate. Feitas as contas ao que foi fora e ao que entrou a mais, o mês acaba com um saldo positivo de 360 palavras.

E nada mais há a contar. Junho irá pelo mesmo caminho, ainda que seja provável que as revisões acabem antes do fim do mês e chegue portanto o momento de começar a fazer outras coisas. Para o mês que vem se verá. Até lá, ficamos assim.

terça-feira, 1 de junho de 2021

Philip Roth: A Conspiração Contra a América

Ler este livro após a era Trump causa uma sensação algo bizarra e mais que um pouco inquietante. Sim, os protagonistas são outros, a época é diferente, a camada superficial do ambiente cultural dominante é quase completamente distinta. Mas a verdade é que os paralelismos são tantos e tão profundos que esta história quase soa a profecia.

De resto, isso não terá sido por acaso. O trumpismo não nasceu do nada; limitou-se a dar expressão a tendências que já existiam e estavam bem presentes na sociedade americana. Em 2004, ano em que Philip Roth publicou este romance, quem estivesse minimamente atento já via bem vivas as correntes que iriam desembocar no Tea Party apenas cinco anos mais tarde, e o trumpismo pouco mais é que o desenvolvimento dessas correntes, desabrochadas em grotesco, estupidez e crime.

Especulando, Roth terá compreendido essas tendências, e elas ter-lhe-ão feito lembrar outra época na história dos Estados Unidos em que tendências muitíssimo semelhantes se expressaram. Não sei se assim foi, mas parece-me muito provável. O passo seguinte terá sido imaginar o que aconteceria se tais tendências tivessem triunfado nessa época, e o resultado recebeu o título de A Conspiração Contra a América (bibliografia), mais um elemento que parece presciente dado que tanto na ficção como na realidade pelo menos parte dos acontecimentos são (ou há sinais de que possam ter sido, pelo menos) manobrados por interesses externos.

Outro aspeto francamente presciente, e por isso mesmo mais perturbador, é o uso que Roth faz da cultura da celebridade. Em 2004, se era já possível compreender as tendências gerais que viriam a desembocar num Trump, escolher uma espécie de Trump dos anos 30 para protagonista da viragem para o fascismo denota uma visão invulgar. E foi isso mesmo que Roth fez.

Não que não haja também diferenças significativas entre a ficção e a realidade. Ao contrário de Trump, Lindbergh não é um cretino incoerente e incapaz; é um herói popular, célebre não por apalpar misses mas pelas façanhas que fez e os recordes que bateu aos comandos do seu avião, tão célebre como ele, o Spirit of St. Louis. Um pioneiro da aviação, intrépido e ousado... mas profundamente antissemita.

Esse detalhe explica a escolha de Roth. Movido em boa medida pelo antissemitismo, o Lindbergh da vida real, se não foi declaradamente nazi andou pelo menos a namorar o nazismo, o que se pode igualmente dizer de outras personagens verdadeiras deste livro, como Henry Ford. Também aí há uma ligeira diferença face ao que acabou mesmo por acontecer, pois, no caso de Trump e dos que o rodeiam e propulsionaram, o antissemitismo é um fator menos relevante (embora exista, de uma forma contraditória, com teorias de conspiração antissemitas a ombrear com o apoio declarado a Israel) do que um racismo mais "clássico" na sociedade americana, aquele que tem como alvo todos os que ostentam um tom de pele diferente, sobretudo os negros.

A base, contudo, é precisamente idêntica. E os discursos, as opiniões, e as estratégias também são muitíssimo semelhantes. Lê-se A Conspiração Contra a América e é-se confrontado página sim, página não, com paralelos com o que aconteceu alguns anos depois do livro ser publicado. Nem sempre são paralelos óbvios, ainda que também os haja assim; mas eles estão lá, prontos para serem vistos pelo leitor atento. E é daí que vem boa parte do impacto que o livro tem.

Este é um livro que impacta, e em parte por isso poderia ter sido um livro magnífico. Mas não é. É francamente bom, mas tem — na minha opinião, obviamente — um defeito fatal que o impede de cumprir todo o seu potencial.

Esse defeito está intimamente ligado a uma escolha do autor, feita para aumentar o impacto. Roth introduz-se e à família na história, contando-a do ponto de vista de si próprio enquanto criança. Os protagonistas, além dos óbvios protagonistas históricos, são ele, o pai, a mãe, o irmão e um primo. O livro ganha assim uma intimidade e, de certo modo, uma verosimilhança que seria difícil alcançar de outro modo. Mas essa abordagem tem um problema sério: não permite fazer uma história alternativa propriamente dita, daquelas com ponto de divergência e consequências que perduram no tempo. Só permite fazer uma espécie de desvio alternativo, seguindo uma história diferente da verdadeira durante algum tempo mas regressando depois ao fluxo normal do tempo, sem deixar para trás nenhuma consequência. Porque o autor que escreve está nesta linha temporal, não noutra qualquer, portanto tem de arranjar maneira de voltar para cá mesmo que vá viajar por outra durante uns tempos. E isso não é fácil de fazer sem consequências negativas para verosimilhança de toda a história. Por paradoxal que possa parecer.

É o que acontece aqui. Na versão de realidade criada por Roth, os Estados Unidos elegem um presidente nazi, ficam quase, quase a cair no nazismo, mas depois, como que por milagre, tudo se compõe, sem que da incursão pelas trevas da história do século XX fiquem quaisquer sinais ou consequências. A experiência da família judaica americana a assistir ao crescimento do monstro, e em parte a combatê-lo, fica a meio (ou a muito menos que meio) das experiências correspondentes das famílias judaicas europeias da época. E depois de tudo, nessa versão da realidade os EUA contemporâneos são indistinguíveis dos EUA contemporâneos na realidade verdadeira.

Mas o pior é que esse regresso à normalidade e os acontecimentos que a ele levam é despachado no penúltimo capítulo, um capítulo de infodump quase puro em que o leitor se limita a assistir a uma espécie de aula de história alternativa. A família quase desaparece, o Roth-protagonista também, restam apenas os acontecimentos, a cujo desenrolar assistimos à distância. Como que assistindo a uma aula de história. Neste capítulo, completamente diferente de todos os outros, parece que Roth se farta do seu romance e procura abreviá-lo, contando rapidamente um período da história com que, se no-la tivesse mostrado, teria ocupado muito mais páginas.

Não sei porque o fez assim, e não me arrisco a tentar adivinhar. O que sei é que esse capítulo corta por completo o fluxo narrativo. Sim, é certo que este regressa no derradeiro capítulo, mas já não é a mesma coisa. O livro poderia ter sido magnífico — estava a sê-lo até aí. Mas aquele capítulo, não o estragando, e em conjunção com a inconsequência da alternativa histórica, impede-o de chegar tão longe como poderia ter chegado. Não creio, portanto, que estejamos perante uma obra-prima. Mas estamos perante um livro francamente bom, que alcança sem grande dificuldade o objetivo definido pelo seu autor: mostrar que, sim, podia perfeitamente ter acontecido e, mais do que isso, poderá voltar a acontecer.

Como vimos. E como, suspeito, ainda voltaremos a ver, que a abjeta irracionalidade trumpista pode ter sido derrotada mas está muito longe de ter morrido.

Este livro foi comprado.