segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Leiturtugas #130

Olá e bem-vindos a mais uma nota de divulgação das Leiturtugas que apareceram por aí na semana que acabou de chegar ao fim.

E começou com o Artur Coelho, que regressa às notas breves sobre BD mais desenvolvidas noutro local. Desta feita ele iniciou a semana opinando sobre Abandonos, de Ricardo Santo, edição deste ano da Escorpião Azul.

Mas não se ficou por aí; dias mais tarde apareceu com outra breve opinião, agora sobre O Coração na Boca, de Horácio Gomes, também edição deste ano, e também da Escorpião Azul.

Por outro lado, entre os oficiosos, a semana pertenceu ao Nuno Coelho, que publicou a sua opinião sobre o mais recente romance de José Rodrigues dos Santos, O Jardim dos Animais com Alma, publicado também este ano pela Gradiva. Sem grandes certezas, parece tratar-se de uma espécie de fábula, sem grandes sinais de FC (ou nenhuns).

E esta semana é só isto que tenho para divulgar. Veremos o que nos traz a próxima. Até lá.

sábado, 27 de novembro de 2021

Irmãos Grimm: Pele-de-Urso

Neste livro dos Irmãos Grimm é frequente acontecer que contos aparentados uns com os outros surjam a muitas páginas de distância, exigindo um certo esforço de memória para nos lembrarmos da ligação (em especial quando se lê o livro como eu leio, espaçadamente, conto a conto, e intercalando-o com outros). Mas outras vezes surgem colados, o que torna tudo mais fácil. E não me refiro às variantes dos contos que os Grimm incluem frequentemente nas suas notas, mas a contos que consideram independentes o suficiente para os publicarem em separado. E sim, é o caso deste Pele-de-Urso, uma variante do conto anterior.

De novo encontramos aqui um soldado desmobilizado que, para sobreviver, faz um contrato com o Diabo. E de novo esse contrato determina que o soldado estará submetido durante um período de alguns anos, durante os quais estará sujeito a uma série de restrições, que incluem ausência de banhos, de cortes de cabelo, de coisas dessas, e à obrigação de usar umas vestimentas que o afastam visualmente do género humano. O que, de resto, explica o título. A grande diferença é não haver aqui propriamente uma servidão, pois o soldado não só fica livre para deambular pelo mundo como está provido de uns bolsos mágicos onde encontra sempre todo o dinheiro de que poderá precisar. Parece fraco negócio para o Diabo, mas há ainda mais um detalhe: se o soldado morrer durante o período contratado, a sua alma é do Diabo. Não terá vendido propriamente a alma ao Diabo, mas digamos que fez uma espécie de leasing.

No fim, tudo lhe corre bem, e o soldado não só não morre durante o período estipulado como acaba rico e casado com uma princesa. Fazer tratos com o Diabo é porreiro, pelos vistos. Mas este, apesar de tudo, também lucra com o negócio, porque se há coisa capaz de revelar sacanas, daqueles cujas almas segundo a mitologia estão condenadas ao inferno, é a cobiça. E essa, acompanhada por uma panóplia de outros sentimentos pouco nobres, está bem presente nesta história.

Este é um conto curioso. Apesar da mesmice, pareceu-me melhor que o anterior. Mais sofisticado, de certa forma, ainda que talvez seja mais apropriado falar aqui em menos básico. Dito isto, não se trata propriamente de uma das histórias memoráveis dos Grimm; essas parecem já ter ficado para trás, no primeiro volume.

Contos anteriores deste livro:

quarta-feira, 24 de novembro de 2021

Aldous Huxley: Hubert e Minnie

Há aqui um problema de organização da antologia, o que até tem sido coisa rara nestes pequenos livrinhos. É que Hubert e Minnie tem tantas coisas em comum com o conto anterior que quase parece apenas mais do mesmo. E isso não é bom para a experiência de leitura.

E também não é lá muito bom para Aldous Huxley, não só porque o seu conto vem a seguir ao de Rilke, pelo que é ele a sofrer o impacto da aparência de mesmice, mas também porque não me pareceu tão bem sucedido como o do autor austríaco.

De novo, temos aqui um casal em vias de qualquer coisa. De novo, a rapariga, apaixonada e disposta a tudo, vai descobrir da pior forma que o rapaz não está tão em sintonia com ela como supunha. De novo, é este e as suas dúvidas que quebram a união. Tudo mais ou menos igual à história anterior. Mas se o conto de Rilke parece servir-se destes clichés para atirar alfinetadas irónicas à forma de escrever dos românticos, o de Huxley parece mais uma forma de troçar das suas personagens.

Sobretudo da personagem feminina. Descrita como uma sensaborona, uma daquelas mulheres sem interesse nenhum para ninguém, um daqueles espíritos translúcidos que passam pelo mundo sem nele ter o mínimo impacto, Huxley — e após algum tempo o seu protagonista — parece perguntar a si mesmo por que raio haveria alguém de se julgar apaixonado por tal nulidade. E, inevitável e literalmente, a nulidade vê-se de repente abandonada, de coração partido, sem perceber o que raio lhe acontecera. Parece faltar alguma empatia a tudo isto, o que deixa um sabor amargo ao final da leitura.

Este conto podia ser melhor.

Contos anteriores deste livro:

Philip K. Dick: A Chegada

Esta coisa da arrumação de contos em revistas e antologias tem que se lhe diga. Não é só questão de organizar as coisas por forma a que a experiência do leitor seja a melhor possível, ou a que este se sinta o mais satisfeito possível ao terminar a leitura (são duas coisas próximas, mas diferentes), é também questão de não criar demasiados contrastes entre autores próximos na sequência, especialmente se colados. E às vezes roça a maldade pôr um autor logo antes ou a seguir a outro se bem que, convenhamos, escolher autores para ladear Philip K. Dick não é fácil. No entanto, não sendo fácil, pôr uma história como a de Bob Kurosaka antes deste A Chegada (bibliografia) é maldade.

O conto é Dick escarrapachado e atenção que vêm aí spoilers com fartura. A princípio parece tudo mais ou menos normal, ainda de uma forma algo acidentada. Uma nave, vinda de Marte e trazendo os tripulantes de uma missão que correu mal, desce com muito pouco controlo algures nos Estados Unidos. Combalidos, mas vivos e muito felizes por estarem de volta à Terra, os tripulantes saem da nave e põem-se a caminho, em busca de algum lugar onde possam entrar em contacto com as autoridades e a NASA. Mas...

... mas toda a gente foge deles. E depois veem-se cercados e acossados pelo FBI, que os trata não como heróis regressados improvavelmente ao planeta natal, mas como inimigos, a prender se possível, a abater caso não seja. Como é natural, eles ficam completamente confusos: o que raio está aqui a acontecer? Bem, Dick explica o que raio está ali a acontecer. Eu é que não vos vou revelar a explicação, digo apenas que está muito bem esgalhada. Muito bem esgalhada.

Este conto é francamente bom.

Contos anteriores desta publicação:

segunda-feira, 22 de novembro de 2021

Leiturtugas #129

Mais uma semana, mais Leiturtugas. E desta vez quem arrancou com elas fui eu.

Sim, que neste blogue assinado com o nome de Jorge Candeias foi publicada uma opinião sobre um livro de contos interligados fantásticos e humorísticos de Mário de Carvalho. O título? Casos do Beco das Sardinheiras, como podem ver na imagenzinha junta. Já é antiguinho, tendo saído pela primeira vez em 1982, mas eu li-o numa reimpressão de 2015 de uma reedição de 2013. Isto das edições sucessivas vai-se tornando desnecessariamente complicado, methinks, mas é o que é. Enfim, não importa. O que importa é que este livro não tem FC (além de um levíssimo cheirinho num dos contos) e por conseguinte a minha sinalefa passa a 7c5s. E assim também eu cumpro os mínimos do ano.

E não estive sozinho. Dias mais tarde, a Cristina Alves publicou a sua opinião sobre outro dos contos da antologia Hopepunk. A vez coube a Chamamento Ancestral, de Isabel Vila Pery, um conto de FC que já não altera as sinalefas da Cristina porque ela também já tem o objetivo cumprido.

E de oficiais estamos conversados.

Mas houve também um dos oficiosos: o António Bizarro, que opinou sobre o mais recente livro (em português, pelo menos) de Bruno Martins Soares, Laura e o Rei das Sombras. Trata-se de um romance de FC publicado há muito pouco tempo pela Divergência, ainda que o António tenha lido a versão em inglês.

E por esta semana foi isto. Venha a próxima.

quarta-feira, 17 de novembro de 2021

Mário de Carvalho: Casos do Beco das Sardinheiras (#leiturtugas)

Em tempos que já lá vão, Mário de Carvalho foi fundamentalmente um escritor de literatura fantástica, ainda que daquela mais ancorada ao mainstream. O seu primeiro livro, Contos da Sétima Esfera, inclui alguns dos melhores contos fantásticos portugueses dos anos 80 e estes Casos do Beco das Sardinheiras (bibliografia), o livro seguinte, vão muito na mesma onda, ainda que numa faceta significativamente mais virada para o humor.

O Beco das Sardinheiras é um beco lisboeta muito peculiar. Não se trata propriamente de um daqueles lugares fora do espaço comum que todos habitamos, que tendem a aparecer com alguma frequência em várias formas de literatura fantástica, mas é um beco sui generis, onde acontecem as coisas mais bizarras. E é tão comum elas acontecerem que os habitantes já encaram as bizarrias do beco com a fleuma reservada para os pequenos incómodos do quotidiano. De resto, os próprios habitantes têm o seu quê de bizarro, ainda que se trate de um bizarro castiço, um bizarro que como que excreta lisboetice por cada poro.

É esse caráter castiço que dá boa parte da piada a estas histórias. Um pouco à semelhança dos bons malandros do Zambujal, estas personagens de Mário de Carvalho são especialistas em arranjar soluções inovadoras e despachadas para as pequenas e grandes complicações da vida. Desenrascam-se, em suma. Sem recorrer muito à malandragem, é certo, mas com um implacável desrespeito pelas regras. Isso dá-lhes interesse e graça, os quais são ampliados pelas próprias situações que lhes vão caindo em cima, por vezes literalmente. E por mais que confundam género humano com Manuel Germano.

Mas a mim, na verdade, o que mais agrada aqui é a imaginação. Não só a imaginação das situações em si mas a imaginação revelada pela forma como as personagens lhes dão a volta. A imaginação, essa condição superior do espírito humano e que tantas vezes falta a tanta literatura, é o que transforma várias destas histórias, de textos bons e divertidos, em verdadeiras delícias para os olhos de quem lê. Não a todas, é certo; numa compilação de contos quase nunca todos atingem o mesmo nível. Mas a muitas delas. E o resultado é um livro muito bom. Um belo exemplo de como o fantástico pode ser bem usado em português.

Eis o que achei de cada um dos contos:
Este livro foi comprado.

terça-feira, 16 de novembro de 2021

Georgette Silen: Quimera das Cinzas Douradas

Falava eu aqui há muito pouco tempo sobre o subgénero da ficção científica que se dedica a reimaginar enredos e situações mitológicas sob o olhar da imaginação de base tecnológica, e por um daqueles acasos em que a leitura é pródiga eis que poucos dias depois de ler um desses contos, leio outro.

Na verdade, até o ambiente é semelhante. Tanto o conto de Ricardo Dias como esta Quimera das Cinzas Douradas de Georgette Silen se passam na Palestina, este integralmente, o outro em parte. Mas salvo esse e alguns outros detalhes, os dois contos até acabam por ser bastante diferentes.

Aqui, o substrato é profundamente judaico. Silen torna literal o conceito (bem daninho, convenhamos) de povo escolhido, postulando que os judeus do tempo de Moisés eram extraterrestres, ou talvez seres de outra dimensão, que um acidente teria deixado presos na Terra, e cujas atribulações seriam apenas um compasso de espera até que os seus conterrâneos conseguissem encontrá-los e levá-los de volta para o lugar que lhes é próprio. A terra prometida, que nesta história nada tem a ver com a Palestina. O episódio da mitologia judaico-cristã em que Moisés sobe ao topo do Monte Sinai para aí receber as tábuas da lei é transformado num episódio de contacto em que Moisés, líder de um povo abandonado há tanto tempo que se enchera de dúvidas (de resto, ele próprio as tem, pois apaixonara-se por uma humana que não poderá levar consigo e dela tivera filhos), consegue finalmente contactar os seus e recebe instruções para os preparar para o transporte. Mas claro que há um mas.

Esse mas tem a forma dos deuses locais. Outras criaturas extraterrenas, talvez extradimensionais, que vivem na Terra desde muito antes da chegada dos judeus e se dedicam a fazer prodígios para angariar seguidores. Também é ideia antiga na FC (basta lembrarmo-nos do que está na base da série Stargate, para usar um exemplo que quase toda a gente deverá conhecer), e reaparece aqui sob a forma de uma deusa que tenta seduzir Moisés e, não o conseguindo, decide seduzir o seu povo. Com sucesso.

No fim, o resultado é uma história interessante, entre a FC e a fantasia, ainda que haja nela algumas coisas que não me agradaram particularmente. Ou nada, a bem dizer. Abomino, sobretudo, as ideologias do povo escolhido, a ideia de "nós acima de todos os outros" que lhes está inerente, e as suas ficcionalizações tendem a repelir-me com alguma veemência, a menos que se dediquem a denunciá-las. É até certo ponto o caso aqui. E há também o aparecimento dos deuses locais cheirar bastante a um deus ex machina bastante literal, destinado a explicar o motivo porque a viagem de regresso ao planeta ancestral não se chega a concretizar, o que é evidente à partida dado continuarem a existir judeus no planeta Terra e não haver nenhum sinal de Silen ter em mente a criação de um mundo alternativo ao nosso.

Mas apesar de tudo isso, o conto é interessante. É um ponto a seu favor.

segunda-feira, 15 de novembro de 2021

Leiturtugas #128

Boas. Prontos para mais uma série de Leiturtugas? Vamos a elas.

Desta vez, ao contrário do que tem sido hábito, quem arrancou com a semana não foi o Artur Coelho, mas sim a Cristina Alves. A opinião que ela nos traz é desta feita sobre um conto de FC de A. M. Catarino, intitulado A Costura de Vidro, publicado numa antologia de edição recente, Farol de Esperança. E com este conto, a Cristina atinge 6c7s e cumpre os mínimos do ano.

Tal como a semana anterior, esta também foi fechada por mim, o tal tipo que responde por Jorge Candeias (podem chamar-me outros nomes, mas provavelmente não responderei), com mais uma opinião sobre um conto publicado pela Fantasy & Co. Desta vez intitulado A Faca, e de um autor que julgo não ter ainda comentado por aqui, André Alves, esta foi uma edição de 2016 e trata-se no fundamental de uma história de horror. A sinalefa passa assim a 7c4s, e fica a faltar uma opinião para também eu cumprir os mínimos do ano.

Mas calma, que quando ali em cima digo que a semana foi fechada refiro-me apenas aos participantes oficiais nesta coisa. É que esta semana houve também uma opinião de um oficioso.

Ou melhor, de uma oficiosa, e em estreia. Refiro-me a Yvette Centeno e à opinião que ela publicou sobre A Mulher sem Pálpebras, de Ana Marques Gastão, um livro de contos publicado este ano pela Letras Errantes, que aparentemente navega por águas literárias próximas ao realismo mágico e/ou ao surrealismo.

E agora sim, a semana chega ao fim. No próximo domingo há mais. Até lá.

sexta-feira, 12 de novembro de 2021

José Viale Moutinho: A Princesa Encantada

Não há nada de literal no título deste conto. Não há no conto princesas, muito menos encantadas. Tampouco há algum sinal de fantástico, seja ele qual for. José Viale Moutinho elabora um conto realista, sobre um momento na história portuguesa em que uma série de revoltas contra a ditadura abala vários pontos do país, incluindo a Madeira que serve de cenário para este texto, e que, provavelmente por falta de preparação e união, acabam derrotadas, acabando Salazar por servir-se delas para solidificar o seu poder. Assim sendo, porque lhe chamou Moutinho A Princesa Encantada? Bem...

Especulando, creio que a princesa encantada a que o título faz referência é a liberdade. A liberdade sonhada mas em grande medida inacessível, não só mas também porque o protagonista da história não arranja à última hora a coragem necessária para lutar por ela. Ou simplesmente não vê como, talvez. Sim, que Moutinho não conta propriamente a história das revoltas, mas sim uma história íntima, sobre o olhar limitado do seu protagonista sobre o que está a acontecer, um olhar que primeiro vem embebido de esperança e medo e depois de desilusão e resignação.

Sim, é bom, este conto. Mas é um conto desencantado, pouco esperançado, sobre alguém que se vê ultrapassado pelos acontecimentos e cruza os braços, acobarda-se, nada faz. Conhecemos bem as consequências, todos os 48 anos delas. Daí que após a leitura fique um certo incómodo. Uma insatisfação. Mas, como o protagonista da história, nada podemos fazer. Ela está escrita. É o que é.

Contos anteriores deste livro:

André Alves: A Faca (#leiturtugas)

Olha... também gostei deste.

Não que tenha gostado muito. Há nele alguns detalhes (um português eficaz mas não perfeito, uma pegada demasiado juvenil nos diálogos e na construção de personagens, alguma desadequação do resultado à ambição, etc.) que não deixaram. Mas este conto de André Alves é sofisticado o suficiente para sustentar o interesse da leitura até ao fim e para evitar tornar-se previsível. Bem retrabalhado, poderia tornar-se realmente muito bom.

Como o título de A Faca leva a suspeitar, tudo gira em torno de uma faca. Uma faca ensanguentada e um cadáver, mais precisamente, mas a coisa torna-se complexa quando o cadáver aparece ao protagonista vivinho da Silva e incólume, o que o deixa mais perturbado ainda porque tinha sido ele a matá-lo uma hora antes. Mas pelos vistos não. Ou será que sim?

E o conto vai por aí fora, numa espécie de terror onírico com uns toques de ficção científica (universos paralelos ligados por portais? será?), levando repetidamente o triângulo amoroso que lhe está na base a consequências trágicas. E o assassino, aparentemente impenitente, a repetir a façanha, ainda que de formas diferentes.

Não sei se o André Alves conhece, muito menos se teve alguma influência vinda daí, mas esta sua história fez-me lembrar um pouco o excelente livro de Alfred Bester O Homem Demolido. Pesem embora as grandes diferenças, há nas duas histórias a mesma base num crime (ou em vários), há a mesma sensação paranoica de que qualquer coisa no mundo está profundamente errada, há a mesma confusão em grande medida impotente, etc. Claro que o romance é bastante melhor, mas a comparação é elogiosa. Este é um conto com verdadeiro interesse.

Este livro, como todos os publicados pela Fantasy & Co., pode ser descarregado a partir daqui.

quinta-feira, 11 de novembro de 2021

Irmãos Grimm: O Irmão Mascarrado do Demo

Alguém pediu mais uma variante do velho mito de Fausto? Não? Olha, temos aqui uma mesmo assim, em mais um conto que os Irmãos Grimm parecem ter alterado pouco relativamente ao conto original. Mas talvez seja um pouco abusivo chamar "variante" a este O Irmão Mascarrado do Demo, visto que se é verdade que os reflexos do mito faustiano se encontram aqui bem claros, não deixa de ser também verdade que esta história não segue propriamente o bem conhecido enredo da história de Fausto.

O protagonista é, de novo, à semelhança do conto Irmão Jovial, um soldado desmobilizado. Mas se o daquele conto encontra São Pedro, o deste depara com o Diabo na floresta e faz com ele um trato: sete anos ao serviço do demónio, cumprindo uma série de regras, e fica livre e com o suficiente para viver durante o resto da vida. E é dessas regras e das dificuldades que criam ao protagonista que o miolo do conto vive. No final, relata-se o que acontece ao soldado findo o período de servidão diabólica. Tudo de forma bastante breve, sem grande abundância de detalhes.

Longe de ser memorável — é raro que um conto com tantos elementos em comum com outros me fique na memória — este não deixa de ser um conto com o seu quê de curioso, sobretudo pelos traços de família que apresenta.

Contos anteriores deste livro:

segunda-feira, 8 de novembro de 2021

Leiturtugas #127

Ainda vamos a tempo? Claro que sim. Vamos sempre a tempo. Até porque temos aqui mais uma listinha de Leiturtugas para vocês. Curtinha.

Para não variar, é inaugurada pelo Artur Coelho, que fala desta vez brevemente, com maior desenvolvimento noutro sítio como é seu costume quando comenta álbuns de BD, de uma edição muito recente d'A Seita/Comic Heart: o álbum Alma Mãe de Carlos Silva e Penim Loureiro. Como sabe quem cá costuma vir cheirar estas notas, o Artur já tem o ano cumprido.

E para variar, é fechada pelo gajo que escreve aqui na Lâmpada, Jorge Candeias de seu nome. Desta vez opinei sobre mais um dos contos do Fantasy & Co., este datado de 2015. O título é Os Historiadores, o autor é Ricardo Dias e o género é FC. Mais uma leitura com FC para mim, portanto, o que leva a sinalefa a 7c3s.

Ora, como esta semana voltou a não haver nada vindo dos oficiosos, estamos conversados até à próxima. Até lá.

domingo, 7 de novembro de 2021

Escrita de outubro


Inaudito: outubro seguiu-se a setembro!

OK, isto é palermice, piadola tola. Mas não é só palermice. É que, de facto, o que escrevi em outubro vem em absoluto na sequência do que escrevi em setembro. Continuo a escrever o tal romance, que já se vai aproximando das dimensões mínimas de romance, as quarenta mil palavras da praxe, e a produção do mês foi semelhante à de setembro, só que em mais. Sim, acabámos de deixar para trás aquele que é, pelo menos até agora, o mês mais produtivo deste ano de 2021, ainda que continuemos longe da produção dos meses realmente produtivos de outros anos.

Ao todo foram pouco mais de 6 mil palavras novas, o que dá à volta de 18 páginas. Isso faz com que a produção do ano, apesar de tudo, se vá aproximando rapidamente das 100 páginas de ficção nova, o que não é particularmente bom mas também não é mau de todo. Eu sei, eu sei que os tipos do Nanowrimo despacham isso, ou mais do que isso, num mês. Mas eu não sou um dos tipos do Nanowrimo.

O futuro? Bem, estou outra vez numa daquelas fases em que não sei bem qual a melhor forma de fazer avançar a história, pelo que é possível que o ritmo abrande. E as obras no prédio (sim, outra vez!) não ajudam. Por outro lado, também é possível que resolva a coisa, as obras acabem e o ritmo acelere. Veremos no início de dezembro, não é?

Até lá.

Nuno Costa Santos: Quem Quer Mudar de Família?

E depois há destes contrastes. Este texto não podia ser mais diferente do anterior, praticamente em tudo.

Para começar, trata-se de um conto, não de uma espécie de ensaio. E trata-se de um conto no qual Nuno Costa Santos usa de exagero para melhor criticar uma determinada instituição: os concursos televisivos. Quem Quer Mudar de Família? é uma história fantástica na medida em que traz em si aquela espécie de hipérbole e também de alegoria que tão comuns são naquele fantástico de pés mais assentes na realidade, claramente baseada no concurso Quem Quer Ser Milionário?, mas com uma diferença: as perguntas que o apresentador faz ao concorrente são íntimas e têm a ver com a sua vida privada.

E o prémio é, está claro, mudar de família. Tudo composto com um voyeurismo que faz lembrar The Truman Show, ainda que não me pareça que Santos tivesse essa conexão em mente quando escreveu este texto. É possível que sim, até porque o conto é apenas quatro anos mais novo que o filme, mas não creio. Enfim, pouco importa. O que importa é que este é um bom conto: eficaz na crítica, divertido de uma forma corrosiva e bem escrito. Aprovado.

Textos anteriores desta publicação:

sábado, 6 de novembro de 2021

Ricardo Dias: Os Historiadores (#leiturtugas)

Existe todo um subgénero na ficção científica que consiste em reinterpretar de forma tecnológica, frequentemente futurista, acontecimentos e personagens provenientes das mais variadas mitologias. É, de resto, uma ideia que não se resume à FC, pois também está na base de uma série de revisionismos pseudocientíficos, frequentemente de matriz racista (como ousam povos não brancos fazer coisas que os brancos não conseguem fazer?), entre os quais os mais conhecidos talvez sejam os Deuses Astronautas de von Däniken. Mas a FC fá-lo de uma forma incomparavelmente mais honesta; afinal de contas, quem chama ficção à ficção não está a tentar enganar ninguém.

É nesse subgénero que se insere este Os Historiadores. Neste conto, Ricardo Dias imagina uma nave capaz de viajar no tempo através de viagens no espaço, ideia que radica, obviamente, no conceito do tempo enquanto quarta dimensão de um universo tetradimensional, inerente às teorias de Einstein. Essa nave, apropriadamente chamada Star of Bethlehem, parte com uma missão: assistir ao nascimento de Jesus Cristo. E olhem, sabem que mais? Daqui em diante há SPOILERS.

A viagem, apadrinhada pelo Papa, não deixa de ser ao mesmo tempo polémica. É sempre polémico mexer-se nos dogmas, e quando existe a possibilidade de se assistir a uma verdade histórica diferente daquilo que os mitos defendem como verdade essa polémica só pode aumentar. É uma polémica de que Ricardo Dias não foge, o que é um ponto positivo, ainda que não a trate de forma particularmente convincente, sobretudo devido a uns diálogos que estão longe de serem os ideais.

Essa, na verdade, é a parte mais fraca de todo o conto. A outra face da moeda são as coisas que Dias faz bastante bem. A escolha do nome de Maria para a tripulante que mostra mais dúvidas quanto à missão, e depois vai levar ao seu desenlace através de atos nascidos de uma religiosidade atacada, é uma forma hábil de redirecionamento das atenções por forma a que o final acabe por ser surpreendente. E mesmo todos os indícios que vão sendo deixados de que a missão vai acabar por influenciar a história, que poderiam perfeitamente tê-la estragado, acabam por funcionar devido a esse redirecionamento e a essa surpresa.

Este é um conto entre o razoável mais e o bom. Com melhores diálogos seria claramente bom, com um português mais hábil (é competente mas pouco passa disso) poderia chegar ao muito bom. Mas mesmo assim está uns furos acima do que tenho lido nas publicações Fantasy & Co.

Este livro, como todos os publicados pela Fantasy & Co., pode ser descarregado a partir daqui.

segunda-feira, 1 de novembro de 2021

Ângelo Brea: Rosas de Admete

Não que este conto seja particularmente bom, que não é. Mas Angelo Brea tem aqui pelo menos o mérito de mostrar como é possível criar uma ficção que é puro infodump mas este não constitui o corpo estranho e frequentemente desagradável que se intromete em tantas histórias, muitas vezes de FC mas não só, fazendo em vez disso sentido no contexto da história que é contada.

Rosas de Admete é no essencial um depoimento. Algo que alguém escreveu, numa época de incerteza, para que pelo menos a sequência de acontecimentos que deram origem a essa incerteza ficasse registada para a posteridade. E é por isso que funciona enquanto conto: o texto é basicamente o que seria de esperar de um texto escrito por alguém com essas motivações, muito mais preocupado em contar uma história tal como a entende do que com qualquer coisa que tenha a ver com literatura. Assim, aqui não encontrarão diálogos ou personagens: encontrarão a história de como a humanidade encontrou num planeta distante os peculiares seres vivos a que chamou rosas de Admete, os efeitos que neles descobriu e as consequências que isso teve. Nada mais, nada menos.

E as explicações que Brea dá são, de uma forma geral, as que seria de esperar que alguém nessas circunstâncias desse. Eu talvez escrevesse este conto de uma forma algo diferente, deixando transparecer mais da personalidade do narrador, imprimindo ao seu depoimento um caráter mais emotivo e deixando cair umas pistas subtis aqui e ali sobre o que aconteceu. Mas Brea é da FC clássica, não costuma prender-se muito com a construção de personagens e não é muito de subtilezas, pelo que não esperava encontrar aqui nada disso como, de facto, não encontrei. Encontrei um infodump que funciona, e isso já é alguma coisa.

Contos anteriores deste livro:

Mário de Carvalho: Epílogo

Eis outro conto que já tinha lido quando tomei inicialmente contacto com estas histórias, na Antologia do Humor Português, e que comentei aqui. Continuo a pensar como pensei nessa altura, em geral: o conto é muito divertido e, se lido como denúncia, é magnífico. O curioso é que nesta segunda leitura já não me pareceu propriamente uma denúncia, apesar das personagens saírem a comentar, desapontadas, que o autor está a confundir género humano com Manuel Germano. Antes, parece-me que Mário de Carvalho é sincero no seu desejo de se integrar na tribo dos literatos e que sente o óbvio gozo que tem na escrita destas histórias como algo de que se deve envergonhar.

Olhando para o seu percurso posterior, só se confirma essa sinceridade. Aos dois volumes iniciais de contos seguem-se romances bastante mais ambiciosos (e julgo que bastante menos fantásticos), embora os contos continuem a aparecer com regularidade na sua bibliografia. Este Epílogo (bibliografia) é, assim, um epílogo para uma forma descontraída e imaginativa de estar na literatura. O epílogo de uma fase. E eu tenho pena de que assim seja, apesar de reconhecer que até compensou em termos de carreira. O intelectualoide português, como se sabe, é avesso à imaginação, especialmente quando temperada de humor. Com coisas destas, de facto, Mário de Carvalho não chegaria onde chegou.

Contos anteriores deste livro: