terça-feira, 31 de agosto de 2010

Lido: Quantas Madrugadas Tem a Noite

Este livro é uma maravilha.

Quantas Madrugadas Tem a Noite, de Ondjaki, é uma autêntica lição de como utilizar a oralidade na literatura. Trata-se de um longo relato, uma longa história contada por um amigo a outro, num bar, enquanto lhe vai cravando cervejas atrás de cervejas, uma história cheia de peripécias sobre a morte de um tal AdolfoDido (será Adolfo Dido, mas Ondjaki grafa assim, com as palavras pegadas e uma maiúscula intermédia, o que também faz com vários outros nomes). A trama segue bastante de perto o formato da comédia de costumes. O morto deixa duas viúvas, uma legítima e a outra mais ou menos, que entram em litígio para tentarem apanhar uma pensão que o Estado angolano dá às viúvas dos antigos combatentes da guerra a que nós por cá chamamos colonial... coisa que o AdolfoDido nunca foi. Mas há documentos, há polícia, há tribunais. E há uma galeria de personagens bizarras, incluindo um albino, um anão e uma tal KotaDasAbelhas, apicultora citadina que parece ter como que um toque mágico para lidar com as abelhas. É, aliás, através dela que pela primeira vez começamos a suspeitar de que se calhar somos bem capazes de estar perante uma obra fantástica... o que acabamos por ver inteiramente confirmado no fim, no desfecho, na revelação de quem é, afinal, o homem que conta a história entre cervejas. A muito divertida história das andanças do cadáver do senhor Fodido, perdão, AdolfoDido, em bolandas por Luanda, e de tudo o que foi acontecendo entre a sua morte e o seu desaparecimento. Sim, que o cadáver às tantas desaparece, para espanto e consternação geral.

Mas o melhor que o livro tem é mesmo o tratamento que é dado à língua. Como que se ouve o português de Luanda no texto de Ondjaki, salpicado de anglicismos (ele é a birra, cerveja, ele é o bróder, irmão, ele é o dreda, etc.), ainda mais salpicado de empréstimos do kimbundu, a língua banta dominante na zona mais populosa de Angola, e salpicado também de calão e gírias de origem portuguesa e brasileira (as citações do Odorico Paraguaçu — o "kota Odorico", como lhe chama Ondjaki — da telenovela O Bem-Amado são copiosas e hilariantes), tudo a fundir-se no puro português de Angola, ou talvez só de Luanda, pois imagino que em regiões onde se falem línguas bantas que não o kimbundu os empréstimos sejam outros. E tudo a fundir-se num todo harmonioso, semeado de poesia. Querem ver? Uma citaçãozinha, então. Zinha mesmo, que acho que mesmo zinha dá para entender o que quero dizer:

Agora me é difícil odiar alguém, muadiê, e quando digo filhas da puta nessas damas que foram minhas, não é na voz da raiva nem da vingança do desprezo do meu cheiro de mel que elas querem cheirar mais outra vez (...)

Estão a ver? A mistura, calão, poesia, empréstimos bantos, tudo fundido em frases que parece que nasceram para ser assim, cheio de um ritmo tão absolutamente oral como totalmente angolano, e assim segue páginas atrás de páginas, 190 ao todo.

Este livro é uma aula de bem usar aquilo que a língua tem de mais vivo. E é também um hino à própria língua portuguesa, à sua flexibilidade, à sua adaptabilidade, à sua capacidade imensa de integração e mestiçagem, por mais que isso irrite os puristas.

Uma maravilha de livro. Já tinha dito? Não importa, volto a dizer.

domingo, 29 de agosto de 2010

Lido: Histórias Fantásticas (Inglesas e Americanas)

Como se pode deduzir pela imagem de capa aqui ao lado, Histórias Fantásticas (Inglesas e Americanas) (bib.) é um livro já bastante antigo. Trata-se de uma antologia selecionada e traduzida por Cabral do Nascimento e publicada pela Portugália numa época em que "fora" ainda se escrevia "fôra", "pónei" "pony", "ele" "êle", "teto" "teto" (isto é, antes de passar pelo interregno em que se escreveu "tecto"), "frequente" "freqüente", etc. e muitos mais etcs. O volume não tem data, mas estes detalhes ortográficos apontam lá para o início dos anos 40, talvez antes.

Trata-se de um conjunto de 14 histórias de um grupo bastante ilustre de autores do século XIX e do início do século XX. A esmagadora maioria são histórias de fantasmas, e julgo que é aí que reside a maior falha da antologia: com uma tão grande preponderância de histórias de fantasmas, por melhores que estas sejam, às tantas já me aborrecia só de pensar que vinha aí mais um conto cheio de espectros e assombrações. Além de que é bastante redutor falar-se de histórias fantásticas e quase só apresentar histórias de fantasmas. Uma coisa não é propriamente sinónima da outra, etimologia à parte.

Provavelmente teria gostado bastante mais de uma antologia mais equilibrada. Não que quase todas estas histórias não sejam boas, não que não estejam, até, bastante bem traduzidas. Mas à medida que fui encontrando uma história de fantasmas atrás de outra, quase todas cheias de clichés (mesmo quando não por culpa própria mas de todo o oceano de histórias semelhantes que foram escritas e filmadas depois) fui-me desiludindo e cansando do livro, embora as últimas histórias, que tendem a fugir mais do tema do que as primeiras, tenham conseguido sacudir parte desse cansaço. Dito isto, é uma boa antologia, com algumas grandes histórias, que podia perfeitamente, até, ser reeditada, pois julgo que todos estes contos, e mesmo a tradução, estarão já por esta altura no domínio público. Provavelmente.

Quanto aos pormenores, ao que achei de cada um dos contos, é seguir as ligações que se seguem.

Lido: Daniel Webster e o Diabo

Daniel Webster e o Diabo (bib.) é um conto de S. V. Benét e uma das suas obras mais conhecidas. Trata-se de mais uma de um sem-número de histórias que regressam ao mito alemão de Fausto. Aqui, quem faz um trato com o diabo é um agricultur de New Hampshire que, ao aproximar-se o momento em que o prazo do acordo expira, começa a acobardar-se e vai procurar por todos os meios fugir-lhe. Para tal, contacta Daniel Webster, um advogado famoso, dotado dum talento invulgar para o seu ofício. Segue-se um julgamento (na cozinha do lavrador), para o qual o diabo, ele próprio com vastas aptidões para a advocacia (como é público e notório, aliás) escolhe um júri composto por algumas das mais infames personagens da história americana. Por este punhado de linhas já dará para entender que se trata duma história de fantasia que serve também como forma de denunciar alguns dos atos mais pútridos da história e da sociedade americanas, aqui e ali salpicada de um humor sombrio. Provavelmente é essa a principal explicação para a sua fama, e para os prémios que recebeu. Mas não a única, pois muito embora o conto não me tenha convencido por inteiro, até porque o mito de Fausto já está explorado até à exaustão e histórias como esta já não surpreendem ninguém, é sem dúvida bom.

sábado, 28 de agosto de 2010

Vaporpunk é lançada amanhã.

É já amanhã que é lançada, em São Paulo, na Fantasticon, a antologia Vaporpunk, organizada por Gerson Lodi-Ribeiro e Luís Filipe Silva. São oito histórias steampunk em mais de 300 páginas, quase todas noveletas, saídas da imaginação e das teclas de Octavio Aragão, Flávio Medeiros, Eric Novello, Carlos Orsi, o próprio Gerson, Yves Robert e João Ventura...

... e das minhas.

A minha história, intitulada Unidade em Chamas, tem a sua origem mais remota numa interrogação: o que poderia ter acontecido a Portugal, e portanto ao seu império, se as elites nacionais (o que basicamente significa o rei; a época era de absolutismo) tivessem tido a visão de futuro necessária para colocar os recursos não tão escassos de que o reino então dispunha à disposição de Bartolomeu de Gusmão (e família) e de outros espíritos criativos da época, protegendo-os da sanha persecutória da Inquisição e incentivando-os a voltar a seguir o mesmo caminho de inovação e empreendedorismo que tinha sido fundamental para os descobrimentos, dois séculos antes. Uma revolução industrial? Mas como seria uma revolução industrial movida não pelos artesãos e sua vontade de ganhar dinheiro e viver melhor, mas pela Casa Real, cujo interesse primário sempre foi ampliar o reino e o comerciar com (e pilhar) terras distantes? E como se adaptaria uma revolução industrial desse género ao aparecimento duma ameaça externa? Seria completamente militarizada? E haveria na metrópole homens suficientes para controlar todo o território?

Em Unidade em Chamas não dou respostas a essas perguntas, porque não é essa a história que me interessa contar. As perguntas serviram-me para criar um ambiente, esboçar um percurso histórico até chegar ao ponto em que a novela decorre, no início do século XIX, mas nunca foi meu objetivo responder-lhes detalhadamente. Interessa-me mais ver como as pessoas reagem ao ambiente, e principalmente as pessoas comuns, que não determinam diretamente o curso dos acontecimentos, antes reagem a eles... e acabam por moldá-los também sem dar por isso, às vezes de formas inesperadas, através de mudanças coletivas de mentalidade e dos atos que são consequência dessas mudanças. É uma história com duas camadas principais e mais umas coisas extra por baixo (todo este background, pelo menos), de que gosto bastante, e que espero que agrade aos leitores.

Querem um cheirinho? Então aqui fica um cheirinho, os dois primeiros parágrafos:

As passarolas erguem-se da lezíria, lentas e imponentes, uma atrás da outra. É um espetáculo inédito: nunca tantas passarolas haviam descolado ao mesmo tempo, nunca tantos balões, aletas e cascos pintados em desenhos irregulares azuis e brancos se haviam visto a flutuar no ar calmo do Verão de São Martinho. Sidónio não pode ver por completo esse espetáculo: ele vai-se desenrolando a todo o seu redor, e a longa formatura de que faz parte não lhe permite mais do que um olhar de soslaio por baixo da continência, um movimento impercetível de cabeça, um desfocar de olhos para prestar atenção à visão periférica. Mas ouve-o. O ranger das cordas e o ruído oco das alavancas de bambu, os gritos de gaivota dos mestres de manobra, as ordens imperativas dos oficiais, e acima de tudo o crepitar das chamas a devorar o carvão e o silvo dos gases a sair em turbilhão dos recipientes onde são guardados sob pressão, para irem encher os pequenos balões auxiliares que rodeiam o comprido conjunto principal de balões enclausurados numa rede, onde o brasão nacional e o do Corpo sobressaem discretamente da camuflagem aérea. O gás secreto, sem o qual provavelmente não existiriam passarolas, fornecido em exclusivo a El-Rei pelas oficinas Gusmão que se estendem mesmo em frente, do outro lado de um rio incaracteristicamente vazio das embarcações que noutro dia qualquer já o teriam enchido de cor e movimento, num longo complexo de edifícios baixos dominado pelo grande barracão principal e, claro, pela capela. O gás que, por tudo isso, é conhecido no Corpo como gás gusmão.
São sons que Sidónio conhece bem. Pertence ao Corpo Aéreo há quase dois anos, depois de ter sido arrancado à aldeia pelos recrutadores do Conde de Alvor. Um arrebanhar de rapazes e homens mais novos, mesmo que já casados, algumas perguntas feitas por um homem de fala estranha, um subordinado qualquer vindo de alguma ilha, talvez mesmo colónia, e um papel rabiscado entregue aos pais, lamurientos porque é esse o papel que a condição de pais lhes atribuiu, mas secretamente aliviados por terem menos uma boca a alimentar. O papel lá se há de encontrar na aldeia, guardado na caixa das preciosidades da família junto do crucifixo e dos brincos que a mãe usou uma única vez no dia do casamento, sem que nunca nenhum dos seus membros o tenha lido, embora a mãe talvez tenha pedido ao padre ou ao senhor Francisco, escrivão do regedor, que lhe traduzisse os rabiscos em algo que pudesse entender. Sidónio também já sabe o que contém. Primeiro disseram-lho, e, mais tarde, ler e escrever papéis daqueles fez parte do que aprendeu antes de pela primeira vez pôr os olhos numa passarola.
 Gostaram? Querem mais? Amanhã, na Fantasticon.

Lido: Uma Fuga à Tangente

Uma Fuga à Tangente é mais um conto muito curto do Lorde Dunsany. Desta vez travamos conhecimento com um velho mago que vive numa gruta por baixo de uma Londres cada vez mais barulhenta, mais cheia de tráfego, mais mecanizada, o que lhe vai fazer nascer um ódio cada vez mais intenso pela cidade. Por fim decide destruí-la. Para isso, como qualquer mago que se preze, manda o ajudante buscar os ingredientes necessários para fazer uma poção e, de caldeirão em punho, lança mãos à obra. Mas as coisas não correm bem como ele estava à espera. É mais um conto divertido, embora não o ache tão bom como vários dos outros. O fim, em particular, parece-me comparativamente mal conseguido. Não chega para que o ache um mau conto, mas não me parece que passe do razoável.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Lido: A Morte de César

Regressando à página cheia de historinhas sobre viagens no tempo que tem sido visitada regularmente nos últimos tempos, descobre-se no décimo lugar um nome português: João Ventura. La Muerte de César é o título espanhol de A Morte de César, que até está também disponível online, aqui, portanto, já agora, que se leia a história em português. É um continho com as melhores características da ficção curta do João Ventura: uma ideia bem definida e um final bem conseguido e engraçado. Desta vez, trata-se duma expedição ao passado para ir observar o que terá ao certo acontecido no momento em que, segundo reza a história, Brutus terá morto César. Ou será segundo reza a lenda? Se alguém um dia fizer uma seleção das melhores histórias do João Ventura, esta não poderá faltar.

Lido: Um Azul Para Marte

Um Azul Para Marte é um pequeno conto de algo de semelhante à FC (ainda que a uma FC muito antiquada), de José Saramago, no qual ele descreve uma viagem que teria feito a Marte, viagem essa que é usada de forma alegórica para desenhar em traços gerais uma utopia marciana e contrastá-la com a distopia que se vivia ao tempo na Terra. Não é grande coisa, e só não o acho mesmo mau porque está bem escrito. Haveria formas muito melhores de fazer o que ele fez sem ser preciso, por exemplo, estabelecer que em Marte só havia duas cores, o preto e o branco, e que os marcianos teriam ficado surpreendidos ao saber que na Terra há sete fundamentais e milhares de tonalidades. É possível fazer-se alegorias desencantadas, é possível contrapor-se utopias a distopias, sem que para isso seja preciso recorrer-se ao disparate. Este é bem capaz de ser o pior texto de todo o livro (já não faltam muitos) e é certamente o pior até aqui.

Lido: A Origem das Aves

A Origem das Aves (bib.) é um conto de Italo Calvino, no qual o extraterrestre Qfwfq, criatura eterna que se pode deslocar à vontade pelo espaço e pelo tempo — uma espécie de Dr. Who, portanto — conta uma história que lhe terá acontecido numa época em que o mundo era novo e, embora já existissem mamíferos há uma imensidão de tempo, ainda não existiam aves. É, mais ou menos, da origem das aves que aqui se trata. Mais ou menos. Ou talvez seja esta uma história de aventuras e perigos, escrita (quase) como quem descreve uma banda desenhada, na qual Qfwfq viaja entre mundos e fala com as aves. Um conto divertido, surreal, vagamente ciencio-ficcional, a que a linguagem de BD lhe confere um encanto especial. Porreirinho.

Lido: Assessor Para Assuntos Fúnebres

Assessor Para Assuntos Fúnebres (bib.) é uma noveleta de Gerson Lodi-Ribeiro que, à semelhança de O Vampiro de Nova Holanda, se ambienta no universo ficcional dos Três Brasis. Aqui, vamos encontrar o vampiro Dentes Compridos em Londres, no início do século XX, precisamente na época em que aconteceu a série de assassínios de Jack, o Estripador, na nossa linha temporal.

O objetivo do autor é fundamentalmente revisitar essa história e explicá-la à sua maneira, e fá-lo bem. A noveleta está bem estruturada, bem escrita e é interessante de ler. Dentes Compridos tem aqui o papel clássico do detetive que vai em busca da solução para um crime (ou, como neste caso, uma série de crimes) e fá-lo como qualquer outro detetive: analisando as provas de que dispõe, embora com o auxílio dos seus sentidos sobre-humanos. E a revelação da verdadeira natureza do assassino é inovadora, e muito própria da ficção científica. A noveleta é, pois, uma reinvenção bem conseguida de toda a história do velho Jack the Ripper.

Como história alternativa é que lhe vejo o tal defeito de muitas outras HAs: a existência das exatas mesmas pessoas que existiram na nossa linha temporal muitos anos depois do ponto de divergência. Compreendo perfeitamente a tentação a que os escritores estão sujeitos de brincar com as personagens da história real, mas não consigo evitar sentir-me golpeado na suspensão da descrença sempre que vejo referências, por exemplo, a um tal Bram Stoker ou a um tal Herbert Wells em histórias alternativas cujos pontos de divergência aconteceram séculos antes, e que até divergem o suficiente da nossa para que todos os equilíbrios geopolíticos do mundo sejam diferentes. Mesmo que cavalheiros como esses tais Stoker e Wells tenham vidas algo diferentes das que tiveram na realidade. Algo não bate certo.

E não se aplicaria o mesmo raciocínio ao próprio Jack, o Estripador? Sim, mas nesse caso as coisas são algo diferentes. Se não existisse a personagem, esta história não teria razão de ser. É ele o seu fulcro. E embora não seja boa ideia dar grandes pontapés na verosimilhança, também não é grande ideia fazer com que uma excessiva preocupação com ela se ponha no caminho duma boa história. Por isso, a presença do "Velho Jack" nesta noveleta aceita-se plenamente, e ainda mais sendo ele quem (ou melhor: o que) é. A dos outros é que me dá alguma comichão. Não a suficiente para não gostar, contudo. Mas alguma.

Lido: Carbono Alterado

Carbono Alterado (bib.) é um romance de ficção científica policial que explora de uma forma muitíssimo interessante um futuro razoavelmente distante em que as consciências individuais podem ser armazenadas em sistemas informáticos (e primeiro de tudo numa "pilha" implantada na zona cervical das pessoas), e transferidas para outros corpos, as "mangas". Estes são geralmente corpos de criminosos, condenados a penas longas em armazenamento (ou então obtidos no mercado negro... ou clones artificialmente criados para esse fim), e a transferência propicia mesmo um tipo diferente de viagem interstelar... e uma certa forma de imortalidade. Escrito num tom de policial negro e violento, o livro acompanha na primeira pessoa as investigações pouco ortodoxas de um mercenário oriundo de uma colónia a vários anos-luz de distância da Terra que é "reimangado" no corpo de um ex-polícia terrestre, condenado por um crime que se vem a descobrir que não cometeu. O mercenário, Takeshi Kovacs, é contratado por um milionário "matusa" (i.e., alguém que vive muito para além da esperança de vida normal de um ser humano normal, graças a reimangamentos sucessivos) para investigar o seu alegado suicídio. Num mundo onde se armazenam consciências todos os tipos de morte são, potencialmente, atos provisórios, e o milionário, embora lhe faltem as recordações correspondentes ao período em que teria cometido o suicídio, não acredita que o tenha mesmo cometido, embora as provas que a polícia recolheu colidam com essa convicção.

Daqui parte-se para uma complicada teia de acontecimentos que envolvem prostituição e sexo aberrante e disfuncional, muito dinheiro, atividades à margem da lei, um hotel gerido por uma inteligência artificial cuja matriz de personalidade se baseia no Jimi Hendrix, uma polícia que estava sentimentalmente envolvida com o ex-polícia cujo corpo Kovacs ocupa, intrusões informáticas, realidade virtual, etc., etc. E, claro, abundante violência, ou não se tratasse de um assumido romance pós-ciberpunk.

O melhor que este livro tem, a meu ver, é conseguir tornar muito palpável, muito credível, todo o mundo que descreve. Negro? Sim, claro, mas principalmente porque no decorrer das suas investigações Kovacs vai ter de mergulhar bem fundo nas sarjetas sociais mais imundas. É negro porque a história policial que conta é negra, não necessariamente porque a sociedade seja mais negra, em si mesma, do que, digamos, a nossa. Ao contrário de outras histórias que caem no simplismo do pesadelo absoluto, neste livro quase se conseguem vislumbrar as pessoas a viverem as suas vidas normalíssimas, e quiçá talvez até felizes, nas margens do submundo que lhe serve de cenário. Isso confere-lhe uma tridimensionalidade de cenário que é invulgar, e o próprio protagonista também está invulgarmente bem construído, apesar de sair do muitíssimo que lhe acontece ao longo desta história talvez demasiado idêntico ao homem que era quando nela entrou.

Adicione-se a isso um pendor subversivo indisfarçado, a ideia genérica de que não convém mesmo nada confiar no dinheiro e no poder, de que os grandes tubarões não têm grandes escrúpulos em esmagar os pobres desgraçados que têm o azar de se lhes atravessar no caminho, e temos receita certa para um romance bem acima da média e bastante relevante para o leitor contemporâneo. Para mim teve o interesse acrescido de explorar a ideia da transferência das consciências entre corpos que eu também explorei numa noveleta que publiquei há alguns anos, Littleton, embora Morgan a tenha explorado com muito maior profundidade (e sob uma perspetiva bastante diferente), até pela muito maior extensão do seu texto. Não é nada que seja realmente novo, mas para quem escreve é sempre interessante encontrar outros tratamentos das ideias que utiliza. Esta, aliás, também é tratada numa história escrita ainda nos anos 80 por George R. R. Martin, que eu deverei traduzir no próximo ano. Mas divago.

Aquilo de que menos gostei? As longas e detalhadas descrições de cenas de pancadaria. Não é culpa do Morgan ou pelo menos não é sua culpa exclusiva. Este tipo de cena, cheio de ação e pretensamente entusiasmante, cada vez me enche mais de tédio, seja qual for o escritor que as comete. É que reparem: enquanto as personagens vão trocando murros e tiros ao longo de páginas e mais páginas, a história propriamente dita fica congelada à espera do desfecho (que ainda por cima é quase sempre a sobrevivência e provável vitória do herói, especialmente se é ele a contar a história na primeira pessoa, como aqui), não avança, fica só ali à porta do arraial de pancadaria, a bocejar de aborrecimento. E eu com ela.

Se calhar há leitores que se empolgam com aquilo, sei lá. Eu, definitivamente, não.

Mas, graças ao monstro do esparguete voador, Morgan enveredou poucas vezes por aí. Salpicou todo o livro de violência, mas foram poucas as cenas realmente longas de pancadaria. Também por isso o livro é muito aconselhável. Muito bom, sim senhores. Vão à confiança.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Sobre a tradução de Martin no Brasil: o processo

Bom. Vamos lá então falar por extenso sobre este assunto.

Para quem não está por dentro dele, aqui fica um resumo: A Leya vai publicar no Brasil a série As Crónicas de Gelo e Fogo, de George R. R. Martin. Para esse efeito comprou a minha tradução à Saída de Emergência e adaptou-a ao português brasileiro. Eu soube que era eu o tradutor da edição brasileira ao mesmo tempo do público brasileiro, através duma mensagem no twitter que remetia para a divulgação dos primeiros capítulos da edição brasileira no site Omelete. Quem estiver interessado, pode obter esse PDF aqui. Reagi, como se compreenderá, com completa estupefação.

Houve, claro, uma falha de comunicação entre mim e a SdE, mas entretanto a comunicação fez-se, conversámos e o problema está resolvido a contento. Infelizmente, não foi essa a única falha de comunicação que existiu em todo este processo. Houve outra falha de comunicação com consequências mais sérias para a qualidade final do trabalho, entre mim e a própria Leya.

Parece ser razoavelmente consensual entre os leitores portugueses que a minha tradução destes primeiros livros da série do Martin não é má. Tem até havido quem a tenha apelidado de excelente ou fantástica. Alegra-me que assim seja, mas tenho de confessar aqui com toda a clareza que não partilho do entusiasmo. A Guerra dos Tronos foi apenas o quarto livro que traduzi de fio a pavio na minha carreira. Hoje, três anos e meio mais tarde, sou um tradutor diferente, muito mais experiente, que olha para o trabalho que fez nessa época e não consegue evitar torcer de vez em quando o nariz. Cometi alguns erros por inexperiência. Se a Leya tivesse comunicado comigo, esses erros poderiam ter sido corrigidos na edição brasileira. Infelizmente não o fez. Cometi outros, em especial nos topónimos, por não ter lido toda a série antes de começar a traduzir o primeiro livro e por isso não saber ao certo qual a origem deste ou daquele nome. Agora, já a li. Se a Leya tivesse contactado comigo, esses erros poderiam ter sido corrigidos na edição brasileira. Infelizmente não o fez.

Depois há a questão da adaptação ao português brasileiro. Também aqui, a falta de comunicação foi total mas não devia ter sido. O trabalho ficaria muito melhor se tradutor e adaptador tivessem estado em contacto permanente. Ter-se-iam evitado erros, ter-se-iam evitado opções que desvirtuam algumas das coisas que considero melhor conseguidas na minha tradução. Mas infelizmente, tradutor e adaptador não contactaram nem por uma vez ao longo de todo este processo. E o resultado deixa-me perplexo.

Não percebo, por exemplo, por que motivo se adaptaram algumas coisas e não se adaptaram outras. Não percebo porque "A minha mãe disse-me que os mortos não cantam" é transformado em "Minha mãe disse-me que os mortos não cantam" e não em "Minha mãe me falou que os mortos não cantam" ou pelo menos "Minha mãe me disse que os mortos não cantam", que soa bem mais natural aos ouvidos brasileiros. É uma questão de registos de linguagem. Quem fala é um homem humilde que deve falar como pessoa humilde. Também não percebo porque foi "E a noite está a cair" adaptado para "E a noite está para cair" e não para "E a noite está caindo", que seria mais correto porque o "a cair" comum no português de Portugal se refere a algo que está a acontecer no presente, tal como o gerúndio que se prefere usar no do Brasil, e não ao futuro próximo que está implícito em "para cair".

E é mais do que incómodo aquilo que sinto por adaptações erradas que desvirtuam o próprio significado do texto, como a transformação de "Estava há quatro anos na Muralha. Da primeira vez que fora enviado para lá dela" em "Estava havia quatro anos na Muralha. Da primeira vez que fora enviado para lá". Ser-se enviado para lá de qualquer coisa significa ser-se enviado para além dessa coisa, para os territórios que se estendem do outro lado; ser-se enviado para "lá", sem mais, é ser-se enviado para a própria coisa. A personagem, aqui, reflete sobre as suas primeiras patrulhas pela floresta assombrada, mas a adaptação brasileira faz com que reflita sobre a própria Muralha.

Também não percebo porque em "Aposto que foi ele próprio quem as matou a todas, ah pois aposto" a única adaptação foi a remoção do "a" de "a todas", mantendo o "ah pois" que é usado (exageradíssimamente, diga-se) pelos brasileiros como sinal inconfundível de identificação do português de Portugal. Trata-se uma fala, de outra personagem de origem humilde, ainda que na recordação do protagonista deste capítulo. Se eu tivesse sido consultado, teria sugerido algo como "aposto que foi ele mesmo quem as matou a todas, aposto sim". Mas não fui. E, no sentido inverso, não consigo perceber porque "Alguma vez vistes uma tempestade de gelo, senhor?" foi transformado em "Alguma vez viu uma tempestade de gelo, senhor?" Ao contrário do que alguns brasileiros possam pensar, o uso da segunda pessoa do plural não é português de Portugal padrão; é a forma que encontrei para, por um lado, ampliar a minha escolha de formas de tratamento e níveis de linguagem e melhor separar o que é formal e respeitoso do que é informal e, por outro, melhor inserir as personagens num ambiente antiquado e respeitar o texto do autor.

Sim porque, ao contrário do que tem sido dito por aí, Martin utiliza estruturas fraseológicas e algum léxico arcaicos. Surgem com alguma frequência ao longo das Crónicas palavras que nem sequer vêm nos dicionários (tive mesmo de o consultar um par de vezes sobre o significado de algumas delas) e com mais frequência ainda surgem palavras que aparecem nos dicionários mas antecedidas da notazinha "arc." Ele próprio me disse, quando esteve em Portugal há um par de anos, que só não utiliza mais desse tipo de coisas porque o editor não deixa. O texto dele está salpicado de arcaísmos, e o uso de "vós" no texto português foi uma das formas que encontrei para respeitar esses salpicos. Para a generalidade dos leitores portugueses, esse uso é precisamente tão estranho como para a generalidade dos leitores brasileiros. A exceção é uma zona dialectal do Norte do país, perto da fronteira com a Galiza, onde a segunda pessoa do plural ainda é de uso corrente. São talvez 5% dos portugueses. Para os outros, não é nada que estejam habituados a encontrar, mas nenhum deles se queixou de que isso prejudicava a fluidez do texto. No máximo, exigiu-lhes umas páginas de adaptação. As mesmas, suponho, que os arcaísmos do Martin terão exigido aos leitores anglófonos. Por isso custa-me mesmo muito a aceitar que a adaptação ao português do Brasil destrua este aspeto da tradução. Quem sabe, se tivesse havido comunicação talvez não destruísse.

E chega. Tudo isto aparece nas primeiras duas páginas. Não vale a pena dizer mais.

Um trabalho deste género exigiria um contacto e colaboração estreitos entre tradutor e adaptador, que infelizmente não existiu. Não sei porquê, nem me vou pôr a especular. Mas não posso estar contente com o resultado final tal como aparece no PDF que foi disponibilizado. Esta, embora seja a minha tradução, não é a minha tradução.

E é isto o que tenho a dizer sobre este assunto em concreto. Ainda tenho mais umas ideias gerais sobre a questão das traduções únicas entre países (e portanto mercados) e dialetos diferentes, mas isso ficará para mais tarde, porque são ideias que tenho vindo a desenvolver ao longo de anos e com maior premência durante a recente discussão à volta do acordo ortográfico, portanto a única coisa que têm a ver com este assunto é o facto de eu ter sido tocado diretamente por um caso destes. Por ter sido tocado diretamente por um caso destes, farei um post sobre esses assuntos em breve, mas porque eles não têm diretamente a ver com a tradução concreta que aqui se discute, acho aconselhável separar as coisas.

Sobre a tradução de Martin no Brasil: teste de adaptação ao português do Brasil

As coisas compõem-se. Conto ter um post escrito e publicado sobre o fulcro de tudo isto ainda hoje, lá mais para a noitinha. Mas já agora, caros amigos brasileiros, digam-me lá: que vos parece este pequeno teste de adaptação da minha tradução ao português do Brasil? Fi-la eu próprio, em cerca de dez minutos, e trata-se do início do quarto capítulo. Quem quiser comparar com o que está editado, encontra-o aqui, num PDF com as primeiras 100 páginas da edição portuguesa.
O irmão ergueu o vestido para que ela o inspecionasse.
— Isto é beleza. Toque nele. Vá. Acaricie o tecido.
Dany o tocou. O tecido era tão macio que parecia correr-lhe pelos dedos como água. Não conseguia lembrar-se de alguma vez ter usado algo tão suave. Isso a assustou. Afastou a mão.
— É mesmo meu?
— Um presente do Magíster Illyrio — disse Viserys, sorrindo. O irmão estava de bom humor naquela noite. — A cor realçará o violeta de seus olhos. E também terá ouro e todos os tipos de joias. Illyrio prometeu. Esta noite deverá parecer uma princesa.
Uma princesa, pensou Dany. Já esquecera como isso era. Talvez nunca tivesse realmente sabido.
— Porque nos dá ele tanto? — perguntou. — O que quer de nós? — Havia quase meio ano que viviam na casa do magíster, comiam da sua comida, eram apaparicados por seus criados. Dany tinha treze anos, idade suficiente para saber que tais presentes raramente vêm sem preço, ali na cidade livre de Pentos.
— Illyrio não é nenhum bobo — disse Viserys. Era um jovem magro com mãos nervosas e um ar febril em seus olhos de um tom claro de lilás. — O magíster sabe que não esquecerei os amigos quando subir ao trono.
Dany nada disse. O Magíster Illyrio era um comerciante de especiarias, pedras preciosas, ossos de dragão e outras coisas menos palatáveis. Constava que tinha amigos em todas as Nove Cidades Livres e mesmo em zonas mais distantes, em Vaes Dothrak e nas terras das fábulas junto ao Mar de Jade. Também se dizia que nunca tivera um amigo que não fosse capaz de vender alegremente pelo preço justo. Dany escutava o falatório nas ruas, e ouvia estas coisas, mas também sabia que era melhor não questionar o irmão quando ele tecia suas teias de sonho. Quando era despertada, a ira de Viserys era algo de terrível. Ele lhe chamava “o acordar do dragão”.
O irmão pendurou o vestido ao lado da porta.
— Illyrio vai enviar os escravos para lhe darem banho. Assegure-se de que se liberta do fedor dos estábulos. Khal Drogo tem mil cavalos e hoje vem procurar um tipo diferente de montada. — Estudou-a criticamente. — Ainda entorta as costas. Endireite-se. — Lhe pôs as mãos nos ombros e os puxou para trás. — Deixa eles verem que já tem a forma de uma mulher. — Os dedos do irmão roçaram levemente nos seus seios em botão e se apertaram num mamilo. — Não me falhará esta noite. Se o fizer, será mau para si. Você não quer acordar o dragão, não é mesmo? — Os dedos torceram-se, um beliscão cruel e duro através do tecido grosseiro da túnica. — Não é mesmo? — repetiu.
— É, sim — disse Dany docilmente.
O irmão sorriu.
— Ótimo. — Lhe tocou o cabelo, quase com afeição. — Quando escreverem a história de meu reinado, minha doce irmã, dirão que começou esta noite.
Quando ele saiu, Dany foi até à janela e olhou, melancólica, as águas da baía. As torres quadradas de tijolo de Pentos eram silhuetas negras delineadas contra o sol poente. Dany conseguia ouvir os sacerdotes vermelhos cantando enquanto acendiam as piras noturnas e os gritos de crianças esfarrapadas que jogavam do lado de fora dos muros da propriedade. Por um momento desejou poder estar lá fora com elas, de pés nus, sem fôlego e vestida de farrapos, sem passado nem futuro nem um banquete a que ir na mansão de Khal Drogo.
Algures atrás do sol-posto, do outro lado do mar estreito, havia uma terra de colinas verdes e planícies cobertas de flores e grandes rios caudalosos, onde torres de pedra negra se erguiam por entre magníficas montanhas azuis-cinza, e cavaleiros de armadura cavalgavam para a batalha sob os estandartes dos seus senhores. Os Dothraki chamavam a essa terra Rhaesh Andahli, a terra dos Ândalos. Nas Cidades Livres, falavam de Westeros e dos Reinos do Poente. Seu irmão tinha um nome mais simples. Lhe chamava “a nossa terra”. Para ele, as palavras eram como uma prece. Se as dissesse as vezes suficientes, os deuses certamente ouviriam. “É nosso o direito de sangue, usurpado por meios traiçoeiros. Não se rouba um dragão, oh, não. O dragão recorda”.
E o dragão talvez recordasse mesmo, mas Dany não. Nunca vira aquela terra que o irmão dizia que lhes pertencia, esse domínio do outro lado do mar estreito. Aqueles lugares de que falava, Rochedo Casterly e o Ninho de Águia, Jardim de Cima e o Vale de Arryn, Dorne e a Ilha das Caras, para ela eram apenas palavras. Viserys era um rapaz de oito anos quando fugiram de Porto Real para escapar ao avanço dos exércitos do Usurpador, mas Daenerys não passara de uma partícula de vida no ventre da mãe.

Sobre a tradução de Martin no Brasil: a questão dos nomes

Voltarei, espero que em breve, à questão da edição no Brasil da minha tradução das Crónicas de Gelo e Fogo para falar um pouco de alguns dos aspetos mais delicados do assunto. Fá-lo-ei quando estiverem resolvidos os problemas que me tocam diretamente nessa edição e no modo como ela aparece. Ainda não estão, portanto por enquanto vou ter de pedir alguma paciência. Para lá se encaminham, mas ainda não estão.

Mas para já, a fim de esclarecer alguns critérios seguidos no que toca aos nomes, que tantas críticas e perplexidades têm levantado do lado de lá do Atlântico, e porque não sei se a edição brasileira a inclui, fica aqui sem mais comentários a nota de tradutor que consta da edição portuguesa. Tenho mais algumas coisas a dizer sobre o assunto, mas ficarão para mais tarde.

Aqui têm a nota:
Uma das regras básicas da tradução dita que nomes e topónimos não se devem traduzir. Mas os escritores nem sempre estão dispostos a deixar a vida dos tradutores assim tão facilitada, e por vezes escrevem histórias passadas em mundos de fantasia, nos quais se falam línguas que não são aquela em que a história é contada. Alguns, por esse motivo, encontram nomes exóticos para as suas personagens e locais; outros preferem “traduzi-los”, implícita ou explicitamente. Nestes casos, o tradutor é confrontado com um dilema: respeitar a regra que o escritor viola, ou violá-la também ele?

Aqui, optou-se por violá-la até certo ponto. Como a maior parte (mas não todos) dos topónimos de Martin é ou inglês puro ou uma derivação próxima, e dado que ele utiliza muitos desses nomes como uma forma rápida de caracterização do ambiente, considerou-se que se não fossem traduzidos se estaria a privar o leitor português dessa ajuda à ambientação. Por outro lado, a tradução de nomes é assunto delicado: não convém que, ao ser traduzido, o nome perca credibilidade e mine a suspensão da descrença necessária para apreciar a história. Assim, traduziram-se apenas aqueles nomes para os quais foi encontrado um equivalente viável em português. Topónimos sem tradução (Dorne, Pentos, etc.) permaneceram em grande medida inalterados, e o mesmo aconteceu àqueles raros topónimos para os quais nenhum bom equivalente português foi encontrado, entre os quais se destaca, pela centralidade que possui neste romance, Winterfell.

O caso dos apelidos das personagens é semelhante, mas o critério foi outro, pois só uma minoria desses apelidos vem num inglês provido de significado (Stark, Snow, Flowers e poucos mais), e não faria grande sentido ter na mesma história, e nos mesmos reinos, as famílias Targaryen, Lannister e Arryn, e Forte, Neve e Flores, tanto mais que além destes dois tipos de apelidos existe ainda um número considerável de alcunhas e cognomes e esses devem ser sempre traduzidos. A tradução de alguns apelidos, deixando intacto nos outros o “sabor” inglês, geraria uma situação ambígua para os primeiros e não se achou isso aconselhável.

Naturalmente, tudo isto é discutível. Numa tradução poucas são as coisas que não o são.
Para terminar, por agora, só uma outra nota muito curta, que pode servir como informação geral: é muito raro que seja o tradutor a escolher o título de um livro ou de uma série. O tradutor sugere, mas a decisão final é do editor, porque nela se tem de entrar em linha de conta com uma série de questões que ultrapassam a simples tradução, nomeadamente as estratégias de marketing. Todas as críticas ao tradutor pelo que se encontra no miolo de uma tradução são legítimas e, em princípio, justas. Mas criticá-lo ou elogiá-lo pelos títulos normalmente não o é.

domingo, 22 de agosto de 2010

Lido: Amor Diabólico

Amor Diabólico (bib.) é um conto curto de Elizabeth Bowden no qual a protagonista, uma mulher casada de meia idade, recebe uma carta de um antigo amante, desaparecido vários anos antes, na I Guerra Mundial, a fazê-la lembrar um encontro que teriam marcado. Perturbada, confusa e sem saber o que fazer, a mulher acaba por se ir preparando para o encontro quase por ato reflexo, entra num táxi e tem a surpresa horripilada da sua vida. É um conto de amor e de fantasmas que foge aos clichés mais óbvios mas de que não gostei muito por achá-lo demasiado previsível, por um lado e, por outro, porque consiste quase todo de uma longa explanação dos antecedentes do encontro. Não é um mau conto, mas também não o achei um bom conto.

Lido: Um Conto do Equador

Um Conto do Equador é uma história bastante curta do Lorde Dunsany que nos fala do oriente exótico e faz lembrar as Mil e Uma Noites. Um sultão, ao saber que no sul da Terra há regiões em que é verão no inverno, decide construir um palácio tão grande que conseguisse ligar o verão do norte com o verão do sul, por forma a poder escolher todos os dias a estação do ano que mais lhe apetecesse. Mas antes de o fazer, pede que o palácio lhe seja descrito, o que um poeta faz com tamanha eficiência que deixa de ser necessário construir mesmo o palácio. Basta a recordação da descrição. No fundo, é um conto sobre o poder da literatura e da imaginação por ela despertada. Muito interessante.

Lido: Souvenir

Descendo um bocadinho mais na tal página que tenho visitado recorrentemente nos últimos tempos aparece a nona história: Souvenir, do cubano Carlos A. Duarte Cano. Ao contrário das outras, esta não se limita a uma viagem no tempo, mas envolve também universos paralelos para fazer uma revisitação divertida e muito bem montada da história da Cinderela. Um conto ultracurto que me pareceu muito bom.

Lido: O Planeta dos Horrores

O Planeta dos Horrores é uma crónica de José Saramago que, apesar de ter título de história de ficção científica (como ele próprio afirma, aliás), é uma peça de opinião desencantada e revoltada sobre um planeta, o nosso, já então cheio de armas de destruição em massa e de pessoas com vontade de guerra. O mais triste nesta crónica é que foi escrita há quarenta anos e se mantém absolutamente atual.

Lido: Uma Noite Não São Dias

Uma Noite Não São Dias é uma novela de Mário Zambujal que tem como subtítulo, aparentemente, "Intriga e paixões no esquisito ano de 2044". Na contracapa, o autor adverte que "não se trata de antecipação científica", não vá alguém distrair-se e pensar que ele escreveu algo que se pareça com esse pária da literatura. E no miolo mostra-nos um ano de 2044 igualzinho ao nosso, não fossem as cidades inundadas, a substituição do "carjéquingue" pelo "helijéquingue", a inversão de papéis e estatuto social dos homens e das mulheres e mais duas ou três coisinhas. O tom é de comédia de costumes, na qual é introduzido um par de crimes e uma historietazita de amores cruzados. E o resultado é muito fraquinho.

Para começar, sofre do problema comum a todo o humor: só funciona com quem tem um sentido de humor compatível, e para todos os outros não passa de parvoíce. Isto é inerente à arte (porque de arte se trata) de fazer rir, e é um problema que todos os que enveredam por ela têm de aceitar e com que têm de viver. Ora o amigo Zambujal não conseguiu arrancar-me mais do que dois sorrisinhos ao longo das 124 páginas que escreveu. Isto não quer dizer por si só que o livro seja mau, mas quer dizer que o humor que contém não me tocou e não serviu em nada para melhorar a minha experiência de leitura, bem pelo contrário.

O que a meu ver já quer dizer que o livro é mau são outras coisas. São, por exemplo, e acima de tudo, os diálogos forçadíssimos que contém, nos quais todas as personagens falam rigorosamente da mesma maneira e soam todas àquelas peças antigas que mais do que representadas eram sempre declamadas. É, por exemplo, o facto do autor ter caído numa armadilha em que costumam cair os principiantes na arte (porque de arte se trata) de fazer antecipação, científica ou não: porem personagens a contar umas às outras aquilo que se passa precisamente naquele passado longínquo em que o autor escreveu a obra, vejam lá a coincidência. É, por exemplo, o surgimento aqui e ali do terrível "como sabes, Zé", aportuguesamento do não menos terrível "as you know, Bob" e que, trocando por miúdos, significa o ato falho em que as personagens discutem umas com as outras coisas que ambas estão fartas de saber para benefício e informação exclusivos do leitor.

Ainda se tudo isto prejudicasse uma história realmente interessante, talvez o livro tivesse algo que o redimisse. Mas não. O quadrângulo amoroso é duma banalidade confrangedora, e a história policial é de tal forma vaga, e de tal maneira pífia é a solução encontrada para o mistério que, longe de melhorar o livro é bem capaz de o piorar.

Salva-se o português, com a ressalva dos diálogos serem forçados. É um português correto, ainda que sem grandes arroubos, e tem a criatividade de aportuguesar ortograficamente uma série de anglicismos que têm penetrado no nosso léxico nos últimos tempos, o que tem o efeito, julgo que propositado, de mostrar o quanto alguns deles são ridículos. Isso é bem capaz de ser o melhor que o livro tem.

Mas chega? Cada leitor dará uma resposta diferente, mas infelizmente a minha só pode ser "de modo algum".

sábado, 21 de agosto de 2010

Lido: O Vampiro de Nova Holanda

O Vampiro de Nova Holanda (bib.) é uma história de Gerson Lodi-Ribeiro que faz parte da sua série de história alternativa e (ocasionalmente) vampirismo científico denominada Três Brasis, na qual a presença holandesa no nordeste brasileiro se solidifica e persiste, o mesmo acontecendo com a nação de escravos fugidos de Palmares, que na nossa linha temporal não passou de um embrião de estado mas nesta linha alternativa não só se estabeleceu e fortaleceu, como se desenvolveu mais e mais depressa do que as nações vizinhas, sobretudo o Brasil português. Graças, em grande medida, à ajuda de Dentes Compridos, o último da sua raça, uma espécie de vampiros originária da costa sul-americana do Pacífico que após ser capturado pelos palmarinos se torna seu agente.

É o princípio de vida e os antecedentes de Dentes Compridos antes de se tornar por inteiro agente de Palmares, e o motivo por que acaba por aceitar aliar-se aos palmarinos, que esta história nos conta. Apesar da ligação bibliográfica que encontram no início deste texto vos remeter para uma ficha de noveleta, esta versão que li agora é uma expansão desse texto inicial que julgo que chega ao tamanho de novela. Não sei bem se gosto dessa expansão. Dá-me ideia que corta um pouco o ritmo a uma história que, apesar de muito boa, sempre foi muito descritiva, em particular no início, porque começa por apresentar as personagens e descrever o contexto (alo)histórico em que se inserem. Julgo que prefiro a versão original.

Apesar disso, continua a ser uma boa história. Após a parte inicial em que são feitas as apresentações, o resto da história decorre na cidade do Recife, capital da Nova Holanda, onde se vão reunir personagens provenientes dos sítios mais díspares como a própria Palmares e a Nova Holanda, uma destemida princesa banta recém-chegada de África, um tal Van Helsing, agente da administração holandesa que, apesar de não ser a mesma personagem, tem um nome bem conhecido por todos os que sabem alguma coisa sobre a literatura de vampiros, e o filho de Cyrano de Bergerac, afamado aventureiro e espadachim e "especialista" nos vampiros europeus. É nesta fase que a história ganha mais vida e se torna mais cativante, terminando depois em aberto. Provavelmente estará nos planos do autor juntar as histórias dos Três Brasis num livro único, talvez um romance fixup como fez com as da princesa inca Xochiquetzal, caso em que esta será sem dúvida a primeira. Julgo mesmo que funcionaria ainda melhor num livro desse género do que como história independente.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Slang

You know what?

There's something strangely liberating about translating stories where characters use foul language profusely. Yes indeed.

You see: we get to foul it up just as profusely, and if anyone complains we can always say "hey, not my fault, don't kill the messenger, you should be complaining to that author guy, I was merely being faithful to the original".

(para continuar a ler, clicar aqui)

PS: A partir de hoje, aparecerão aqui na Lâmpada chamadas deste género para os posts que eu for fazendo no meu blogue em inglês sobre tradução, o Found in Translation. Porquê? Porque a Lâmpada é assim como que o meu nodo central, aquele blogue que é sindicado para coisas como o Goodreads, que só permitem sindicar um mas onde penso que é provável que haja quem se interesse por ter também os conteúdos do FiT. Aos que se estão nas tintas para o FiT e para o Goodreads, as minhas desculpas.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Puras Coincidências em outubro pela Antagonista

Se perguntarem a muitos fãs de FC americanos já com uma certa idade o que foi que os fisgou para o género, muitos certamente incluirão na lista uma coisa chamada Ace Doubles. E falarão no fascínio que era comprarem um livro (normalmente romances; nessa época os romances não costumavam ser as enormidades que são hoje) de um escritor que já conheciam e apreciavam e depois irem descobrir o autor que frequentemente lhes era desconhecido e ocupava o outro lado do mesmo livro.

Sim, isso mesmo. O outro lado do mesmo livro.

As obras eram impressas costas com costas. Virava-se o livro de um lado, e tinha-se a capa de uma das obras e essa obra por trás dela; virava-se o livro de pernas para o ar (e do outro lado, claro), e eis que ali estava a capa da outra obra com a respetiva por baixo. Nenhuma das duas tinha preponderância, ou só a teria consoante o modo que cada um escolhia para pegar no livro. Era como ter-se dois livros num só.

Em Portugal, este tipo de edição é bastante raro. Certamente haverá mais, mas os livros que eu conheço contam-se pelos dedos duma mão. O número 200 da coleção Vampiro, por exemplo, que é também um número especial da coleção Argonauta (com o romance Estação de Trânsito, de Simak; excelente, por sinal). As antologias bilingues da Simetria, que tinham o livro em português de um lado e o mesmo livro em inglês do outro.

E agora os livros da coleção МИР (lê-se "mir").

Quando ouvi falar da ideia achei-a ótima, e mais ainda porque, num momento em que o povo leitor anda todo embrenhado em romances, a Antagonista tinha a coragem e a originalidade de querer apostar em ficção mais curta. Desde o princípio que o âmbito da coleção era a novela. Duas novelas costas contra costas, dando livros com cerca de 200 páginas. E mais: desde o princípio que a ideia era emparelhar um nome sonante da FC e horror internacionais com um nome menos sonante mas nacional, o que também achei excelente ideia.

A juntar a isto, há um nome de coleção que me é caro (mir, em russo, significa "mundo" e "paz", e não só faz referência direta à extremamente bem sucedida estação espacial que esteve em órbita entre 1986 e 2001 como tem um significado muito especial para vários anos da minha vida. Digamos que não é por acaso que eu sei o que significa a palavra "mir"). Tudo somado, fiquei logo cheio de vontade de saltar para o barco.

Mas eles queriam novelas de FC ou horror. E eu, na altura, nunca tinha escrito uma novela. Entretanto escrevi, mas é de história alternativa retrofuturista, não propriamente aquilo que a МИР queria (sim, é a que vai sair no Brasil na antologia Vaporpunk, ainda este mês). Felizmente, também aceitam contos. E eu juntei quatro e enviei-lhos.

O resultado chama-se Puras Coincidências e vai ser publicado em outubro. Quatro contos de FC (ou mais precisamente dois contos e duas noveletas), todos muito diferentes uns dos outros, alguns já publicados, outros ainda inéditos.

E vêm muito bem acompanhados! O meu partner in crime vai ser James Patrick Kelly que, tanto quanto eu saiba, só foi publicado por duas vezes entre nós mas lá fora é um autor do mais consagrado que há, presença assídua nas listas de nomeados para os prémios internacionais de FC. E é precisamente uma das histórias que o levou a marcar tal presença que vai estar de costas voltadas para as minhas: A Queimada, tradução de Burn, novela nomeada para o Hugo de 2006 e vencedora do Nebula de 2007 na respetiva categoria. Dificilmente podia esperar melhor companhia. Excelente!

Eu e o meu novo compincha James seremos o número 2 da coleção (ou pelo menos o segundo livro editado; confesso não saber ainda se a coleção é numerada), depois do primeiro ter juntado Carla Ribeiro e Mary Rosenblum.

Nota-se muito que estou em pulgas para ter o livrinho nas mãos?

Pois é.

E se por acaso ou coincidência houver mais pulgas do género aí por fora, já sabem: outubro.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Lido: Vénus

Vénus (bib.) é um conto de Maurice Baring que cruza algum horror com a proto-ficção científica do seu tempo. O protagonista é um tal John Fletcher que um belo dia, ao atender uma chamada telefónica ao mesmo tempo que olha um anúncio a um "Sabonete Vénus", se vê arrancado à sua envolvente e ao seu corpo e levado para outro lugar. Uma boa parte do conto consiste na descrição desse lugar e do que o protagonista faz quando lá chega. O lugar, claro, é Vénus, o planeta. Mas um Vénus tal como se imaginava em 1909, sem nada a ver com o mundo que a ciência foi desvendando ao longo dos últimos cem anos. Um Vénus vivo, embora estranho. Uma réplica da Terra, embora distorcida. A partir dessa primeira viagem, o protagonista vê-se dividido entre o lá e o cá, mas cada vez mais lá e menos cá. A viagem é explicada misticamente, através do conceito de projeção astral, mas o conto tem, na descrição de uma paisagem alienígena, muito da ficção científica que viríamos a encontrar mais tarde, em especial no subgénero chamado "romance planetário". Para mim, é um conto bastante interessante principalmente por causa disso. Mas também está bem escrito, claro e, embora não o ache inteiramente bem conseguido no que toca à estrutura, também não é propriamente insatisfatório a esse nível. Para os padrões da FC atual é um disparate, claro, mas as coisas têm a sua época própria.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Lido: Uma História de Terra e Mar

Uma História de Terra e Mar, de longe o maior dos contos de Lorde Dunsany que estão incluídos no livro em que o li, é uma espécie de sequela para um outro conto do mesmo livro (ou de outro livro, dependendo do ponto de vista; explicarei melhor quando falar do livro como um todo), A Pilhagem de Bombasharna. Voltamos a encontrar o mesmo capitão pirata Shard, voltamos a encontrar o mesmo navio, o Desperate Lark, mas agora a aventura roça a ficção científica (bem, a FC da época, pelo menos), pois aqui o navio é equipado com um conjunto de eixos e de grandes rodas de metal e avança terra dentro, pelo Norte de África adiante, penetrando profundamente no Saara a fim de fugir aos seus perseguidores. Mas acaba por trocar uns por outros, isto é, as marinhas europeias que dão caça ao capitão pirata por uma tribo árabe interessada, aparentemente, em pilhar o que o navio feito carro à vela poderia ter nos seus porões. É uma história muito imaginativa, como é de praxe neste autor, muito bem escrita, mas à qual falta, a meu ver, alguma da frescura das primeiras histórias. Ainda assim achei-a bastante boa. E uma vez mais inovadora e percursora de trabalhos posteriores de outros autores.

Lido: El Examen

Regressando à tal página que tem sido visitada nos últimos tempos e procurando a oitava história, encontra-se El Examen, do argentino Alejandro Ferreyra. Sobre viagens no tempo, como todos os outros, este continho relata um exame de "inscrustação temporal" de uma forma aparentemente humorística, mas ou a piada é demasiado subtil ou não partilho das referências a que ela se socorre. O certo é que não entendi. De vez em quando acontece.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Lido: O Cálculo

O Cálculo é mais uma crónica de José Saramago. Uma crónica que o é de facto, e que além de o ser é violenta, amarga, não sobre o cálculo propriamente dito, mas sobre aquela particular raça de criaturas com que se esbarra por toda a parte e que desse cálculo vivem: os calculistas. Estou certo de que Saramago não me levaria a mal se me visse a citá-lo: «O calculista floresce em todos os terrenos. É, por definição, um subalterno. Rei que devia ser de si mesmo, como homem que é, de si mesmo abdicou para ganhar títulos de outra realeza. Quer aponte a uma promoção, quer faça rapapés e quem tenha de julgá-lo — é sempre o retrato verdadeiro da indignidade consciente. Compra, vende, aluga, empresta — faz o seu negócio de banca mercenária.» Pois. Bem conheço o género.

Lido: Rock'n'roll Altitude

Rock'n'roll Altitude é uma pequena coletânea de bolso com cerca de 150 páginas que contém três histórias que tratam o rock'n'roll através do olhar da ficção científica e do fantástico (mais deste do que daquela, há que dizê-lo). São três histórias de autores anglófonos, traduzidas para o francês, seguidas em jeito de posfácio por um artigo bastante interessante que contextualiza a fertilização cruzada que foi existindo, ainda que duma forma algo tímida no entender de Roland C. Wagner, o autor do artigo, entre a FC&F e o rock. A edição como um todo é interessante e, muito embora o meu francês algo enferrujado me tenha tolhido a experiência de leitura de uma das histórias, e apesar das minhas referências geracionais no que toca ao rock não serem propriamente as mesmas dos autores selecionados para este livro, acabei por gostar. Elvis le Rouge, em particular, é uma ótima história. Mas se querem saber mais sobre o que achei de cada uma delas, aqui têm as ligações:

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Lido: Histórias de Mistério e Imaginação

Histórias de Mistério e Imaginação é uma compilação das histórias de Edgar Allan Poe de que tenho falado por aqui nos últimos tempos. E é uma compilação francamente boa, que inclui alguns dos melhores, mais seminais e mais conhecidos contos de Poe, apesar de conter também um ou dois contos que me pareceram menos bons. E com a vantagem adicional de estarem todos bastante bem traduzidos. Para mim, apesar de nunca ter lido este livro, tinha lido a maior parte dos contos noutras edições, de modo que foi em grande medida uma releitura, ainda que bastante distante, o que retira alguma frescura à leitura. Mas não muita: tinha lido Poe há tantos anos que as recordações que tinha de muitas das histórias eram vagas, no melhor dos casos.

Seja como for, esta releitura decidiu-me: em breve voltarei a este autor.

Segue-se a costumeira lista de ligações para o que achei de cada um dos contos:

Lido: Os Crimes da Rue Morgue

Os Crimes da Rue Morgue (bib.) é outra das histórias seminais de Edgar Allan Poe, que estabeleceu uma série de convenções para a literatura policial do mais de século e meio que se passou desde a sua publicação e criando um subgénero, o mistério policial do quarto fechado. O protagonista desta noveleta, Dupin, é o primeiro detetive do género, e a sua atitude dedutiva e capacidades de análise vieram a ser replicadas mais tarde em personagens mais famosas, como Sherlock Holmes, Hercule Poirot ou Maigret. A história é, portanto, um clássico absoluto, e além de fazer todas estas coisas altamente relevantes que já ficaram expressas para trás conta a história de dois misteriosos e violentíssimos assassínios, aparentemente inexplicáveis por terem tido lugar num apartamento onde teria sido impossível entrar e de onde mais impossível ainda teria sido sair, pois tudo se encontrava devidamente trancado. Embora o fulcro da história esteja indubitavelmente na cadeia dedutiva que leva ao desvendar do mistério, o que a coloca bem no âmago do género policial, está também presente, julgo eu, um certo elemento de horror, pelo macabro da cena do crime e pela extrema selvajaria que esta parece revelar. Os géneros não são estanques, felizmente, e a maior parte das obras, ainda que pertencendo principalmente a um deles, estendem-se, parcial ou totalmente, casual ou deliberadamente, também por outros. É o caso.

É pelo menos essa a minha maneira de ver as coisas.

Lido: O Gato Preto

O Gato Preto (bib.) é uma das mais conhecidas histórias de horror de Edgar Allan Poe. E é uma daquelas histórias cuja fama é inteiramente merecida. O protagonista e narrador é um homem que se vai lentamente afundando no alcoolismo, na raiva e na violência, primeiro dirigidas contra o gato até que acaba por enforcá-lo, mais tarde com resultados bem mais graves, especialmente para a mulher. Fica no ar a impressão de que talvez haja forças sobrenaturais em jogo, em particular depois do primeiro crime contra o gato (sim, é este o gato preto do título), mas o narrador não é fiável e o autor, habilmente, evita limpar por completo os pratos em que deixa o assunto. A casa é consumida por um incêndio, que pode, ou não, ter tido origem na vingança do espírito do gato morto... pelo menos é o que a silhueta de um gato que surge numa parede enegrecida pelas chamas deixa entrever. E mais tarde o narrador encontra um segundo gato, em tudo igual ao primeiro menos numa mancha branca que tem no peito. Este segundo animal vai funcionar ao longo do resto do conto como corporização da consciência e da culpa... ou então como uma emanação do espírito vingativo do gato morto. É um conto bastante complexo na sua aparente simplicidade e também por isso muitíssimo bom.

Lido: O Poço e o Pêndulo

O Poço e o Pêndulo (bib.) é um dos mais conhecidos contos de Edgar Allan Poe, contando até com várias adaptações para outros media (fora as numerosíssimas derivações de alguns dos mesmos temas, que se podem encontrar num bom número de filmes de horror ou de suspense). Um homem, aprisionado pela Inquisição Espanhola, é torturado de forma impessoal, sendo primeiro encerrado numa masmorra mergulhada nas trevas, no centro da qual vem a descobrir encontrar-se um poço, depois amarrado a uma mesa enquanto um pêndulo cortante vai descendo com extrema lentidão, deixando-o na expetativa dos primeiros cortes. É quase uma obra-prima do terror psicológico, um conto que seria muitíssimo bom se não fosse aquele deus ex machina que acontece no desfecho, cuja inverosimilhança estraga bastante o efeito geral da história. Ao terminar a (re)leitura deste conto não consegui evitar entregar-me à imaginação de outras formas de o concluir que respondessem melhor à necessidade de manter o narrador vivo, determinada pela narração na primeira pessoa. Concluí que provavelmente teria bastado alguma preparação para o desfecho, que o que ele tem de pior é a mão do deus ex machina ter caído sobre a cena de súbito quando não é verosímil que tal acontecesse sem qualquer aviso. Teria sido relativamente simples deixá-lo mais a meu gosto. Pena.

domingo, 8 de agosto de 2010

Lido: A Tia de Seaton

A Tia de Seaton (bib.) é uma noveleta de Walter de la Mare que, como o próprio título indica, gira à volta da tia de um tal Seaton. Este é um colega de faculdade do narrador, um rapaz tímido e insociável que, por qualquer motivo que escapa ao narrador, o escolhe como seu amigo mais próximo durante os anos de estudo. Ao ponto de o convidar a ir passar uns dias consigo a sua casa. Seaton odeia a tia (na verdade a mulher não é propriamente uma tia, como se vem a descobrir), e a maior parte da história consiste no narrador a procurar levar o amigo a ter alguma sensatez, enquanto Seaton vai atribuindo à tia as vontades mais escabrosas. O narrador não acredita em metade do que lhe é contado. Mas o desfecho da história não vai ser bem o que ele esperava e, à boa maneira do fantástico todoroviano, vai deixar no ar a dúvida sobre se haveria de facto ali algo de aterrorizador ou até sobrenatural.

É uma história em que demorei a entrar mas, uma vez "lá dentro", acabou por me agradar bastante. Apesar da tal mania muito anglo-gótica de fazer com que tudo se passe entre a alta burguesia e a aristocracia, claro. Mas isso é mais feitio do que defeito e, por mais que me irrite, tenho de lhe dar desconto. O conto é bom.

Sobre as dicas de escrita do David

O David Soares publicou há bocado no blogue um conjunto de dez dicas sobre escrita, e eu assim que li a primeira pensei cá com os meus botões "diabo, que isto vai ser mau". Quando acabei, achei que tinha de comentar aquilo, e aqui está o meu comentário. A negrito estão as dicas do David mas não as explicações que dá para elas. Por baixo de cada dica estão os comentários que dica e explicação me provocam. Portanto para lerem este post é imprescindível que, antes de mais, vão lá ler as dicas dele. Depois, se quiserem, podem voltar cá. Mas só depois.

Está lido? Então vamos lá.

1- Não escrever como se fala.
Dificilmente se podia começar pior uma lista de dicas sobre escrita, francamente. E a explicação não é melhor, porque aquilo que realmente denuncia falta de talento nos escritores não é a coloquialidade, não é o "escrever-se como se fala", mas sim não saber utilizar a coloquialidade e o texto erudito nos locais que lhes são próprios. Não há coisa mais triste do que ler os diálogos forçadíssimos dos escritores suficientemente medíocres para não serem capazes de usar corretamente a linguagem coloquial. Nem o uso de coloquialismos em locais em que ficaria melhor uma escrita mais elaborada é pior do que isso. E posso mesmo dizer que há magníficas obras de literatura que fazem uso quase exclusivo da linguagem oral e coloquial. Quem quiser um bom exemplo leia Quantas Madrugadas tem a Noite, de Ondjaki. A verdade é que querer amputar o coloquialismo da literatura é equivalente a serrar uma perna duma mesa ou duma cadeira. A verdade é que tudo o que faz parte do fenómeno linguístico pode e deve servir de matéria-prima para a literatura. Tudo.

2- Aprender a gramática.
Não me oponho a esta, pelo contrário, mas tenho de fazer uma ressalva. Aprender gramática é, antes de mais, aprender a usar a língua. O António Aleixo, analfabeto como era, nada sabia das formalidades gramaticais, do que era um complemento indireto ou uma voz passiva, mas usava magnífica, e corretamente, a sua língua. Aprender gramática, no sentido prescritivo da expressão, no abstrato, é pouco menos que inútil. É o conhecimento prático que é importante para quem escreve (e para quem traduz, já agora), ainda que o outro muitas vezes dê uma ajuda importante.

3- Apesar de aprender a gramática, escrever como um escritor e não como um linguista.
Esta subscrevo. Integralmente.

4- Escrever um livro e não um guião de cinema.
Aqui também tendo a concordar, mas sou muito menos radical. Já li livros excelentes baseados em diálogos e descrições de ação, praticamente sem descrições, e já li livros muito maus quase exclusivamente descritivos. Um dos piores livros que li na vida, na verdade, tinha uma única linha de diálogo nas suas cento e tal páginas. Uma. E era horrendo. O que quero dizer com isto é que há e deve haver lugar para as duas coisas, e que nehuma é superior à outra, desde que as pessoas saibam o que estão a fazer e porque o fazem. Ah, sim, e não é questão de género, é de abordagem. O Hemingway não era um escritor de género.

5- Ser erudito.
O David aqui faz alguma confusão entre dois conceitos muito diferentes. O "ser erudito" que põe na dica não tem grande coisa a ver com o "sejam inteligentes a escrever" com que começa a explicação. O que não falta por aí é gente muito erudita mas completamente idiota (e consequentemente incapaz de transpor a erudição para uma escrita inteligente) e gente com grandes lacunas no conhecimento que no entanto é capaz de transpor para o papel um nível de subtileza e inteligência que está ao alcance de poucos. Dito isto, concordo que a busca de informação é importante, desde que não funcione como bloqueio. E mais: muitas das melhores obras são aquelas em que o escritor sabe mais sobre os temas em causa do que aquilo que transparece na obra. Muitos dos melhores escritores evitam o show-off. Mas sabem. Por outro lado, conheço vários candidatos a escritores que andam há anos em worldbuilding sem conseguirem escrever uma linha, porque quando tentam são tolhidos por aquilo que ainda não sabem, pelos bocadinhos de mundo que ainda não construíram. Aqui, como na maior parte das coisas, o que é realmente importante é ter a capacidade de encontrar um equilíbrio, que será diferente para cada autor.

6- Ler os clássicos.
Não faz mal nenhum, pelo contrário. Não me parece que tenha tanta importância como o David lhe dá, mas não faz mal nenhum.

7- Ler os melhores autores que escrevem no género de literatura em que se quer singrar.
Meh. Com toda a franqueza, acho tristíssimo que um escritor aceite, acate e contribua para a ditadura dos géneros, que é uma questão mais comercial do que outra coisa. Um escritor deve querer escrever as histórias que o inspiram, não perder tempo a pensar "mas 'pera lá, isto não é do meu género, não pode ser". Escritor que aceite isso é escritor que até pode chegar aos pináculos do género que escolheu mas no grande esquema das coisas nunca passará da mediocridade porque se condenará a ser músico de uma nota só. Um escritor que almeje passar da cepa torta deve ler de tudo um pouco. Deve ler fora do género e deve ler fora de géneros. Além disso, também não me parece que colocar o fulcro da coisa nos "melhores" seja correto. É conveniente ler-se os mais influentes, isso sim, para se saber onde e como se encaixam as histórias que se quer contar. Os mais influentes não são necessariamente os melhores.

8- Ser perseverante.
Subscrevo, por inteiro. Dica e explicação.

9- Sacrificar-se.
Também subscrevo. Mas há que saber encontrar a fronteira entre sacrificar-se e crucificar-se. E não a transpor.

10- Ser sério.
E o David acaba quase tão mal como começou. Os piores livros que li na vida eram, todos eles, insuportavelmente sérios. Mas umas merdas quase ilegíveis. Também li livros que pretendiam ser humorísticos mas que na realidade eram muito maus, ainda que não chegassem a sê-lo tanto como as tais estuchas seriíssimas. Porquê? Porque não há coisa mais difícil de fazer bem do que o humor. E também não há coisa mais importante do que o humor. O humor é a coisa mais séria do universo, a única que torna suportável a existência. Escritor (ou qualquer pessoa, na verdade) que se leve demasiado a sério tem em si os esporos da mediocridade presunçosa prontinhos a germinar à primeira distração. E uma vez brotado esse horrendo fungo dos seus esporos é preciso um tratamento duro e persistente para que a vítima se cure, pois o raio dos fungos são umas bichezas notoriamente difíceis de erradicar. Um tratamento, lá está, composto da dose correta de humor e q.b. de excipiente. Os melhores livros que li na vida, já agora, tinham quase todos seriedade e humor em doses equilibradas. Aqui, como em quase tudo, o que é realmente importante é encontrar um equilíbrio e fazer bem seja o que for que se pretenda fazer. E se for rir, será rir. Fazer rir é precisamente tão nobre como fazer pensar... e há poucas formas melhores de levar as pessoas a pensar do que fazendo-as rir.

Lido: O Gabinete de Troca de Males

O Gabinete de Troca de Males é mais uma história do Lorde Dunsany na qual se descreve o gabinete do título, no qual as pessoas podem ir trocar os males de que padecem com os males de outros "clientes", e o autêntico namoro que um certo cavalheiro com ele faz. Ronda-o, informa-se sobre ele, fala com o proprietário, deixa-se ir fascinando pelo local e pela ideia, até que finalmente se decide a trocar um mal, pequenino como seria de esperar dada a sua cautelosa natureza. É mais um pequeno conto fantástico muito bem construído, mas menos irónico do que muitos dos outros contos do livro.

Lido: El Idioma de los Próceres

El Idioma de los Próceres, do argentino Fabián Casas, é um pequeno conto de viagem no tempo no qual se relata, com ironia, a surpresa que as cadeiras telivisivas que contrataram entrevistas exclusivas com grandes figuras da história tiveram quando finalmente contactaram com elas e tentaram falar-lhes nas línguas que, supunham, eram as suas. Um continho interessante em volta dos paradoxos inerentes aos deslocamentos temporais, mas que não me parece que passe do interessante. Pode ser lido na mesma página que se tem visitado consecutivamente nos últimos tempos. É o sétimo texto.

Lido: «Salta, Cobarde!»

«Salta, Cobarde!» é uma crónica indignada de José Saramago que conta um caso sucedido numa cidade alemã, na qual um suicídio aconteceu porque o candidato a suicida, já praticamente convencido a desistir do seu intento, foi desafiado por um grito anónimo saído da multidão com a frase que é usada como título. Saramago, claro, indigna-se com a canalhice anónima que assim procede, como se indigna qualquer pessoa minimamente bem formada. Então ou agora.

Lido: Un Chanteur Mort

Un Chanteur Mort, tradução francesa de Dead Singers, é um conto de Michael Moorcock do qual não posso falar muito. Porque não estou bem certo de o ter compreendido, provavelmente devido às limitações no meu francês que está longe de ser tão bom como o espanhol ou o inglês. O conto é centrado na figura de Jimi Hendrix — um Jimi Hendrix já morto, fantasmagórico — e é uma espécie de história em viagem, pois boa parte dele consiste em conversas que decorrem em veículos enquanto estes devoram quilómetros. Não compreendi o conto suficientemente bem para poder decidir se me agradou ou não.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Lido: O Império do Medo

O Império do Medo (bib.) é um romance de Brian Stableford que interseta três ramos diferentes da literatura fantástica: a história alternativa, o horror e a ficção científica. Ambientado numa espécie de Renascimento alternativo, num mundo dividido entre duas espécies humanas — a elite de vampiros imortais (ou pelo menos difíceis de matar) e rodeados de mitos, e os plebeus, seres humanos normais, de vida curta — conta as viagens e pesquisas de um cientista inglês, na sua tentativa de descobrir a verdadeira natureza do vampirismo. O horror é-nos dado, portanto, pela presença de vampiros que, tal como todos os vampiros mitológicos e ficcionais, precisam de consumir sangue humano para sobreviver. A história alternativa aparece porque o surgimento dos primeiros vampiros funciona como ponto de divergência, a partir do qual a aristocracia europeia se vai, a pouco e pouco, transformando numa classe de vampiros, com membros como Vlad Dragulya (claro), Ricardo Coração de Leão ou Carlos Magno. E a ficção científica surge com a explicação da origem do vampirismo e sua caracterização como uma espécie de doença benigna e transmissível de uns seres humanos para outros.

A caracterização do mundo ficcional está soberba, à parte um pequeno detalhe que tende a afligir muitas histórias alternativas menos bem pensadas: Apesar da data longínqua do ponto de divergência, Stableford não resiste a utilizar como personagens figuras da história real, que foram nascendo, nessa história real, ao longo de um período de muitos séculos. É um detalhe, mas um daqueles detalhes que ataca com muita força a minha capacidade para suspender a descrença. Não é crível que, depois de um acontecimento que vai alterar toda a história da humanidade, como o aparecimento do vampirismo e a infeção das casas reais europeias com o dito, continuem a cruzar-se os mesmos cromossomas para produzir as mesmas pessoas, inclusivamente na mesmíssima aristocracia que se torna vampira. É um completo disparate. Mas, na ambientação, é o único. O resto é todo muito bom.

No que toca ao romance propriamente dito pareceu-me em geral bom, mas não tanto como a ideia e a ambientação. De vez em quando, Stableford torna-se muito descritivo, e enche páginas e mais páginas com explicações, estados de alma dos protagonistas e descrições disto e daquilo. Algumas são necessárias, mas outras pareceu-me que não. E entre as necessárias e as desnecessárias o ritmo quebra-se. Fiquei com a ideia de que talvez tivesse sido melhor que algumas das mais de 400 páginas de letra miudinha tivessem ficado de fora, que não só não fazem falta à obra como a prejudicam. E é pena, porque a ideia merecia melhor concretização. Podia ter sido uma obra-prima. Assim, o livro deixou-me com a sensação de ter acabado de ler um romance não inteiramente conseguido. Mas mesmo podendo ter sido melhor o resultado final pareceu-me bastante bom. Claramente o melhor livro de vampirismo científico que li até hoje.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Lido: Uma Nova História Universal da Infâmia

Uma Nova História Universal da Infâmia é uma muito borgesiana coletânea de Rhys Hughes que se subdivide em seis partes. Na primeira, homónima ao livro, contam-se histórias semi-ficcionadas sobre personagens infames e reais, à maneira, precisamente, da Historia Universal de la Infamia de Borges. Os borgesianos "a sério" adoram este tipo de texto em que o real e histórico se entrelaça com a ficção tornando uma coisa indistinguível da outra, ou em que textos não-ficcionais, como verbetes históricos ou casos clínicos, são ficcionados. Eu, que não sou um borgesiano a sério, confesso que embora compreenda e até aprecie intelectualmente, no abstrato, o elemento de subversão que este tipo de texto contém só muito raramente consigo achar-lhes o mínimo interesse quando chega o momento da leitura concreta. Especialmente quando esses textos não são de Borges mas sim daqueles que procuram prestar-lhe homenagem décadas mais tarde, voltando a pisar caminhos já antes pisados pelo escritor argentino e transformando a subversão borgesiana numa caricatura. Por melhor executada que essa caricatura esteja, e nestes contos de Rhys Hughes está muito bem executada. Este tipo de texto é, de toda a "onda borgesiana" (incluindo os textos de Borges e os dos seus admiradores e discípulos), aquilo de que menos gosto. Consequentemente, em geral não gostei lá muito dos textos desta primeira parte do livro.

A segunda parte contém apenas um conto, e deste gostei e gostei muito.

A terceira parte contém contos, vários deles com referência direta a contos de Borges, que Hughes escreve como se fossem escritos por outros autores. E assina em consonância. De alguns gostei bastante, de outros nem por isso, mas também aqui a execução daquilo que o autor se propõe fazer está bastante boa.

A quarta parte contém três paródias cada vez mais autorreferenciais, embora a primeira não seja tanto uma paródia quanto uma sequência lógica de mais um conto de Borges. Este primeiro conto encheu-me as medidas; os outros dois não.

A quinta parte é, como o próprio autor afirma, ignorável.

A sexta e última contém um conto bastante bom, uma vez mais baseado diretamente num conto de Borges e servindo-lhe de sequência.

Em geral, trata-se de um livro quase sempre muito bem executado, por vezes bastante divertido, no qual a figura tutelar a que Hughes quer prestar homenagem está sempre muito presente. Mas cerca de metade é ocupado por um tipo de texto que não me diz praticamente nada, de modo que apesar da mancheia de contos que me agradaram bastante não posso dizer que o mesmo tenha acontecido com o livro como um todo. É um bom livro, disso não há dúvida, pois Hughes fez em geral bem aquilo que se propôs fazer. Mas em termos de satisfação do meu gosto pessoal deixou algo a desejar. Gostei, mas não muito.

Podem encontrar em seguida ligações para o que achei de cada um dos contos:

Lido: A Vida e o Fio-de-Prumo

A Vida e o Fio-de-Prumo é mais um conto de Rhys Hughes que descende diretamente de um conto de Jorge Luis Borges. Hughes pega nas personagens criadas por Borges no seu conto La Muerte y la Brújula e cria um conto matemático bastante interessante, sobre uma série de crimes que são cometidos segundo um padrão. Uma dessas personagens, Scharlach, é um notório bandido. A outra, Lönnrot, é um detetive que o bandido matou ainda no conto de Borges, e que regressa à vida neste conto de Hughes através de um acordo que o seu assassino faz com um redator que pretende adotar a identidade do detetive. Confuso? Pois. E ninguém dá pela diferença. Inverosímil? Com certeza. Estamos a falar de contos de Rhys Hughes, afinal. Mas bem executado, tanto enquanto pastiche como simplesmente enquanto obra de ficção.

Flor do Trovão, um apanhado

Então vamos lá fazer um pequeno apanhado daquilo que se foi dizendo na web sobre o meu conto na Imaginários 2. Se souberem de mais textos disponíveis com opinião agradeço que avisem nas caixas de comentários, pelo twitter ou pelo facebook.
  • Rober Pinheiro, no Aguarrás e no seu blogue, publica um longo parágrafo sobre o conto em que o tom geral é de apreço;
  • Marcelo Augusto Galvão, no Galvanizado, também parece ter gostado; pelo menos diz que "narrativa, personagem e cenário combinam com perfeição neste conto";
  • Ana C. Nunes, na Floresta de Livros, dá-lhe 7 valores, o que na sua classificação corresponde a "bom". No post dedicado ao conto elabora mais: "termina mais que satisfatoriamente, mas poderia ter sido ainda mais desenvolvido, a nível de personagens, mas aparte disso está muito bom." Uma coisa em que reparei é que a Ana o categoriza como fantasia. Achei curioso;
  • Daniel Borba, no Além das Estrelas, também gosta: acha-o "um dos melhores contos da coletânea";
  • Antonio Luiz M. C. Costa, na Carta Capital, escreveu um texto que parece estar agora sob acesso restrito. Contudo, ainda se consegue recuperá-lo através da cache do Google, e sobre o meu conto diz o seguinte: "Flor do Trovão, de Jorge Candeias desafia o leitor a se pôr na pele de um alienígena sem nada de humano, em um mundo estranho e primitivo. É uma história para leitores dispostos a enfrentar uma ficção científica experimental e especulativa, que busca questionar mais que divertir." Também parece ter gostado, portanto;
  • Como nestas coisas nunca há unanimidade, Cristina Alves, do Rascunhos, destoa: acha que o conto "poderia ter sido engraçado, mas falhou na concretização ao se manter demasiado superficial";
  • Igor "Valente", na RedeRPG, parece ter gostado do final mas não tanto do resto: "Carregado em uma linguagem poética grandiloqüente, o conto direciona o leitor a um determinado caminho e, de repente, puxa o tapete, com um final inesperado. Ponto para ele!" (obrigado pelo toque, Marcelo);
  • Eduardo Carvalho, do Portallos, parece também ter gostado bastante, em especial do final. "Um grande destaque da coletânea," diz, "com um final que me agradou muito. Quando pensei que caminhava para o obvio, Jorge Candeias virou para mim e disse 'Rá! Pegadinha do malandro!';
  • Junior Cazeri, no Café de Ontem, dá ideia de não ter gostado muito, embora não ache a história má. Diz que "não é uma leitura fácil" e que não é "chegado a lições de moral empacotadas e embaladas", mas que "a história não é ruim, apesar de não ser para todos os gostos." E, tal como a Ana da Floresta de Livros, também classifica o conto como fantasia.
E não conheço mais nenhuma resenha ou opinião do Imaginários 2 que fale do meu conto. Se souberem de alguma, repito, sou todo ouvidos, e o post será editado em conformidade.

domingo, 1 de agosto de 2010

Lido: Notas Ignóbeis

Notas Ignóbeis são um conjunto de notas (duh), de Rhys Hughes, que ultrapassam o normal conceito de nota transformando-se em objetos literários em si mesmas. Incluem até uma espécie de conto. São nove textozinhos com algum interesse, relativos a outros tantos dos contos que ficaram para trás no livro de que fazem parte. Não são, no entanto, nada de superlativo, e nisto também a tal espécie de conto está incluída.

Lido: Ictus Purr

Ictus Purr é, além do título de mais um conto bem surreal de Rhys Hughes, o nome de um universo paralelo. Segundo Hughes, pelo menos, e é bem sabido como aquilo que o Rhys nos diz nos contos que vai escrevendo não é digno de confiança. Mas admitindo que aqui ele fala verdade, Ictus Purr é um universo paralelo, no qual a cidade galesa de Swansea se estende por longos litorais, muito mais longos do que os que ocupa neste nosso universo. E é deste que é originária a banda (quatro amigos e um alheado), chamada The Rag Foundation, que um emissário de Ictus Purr vem buscar. Um conto muito bizarro, claro, que vai acompanhando e explicando as esquisitices que com que a banda vai deparando. E são muitas...

Mas a verdade é que, ao aproximar-me do fim do livro, a imaginação, os jogos de palavras, as brincadeiras com o absurdo, as cataratas de ideias surreais começam a tornar-se previsíveis e cansativas. Mesmo intercalando a leitura destas histórias com outras, não consigo evitar a sensação de que a história X em muito pouco se distingue da história Y e se esgota na imaginação, nos jogos de palavras, nas brincadeiras com o absurdo. Que se acaba a história, começa outra, e pouco ou nada fica de cada uma delas. Que o livro talvez ganhasse se fosse mais curto. E isso não é uma boa sensação para se ter ao aproximarmo-nos do fim de um livro.

Lido: A Hipersensibilidade Auditiva de Chumbly Mucker

A Hipersensibilidade Auditiva de Chumbly Mucker é, segundo o autor, Rhys Hughes, "uma paródia a John Sladek ao estilo de uma paródia de John Sladek". Conta a surreal história de uma criança, com o improvável nome de Chumbly Mucker, que sofre de uma peculiar afeção auditiva que a leva a não conseguir ouvir os sons que lhe são próximos, mas apenas os afastados. E à medida que vai crescendo a doença vai-se desenvolvendo e aprofundando, o que quer dizer que o pobre Chumbly está condenado a ouvir apenas sons cada vez mais distantes... até chegar a altura em que toda a circunferência do planeta é engolida dentro da zona de inaudibilidade, e o nosso jovem protagonista passa a só poder ouvir sons oriundos de fora do planeta. Mas não pode, pois o som não se propaga pelo vácuo... ou será que pode?

É um conto divertido, ainda que o leitor deva ser avisado desde logo a não esperar encontrar nele nada de remotamente similar ao funcionamento do mundo real, apesar das menções a planetas e atmosferas, essas coisas que costumam ser concretas. Nas extravagantes histórias de Rhys Hughes não são. Nas extravagantes histórias de Rhys Hughes aparecem tubos que ligam planetas separados por centenas de anos-luz e que têm a função de... os ventilar. E não, nas extravagantes histórias de Rhys Hughes isto não é um completo disparate.

Lido: O Pipo de «Amontillado»

O Pipo de «Amontillado» (bib.) é um conto curto de Edgar Allan Poe que conta uma horrorífica história de vingança. Ambientado algures em Itália, entre cavalheiros de alta sociedade (é uma coisa que me irrita bastante, esta das histórias desta época terem quase sempre como principais protagonistas, quando não únicos, damas e cavalheiros da mais fina estirpe), descreve a vingança que o narrador faz cair sobre um "amigo" que o terá insultado. Começa por atrai-lo à sua adega, sob pretexto de lhe dar a provar um vinho que lhe teria sido vendido como amontillado mas que lhe levantava dúvidas, e depois... bem... vinga-se. Horrorificamente.

Outra história em releitura, esta. Mas, ao contrário de várias das outras, desta lembrava-me, ainda que não com inteira nitidez. Sinal de que terei gostado mais dela logo quando a li pela primeira vez, provavelmente. Pelo menos agora, e descontando a irritação de que falo acima, gostei bastante.

Lido: Um Homem de Imaginação

Um Homem de Imaginação (bib.) é um conto de Max Beerbohm que não me agradou por aí além. O narrador é um cavalheiro de fortuna, como soi dizer-se, que se vai recompor duma gripe para um pequeno hotel junto ao mar onde no ano anterior tinha conhecido um tal A. V. Laider, o qual lhe contara uma imaginativa história sobre quiromancias, acidentes e destinos. A maior parte do conto é dedicada a um longo flashback dessa história e da conversa de que fez parte, mas quando o autor finalmente traz o leitor de volta ao presente informa-o de que, afinal, o tal Laider é um sujeito com queda para a mentira imaginativa, por intermédio duma confissão do próprio, e acaba o conto sugerindo que outra história mirabolante foi contada durante mais uma conversa. É um conto fantástico, porque acaba por se ficar na dúvida sobre onde estaria realmente o Laider a dizer a verdade e onde estaria a mentir, mais do que pelo fantástico inerente às histórias que o protagonista conta. O que achei? Nem me agradou a estrutura do conto nem este me despertou grande interesse. Nem lhe vi uma conceção particularmente inteligente: há, por exemplo, partes na história que o Laider conta que, apesar de se tentar envolvê-las em grande mistério, são bastante óbvias. Enfim, um conto que não passa, a meu ver, da mediania.

Lido: Como é que o Ali Veio Para o País Negro

Se acham que Como é que o Ali Veio Para o País Negro é dos "tais" títulos, daqueles títulos que exalam um forte odor a Lorde Dunsany, pois acertaram em cheio. Trata-se de um conto bem mais sombrio do que a maioria dos outros, em que Dunsany mostra a sua veia ecológica e, como é infelizmente comum em muita gente dotada de tal veia, também mostra uma outra, a veia ludita. O Ali do título é um bruxo que vem da Pérsia para Inglaterra a fim de conter um demónio que anda a poluir os ares, os rios e os campos, o demónio do vapor. Mas a sua tarefa é dificultada por ser preciso primeiro convencer quem dele beneficia da necessidade de o conter. Sim, a parábola é clara, e é muitíssimo atual. Só acho pena que o ataque do escritor seja desferido contra a tecnologia como um todo, embora também ache compreensível que assim seja dado o que se sabia na época em que o conto foi escrito. Há praticamente cem anos ainda não estavam muito claros os tremendos benefícios que a tecnologia nos traria, embora já começassem a ver-se os também tremendos problemas que com eles viriam, e não havia nem sinal da tecnologia ecologicamente consciente que hoje se vai a pouco e pouco impondo, muito mais timidamente do que deveria. Neste contexto, o ludismo é natural, suponho. Mas lendo o conto hoje a ressonância com algumas opiniões contemporâneas mal informadas torna-se bastante incómoda.