O David Soares publicou há bocado no blogue um conjunto de dez dicas sobre escrita, e eu assim que li a primeira pensei cá com os meus botões "diabo, que isto vai ser mau". Quando acabei, achei que tinha de comentar aquilo, e aqui está o meu comentário. A negrito estão as dicas do David mas não as explicações que dá para elas. Por baixo de cada dica estão os comentários que dica e explicação me provocam. Portanto para lerem este post é imprescindível que, antes de mais,
vão lá ler as dicas dele. Depois, se quiserem, podem voltar cá. Mas só depois.
Está lido? Então vamos lá.
1- Não escrever como se fala.
Dificilmente se podia começar pior uma lista de dicas sobre escrita, francamente. E a explicação não é melhor, porque aquilo que realmente denuncia falta de talento nos escritores não é a coloquialidade, não é o "escrever-se como se fala", mas sim não saber utilizar a coloquialidade e o texto erudito nos locais que lhes são próprios. Não há coisa mais triste do que ler os diálogos forçadíssimos dos escritores suficientemente medíocres para não serem capazes de usar corretamente a linguagem coloquial. Nem o uso de coloquialismos em locais em que ficaria melhor uma escrita mais elaborada é pior do que isso. E posso mesmo dizer que há magníficas obras de literatura que fazem uso quase exclusivo da linguagem oral e coloquial. Quem quiser um bom exemplo leia
Quantas Madrugadas tem a Noite, de Ondjaki. A verdade é que querer amputar o coloquialismo da literatura é equivalente a serrar uma perna duma mesa ou duma cadeira. A verdade é que tudo o que faz parte do fenómeno linguístico pode e deve servir de matéria-prima para a literatura.
Tudo.
2- Aprender a gramática.
Não me oponho a esta, pelo contrário, mas tenho de fazer uma ressalva. Aprender gramática é, antes de mais, aprender a usar a língua. O António Aleixo, analfabeto como era, nada sabia das formalidades gramaticais, do que era um complemento indireto ou uma voz passiva, mas usava magnífica, e corretamente, a sua língua. Aprender gramática, no sentido prescritivo da expressão, no abstrato, é pouco menos que inútil. É o conhecimento prático que é importante para quem escreve (e para quem traduz, já agora), ainda que o outro muitas vezes dê uma ajuda importante.
3- Apesar de aprender a gramática, escrever como um escritor e não como um linguista.
Esta subscrevo. Integralmente.
4- Escrever um livro e não um guião de cinema.
Aqui também tendo a concordar, mas sou muito menos radical. Já li livros excelentes baseados em diálogos e descrições de ação, praticamente sem descrições, e já li livros muito maus quase exclusivamente descritivos. Um dos piores livros que li na vida, na verdade, tinha uma única linha de diálogo nas suas cento e tal páginas. Uma. E era horrendo. O que quero dizer com isto é que há e deve haver lugar para as duas coisas, e que nehuma é superior à outra, desde que as pessoas saibam o que estão a fazer e porque o fazem. Ah, sim, e não é questão de género, é de abordagem. O Hemingway não era um escritor de género.
5- Ser erudito.
O David aqui faz alguma confusão entre dois conceitos muito diferentes. O "ser erudito" que põe na dica não tem grande coisa a ver com o "sejam inteligentes a escrever" com que começa a explicação. O que não falta por aí é gente muito erudita mas completamente idiota (e consequentemente incapaz de transpor a erudição para uma escrita inteligente) e gente com grandes lacunas no conhecimento que no entanto é capaz de transpor para o papel um nível de subtileza e inteligência que está ao alcance de poucos. Dito isto, concordo que a busca de informação é importante, desde que não funcione como bloqueio. E mais: muitas das melhores obras são aquelas em que o escritor sabe mais sobre os temas em causa do que aquilo que transparece na obra. Muitos dos melhores escritores evitam o
show-off. Mas sabem. Por outro lado, conheço vários candidatos a escritores que andam há anos em
worldbuilding sem conseguirem escrever uma linha, porque quando tentam são tolhidos por aquilo que ainda não sabem, pelos bocadinhos de mundo que ainda não construíram. Aqui, como na maior parte das coisas, o que é realmente importante é ter a capacidade de encontrar um equilíbrio, que será diferente para cada autor.
6- Ler os clássicos.
Não faz mal nenhum, pelo contrário. Não me parece que tenha tanta importância como o David lhe dá, mas não faz mal nenhum.
7- Ler os melhores autores que escrevem no género de literatura em que se quer singrar.
Meh. Com toda a franqueza, acho tristíssimo que um escritor aceite, acate e contribua para a ditadura dos géneros, que é uma questão mais comercial do que outra coisa. Um escritor deve querer escrever as histórias que o inspiram, não perder tempo a pensar "mas 'pera lá, isto não é do
meu género, não pode ser". Escritor que aceite isso é escritor que até pode chegar aos pináculos do género que escolheu mas no grande esquema das coisas nunca passará da mediocridade porque se condenará a ser músico de uma nota só. Um escritor que almeje passar da cepa torta deve ler de tudo um pouco. Deve ler fora
do género e deve ler fora
de géneros. Além disso, também não me parece que colocar o fulcro da coisa nos "melhores" seja correto. É conveniente ler-se os mais
influentes, isso sim, para se saber onde e como se encaixam as histórias que se quer contar. Os mais influentes não são necessariamente os melhores.
8- Ser perseverante.
Subscrevo, por inteiro. Dica e explicação.
9- Sacrificar-se.
Também subscrevo. Mas há que saber encontrar a fronteira entre sacrificar-se e crucificar-se. E não a transpor.
10- Ser sério.
E o David acaba quase tão mal como começou. Os piores livros que li na vida eram, todos eles, insuportavelmente sérios. Mas umas merdas quase ilegíveis. Também li livros que pretendiam ser humorísticos mas que na realidade eram muito maus, ainda que não chegassem a sê-lo tanto como as tais estuchas seriíssimas. Porquê? Porque não há coisa mais difícil de fazer bem do que o humor. E também não há coisa mais
importante do que o humor. O humor é a coisa mais séria do universo, a única que torna suportável a existência. Escritor (ou qualquer pessoa, na verdade) que se leve demasiado a sério tem em si os esporos da mediocridade presunçosa prontinhos a germinar à primeira distração. E uma vez brotado esse horrendo fungo dos seus esporos é preciso um tratamento duro e persistente para que a vítima se cure, pois o raio dos fungos são umas bichezas notoriamente difíceis de erradicar. Um tratamento, lá está, composto da dose correta de humor e q.b. de excipiente. Os melhores livros que li na vida, já agora, tinham quase todos seriedade e humor em doses equilibradas. Aqui, como em quase tudo, o que é realmente importante é encontrar um equilíbrio e fazer
bem seja o que for que se pretenda fazer. E se for rir, será rir. Fazer rir é precisamente tão nobre como fazer pensar... e há poucas formas melhores de levar as pessoas a pensar do que fazendo-as rir.