quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

Lido: Os Três Estudantes e o Soldado

Quem julgue que o anti-intelectualismo é tendência recente, das sociedades pós-modernas, não tem mais que pegar neste conto, recolhido por Adolfo Coelho em Lisboa junto de alguém oriundo da Beira Baixa, para perder tais ideias.

Como é comum acontecer neste tipo de conto, o título não tem mistério nenhum. Os Três Estudantes e o Soldado são, precisamente, três estudantes e um soldado, e a história resume-se a ver qual, entre eles, fica com um lobo que encontram morto no caminho. Como? Versejando, pois então.

E já estão a ver, não estão? Os estudantes são ao mesmo tempo cobiçosos e idiotas, e quem se vai revelar espertalhão e levar a palma aos demais é o soldado.

Há um ressentimento secular, nutrido por aqueles que não têm instrução contra os que a têm e esta história é disso prova. O que achei mais curioso nela é ela ter posto um pouco em causa uma ideia feita que eu tinha (e na verdade continuo a ter), de que esse ressentimento é em parte alimentado pela arrogância com que os instruídos tratam os que não o são. Os estudantes, que poderiam tê-la exibido, não a exibem. São apenas retratados como jovens que tentam passar a perna a outro jovem, o qual acaba por lhes passar a perna a eles.

Não é grande coisa, este conto, que além do mais não inclui nenhum elemento fantástico. Mas fez-me pensar.

Contos anteriores deste livro:

Lido: A Princesa do Gelo (#leiturtugas)

Manuel João Vieira é um destrambelhado profissional. Construiu uma carreira, já longa, com base nisso, e em todas as facetas da sua carreira parece fazer questão de destrambelhar. Não tem necessidade de destrambelhar, note-se — eu já o vi a falar a sério, e é perfeitamente capaz de o fazer com lucidez e coerência — mas além do óbvio gosto em ser enfant terrible até à cova, parece sentir que é o que dele se espera.

Não sei bem se terá razão nisso.

Sendo o autor um destrambelhado profissional, fácil se torna concluir que este A Princesa do Gelo, um conto de fantasia surrealista sobre uma expedição ao polo norte em busca da princesa do gelo do título, que habitaria uma ilha que aparece e desaparece conforme lhe apetece, é profissionalmente destrambelhado.

Tem alguns elementos de um certo experimentalismo, nomeadamente o facto de apresentar um texto entrecortado, com partes em falta — o que está longe de ser inédito ou novo, mas não é muito frequente — tem umas piscadelas de olho à forma de escrever dos autores de ficção científica e da literatura de viagens do século XIX — de resto, o texto é atribuído a um tal Júlio Verne, não sei se conhecem — mas tudo com aquela forma destrambelhada de escrever e de estar que é imagem de marca do autor.

Em parte, é essa a sua maior falha. O humor que o destrambelhamento poderia trazer é menor do que poderia ser, o que não impede que o texto fique com um certo ar de coisa gratuita e superficial, sem grande interesse. A atribuição do texto a Júlio Verne não traz consigo um verdadeiro esforço para a tornar credível, pois não existe propriamente uma adaptação estilística à forma de escrever do francês, Vieira fica-se pelas piscadelas de olho. E isso faz com que o conto não seja lá muito bom.

Pela outra face da moeda, tem alguns detalhes bem conseguidos, uma qualidade literária que, apesar de algo irregular, tem momentos de elevação, e é inegavelmente imaginativo. Com um pouco menos de destrambelhamento — ou com um destrambelhamento mais controlado — e com um pouco mais de trabalho, esta poderia ser uma história realmente boa. Assim, creio que não passa de razoável.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

Lido: The Last Ten Years in the Life of Hero Kai

Geoff Ryman mostra frequentemente uma forma decididamente estranha de mesclar na sua ficção elementos da cultura asiática. Normalmente fá-lo muito bem e agrada-me, chegando mesmo por vezes a agradar-me bastante. Mas este The Last Ten Years in the Life of Hero Kai não foi uma dessas vezes.

Trata-se de uma noveleta de fantasia sobre um guerreiro chamado Kai que procura seguir o caminho do herói. O ambiente parece ser um mundo secundário mágico, embora claramente inspirado pelas culturas, filosofias e religiões da Ásia oriental e do Indostão, e a história conta a forma como Kai defende o seu povo da invasão dos "Vizinhos", contra a vontade de toda a gente, inclusivamente do seu povo, acabando por se ver escorraçado e por morrer no exílio. E no meio de tudo isto há um sistema de magia que confesso ter tido muita dificuldade em compreender por inteiro.

Mas não foi isso o que mais me afastou deste conto. O grande problema que nele encontrei foi achá-lo profundamente chato.

Essa chatice interliga-se com e depende de várias coisas. Tem a ver com o estilo narrativo que Ryman aqui usa, sinuoso e indireto, tem a ver com o ritmo narrativo, tornado monótono por uma variabilidade bastante baixa na extensão das frases, e tem a ver, de uma forma mais subjetiva, por não me ter conseguido despertar o mínimo interesse pela história que pretende contar ou pelos seus protagonistas.

Em resultado, não direi que esta noveleta é má, pois não acho que seja, mas digo que não dei por bem empregue o tempo que gastei a lê-la.

Contos anteriores desta publicação:

domingo, 27 de janeiro de 2019

Lido: A Queda de um Anjo (#leiturtugas)

Enquanto outras literaturas se comprazem com personagens maiores que a vida, a literatura portuguesa parece sentir um particular fascínio por pessoas pequeninas, tratando-as frequentemente com um misto de carinho e condescendência. Aos heróis dos outros contrapomos nós homenzinhos e mulherzinhas com as suas vidinhas comezinhas, não particularmente inteligentes, não particularmente corajosos, não particularmente seja o que for. E isso por vezes corre bem.

Neste A Queda de um Anjo correu bem. Afonso Cruz abre o conto com uma mulherzinha, no céu, a fazer um escândalo porque querem que lá fique sem o marido e ela que não pode ser, que não pode estar sem o seu homem. Aos poucos vamos percebendo que o homem era um sacana de todo o tamanho, mas ela acha que não pode viver (ou seja lá o que fazem as alminhas no céu) sem ele, e antes prefere ir para o inferno se for lá que ele está. As potestades celestiais tentam convencê-la do contrário. Em vão. E por fim resignam-se e deixam-na descer.

Ou cair.

Muito bem escrito, servindo-se da mitologia cristã mas sem cair na previsibilidade comum em tantos outros autores que andam por tais paragens, este é um conto bastante bom, cujo final, razoavelmente surpreendente e bastante forte, o arranca à fantasia pura e simples e o coloca num tipo de fantástico mais próximo da definição avançada por Todorov. Embora ainda me falte ler muitos dos contos desta coleção, julgo que não me enganarei declarando desde já que este será um dos melhores.

Leiturtugas da semana

Mais uma semana com leiturtugas, e desta feita voltou a haver mais que uma publicação a fazer as honras do projeto.

Primeiro fui eu, aqui na Lâmpada, com uma opinião ao conto A Mina do Deus Morto, do João Barreiros, parte da coleção Contos Digitais do DN. É um conto de FC, pelo que sigo com 2c0s.

Um dia depois, foi a vez da Carla Ribeiro se estrear, publicando uma opinião sobre mais um livro que Bruno Martins Soares publica em inglês, Laura and the Shadow King, uma ficção pós-apocalíptica que parece ser de FC e certamente contém FC. A Carla fica com 1c0s, portanto.

E para a semana há mais. De certeza.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

Lido: A Mina do Deus Morto (#leiturtugas)

É curioso constatar como por vezes acontece que mesmo depois de se ler um livro inteiro de histórias ambientadas no mesmo universo há detalhes desse universo que só ficam absolutamente claros ao ler uma história posterior, que não está incluída nesse livro. Foi um pouco o que aconteceu comigo e com a série eletropunk do João Barreiros que, depois de alargada a outros autores, deu origem à antologia Lisboa no Ano 2000.

Por isso afirmo: este A Mina do Deus Morto, apesar de ser um conto invulgarmente curto para o que é costume nas ficções do João Barreiros, deve ser lido antes de qualquer outro dos contos pertencentes a esta série, a qual tem dominado a produção ficcional do autor nos últimos anos.

Nele acompanha-se um grupo de mineiros idiotas, controlados por coleiras a que Barreiros chama "coleira conselheira", mas cuja real função não é aconselhar, mas sim dirigir, à força se necessário. Esses mineiros imbecis descem a um profundo poço na Panasqueira e à medida que se vão aproximando da zona de extração do minério vão-se tornando mais inteligentes. Porquê?

Porque, no universo ficcional em que se desenrola a série, um deus (ou algo que na nossa limitada compreensão poderá parecer divino, pelo menos) terá morrido, espalhando pelo universo misteriosas partículas da sua essência, partículas essas que conferem senciência a tudo o que encontrem dotado de algo semelhante a um sistema nervoso. Mas as partículas encontra-se distribuídas pelo espaço de forma irregular, e a Terra atravessa de momento uma área vazia... o que não quer dizer que não tenha antes passado por zonas cheias, com as devidas consequências no enriquecimento de certas camadas geológicas com essas partículas.

E tudo isto, que nas restantes ficções de que se compõe esta série (tanto as de Barreiros como as de outros) se encontra apenas sugerido, aqui está explicitado numa espécie de introdução. De resto, o conto propriamente dito pouco mais é que uma exploração dos efeitos que tem a exposição às partículas do Deus Morto, com umas pinceladas largas a sugerir o resto do universo ficcional que daí decorre. Apesar disso é um bom conto em si mesmo, isto é, sê-lo-ia mesmo que não fosse fundamental para a plena compreensão de uma série de outras histórias.

Lido: História do Compadre Pobre e do Compadre Rico

Já disse em algumas das outras opiniões a contos deste livro que uma das coisas que os parece distinguir dos contos dos Grimm é um certo caráter subversivo que por vezes nele se encontra. Não em todos, é certo, pois também aqui temos contos muito bem comportados (por vezes demasiado), mas em algumas destas histórias acha-se uma mal ou nada disfarçada troça de figuras de autoridade ou justificação de malandrices cometidas contra aqueles que, apesar de ricos, não mostram pelos menos bafejados pela fortuna a desejável solidariedade.

É o caso desta História do Compadre Pobre e do Compadre Rico, mais uma história recolhida por Adolfo Coelho em Lisboa, junto de alguém oriundo das Beiras. O título é em grande medida autoexplicativo: conta a história de dois compadres, um pobre e o outro rico mas avarento em extremo, e como o pobre conseguiu levar o rico à certa, roubando-o, sem que esse roubo mereça qualquer espécie de condenação, muito pelo contrário.

Vazio de elementos fantásticos, este conto é interessante, com um enredo invulgarmente bem amarrado para o que é costume nestas histórias e o já mencionado caráter subversivo a torná-lo também menos previsível do que é habitual: o leitor está a contar que os candidatos a ladrões sejam apanhados e castigados mas não é isso o que acontece.

Contos anteriores deste livro:

quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

Lido: O Senhor Papão

Algumas histórias tradicionais falham completamente o alvo, pelo menos quando são lidas por tipos como eu. Este O Senhor Papão, um dos contos que parecem ter sido pouco ou nada alterados pelos Irmãos Grimm e, com pouco mais de uma página, um dos contos mais curtos encontrados até agora neste livro, é uma dessas histórias.

Em jeito de fábula, conta uma alegre excursão de uma série de bichos e objetos inanimados à casa do Senhor Papão, que não encontram em casa. Mas isso não os detém; cada um se põe no lugar mais propício a fazer travessura, e quando o pobre do papão chega pacatamente a casa é assaltado por uma quantidade de malfeitorias feitas pelos alegres companheiros, ao ponto de acabar morto. Diz a história que, para "merecer tal castigo", o Senhor Papão devia ser "mesmo um homem muito mau", o que dificilmente podia ser mais nojento enquanto mensagem. Pessoalmente só vi maldades cometidas contra ele, só vi um desgraçado a ser atacado e assassinado por um bando de vândalos, e não aceito a ideologia que afirma que se a alguém acontecem coisas más é porque esse alguém as merece.

Este é um conto profundamente bárbaro, o que é especialmente grave por se dirigir a um público infantil.

Contos anteriores deste livro:

Em 2018 falou-se de... ficção brasileira

E como prometido, a seguir à ficção portuguesa, eis o apanhado da ficção científica brasileira que mereceu comentários na rede aberta ao longo do ano de 2018. Para saber mais sobre isto sigam o link aqui por cima, leiam e depois podem voltar. Os que já sabem de que se trata, podem passar diretamente à lista e/ou aos comentários, que virão no fim. Para já, cá têm a lista:

?? (org.)
  1. Além do Tempo e do Espaço
Abdala, Vítor (org.)
  1. Narrativas do Medo
Aldrin, Victoria
  1. As Coisas que Aprendi Depois que eu Morri
Almeida, Dalton
  1. Names
Amaral, Olavo
  1. Dicionário de Línguas Imaginárias
Andrade, Fábio de
  1. Sob os Olhos do Delírio
Aran, Edson
  1. Delacroix Escapa das Chamas
Assis, Machado de
  1. Sobre a Imortalidade de Rui de Leão (2x)
Azevedo, Renato A.
  1. O Dia em que Eles Cansaram de Esperar (conto)
Barcellos, Renan
  1. A Sorte do Perdedor
Beffa, José
  1. A Província dos Ursos de Vento (2x+)
  2. Dissidentes (2x)
Bianchi, Janayna (org.)
  1. Mafagafo, vol. 1
Bighetti, Marcelo
  1. Invasão Retomada (conto)
Branco, Marcello Simão (ed.)
  1. Megalon, nº 7
  2. Megalon, nº 13
Brandão, Ana Beatriz
  1. Sob a Luz da Escuridão (3x)
Brandão, Ignácio de Loyola
  1. Desta Terra Nada Vai Sobrar, a não Ser o Vento que Sopra Sobre Ela
Bras, Luiz
  1. A Vingaçna das Fêmaes de Lnuaris (conto)
  2. Alien (conto)
  3. Bunker (conto)
  4. Compreendam, Imbecis (conto)
  5. Dia da Marmota (conto)
  6. Face a Face (conto)
  7. Laboratório Aleatório (conto)
  8. Máquina Macunaíma (conto)
  9. Mea-Culpa (conto)
  10. Meu Nome é Lobo (conto)
  11. Ministério da Verdade (conto)
  12. Nas Catacumbas (conto)
  13. O Robô que Desenha Monstros (conto)
  14. O Último Homem (conto)
  15. Olho por Olho, Dente por Dente (conto)
  16. Paraíso Líquido
  17. Pequena Coleção de Grandes Horrores
  18. Rodamoinho, Talvez (conto)
  19. Saltitantes Sentinelas (conto)
  20. Sozinho no Deserto Extremo (2x)
  21. Sozinho no Deserto Extremo (conto)
  22. The Walking Dead (conto)
  23. Um Velho Engenheiro (conto)
  24. Ventania (conto) 
Bras, Luiz (org.)
  1. Eros Ex Machina
Bravo, Otávio
  1. Travessuras da Minha Menina Má
Brognoli, Maciel
  1. O Homem que Fotografou Deus (2x)
Cáceres, André
  1. Cela 108
Calado, Ivanir
  1. Anjos, Mutantes e Dragões
Campos, Évany Cristina
  1. A Guia
Caniato, André; Bianchi, Jana (org.)
  1. Aqui quem Fala é da Terra
Cantareira, Gabriel
  1. Fuga (conto)
Carneiro, André
  1. Piscina Livre
Carqueija, Miguel
  1. As Aventuras de Honey Bel
Catalano, Nicolas
  1. Espelho dos Olhos
Causo, Roberto de Sousa
  1. Infiltrado (conto)
  2. Selva Brasil 
  3. Shiroma: Matadora Ciborgue
Cordenonsi, A. Z.
  1. Le Chevalier e a Exposição Universal
Costa, Antonio Luiz M. C.
  1. Era uma Vez um Mundo (conto) 
Costa, Herbert Silva
  1. A Fuga
Costa, Walter Cavalcanti
  1. O Velocista
Cury, Augusto
  1. Petrus Logus: O Guardião do Tempo
Danton, Gian
  1. O Grande Besouro (conto)
Davi, Mateus
  1. Simulacro da Escuridão
Dodsworth, Alexey
  1. Dezoito de Escorpião (2x+)
Domingues, Rodrigo
  1. Caçada aos Multiplicadores
Dutra, Daniel I.
  1. Gary Johnson (conto)
Elía, Antônio d'
  1. Transfert (conto)
Falcão, Adriana
  1. A Máquina (conto)
Fernandes, Day
  1. A Fortaleza (5x)
Filho, Manuel
  1. Uma História de Ouro e Sangue
Fortunato, Caroline
  1. O Lado Real do Abstrato (conto)
Fraeman, Raphael
  1. Krystallo
Franco, Mauro
  1. Tempo Incerto
Freire, José M. S.
  1. A Jornada da Morte
  2. O Chamado de Úlion
Galves, Rodrigo
  1. Oráculo de Cristal (3x)
Garcia, Clóvis
  1. O Velho (conto)
Gondim, Ricardo Labuto
  1. Corrosão (3x)
Graciotto, Francis
  1. Dias Febris
  2. Febre Vermelha
Gundim, Robson
  1. Enquanto Eles não Vêm
Jucá, Fabiano
  1. Tente Outra Vez
Kabral, Fabio
  1. O Caçador Cibernético da Rua Treze (2x)
Kampen, Rodrigo Von
  1. Trabalho Honesto
Kampen, Rodrigo Von (ed.; org.)
  1. Trasgo, Ano 1
  2. Trasgo, nº 4
Karras, Flávio
  1. Indigesto: Contos Gástricos
Lanne, Pedroom
  1. Adução: Dossiê de um Transmutado Alienígena
Leirner, Nelson
  1. O Espelho (conto)
Lobato, Monteiro
  1. O Macaco que se Fez Homem
  2. O Presidente Negro (2x)
Lonza, Furio
  1. O Homem
Lyrio, Mauricio
  1. O Imortal
Magalhães, Antony
  1. Anacrônico (2x+)
Malheiros, Álvaro
  1. George e o Dragão (conto)
Mandarino, Alex
  1. O Caminho do Louco
Manfredi, Lúcio
  1. Encruzilhada
Mantagrano, Bruno Anselmi; Tavares, Enéias (org.)
  1. Fantástico Brasileiro
Marinho, João Carlos
  1. O Disco I - A Viagem
Martins, Jonas de S.
  1. Guerra à Ruína
Martins, Walter
  1. Tuj (conto)
Marx, Rafael
  1. O Viajante (conto)
Mendes, Eduardo da C.
  1. Ictus Vitae
Mesquita, Ricardo
  1. Casulos
Mierling, Rô (org.)
  1. King-Poe-Lovecraft, Do Terror ao Horror
Monteiro, Jeronymo
  1. O Elo Perdido (conto) 
Monteiro, Jeronymo (org.)
  1. O Conto Fantástico
Moraes, Ney
  1. Desafio (conto)
Morais, Nuno
  1. Perdidos Para Sempre
Mores, Carlos André
  1. Estratégias de Combate (conto)
Moricz, Tibor
  1. Fome
Mota, Lucas
  1. Boas Meninas não Fazem Perguntas (2x)
Muniz, Flávia
  1. O Hóspede (conto)
Nery, M. V.
  1. Hope, as Cores da Verdade
Neto, Henri B.
  1. Contra Tempo
Novello, Eric
  1. Ninguém Nasce Herói (2x+)
Nunes, Jorge Moreira
  1. Macacos e Outros Fragmentos ao Acaso
Oliveira, Nelson de (org.)
  1. Fractais Tropicais
Oliveira, Rodrigo de
  1. A Era dos Mortos, vol. 1 (3x+)
  2. A Era dos Mortos, vol. 2 (3x)
  3. A Ilha dos Mortos (2x+)
  4. Elevador 16
Orsi, Carlos
  1. Guerra Justa (2x+)
Paiva, Davi (org.)
  1. Monstros Entre Nós
Paiva, Marcelo Rubens
  1. O Orangotango Marxista
Pan, F. R.
  1. Alec Dini e o Vórtice do Tempo
Parreira, Claudio
  1. Perdidão (conto)
Pascale, Ademir
  1. Carta do Futuro (conto)
Pascale, Ademir (org.)
  1. Invasão Alienígena
Peleteiro, Matheus
  1. O Ditador Honesto
Picillo, Giovanna
  1. Zitz e a Rede Etérea
Pinto, Adams
  1. Jardim dos Famintos
Ramos, Diogo
  1. Horror Familiar (conto)
Resende, Dorva (ed.)
  1. Ficções, nº 15
Ribeiro, Gerson Lodi-
  1. A Noiva e o Vampiro (conto)
  2. Azul Cobalto e o Enigma (conto)
  3. O Vôo do Ranforrinco (conto)
  4. Todo o Silício do Mundo... (conto)
  5. Xochiquetzal
  6. Xochiquetzal e a Esquadra da Vingança (conto)
  7. Xochiquetzal em Cusco (conto)
Ribeiro, Gerson Lodi- (org.)
  1. Solarpunk
Roiz, Diedra
  1. Absorção
  2. Reflexão
  3. Transmissão
Rueles, Lucas; Marx, Rafael (ed.)
  1. Pulp Feek, nº 2
S., Bruno H.
  1. Diário 2116
Salles, Rodolfo
  1. Absolutos (5x)
Santos, Ricardo A. S.
  1. As Quimeras da Guerra
Saueressig, Simone
  1. B9
Schima, Roberto
  1. O Filho do Homem (conto)
Silva, André S.
  1. Xibalba Sonha com o Oeste (conto)
Silva, Cesar R. T.
  1. Cometas (conto)
Spindler, Roberta
  1. Heróis de Novigrath
  2. Sol no Coração (conto)
Staut, Alexandre
  1. Paris-Brest
Sybylla, Lady
  1. Deixe as Estrelas Falarem (2x)
Tavares, Braulio (org.)
  1. Páginas do Futuro
Tavares, Enéias
  1. A Lição de Anatomia do Terrível Doutor Louison
Toy, Tiago
  1. Fuga
Travassos, Nelson Palma
  1. Homens Sob Medida (conto)
Tremeschin, Leonardo; Costa, Andrioli; Ferraz, Lucas R. (org.)
  1. Mitos Modernos
Trigo, Luly
  1. O Reino de Zália
Valek, Aline
  1. As Águas-vivas não Sabem de Si (2x+)
Veiga, José J.
  1. A Casca da Serpente
Villalba, Vivian
  1. Esquadrão X
Werther, R. G.
  1. A Jornada de Tony Farkas
Wood, A.
  1. Lázaro - A Maldição dos Mortos
Zaila, Lu Ain

  1. (R)Evolução
Uff!...

Bolas, que isto deu trabalho!

Os números explicam porquê. Salvo algum erro de contagem, são 169 títulos, incluindo 54 contos. Isto é, títulos de livros, revistas e outros periódicos são 115. Não há comparação possível com os números portugueses. Tudo isto distribui-se por 109 autores ou equipas de autores, a que há a somar 16 antologistas, editores ou equipas de. De novo, comparações com Portugal são ridículas. No entanto, isto também mostra um problema: o escasso número de obras comentadas por autor, na vastíssima maioria apenas uma, demonstra que na maioria dos casos não existe uma produção sustentada com o seu público próprio, um fenómeno que na parte portuguesa é menos aparente (Devido a uma muito maior escassez de produção, pelo menos em parte? Talvez).

Destes mais de 100 autores destacam-se alguns. Luiz Bras é o mais comentado, com 25 comentários distribuídos por 24 títulos, e nem só por causa dos contos comentados aqui na Lâmpada. Rodrigo de Oliveira com pelo menos 9 comentários distribuídos por 4 títulos também foi alvo de muitos comentários, e Gerson Lodi-Ribeiro, com 7 comentários a 7 títulos também, embora no caso do Gerson todos esses comentários tenham vindo aqui da Lâmpada. Destaque também para Day Fernandes e Rodolfo Salles, com cinco comentários cada ao único título respetivo, sendo que pelo menos no caso da Day eles provêm de uma bem sucedida campanha de marketing.

E é isto o que me parece relevante destacar, pois me parece que nos restantes casos os números são demasiado baixos para terem algum significado real. Segue-se nesta série de balanços a ficção internacional, mas essa só deverá chegar em fevereiro.

Lido: A Moeda

Já o tinha sentido, embora não o tenha referido, quando li A Máquina de Joseph Walser, e voltei a senti-lo agora: há qualquer coisa de profundamente insólito nestas ficções de Gonçalo M. Tavares. Não sei, por Tavares ser ainda um autor pouco lido por mim, se em todas se apenas nas que se englobam na série d'O Reino.

Sim, que tudo me leva a suspeitar que este A Moeda também pertence a essa série. Embora isso não esteja escrito em lugar algum, a mesma atmosfera geral, os nomes semelhantes, com ressonâncias da Europa central, as personagens presas nos seus pequenos labirintos, são outras tantas marcas de consanguinidade com os livros pertencentes a essa série. Julgo eu. Talvez me engane.

Seja como for, este conto é sobre um homem que vai ao médico porque lhe apareceram manchas espalhadas por todo o corpo. Detalhe, vai ao médico acompanhado por uma prostituta (depois de o ter feito acompanhado pela mãe, que entretanto morre). Porquê? Lá está: insólito. De resto, não é só aí que esse insólito se revela, pois também as manchas, o seu aparecimento e a sua evolução, são inteiramente misteriosos. O médico, esse, não lhes dá importância, antes sorri, superior. Como a própria prostituta também se ri, superiora.

Tal como acontece com Joseph Walser, também este conto é sobre um homem insignificante ao qual acontecem coisas que estão totalmente fora do seu controlo, e às quais ele é obrigado a adaptar-se a contragosto, com uma espécie de revolta surda e impotente. Coisas e pessoas, melhor dizendo. Há nele (conto ou personagem, tanto faz) algo de insatisfatório que me parece absolutamente propositado mas não deixa por isso de ser insatisfatório. Em boa medida por esse motivo, este conto pareceu-me bastante bom ao mesmo tempo que não me agradava por aí além. Por vezes acontece. Por vezes acontece o contrário.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

Lido: A Idade da Ignorância

Quem sabe quem é Braulio Tavares provavelmente conhece os títulos dos seus livros principais, e quem conhece os títulos dos seus livros provavelmente conhece o seu blogue, cujo nome é igual ao título de um deles, Mundo Fantasmo. E se conhece o blogue sabe mais ou menos o que poderá encontrar neste A Idade da Ignorância.

Já não é o caso hoje em dia, mas durante anos o blogue foi alimentado pela republicação de crónicas que o autor publicava no Jornal da Paraíba, e ao longo dos anos essas crónicas foram sendo selecionadas e compiladas em coletâneas. Esta é a terceira, e está composta por crónicas (no redondíssimo número de 100) que se debruçam fundamentalmente sobre ciência, tecnologia, filosofia, religião e literatura, e sobre as relações entre estas coisas. E quem conhece os livros do Braulio Tavares facilmente adivinha que a ficção científica marca presença em muitas destas crónicas. Não como ficção ou crítica, mas como exemplo, alusão temática, fonte de reflexão ou especulação, etc.

E são quase todas muito interessantes. Não que sejam textos com que se concorde integralmente, mas são quase todos estimulantes, cultos e provocadores. Têm, com alguma frequência, o defeito de como que apressarem um raciocínio para fecharem o texto, como se o autor estivesse com pressa de o concluir para não fugir ao limite de caracteres determinado pela coluna no jornal (e tenho quase a certeza de que era mesmo isso o que se passava), mas mesmo assim são raros os que deixam a impressão de coisa inacabada e quando isso acontece normalmente há uma crónica subsequente que a conclui.

Em suma, um livro bastante interessante, este, tendo como grande vantagem relativamente ao blogue, onde todas estas crónicas continuam livremente disponíveis, a agregação temática dos textos.

Lido: A Porrada

Ah, o énnui aristocrático! Aquele aborrecimento da vida, sêlá, aquela chatice de ter tudo e não gostar de nada, menos de andar à porrada! É sobre isso que Mário de Carvalho escreve neste A Porrada, um continho muito curto e bastante irónico sobre gente que, decididamente, não presta.

E lamento, mas já deixei spoilers, embora na realidade só tenha deixado um pouco mais claro algo que é sugerido desde as primeiras linhas. Que digo? Desde o título.

E não há muito mais a dizer, na verdade. Este é um conto irónico e corrosivo sobre uma certa camada da sociedade, que certamente não agradará a quem procure no que lê grandes profundidades psicológicas ou grandes elaborações de ambiente e/ou enredo. Tudo isso é retratado a largas pinceladas porque não é nada disso o que interessa a Mário de Carvalho. Interessa-lhe espicaçar. E consegue. Com diálogos concisos e uma narrativa breve, a mim conseguiu divertir, o que significa que, pelo menos comigo, foi bem sucedido no que se propôs fazer.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

Lido: O Noivo Ladrão

Nos contos de fadas, pelo menos nos alemães, os ladrões e criminosos em geral têm sempre os seus covis em casas isoladas nas profundezas da floresta. Por isso é pena que os protagonistas dessas histórias não conheçam contos de fadas, pois poupar-se-iam a muitos dissabores. É certo que por vezes nesse tipo de casa também vive uma bondosa avozinha, ou uma simpática família de ursos, mas normalmente é gente daninha. Ladrões ou assassinos. Ou bruxas. Das más, claro.

E este O Noivo Ladrão, mais um conto construído pelos Irmãos Grimm a partir de outros dois, não é exceção. Trata, como o título indica, sobre um noivo ladrão que apesar de o ser consegue enganar um pai e levá-lo a prometer-lhe a mão da filha em casamento, mesmo estando esta relutante. Depois, o noivo insiste em que ela o vá visitar a sua casa, sozinha, no meio da floresta, servindo-se para a encontrar de um estratagema já achado noutros contos: a indicação do caminho por coisas deixadas cair a intervalos regulares. Aqui são cinzas; noutras histórias são migalhas, ervilhas, etc. Mas chegada à casa, a noiva é avisada por um pássaro numa gaiola que os que lá habitam não só pretendem matá-la, como tencionam também comê-la.

Trata-se, como facilmente se percebe, de um conto cautelar, cujo objetivo é inculcar nos ouvintes (e leitores, mas originalmente todas estas histórias destinavam-se a ser contadas, não lidas) a noção de que ir sozinho para o meio da floresta ou deixar-se levar por homens de falinhas mansas sem que se saiba realmente grande coisa sobre eles, não é grande ideia. Aplica-se a donzelas casadoiras, com certeza, mas não se aplica só a elas. E nisso é bastante eficaz.

Contos anteriores deste livro:

Lido: A Musa Irrequieta

Sabem aquelas histórias que uma pessoa lê e está constantemente a sair da história, a distrair-se com pensamentos sobre isto e sobre aquilo, até que dá por si, duas ou três páginas adiante, e pensa espera lá, o que é que eu tenho estado a ler que não guardei absolutamente nada na memória? Aquelas histórias que quando este pensamento surge obrigam à decisão entre continuar a ler (ou a "ler", mais propriamente) como se nada fosse ou voltar atrás e tentar realmente ler o que está escrito, e a tentação de optar pela primeira possibilidade porque realmente não há pachorra é quase irresistível? Sabem?

Pois.

Est'A Musa Irrequieta de Pedro Paixão é uma dessas histórias.

Um professor de literatura metido com o seu umbigo é abalado por uma súbita paixão assolapada por uma aluna, e levante a mão quem nunca leu ou viu no cinema nada assim, nenhuma história em que um homem mais velho em posição de autoridade é seduzido por uma ninfeta. Ninguém levanta a mão? Ah. Pois. O homem passa o tempo a discutir com o seu umbigo se o que está a fazer está certo ou errado, mas vai fazendo. Cliché? Claro que sim. Depois, às tantas, eis que surge uma doença terrível a deixar uma lagriminha no canto do olho dos coraçõezinhos românticos que nunca viram aquele filme com a Charlyze Theron, Sweet November, pois os que viram só conseguem encolher o ombro. E no meio de tudo isto há uma prosa que apesar de uma ou outra imagem bem arrancada nem é nada de especial.

Em suma, este conto sai da minha leitura com um veredito claro: mau.

domingo, 20 de janeiro de 2019

Lido: As Filhas dos Dois Validos

Mais uma história sem nenhum elemento fantástico, este As Filhas dos Dois Validos, recolhido por Adolfo Coelho junto de alguém oriundo de Almeida, é um conto exemplar a apelar à virtude das donzelas e à modéstia. Para isso serve-se do contraste entre as atitudes de dois favoritos de um rei no que toca às filhas: um que nunca delas fala, o outro que não para de as gabar. Inevitavelmente, as virtudes das filhas do favorito que muito as gaba são inexistentes, ao passo que a filha do homem que a cala é recatada e piedosa.

Pelo que acima ficou escrito fácil se torna perceber que este é um conto profundamente conservador, o que de resto é característica comum nas histórias tradicionais, feitas para uma sociedade e um tempo que já não são os nossos. É em parte por isso que talvez seja bom ter alguma prudência quando deparamos com uma certa tendência para os analisar sob o prisma dos arquétipos universais. Convém não perder de vista que os contos tradicionais portugueses, e europeus em geral, estão amarrados aos valores da sociedade patriarcal rural. Seja como for, esta é uma história bem feita, o que nem sempre acontece, embora não haja nela grande rasgo imaginativo, o que é pena.

Contos anteriores deste livro:

Leiturtugas da semana

Esta semana parecia não haver leiturtugas a divulgar até que ontem o Eduardo Jauch resolveu publicar, no mesmo post, opiniões a não uma mas três leituras lusófonas, ao mesmo tempo que divulgava o projeto e também todas as leiturtugas publicadas até agora em outros sítios.

Os alvos da leitura do Eduardo foram dois contos de (ou com) ficção científica e uma BD. Os contos foram Floresta de Homens, de Valter Marques, integrado no nº 1 do fanzine Fénix, e O Saque de Lampedusa, de João Barreiros, publicado isoladamente pela Imaginauta. A BD foi Futuroscópio, de Miguel Montenegro, publicada pela Arcádia. Na minha notação (criada para ser mais prático seguir o progresso de cada um nisto), o Eduardo vai com 2c1s.

Pelo lado negativo, um dos blogues integrantes do projeto parece ter desaparecido sem aviso. Ainda não retirei o link da página, mas peço à Marisa Luna que me diga, por favor, se vai continuar ou não, neste blogue ou em algum outro.

EDITADO: OK, o blogue da Marisa foi encontrado. Possivelmente tratou-se de algum erro meu.

sábado, 19 de janeiro de 2019

Lido: Frei Genebro

Embora o grosso da produção mais conhecida de Eça de Queirós seja de cariz realista, parte dos seus contos e romances contém elementos fantásticos mais ou menos fortes, servindo-se geralmente para isso da mitologia cristã. É o caso deste Frei Genebro, a história de um frade italiano que, após uma vida inteira a fazer aquilo que julga ser boas obras, morre e vai ser julgado pelas potestades celestiais, como qualquer outra alma.

E vai convencido de que tem entrada garantida no céu. Mas apanha uma desilusão. O moral da história é claro e está resumido numa velha frase feita: de boas intenções está o inferno cheio. Coisa que o protagonista acaba por aprender à sua custa, não indo parar propriamente ao inferno mas caindo naquele limbo purgatórico que a mitologia cristã estabelece para os que não são (ainda) dignos do céu.

À semelhança da maioria dos contos anteriores, também neste há muito de estudo de personagem, mas há mais do que isso. Há a apresentação de um dilema moral e uma opinião sobre esse dilema: será legítimo cometer crimes para salvar vidas ou pelo menos atenuar sofrimentos? A opinião que Eça aqui expressa é claramente não, embora não fique claro se se trata da opinião dele ou da que julga ser a opinião teologicamente correta.

É escusado dizer que está muito bem escrito; o que é normal não é notícia. Notícia seria algum texto do Eça não estar muito bem escrito. Bem escrito, bem construído, com conteúdo e interessante, este é um bom conto.

Contos anteriores deste livro:

quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

Lido: A Noite das Mercês

A Noite das Mercês é daqueles contos que, dependendo da forma como são encarados, podem colocar-se dentro ou fora da literatura fantástica. Razoavelmente curto, é mesmo assim um conto construído em camadas narrativas sobrepostas como uma cebola literária. Um homem, já velho, conta uma história que se teria passado consigo em jovem, a qual inclui uma segunda história que lhe teria sido contada por uma misteriosa mulher com sangue índio. Ambas são histórias de violência e banditismo, num ambiente que é quase de faroeste (mas um faroeste argentino, naturalmente), e é aqui que pode entrar o fantástico, pois Jorge Luis Borges escreve de tal forma que as duas histórias como que se confundem e misturam, mas sem que realmente o façam.

Pelo que ficou dito acima já se entrevê que este é um conto muito bem concretizado, que joga com o conceito de individualidade (e até certo ponto com a memória) para criar um efeito de irrealidade pelo menos potencial. Um conto escrito com a precisão de um mecanismo de relojoaria. Um conto à Borges.

Contos anteriores deste livro:

quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

Lido: A Princesa Abandonada

Um conto com quatro páginas e meia, mais a mais quando todas essas páginas consistem de um único parágrafo é, neste livro, um gigante.

Recolhido em Abrantes, mais a sul do que é habitual em Adolfo Coelho, que raramente sequer se aproximou do Tejo, A Princesa Abandonada é um conto particularmente elaborado, ainda que invulgarmente pobre no que toca às suas características puramente literárias. Este é outro dos tais contos que mostram bem como Coelho pouco ou nada retocou as histórias que recolheu (ao contrário dos Grimm, por exemplo), e quando conjugamos isso com o facto de o enredo desta história ser particularmente complexo fácil se torna perceber o quanto de mangas se poderia criar com o pano que ela apresenta.

Trata-se de mais um dos muitos contos em que um jovem é obrigado a passar por uma série de provas mais ou menos mágicas (e neste caso é mais, pois há poções e gigantes) para demonstrar o seu valor, acabando recompensado por isso. O jovem é filho duma princesa caída em desgraça (por completo; posta na rua pelo rei seu pai) por ter dormido e engravidado de um camareiro, e é o filho que ela dá à luz quem vai fazer provas de valentia e desembaraço, acabando casado com uma princesa.

Este é um conto interessante, muito mais pelo potencial que mostra do que pela sua realização em texto.

Contos anteriores deste livro:

terça-feira, 15 de janeiro de 2019

Lido: Crepúsculo Matutino

Não vou voltar a desenvolver aqui as ideias que já desenvolvi sobre a natureza e os vários tipos dos romances-colagem, mas parece-me aconselhável que antes de lerem o que segue vão ler o que está no link acima, caso ainda não o tenham feito. É que a natureza do livro é importante para pensarmos no que Gerson Lodi-Ribeiro quis fazer com este Crepúsculo Matutino.

Ou muito me engano, ou não se trata de história que tenha sido publicada independentemente, embora partes dela tenham ficado sugeridas em outras histórias que o foram. Trata-se de um texto longo; se fosse autónomo, seria certamente uma novela. E relata o que aconteceu à espécie do vampiro de Palmares antes de ele se tornar vampiro de Palmares; a vida dos vampiros no litoral pacífico da América do Sul, a chegada dos incas à zona e a forma como os vampiros se aproveitaram da expansão do império Inca, expandindo-se e dispersando-se com ele, a arrogância e o descuido com que encararam a predação, especialmente em plena Cuzco, e a catástrofe que daí adveio. O título refere-se, creio, ao crepúsculo da espécie do vampiro de Palmares na manhã da existência da personagem.

A história é interessante, como de resto é comum acontecer nestas histórias de Palmares e do seu "filho da noite". O problema é que dava um romance. Imagino que o Gerson tenha achado que precisava desta história para contar realmente por completo a história do vampiro palmarino e se tenha visto confrontado com uma escolha entre dividir este livro em dois ou resumir o início de vida do seu protagonista e as condições que lhe deram origem, acabando por escolher esta última opção. Mas essa escolha tem consequências, e a principal é criar um texto muito descritivo e razoavelmente seco, que se lê quase como um manual de história, a história da espécie do vampiro. Embora este esteja presente nessa história, os verdadeiros motores dos acontecimentos são outros porque ele ora era muito novo ora ainda nem tinha nascido. Por isso, existe quase sempre como uma mera ideia de fundo, raramente aparecendo mesmo como personagem... e não há nenhuma personagem que tome realmente o seu lugar de protagonista. O protagonista, aqui, é a própria espécie.

Como já disse, eu conheço várias das histórias que o autor usou para construir este romance-colagem, e nenhuma tem este aspeto descritivo. Ainda não sei de que forma elas terão sido alteradas para se ajustar ao formato de romance, se o foram de todo, pelo que não tenho ainda a certeza de que o tom deste Crepúsculo Matutino termine aqui. Mas parece-me provável que assim seja. Pelo menos eu espero que sim. Porque esta história inicial é a pior de todas as histórias do Vampiro de Palmares que li até hoje.

Contos anteriores deste livro:

domingo, 13 de janeiro de 2019

Leiturtugas da semana

Voltou a não haver leiturtugas propriamente ditas, mas isso não quer dizer que não haja novidades. O grupo continua a crescer, e esta semana que passou aderiram ao projeto mais duas publicações, subindo o total para nove. Querem saber quais? Está na página.

sábado, 12 de janeiro de 2019

Lido: O Menino e a Lua

Para confirmar o que disse há dias sobre histórias tradicionais e crueldade, eis mais um continho com pouco mais de uma página em que a primeira coisa que um pai faz quando o filho lhe diz que a lua profetizou que o pai ainda haveria de lhe querer deitar água nas mãos e ele recusar é... deitá-lo ao mar dentro de um caixão. Pois.

O Menino e a Lua, assim se chama o conto recolhido por Adolfo Coelho em Coimbra, é mais uma daquelas histórias cuja moral parece ser "não se brinca com o destino". Que o que está predeterminado acontece, quer se queira, quer não. E é também mais uma história com pano para muitas mangas, que de resto são mesmo necessárias para que a história realmente resulte uma vez que tal como está aqui contada não só padece de forte inverosimilhança (o miúdo acaba como filho adotivo de um rei, por exemplo) como tem também buracos na lógica interna que seria aconselhável colmatar (o rei que o adota, que em princípio só deveria saber que ele tinha sido encontrado à deriva no mar dentro de um caixão, no final da história já sabe quem eram os pais). Ou seja, este não é grande exemplo do talento narrativo dos contadores de histórias populares, mas tem potencial para muito mais.

Contos anteriores deste livro:

Lido: Os Elfos

Este conto (ou não; já vos conto) pôs-me a folhear o que faltava do livro para ver se a partir de agora ia ser sempre assim. É que pela segunda vez consecutiva, depois d'O Casamento da Senhora Raposa, não estamos perante um conto, mas mais que um. E não, aqui não são dois: são três.

E, ao contrário do que aconteceu com a Senhora Raposa, estes contos sobre elfos são todos bastante diferentes uns dos outros, apesar de terem algumas características em comum, relacionadas quase sempre com a natureza das criaturas.

O primeiro e aquele que é, de longe, o mais extenso e complexo, conta a história de um sapateiro que uma bela noite decide que está demasiado cansado para acabar o par de sapatos que tinha em mãos, e vai descansar, deixando os sapatos apenas cortados na bancada de trabalho. Na manhã seguinte descobre com surpresa que estão terminados e perfeitos. E a coisa repete-se vezes sucessivas, até que ele, já rico de tanto e tão bom trabalho feito por algum misterioso sapateiro noturno, resolve investigar, descobre os elfos e deixa-lhes uma recompensa. Que os elfos aceitam. Só que nunca mais regressam.

O segundo é um conto de uma página sobre uma rapariga boa e trabalhadora que é convidada para ser madrinha de um bebé elfo, aceita e lá vai para as montanhas, onde passa uns dias de festa, regressando depois a casa. Mas quando regressa descobre que não se tinham passado apenas dias cá fora. Já tinha lido vários contos de fantasia com este tipo de desfasamento entre o tempo dos elfos e o tempo humano. Até traduzi um romance que contém este elemento.

O terceiro é um continho muito curto, de menos de meia página, sobre a lenda das crianças roubadas por elfos e substituídas por outras. A mesma tradução que incluía a base do conto anterior (A Criança Roubada, precisamente, de Keith Donohue) baseia-se nesta lenda.

O conjunto é simultaneamente muito interessante e de molde a deixar quem lê algo perplexo, pois os três contos têm pouquíssimos pontos de contacto, pelo que não é muito fácil entender por que motivo foram reunidos desta forma. Ou por outra, fácil é, pois todos revelam diferentes facetas das lendas sobre elfos, mas é algo discutível e, sabendo-se que os Grimm eram useiros e vezeiros em fundir e reescrever os contos que recolhiam, faz-se inevitável a pergunta (sem resposta) sobre o motivo por que não fizeram o mesmo com estas histórias. E desta vez nem a nota que se segue a eles (como a quase todos os outros) o explica.

Contos anteriores deste livro:

sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

Livros de 2018

E porque é que eu só faço balanços do ano depois do ano acabar, ao contrário de tantos outros que começam a fazê-los, às vezes, ainda no início de dezembro? Porque até ao lavar dos cestos é vindima, o que quer dizer que até ao fim do ano acontecem coisas. Este ano, por exemplo, acabei de ler o último livro do ano a... 31 de dezembro.

E foi isso o que fez com que tenha acabado o ano com o mesmo número de publicações lidas do ano anterior: 28. Mais uma vez houve este ano extensos períodos em que li muito pouco, ou quase nada, embora este ano a causa tenha sido mais o trabalho do que problemas pessoais como em 2017. Como o meu trabalho consiste em ler e (re)escrever, sempre que entro em sobrecarga não consigo descansar se me puser a ler nos tempos livres. Quando o faço sinto-me quase como se ainda estivesse a trabalhar, e por isso tendo a ir fazer outras coisas. A leitura, claro, ressente-se. Só quando tenho pausas, períodos de descanso, é que leio mais demoradamente.

E não foi só esse número a ser muito semelhante ao ano passado. Tal como em 2017, em 2018 também li 22 livros por lazer, sendo a maioria, 14 (em 2017 tinham sido 18), lusófona, e não só portuguesa e brasileira, mas incluindo também ficção angolana.

A lista completa é a seguinte:

1- Os Informadores, de Bret Easton Ellis (romance em mosaicos com toques fantásticos);
2- Phenomenae, de Ricardo Lopes Moura (coletânea de horror);
3- Sozinho no Deserto Extremo, de Luiz Bras (romance de ficção científica);
4- Arco-Íris da Gravidade, de Thomas Pynchon (romance com toques fantásticos e de ficção científica);
5- Maelstrom, de Peter Watts (romance de ficção científica);
6- Amo-te Para Sempre, de Fernando Alvim (conto mainstream);
7- Invasão Alienígena, org. Ademir Pascale (antologia temática de ficção científica);
8- Kapapa, de Luandino Vieira (conto mainstream);
9- Laços de Família, de Ruy Sant'Elmo (conto mainstream);
10- O Jogo Final, de Orson Scott Card (romance de ficção científica);
11- Na Teia dos Meus Segredos, de Maria Jacinto Uva (conto mainstream);
12- O Boitatá com Olhos de Césio, de Lúcio Manfredi (artigos e críticas fundamentalmente sobre ficção científica);
13- Solarpunk, org. Gerson Lodi-Ribeiro (antologia temática de ficção científica);
14- Xochiquetzal, de Gerson Lodi-Ribeiro (romance em mosaicos de história alternativa);
15- A Corte do Ar, de Stephen Hunt (romance de fantasia steampunk);
16- Pequena Coleção de Grandes Horrores, de Luiz Bras (contos de ficção científica, horror, humor e fantástico, sobretudo);
17- O Engenho dos Sonhos, de Carina Portugal (contos sobretudo de horror, mas também com ficção científica, humor e fantasia);
18- O(s) Fantasma(s) de Fernando Pessoa em O Ano da Morte de Ricardo Reis, de Barbara Juršič (tese de mestrado em literatura portuguesa);
19- Remix, de Lawrence Lessig (ensaio sobre os problemas em volta do copyright);
20- Yazik, de Emanuel R. Marques (conto de horror, com toques de ficção científica);
21- Caminhos do Espaço, de Charles Eric Maine (romance de ficção científica);
22- 100 Livros Portugueses do Século XX, de Fernando Pinto do Amaral (divulgação e crítica literária).

Também li periódicos:

23- Ficções de Guerra, ed. Luísa Costa Gomes (contos fundamentalmente mainstream);
24- Megalon, nº 7, ed. Marcello Simão Branco (contos, artigos e resenhas de e sobre ficção científica e fantástico);
25- Megalon, nº 13, ed. Marcello Simão Branco (contos, artigos e resenhas de e sobre ficção científica e fantástico);
26- Pulp Feek, nº 2, ed. Lucas Rueles e Rafael Marx (contos de ficção científica e artigos sobre FC e técnicas de escrita);

E por obrigação laboral foram lidos:

27- Assassin's Fate, de Robin Hobb (romance de fantasia);
28- Fire and Blood, de George R. R. Martin (romance de fantasia);

Tal como no ano passado a ficção científica predomina, apesar de ter lido poucas obras de FC "pura". A maioria foram obras com alguma FC misturada com outras coisas, por vezes de forma muito minoritária. Mas essas outras coisas, e as que existem nas obras sem qualquer FC, foram mais uma vez bastante variadas, indo de textos académicos sobre literatura ao horror, passando por histórias inteiramente mainstream e por fantasia (ainda que esta se tenha restringido sobretudo aos livros que li como preparação para os traduzir).

E tal como ano anterior, também neste que acabou de acabar não houve nenhum livro que me tenha deixado de queixo caído. Embora tenha havido algumas boas leituras, a maioria foram leituras que não ultrapassaram a mediania e houve umas quantas entre fracas e más. Em parte por isso, este ano tenho real dificuldade em decidir-me pelo habitual top-3 de leituras, porque houve 6 livros que se destacaram dos demais, por motivos diferentes, e não me está a ser nada fácil escolher três entre eles. Acho que vai ter de ser o prazer de leitura a desempatar, e aí ganha a Pequena Coleção de Grandes Horrores, do Luiz Bras, seguido por Maelstrom, do Peter Watts, e por O Jogo Final, de Orson Scott Card. Tudo livros de e com ficção científica, curiosamente. Ou talvez não tão curiosamente.

Os outros três, já agora, foram Remix, de Lawrence Lessig, Xochiquetzal, de Gerson Lodi-Ribeiro, e Sozinho no Deserto Extremo, de Luiz Bras. Sem nenhuma ordem especial. Este último autor, de resto, pode ser encarado como o autor do ano: li dois livros dele e gostei bastante de ambos. Esta listinha de três também dá pistas para se perceber quais foram as três melhores leituras lusófonas do ano, i.e., a Pequena Coleção de Grandes Horrores em primeiro, Xochiquetzal em segundo e Sozinho no Deserto Extremo em terceiro. Tudo brasileiro; este ano li muito poucas coisas portuguesas e as que li estiveram longe de se destacar (umas mais, outras menos). No próximo ano vou ler bastante mais material português, e espero que pelo menos parte dele seja significativamente melhor.

Pelo lado negativo, houve um livro (bem, um livrinho) que se destacou claramente dos demais. A pior leitura do ano foi, pois, Na Teia dos Meus Segredos, de Maria Jacinto Uva. Decidir a segunda e terceira pior foi mais difícil, mas a segunda pior também é relativamente clara: o número 2 do fanzine Pulp Feek. Para a terceira pior a competição foi aguerrida e abundante, reunindo quase uma dezena de livros e outras publicações, mas acabei por escolher outro fanzine brasileiro: o número 7 do fanzine Megalon. Tudo leituras lusófonas, tal como no ano passado, embora neste grupo que lutou por (não) ser a terceira pior leitura também houvesse dois livros traduzidos: A Corte do Ar e Caminhos do Espaço.

E para o ano há mais. Muito mais, na verdade, pois vou ver se leio em 2019 o que falta dos contos DN (aquela coleção de ebooks que inclui o Amo-te Para Sempre, do Alvim, que li este ano), o que só por si já dará uma lista jeitosa de títulos. Até lá.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

Lido: 100 Livros Portugueses do Século XX

Um dos paradoxos do estado atual dos meus projetos é continuar a pegar em livros que arranjei para ver se encontrava neles alguma coisa que tivesse interesse para o Bibliowiki, ao mesmo tempo que o próprio Bibliowiki se encontra parado por falta de tempo para lhe dedicar. E assim deverá continuar até que a atual carga de trabalho termine, em fevereiro.

Este 100 Livros Portugueses do Século XX, edição bilingue (português/inglês) do Instituto Camões, preparada por Fernando Pinto do Amaral, cujo objetivo foi apresentar a potenciais interessados estrangeiros a melhor ou mais relevante (no critério do autor, bem entendido) literatura portuguesa do século passado, foi um desses livros. Peguei nele para ver se encontraria aqui alguma obra que eu desconhecesse que podia interessar ao Bibliowiki, i.e., que podia integrar-se na literatura fantástica. E à parte as que já conhecia (de Saramago, por exemplo, ou de Branquinho da Fonseca) até encontrei, pelo que por esse lado esta leitura foi proveitosa. Resta saber é quando conseguirei traduzir isso em conteúdo de wiki propriamente dito.

Mas claro que aqui as ditas paraliteraturas (que são tão literaturas como as outras, mas deixem-nos lá brincar à sobranceria) não entram, entreabrindo-se apenas uma breve exceção à literatura infanto-juvenil. Nada de policial, nada de fantasia e quanto à ficção científica, então, nem pensar em tal coisa. Que só se perceba realmente a abrangência e variedade de uma literatura tendo em conta todas as suas facetas e as várias formas de criação literária que ela inclui nem passa pela cabeça de quem faz listas deste género. Sobre alguns autores menciona-se que estiveram ativos nos malfadados géneros, mas a obra que aqui se apresenta, obviamente, nada tem a ver com eles. Dinis Machado assinou ótimos livros policiais como Dennis McShade? Tá bem, mas o que interessa é O que Diz Molero. A Natália Correia escreveu contos de FC? Chhh... não falem disso que é pecado.

Outra coisa a que achei particular graça, especialmente envergando o meu chapéu profissional de tradutor, é a forma como se tenta promover certas obras sublinhando o seu caráter regionalista, em especial em termos de linguagem. É que se há coisa que não passa numa tradução são os regionalismos de linguagem. Porque uma tradução pressupõe sempre a alteração profunda da linguagem. Podem encontrar-se aproximações na língua de destino, truques para se fazer o leitor evocar alguma região do seu próprio espaço linguístico, na esperança de que isso o faça compreender o regionalismo do original, mas esses truques não passam disso mesmo. Nunca é a mesma coisa.

Diverti-me também com a forma como o autor apresentou os livros integrados na corrente do neorrealismo. Tudo (ou quase) é descrito como "esquemático", o que é uma maneira mal disfarçada de chamar a esses livros simplistas. A ideia que passa é que ele se achou obrigado a referir essas obras e autores, pela relevância que umas e outros tiveram na literatura portuguesa de meados do século, mas muito a contragosto e com grande ranger de dentes, provavelmente ideológico, que o neorrealismo é uma corrente artística de inspiração marxista e isso é palavra que, imagino por algumas frases que foi deixando aqui e ali, causará alguma indigestão ao autor.

Dito isto, este livro é útil. Não só para estrangeiros tomarem conhecimento com uma parte da literatura portuguesa do século XX, mas também para portugueses e não só para aqueles que pegam nele com o objetivo de alimentar um site bibliográfico, que provavelmente são um conjunto de um só. É uma visão do que é relevante que, apesar de assumidamente ser pessoal — o autor deixa-o explícito na introdução — é fruto das escolhas de alguém que está de tal forma mergulhado no pensamento literário dominante que na realidade pouco de pessoal aqui existe. São precisamente as escolhas espectáveis de alguém com o percurso de Fernando Pinto do Amaral e seriam as feitas, com pouquíssimas diferenças, por outro Fernando Pinto do Amaral qualquer. E isso marca um momento, não necessariamente da literatura portuguesa propriamente dita, mas com certeza do pensamento português sobre literatura. Caberá a cada um decidir se as acha relevantes ou não.

Se bem me lembro, descarreguei este livro em PDF do site do Instituto Camões, mas parece já não estar disponível.

Lido: Maria Silva

Apesar de tenderem a sofrer adaptações delicodoces quando são apresentados às criancinhas, muitos dos contos populares nas suas versões originais são violentamente cruéis. Ora são reis que mandam matar toda uma população de crianças porque um oráculo lhes diz que entre essas crianças está uma que os vai matar décadas mais tarde, ora são maus que são castigados das formas mais hediondas que se possa imaginar, ora são feitiços ou provas que forçam quem fica sob a sua alçada a sofrimento prolongado, ora é uma série de outras coisas desagradáveis, estes contos estão repletos de atos e sacrifícios que parecem saídos diretamente das catacumbas mais sombrias da imaginação humana.

É muito o caso deste Maria Silva, mais um conto recolhido por Adolfo Coelho em Coimbra. Trata-se de mais um daqueles contos de profecia em que o alvo da profecia tenta de tudo (ou quase) para evitar que ela se cumpra, quase sempre em vão. Neste caso, trata-se de um príncipe que um dia na floresta ouve choros e uma voz a dizer-lhe que a que chora haveria de ser dele. E que faz? Procura a criança que chora e marca-a na testa com um ferro em brasa, corta-lhe um dos mindinhos e abandona-a numas silvas. Um amor de pessoa, não é? Mas o destino é o destino e depois de crescer rodeada de prodígios mais ou menos impossíveis, a bebé acaba mesmo casada com o príncipe.

Este é mais um dos contos com pano para muitas mangas que se podem encontrar neste livrinho. E dá para ser adaptado de formas muito diferentes.

Contos anteriores deste livro:

quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

Em 2018 falou-se de... ficção portuguesa

E agora que chegámos a 2019 e acumulámos 12 meses de referências no Ficção Científica Literária, está na altura de fazer um apanhado das obras de ficção científica (e relacionadas) que mereceram leitura e comentário na rede aberta de língua portuguesa durante o ano que passou. E, como acaba por ser muita coisa, vou dividi-lo em quatro posts: ficção portuguesa, ficção brasileira, ficção traduzida, outras coisas. Hoje é o primeiro: a ficção portuguesa.

Antes de mais, uma nota sobre convenções. Quando aparece um número seguido por um x, 2x, por exemplo, isso significa que houve ao longo do ano duas opiniões à mesma obra. Quando aparece um número seguido por um x e um +, 2x+, por exemplo, quer dizer que ao longo do ano houve pelo menos duas opiniões à mesma obra. É assim porque eu não comecei desde o início a contabilizar o número de opiniões, e pode ter havido opiniões múltiplas que não assinalei nos primeiros meses.

Isto despachado, eis a lista:

? (org.)
  1. Almanaque Steampunk 2017
  2. O Legado de Eros
  3. Uma Terra Prometida
Almeida, Miguel Vale de
  1. Euronovela
Alves, André
  1. Instintos (conto)
Barreiros, João
  1. Crazy Equóides
  2. Se Acordar Antes de Morrer
Barreiros, João; Ferreira, Ana; Gil, Ana Margarida; Claro, Ângelo; Figueiras, Carina; Jales, Filipa; Oliveira, Hugo; Ribeiro, Marta
  1. A Escolha de Hobson, (novela)
Barrento, Pedro
  1. O Algoritmo do Poder
Bizarro, António
  1. O Motor do Caos e da Destruição
Cancela, H. G.
  1. A Terra da Naumãn
Cardoso, Carmo; Machado, José
  1. O Jogo (conto)
Coelho, Alexandra Lucas
  1. A Nossa Alegria Chegou (2x)
  2. Orlando e o Rinoceronte
Dâmaso, Ana Cláudia
  1. Desleais
  2. Imprudentes
  3. Rebeldes
Dias, Ricardo
  1. O Marciano Humanista (conto) 
Elias, Vítor
  1. Pobres Diabos
Garcia, Nuno Gomes
  1. O Homem Domesticado
Gonçalves, Jonuel
  1. E Se... Angola Tivesse Proclamado a Independência em 1959?
Holstein, Álvaro de Soura; Leandro, Marcelina Gama (org.)
  1. Antologia Fénix I
Ladeira, António
  1. Os Monociclistas (3x)
  2. Seis Drones
Lobo, Sofia Guilherme
  1. Holocausto Lunar
Magalhães, Ângelo R. T.
  1. A Submissão dos Inocentes
Magalhães, Ana Maria; Alçada, Isabel
  1. O Ano da Peste Negra
  2. Uma Viagem ao Tempo dos Castelos
Matos, Melo de
  1. Lisboa no Ano 2000
Morais, José Manuel
  1. Livros que não Deviam ter Sido Escritos - XIV (conto)
Oliveira, João Pedro
  1. O Farol Intergaláctico (conto)
Pimenta, Samuel
  1. Os Números que Venceram os Nomes
Portela, Patrícia
  1. A Coleção Privada de Acácio Nobre
Portugal, Carina
  1. Doze Doses de Ilusão (conto)
  2. O Engenho dos Sonhos
Santos, José Rodrigues dos
  1. Sinal de Vida
Saramago, José
  1. A Caverna
  2. Ensaio Sobre a Cegueira (5x)
  3. História do Cerco de Lisboa
  4. O Homem Duplicado
  5. Objecto Quase
Silva, Carlos
  1. Anjos
Silva, Carlos (org.)
  1. Expansão (2x+)
  2. Lisboa Oculta
Silva, Luís Filipe (org.)
  1. O Resto é Paisagem (2x)
Soares, Bruno Martins
  1. Mission in the Dark
  2. Shark-Killer (3x+)
Ventura, João
  1. Conflitos Livrescos (conto)
  2. Tudo Isto Existe (3x)
Parece muito? Não é. Poupo-vos às contas fazendo-as eu. São 49 títulos, nem meia centena, 7 dos quais são contos. 42 títulos que correspondem a livros de novela para cima ou a compilações de contos, portanto. São 29 autores ou equipas de autores e mais dois organizadores de antologias. Isto para um ano inteiro de atividade. É pouquíssimo, mesmo que seja mais do que era norma aqui há alguns anos. E menos ainda parecerá quando compararmos estes números com os números equivalentes que vamos ter nos outros posts.

Como seria de esperar, por vários motivos, o autor mais comentado foi Saramago. Outros autores com quatro ou mais comentários foram António Ladeira (a surpresa do ano), Bruno Martins Soares e João Ventura, todos com novos lançamentos em 2018. E com pelo menos três, Alexandra Lucas Coelho e Ana Cláudia Dâmaso, também ambas com lançamentos este ano e esta última graças aos comentários aos três livros de uma trilogia num blogue.

E à exceção de João Ventura, nenhum destes nomes corresponde a um autor com presença assídua e de longa data (Soares tem-na, mas bastante mais recente) em publicações ligadas ao fandom português de FC. E tanto Saramago como Coelho e Ladeira são autores próximos do mainstream. Os motivos para isso são complexos e não cabe aqui discuti-los mas é um dado relevante que convém sublinhar.

Próximo balanço: ficção brasileira. Fiquem por aí.

terça-feira, 8 de janeiro de 2019

Em dezembro falou-se de...

E cá temos, pelo 12º mês consecutivo — há um ano que faço isto, portanto, o que significa que dentro de dias aparecerá por aí o balanço do ano das leituras fc — o apanhado das opiniões literárias que apareceram na web aberta durante o mês que acabou há dias.

Mas comecemos como é costume: pelas notas sobre onde encontrar mais informação sobre o que são estes artigos, de que limitações padecem e quais são os seus objetivos, o que se pode encontrar no primeiro de todos, de janeiro de 2018, e também onde e como encontrá-los a todos, passados, presentes e, no tempo devido, futuros, todos reunidos na tag leituras fc.

E agora que o palavreado habitual está despachado, vamos às listas. No fim, como sempre, há comentários.

Ficção portuguesa:
  1. Euronovela, de Miguel Vale de Almeida
  2. A Submissão dos Inocentes, de Ângelo R. T. Magalhães
  3. Doze Doses de Ilusão, de Carina Portugal (conto)
  4. O Engenho dos Sonhos, de Carina Portugal
  5. Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago (2x)
  6. O Resto é Paisagem, org. Luís Filipe Silva
  7. Tudo Isto Existe, de João Ventura
Ficção brasileira:
  1. Names, de Dalton Almeida
  2. Sobre a Imortalidade de Rui de Leão, de Machado de Assis
  3. Dissidentes, de José Beffa (2x)
  4. Dia da Marmota, de Luiz Bras (conto)
  5. Ministério da Verdade, de Luiz Bras (conto)
  6. Pequena Coleção de Grandes Horrores, de Luiz Bras
  7. A Guia, de Évany Cristina Campos
  8. Aqui quem Fala é da Terra, org. André Caniato e Jana Bianchi
  9. Piscina Livre, de André Carneiro
  10. Le Chevalier e a Exposição Universal, de A. Z. Cordenonsi
  11. A Fortaleza, de Day Fernandes
  12. Dias Febris, de Francis Graciotto
  13. O Caçador Cibernético da Rua Treze, de Fábio Kabral
  14. Trasgo, nº 4, ed. Rodrigo van Kampen
  15. Macacos e Outros Fragmentos ao Acaso, de Jorge Moreira Nunes
  16. Fractais Tropicais, org. Nelson de Oliveira
  17. A Ilha dos Mortos, de Rodrigo de Oliveira
  18. A Noiva e o Vampiro, de Gerson Lodi-Ribeiro (conto)
  19. Solarpunk, org. Gerson Lodi-Ribeiro
  20. Pulp Feek, nº 2, ed. Lucas Rueles e Rafael Marx
  21. Heróis de Novigrath, de Roberta Spindler
  22. O Reino de Zália, de Luly Trigo
  23. As Águas-Vivas não Sabem de Si, de Aline Valek
Ficção internacional:
  1. A Loucura de Deus, de Juan Miguel Aguilera
  2. O Poder, de Naomi Alderman (2x)
  3. As Cavernas de Aço, de Isaac Asimov
  4. O Sol Desvelado, de Isaac Asimov
  5. Os Robôs da Alvorada, de Isaac Asimov
  6. A História de uma Serva / O Conto da Aia, de Margaret Atwood (4x)
  7. 4321, de Paul Auster
  8. Sepulcros de Cowboys, de Roberto Bolaño
  9. O Livro de Areia, de Jorge Luis Borges
  10. There Are More Things, de Jorge Luis Borges (conto)
  11. Fahrenheit 451, de Ray Bradbury (2x)
  12. Em Mãos Humanas, de Algis Budrys (conto)
  13. A Parábola do Semeador, de Octavia Butler
  14. Despertar, de Octavia Butler (2x)
  15. Cyborg, de Martin Caidin
  16. A Vida Compartilhada em uma Admirável Órbita Fechada, de Becky Chambers
  17. A Última Profecia, de Suzanne Collins
  18. M 81: Ursa Maior, de Edmund Cooper (conto)
  19. Vox, de Christina Dalcher (4x)
  20. Espere Agora Pelo Ano Passado, de Philip K. Dick (4x)
  21. O Homem do Castelo Alto, de Philip K. Dick
  22. O Tempo Desconjuntado, de Philip K. Dick (2x)
  23. Valis, de Philip K. Dick
  24. A Libélula Presa no Âmbar, de Diana Gabaldon
  25. A Viajante, de Diana Gabaldon
  26. EntreMundos, de Neil Gaiman e Michael Reaves
  27. The Difference Engine, de William Gibson e Bruce Sterling
  28. Cannibal Farm, de Ron Goulart (conto)
  29. Uma Coisa Absolutamente Fantástica, de Hank Green (2x)
  30. Tropas Estelares, de Robert A. Heinlein
  31. Duna, de Frank Herbert (2x)
  32. A Terra da Noite, de William Hope Hodgson
  33. A Corte do Ar, de Stephen Hunt
  34. Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley
  35. A Quinta Estação, de N. K. Jemisin
  36. O Portão do Obelisco, de N. K. Jemisin (2x)
  37. Flores para Algernon, de Daniel Keyes (2x)
  38. A Incendiária, de Stephen King (2x)
  39. Celular, de Stephen King (2x)
  40. A Balada do Black Tom, de Victor Lavalle (2x)
  41. Steampunk!, org. Kelly Link e Gavin J. Grant
  42. A Floresta Sombria, de Cixin Liu
  43. O Problema dos Três Corpos, de Cixin Liu
  44. Legend, de Marie Lu
  45. Almas Roubadas, de Sarah J. Maas
  46. O Corpo Dela e Outras Farras, de Carmen Maria Machado
  47. Estilhaça-me, de Tahereh Mafi
  48. LoveStar, de Andri Snær Magnason
  49. Caixa de Pássaros / Às Cegas, de Josh Malerman (4x)
  50. Estação Onze, de Emily St. John Mandel
  51. Cidade da Meia-Noite, de J. Barton Mitchell
  52. Light Years, de Kass Morgan
  53. Anjos Partidos, de Richard Morgan
  54. Time Traders, de Andre Norton
  55. 1984, de George Orwell
  56. O Elmo do Horror, de Victor Pelevin
  57. Máquinas Mortais / Engenhos Mortíferos, de Philip Reeve (4x)
  58. A Noite dos Mortos-Vivos, de John Russo
  59. O Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry
  60. Calamidade, de Brandon Sanderson
  61. A Guerra é para os Velhos, de John Scalzi
  62. Head On, de John Scalzi
  63. O Ceifador, de Neal Shusterman (2x)
  64. Regresso à Vida, de Robert Silverberg
  65. As Artes de Xanadu, de Theodore Sturgeon
  66. Viagem ao Centro da Terra, de Jules Verne
  67. Limites do Tempo, de Rysa Walker
  68. A Máquina do Tempo, de H. G. Wells
  69. Behemoth, de Scott Westerfeld
  70. Goliath, de Scott Westerfeld
  71. Leviathan, de Scott Westerfeld
  72. A Sombria Queda de Elizabeth Frankenstein, de Kiersten White
  73. O Livro do Juízo Final, de Connie Willis
  74. O Beco dos Malditos, de Roger Zelazny
  75. The Courts of Chaos, de Roger Zelazny
  76. The Hand of Oberon, de Roger Zelazny
  77. As Horas Vermelhas, de Leni Zumas
Não-ficção internacional:
  1. Superinteligência, de Nick Bostrom
  2. 21 Lições Para o Século 21, de Yuval Noah Harari (2x)
  3. O Futuro da Humanidade, de Michio Kaku
  4. Nossos Deuses são Super-Heróis, de Christopher Knowles
  5. A Verdadeira História da Ficção Científica, de Adam Roberts
Este mês de dezembro marcou o início do projeto Leiturtugas e, embora o início de uma coisa destas seja sempre hesitante, já parecem notar-se alguns efeitos, pois é preciso recuar a janeiro para a lista de leituras portuguesas ser mais extensa. Até aconteceu algo pela primeira vez nas leituras portuguesas: dois comentários no mesmo mês a uma mesma obra, no caso do Saramago. Ainda não tinha acontecido, julgo que nunca (desde que isto começou, claro), e de certeza que não desde que comecei a contabilizar o número de referências feitas a cada obra em cada mês. Mesmo assim, sete (ou oito, se contarmos os dois comentários ao mesmo título) ainda é um número demasiado baixo. Mas parece haver boas perspetivas para esse número aumentar significativamente a breve trecho.

Quanto aos brasileiros, este mês esmeraram-se. 23 títulos num total que mesmo descontando os que vêm aqui da Lâmpada — cinco — significa um dos mais fortes meses desde que comecei a fazer isto. Efeitos de ser verão lá por baixo? Quiçá. Luiz Bras, com três títulos, tem destaque, embora seja destaque made in Portugal (aqui mesmo), e Gerson Lodi-Ribeiro, com dois títulos, e José Beffa, com duas opiniões a um seu livro, vêm logo atrás.

Em sentido inverso, os comentários à ficção traduzida voltaram a diminuir, contando-se este mês 77. E também não houve nenhum livro com uma quantidade de comentários quase estratosférica como aconteceu em novembro. O máximo foram quatro, cabendo a palma a Malerman, a Dick, a Dalcher e a Atwood. Dick, no entanto, destaca-se, pois além desses quatro comentários a um dos seus livros houve mais quatro comentários a outros três. E só mais um autor chegou aos quatro comentários: King, que os distribuiu por duas obras.

E assim se encerra o ano de 2018. Ou não, que ainda vêm aí balanços globais. É só acabar de escrevê-los. E quanto a estes apanhados mensais, em fevereiro cá nos encontramos outra vez. Até lá.