quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Lido: Página dum Suicida

Página dum Suicida é mais uma história de Mário de Sá-Carneiro contada em forma de (página de) diário, e de novo o tema é o suicídio. Este, no entanto, é um suicídio bem humorado, se calhar até irónico. O diarista vê-se como um explorador, um descobridor de novos mundos que, como já não restam novos mundos ao mundo, acha ele (e que fraca imaginação tem, o pobre!), se vê na contingência de os ir buscar na morte. Em vez de descobrir a América, já descoberta, parte para descobrir a Morte, assim mesmo com letra grande como é regra dos lugares. E lá vai.

Há muitas ideias tolas por este mundo fora, que mal faz mais uma? E o texto está bem escrito, naturalmente, embora não tanto como alguns dos outros. Eu encolhi os ombros, mas há certamente quem goste, e muito. Ainda bem.

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quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Lido: O Nitó que Também Era Sankarah

O Nitó que Também Era Sankarah, mais um continho de juventude de Ondjaki, regressa à sensaboria das histórias banais. Aqui, o jovem Ndalu é transferido de escola e a sua estreia na nova escola é apimentada por um primo estiloso, que é lá professor. Nada de muito interessante, tocante ou relevante, apesar da forma agradável como a história está escrita. Apenas uma historieta sem grande importância.

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O infinitamente provável fim do Infinitamente Improvável

Como escrevi no texto que serve de prefácio ao ebook cuja capa está aqui ao lado, o Infinitamente Improvável foi um glorioso fracasso. Mas um glorioso fracasso que, apesar de o ser, teve o mérito de dar vazão a um número razoável de histórias que me deu muito gozo publicar. Isso chega?

Não, no caso deste projeto não acho que chegue, mesmo tendo em conta que sem ele, e sem algumas das histórias que nele foram publicadas e talvez tenham sido, ou talvez não, escritas de propósito, parte desta ficção nunca teria chegado a existir. Não chega porque o objetivo principal do projeto não foi alcançado, longe disso. Não chega, portanto, para evitar que considere o projeto um fracasso, embora chegue para achar que tinha a obrigação de lhe dar um fim condigno em vez de o deixar morrer simplesmente por falta de comparência como tantas vezes acontece na web.

Foi isso mesmo que fiz agora, com a publicação de duas últimas histórias e a compilação de todas as histórias publicadas enquanto o II se manteve vivo nesta derradeira antologia, acompanhadas por comentários individualizados, sempre que a extensão da história ultrapassa a vinheta, ou mais genéricos quando não.

São ao todo 29 contos, que decidi subdividir em 5 grupos, e 19 textos introdutórios em que procuro contextualizar o projeto e as histórias propriamente ditas, tanto nele como fora dele. Tudo isso foi compilado num ebook, disponível aqui, em duas versões, EPUB e MOBI (esta última é a que se usa no kindle, caso não saibam). Planeio ainda fazer uma versão em PDF, mas essa exige uma paginação mais minuciosa e ainda demorará algum tempo a ficar pronta. Avisarei quando ficar e será essa a última publicação do Infinitamente Improvável.

Ou por outra, é infinitamente provável que o seja, que nestas coisas do II nunca se pode dar certezas de nada. Foi giro enquanto durou e, na infinita improbabilidade de continuar a durar, giro continuará a ser.

Lido: Gozo Doloroso

Gozo Doloroso é outra vinheta de ficção científica de Luiz Bras, que, numa prosa tão poética que é quase poema, nos apresenta algo que poderia ser etiquetado como distopia sexual em realidade virtual. Um continho literariamente forte o suficiente para o meu eterno desejo de maior desenvolvimento sempre que acho que as ideias têm pano para mangas (e é o caso) ficar atenuado. Esta ideia daria um bom texto mais extenso? Daria. Mas neste texto curto também está bastante bem explorada.

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terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Lido: A Profecia

A Profecia é mais uma curta história de Mário de Sá-Carneiro, de novo em forma de diário que, uma vez mais, volta a dar expressão às obsessões mórbidas do autor. E desta vez de uma forma que justifica plenamente a sua integração no horror.

O diário, de novo, é de "um amigo" que, segundo a nota que prefacia o conto, se terá suicidado de uma forma que levantou toda a espécie de especulações e boatos. "Para repor a verdade", Sá-Carneiro publica excertos do seu diário, através dos quais se fica a saber que a morte do jovem se terá devido a uma profecia. Ficam em suspenso as certezas sobre se a profecia o era mesmo, ou se terá tratado daquelas profecias que desencadeiam o resultado que preveem (do género "o banco X vai desaparecer"). O enredo é, pois, bastante interessante; o estilo hiperssentimental em que o diário está escrito, no entanto, está longe de o ser. Ao mesmo tempo, a qualidade do português é irrepreensível, e somando tudo tem-se como resultado que esta será das histórias mais interessantes que o livro contém até ao momento.

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Lido: O Livro do Mr. Natural

O Livro do Mr. Natural é um álbum de banda desenhada de Robert Crumb que reúne uma série de histórias desenvolvidas à volta do protagonista, o Mr. Natural, um guru new age, tão místico como vigarista, representado sempre como aparece na capa (embora nem sempre nu), como um tipo baixo e roliço com uma longa barba branca.

Não sei bem se nunca tinha lido Crumb, o que só por si demonstra bem que não sou bedéfilo. O estilo, quando comecei a ler este livro, não me foi estranho. Ainda aventei a hipótese de que poderia ser ele o autor de Os Sobrinhos do Capitão, histórias que acompanhei em miúdo nos álbuns de capa mole do Carlitos e só vinham assinadas por uma assinatura quase ilegível a que eu pura e simplesmente não ligava, mas uma comparação rápida informou-me de que não: há semelhanças no estilo rechonchudo do desenho, mas pouco mais. E depois, pesquisando, descobri que Os Sobrinhos do Capitão são no original The Katzenjammer Kids e foram criados por Rudolph Dirks. OK, esse assunto ficou arrumado, mas a sensação de familiaridade continuou sem explicação. O mais provável é ter tomado contacto com algum trabalho dele, algures, sem saber que era dele.

Seja como for, O Livro do Mr. Natural é um grande gozo. Ou uma sátira, como se diz em intelectualês. Um gozo, primeiro que tudo, a uma certa forma de estar em sociedade muito típica dos anos 60 e 70 do século passado. Um gozo à credulidade das pessoas, à facilidade com que um líder carismático pode influenciá-las e servir-se delas. O Mr. Natural está constantemente a testar os limites dos seus seguidores (em especial de um tal Flakey Foont, a sua vítima predileta), a abusar deles, a levá-los à certa enquanto debita frases vazias de qualquer espécie de significado mas todos acham muito profundas, e isso só lhe traz cada vez mais seguidores. Manda-os todos dar uma volta ao bilhar grande e eles vão e, quando voltam, são mais.

Hoje, um Crumb moderno que quisesse criar um Mr. Natural teria de fazê-lo diferente. Estes gurus new age, embora ainda existam, estão em franca decadência. Fora de moda. Já não atraem multidões, embora continuem a atrair grupinhos. Um Mr. Natural de um Crumb dos dias de hoje seria bem menos natural. Não se passearia nu por aí. Seria orador motivacional, escreveria livros de auto-ajuda (ou, mais precisamente, pagaria a alguém para lhos escrever), fundaria uma seita onde venderia vassouras ungidas para varrer o mal. Mas de resto seria igual. Debitaria frases vazias para aplauso geral. Refastelar-se-ia com a idolatria de que seria alvo enquanto, secretamente (poucos são tão descarados como o Mr. Natural), desprezaria os idolatradores. Seria menos surreal. Procuraria marcar presença em palestras TEDx. Quiçá, até talvez concorresse à presidência da república.

A personagem é bastante interessante, sem dúvida, e deu pano para mangas. Mas não gostei muito do livro. Há piadas demasiado óbvias. Há outras bastante básicas. Há uma certa misoginia, provavelmente inevitável em algo criado nesta época, mas mesmo assim desagradável. Há no guru uma canalhice vazia de escrúpulos que o torna previsível mesmo quando está aparentemente a ser o contrário (um pouco à semelhança do Mr. Bean). Há algum racismo. E há uma certa incongruência na própria personagem, que ora é genuinamente canalha e vigarista, ora parece acreditar nas suas próprias tangas.

Não me manifesto quanto à importância deste livro na BD americana (por clara incompetência), mas para o meu gosto, pessoal e intransmissível, ele deixou um pouco a desejar. Gostei, mas não muito. Diverti-me, mas nem sempre. Foi, como se diz por aí, um bocado meh.

Este livro foi comprado.

Lido: No Galinheiro, no Devagar do Tempo

No Galinheiro, no Devagar do Tempo é mais um continho de Ondjaki sobre as peripécias da sua juventude, embora este seja menos "inho" que os restantes. Voltamos a encontrar aqui a prima Charlita e família de míopes que partilham um par de óculos para ver telenovelas brasileiras, mas em crise, pois Charlita vai de viagem a Portugal (ou "à Tuga") a uma consulta... e leva os óculos consigo.

É um conto que me diz pessoalmente mais que a maior parte dos outros, porque ressoa em várias facetas do meu umbigo. Sei o que é andar em consultas de oftalmologia e também vivi o tempo em que as telenovelas brasileiras eram divertidas, bem feitas, bem representadas e cheias de personagens castiças como o Odorico Paraguaçu ou a Viúva Porcina. Por conseguinte, gostei mais desta história que da maioria das outras mas, olhando-a com olhos mais limpos de umbiguismos, só posso ver nela as mesmas qualidades e defeitos de todas as outras.

Bem... ou quase. Creio que esta história é mesmo um pouco melhor que a maior parte das outras. Porque é mais desenvolvida e porque o final, de uma subtileza precisa, nada explica enquanto explica tudo.

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segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Lido: Branco

Branco é um conto muito curto de ficção científica, de Luiz Bras, sobre um homem que está preso numa "prisão mental," um espaço inteiramente branco, quiçá inspirado pela realidade virtual vazia que podemos encontrar, por exemplo, no primeiro filme da série Matrix. Mas a dada altura da pena aparece-lhe outro presidiário que lhe diz que não é nada daquilo que se passa, que o homem não está preso em prisão mental nenhuma, que a realidade é outra.

Um conto muito bem feito, muito bem construído, embora tenha acontecido com ele o que acontece muitas vezes (e cada vez mais) quando leio ficção ultracurta: soube-me a pouco. Mas não me soube a esboço de uma coisa maior, o que também acontece com frequência. Isso é bom.

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domingo, 27 de dezembro de 2015

Lido: Felicidade Perdida

Felicidade Perdida é um continho de Mário de Sá-Carneiro, escrito em jeito de diário, sobre o ridículo das assolapadas paixões juvenis. Não se percebe bem se Sá-Carneiro se dá inteira conta do ridículo inerente ao que descreve, mas é claro que pelo menos se dá parcialmente. Talvez por isso coloque o diário na pena de um "amigo", que um dia no teatro troca olhares com uma jovem desconhecida e fica irremediavalmente louco de amores sem sequer trocar uma palavra com ela, se põe a procurá-la por meia Lisboa só para se dar conta de que... esqueceu por completo as suas feições.

O texto está bem escrito, mas não muito, e a história tem para mim o mérito de ser mais divertida (involuntariamente?) que trágica. Razoável.

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Lido: O Bigode do Professor de Geografia

O Bigode do Professor de Geografia é mais uma historieta de juventude de Ondjaki. Desta vez, o momento relatado acontece numa aula, de geografia, bem entendido, durante a qual o professor, saturado dos alunos que lhe calharam em rifa, perde por completo as estribeiras. Tudo, claro, contado pelo ponto de vista dos alunos.

Uma historinha curiosa, especialmente porque, lendo-a hoje em Portugal, é inevitável tentar imaginar o que aconteceria ao professor que reagisse assim. Coisas boas não seriam pela certa. De um processo disciplinar, no mínimo, não se escaparia. No mínimo.

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sábado, 26 de dezembro de 2015

Lido: Distrito Federal

Distrito Federal é um contículo experimental de Luiz Bras, que esboça em traços largos a invasão do Distrito Federal por criaturas mitológicas, brasileiras e não só, em perseguição de diversos tipos de parasitas sociais que enxamearão a região: senadores corruptos, deputados racistas e homofóbicos, por aí fora. Uma ficção política brevíssima e eficaz, a fazer lembrar um pouco os contos de Mário-Henrique Leiria, embora seja improvável que Luiz Bras os conheça. Muito interessante.

Lido: Uma Rapariga de Red Lion, P.A.

Uma Rapariga de Red Lion, P.A. é um conto interessante de H. L. Mencken, de quem eu julgo nunca ter lido nada até este momento, sobre uma rapariga do campo, com todo o ar de criatura boa e reputada, que um belo dia chega à estação de caminho de ferro de Baltimore, procura o cocheiro mais digno de confiança que consegue encontrar e lhe pede para a levar imediatamente a... uma casa de má reputação. A incongruência do ato faz erguer sobrolhos a todos os que ficam ao corrente dele, e o conto vai avançando entre a ingenuidade da moça e o conhecimento do mundo dos pecadores que a rodeiam, até à explicação do motivo por que a rapariga teria vindo de Red Lion, Pensilvânia, para fazer o que fez.

O conto é interessante, em particular pelo modo como lida com a marginalidade, e tem em si uma certa ironia, mas dificilmente lhe chamaria "comédia." E também não é daqueles contos que me enchem as medidas. É um conto de época, datado, com o grande mérito de se afastar decididamente de moralismos mais ou menos bacocos (ainda que vastamente maioritários na época), mas que não me pareceu lá muito bem construído. Gostei, mas não muito.

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Eu e a BD

Esta foto cheia de grão tem quase precisamente um ror de anos. Os três putos que ali se veem, com quatro anos de diferença entre uns e outros, sou eu e os meus dois primos albufeirenses, e o trio é só parte da foto completa. Foi tirada num dos natais passados em Albufeira, velha tradição familiar, e eu ali estou numa velha tradição pessoal: agarrado a um livro. No caso, um livro de BD, não me lembro qual.

Quando eu era puto, todos os natais, ou quase, havia BD à disposição. Ou eu, ou o meu primo Pedro ou, mais tarde, o Ricardo, recebíamos de alguém um ou mais álbuns de presente e toda a família (bem, não toda, mas incluindo o meu pai e o meu tio) se refastelava na tarde fria e preguiçosa de 25, a devorá-los. Era principalmente Astérix, embora o album que eu aqui tenho na mão não seja um dos de Goscinny e Uderzo (e o facto de eu não me lembrar dele significa que o contemplado deverá ter sido o Pedro) ou, em geral, BD franco-belga. Os comics americanos não faziam parte do menu. Também os lia quando os apanhava a jeito, e acabaram por vir alguns parar-me às mãos, não sei bem como, mas nunca comprei nenhum com o meu dinheiro (sim, nesta altura eu já tinha o meu dinheiro) e creio que nunca ninguém comprou nenhum com o intuito de mo dar. Lia-os, mas nunca fui grande fã, nem dos da Disney, nem dos das casas rivais de super-heróis. Quanto a estes, ganhei certa simpatia por alguns, em especial o Batman e o Homem-Aranha, mas em geral sempre os achei fundamentalmente ridículos. E os quadrinhos brasileiros, Mónica, Cebolinha e companhia, também estão nesta categoria: lia quando os apanhava, mas sem ser grande fã. Do que gostava mesmo era de Lucky Luke, Tintim e seus "parentes" (Spirou, Estrumpfes (smurfs é o caracinhas, tá bem?), Blake and Mortimer, Alix) e, acima de todos, Astérix.

Foi assim que foi construída a minha cultura de BD. Ela não é vasta nem particularmente variada, porque nunca me dediquei a aprofundá-la. Chegou uma altura na vida em que me desinteressei das histórias aos quadradinhos; passei a achar mais complexas e estimulantes as histórias escritas em texto corrido, e a vertente gráfica da BD, que é o que mantém muitos dos verdadeiros bedéfilos presos ao género depois da adolescência, nunca me interessou muito.

Como consequência, não deixei completamente de ler BD, mas quase. De vez em quando regressava aos meus velhos álbuns do Astérix que, de tanto lidos, estão hoje praticamente desfeitos e, mais raramente, lia um ou outro livro apanhado aqui e ali. A revolução da novela gráfica adulta passou-me quase completamente ao lado, embora tenha sido nessa fase que descobri e me tornei absoluto fã de Quino. Mais de outras coisas do que da Mafalda, embora também da Mafalda.

Ah, sim, claro, e nunca deixei de ler as tiras que vinham nos jornais, pelo menos até deixar de comprar jornais. O Calvin é o maior e Hobbes a sua consciência.

A que propósito vem agora tudo isto? Bem, é que este ano foi completamente atípico: li bastante BD e tive algumas surpresas agradáveis. Essa BD irá ser comentada aqui na Lâmpada nos próximos tempos, mas achei necessário deixar a nota prévia de que eu não sou bedéfilo. Sou só um tipo que foi lendo alguma BD ao longo da vida mas estou longe de sequer começar a ser conhecedor do género. Por conseguinte, se as minhas opiniões sobre o que leio valem sempre o que valem, no caso da BD isso é ainda mais assim. Especialmente no que diz respeito à parte gráfica, que é a que sempre me interessou menos.

Esclarecidos? Então vamos lá.

Lido: City of Saints & Madmen

City of Saints & Madmen é uma coletânea de contos e novelas interligados de Jeff VanderMeer do qual aqui se encontra apenas um pequeno excerto de uma das novelas. As histórias passam-se em Ambergris, tal como a de Shriek: An Afterward, romance cujo excerto abre este pequeno volume, e são de uma fantasia luxuriante, barroca e francamente interessante. Mesmo não me tendo este excerto despertado tanta curiosidade como o de Veniss Underground, há nele uma solidez de cenário e personagens, por mais bizarros que uns e outras sejam, que é francamente atraente. Claro que um excerto interessante não significa que a obra completa também o seja, mas dá pelo menos a garantia de qualidade literária e de um potencial que, se estiver bem explorado (e parece estar) resultará com toda a certeza em algo de facto bom.

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quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Lido: Em Pleno Romantismo

Em Pleno Romantismo é mais um texto de Mário de Sá-Carneiro em que ele regressa às suas obsessões mórbidas. Escrito em jeito de diário, contra a trágica e mui romântica história de um jovem narrador que se perde de amores por uma rapariga, tísica e prima de um colega seu, sabendo à partida que a paixão seria sol de pouca dura pois não havia cura para a doença da amada. Um texto muito bem escrito, com uma prosa já mais sólida do que a das primeiras ficções, mas ainda preso àquele romantismo trágico, cheio de facas e alguidares (embora neste caso apenas metafóricas) que se equilibra periclitante à beira do ridículo, quando não cai nele de cabeça. Este texto é dos que ainda se vão equilibrando... mas bastaria um mero sopro para perder o equilíbrio.

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Lido: Os Calções Verdes do Bruno

Os Calções Verdes do Bruno, mais uma historieta de juventude de Ondjaki e a mais curta de todas, com as suas duas breves páginas, é uma história de paixão, mais uma, desta feita não do próprio narrador-autor-protagonista, mas de um seu colega. Como é comum acontecer naquelas idades (e em qualquer outra, na verdade), as coisas não correm propriamente como planeado mas isso, para o caso, pouco importa. Esta é mais uma história doce e branda. Tépida. Que não chega, portanto, a aquecer. E esta é, provavelmente, a mais forte característica do conjunto.

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quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Lido: Hop-Frog

Hop-Frog (bibliografia) é um conto de Edgar Allan Poe sobre o que pode acontecer quando se leva demasiado longe o desprezo pela dignidade alheia. Em ambiente de conto de fadas, na corte de um rei de um daqueles reinos nunca identificados das histórias populares, Hop-Frog é o bobo anão do dito rei, vindo com a sua amiga Trifetta de alguma terra distante ainda menos identificada que o reino. O rei, esse, é personagem pouco recomendável, amigo de pregar partidas (mas não, imagina-se, de ser delas vítima) e um dia teve a infeliz ideia de reagir com violência a um pedido de clemência feito por Trifetta. A consequência é a horripilante vingança de Hop-Frog.

Não é das melhores histórias de Poe, mas é na mesma um conto com o seu interesse, que vai buscar os contos de fadas e o seu pendor moralista para com eles compor uma história de terror — que, de resto, nunca foi alheio aos próprios contos de fadas.

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Lido: O Colar de Pérolas

O Colar de Pérolas é daqueles contos cuja leitura me costuma parecer pura perda de tempo, por melhor que seja o escritor que os produz. Neste caso estamos perante um dos conceituados, W. Somerset Maugham, e o conto parece ter qualquer coisa de autobiográfico, pois retrata um aborrecimento que calha a todas as pessoas que escrevem: se acontece revelarem a sua atividade ou passatempo a um recém-conhecido, logo este decide explanar uma história, invariavelmente chatíssima, que com toda a certeza daria um livro dos melhores, acha ele.

Neste caso, a história é a de um burguesíssimo jantar e de uma confusão com um colar de pérolas que nesse jantar estaria a ser usado pela percetora dos anfitriões, obrigada a estar presente à última hora para não serem treze pessoas à mesa (de contrário, que horror, misturar criadagem com gente fina!). Falta-me a paciência para estas histórias sobre as falhas de caráter da high society, confesso: elas, as falhas de caráter, são abundantes e conhecidas por todos. Talvez por isso não tenha achado esta "cena divertida da vida social" minimamente divertida. O que vale é que foi curta e se despachou num ápice.

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terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Lido: Veniss Underground

Veniss Underground é um romance de Jeff VanderMeer que mistura a ficção científica com outros géneros num todo mais coerente do que poderia parecer à primeira vista, o que, aliás, é timbre das ficções que têm vindo a receber o rótulo de "new weird." No breve extrato apresentado neste livrinho, duas das personagens do livro, uma das quais é o seu protagonista, descem às vastas profundezas da cidade de Veniss por meios muito pouco convencionais. E apesar da extrema brevidade, o extrato tem pleno sucesso em despertar curiosidade pelo romance completo, pois consegue mostrar lugares estranhos descritos com mestria e personagens que, não sendo descritas de uma forma tão eficaz (supondo-se que o terão sido noutros pontos do livro), são no entanto também capazes de despertar interesse.

Sendo o objetivo deste livrinho despertar curiosidade pelas obras completas, há que reconhecer que aqui o sucesso é total.

Textos anteriores deste livro:

Lido: Tragédia

Tragédia é o último dos pequenos contos iniciais de Mário de Sá-Carneiro e, como facilmente se compreende pelo título, o tom trágico mantém-se. Mas aqui já não encontramos a banalidade das tragédias de faca e alguidar que dominou vários destes continhos, antes uma reflexão adulta, e até bastante profunda para um conto tão pequeno, sobre o sofrimento e a necessidade, ou não, de o suportar. E é também mais um conto profético para a vida do seu autor. A história gira em volta de uma mulher que descobre que sofre de um cancro no fígado, à época ainda mais incurável do que hoje (embora já houvesse operações), e tenta levar o marido a abreviar-lhe o sofrimento, coisa que ele se nega terminantemente a fazer, numa discussão que, tudo o indica, espelha o dilema que o próprio autor atravessaria na época.

Este é um conto um pouco mais extenso do que os anteriores, e também significativamente melhor que a média, deixando vários dos outros bem longe. Só o final me parece ainda fraco.

Contos anteriores deste livro:

Lido: O Portão da Casa da Tia Rosa

O Portão da Casa da Tia Rosa, mais uma das historinhas de infância de Ondjaki, é uma história de perda e despedida que me parece sofrer de um problema grave: haver ali demasiada história que quem a conta não acha sua para contar. O resultado é uma historinha com mais entrelinhas que linhas, com demasiadas mãos de veludo para chegar a ser realmente eficaz. Tudo o que é demais estraga. Mesmo a subtileza.

Não, este não é um ponto alto neste livro.

Contos anteriores deste livro:

segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Lido: 2014 Campbellian Anthology - Hunter Liguore

Hunter Liguore é outra autora presente nesta antologia com um conto. No caso dela, o conto intitula-se

Area 54. Pelo título facilmente se prevê o conteúdo do conto, mas este só obedece à previsão em linhas gerais. Em vez da história paranoica sobre OVNIs que o título faz antever, encontramos uma história paranoica sobre a forma como a filha de um casal de maluquinhos dos discos voadores, criada no meio de uma vigilância constante, sempre sob risco, aparente ou real, de ser apanhada pelos ETs e, claro, abduzida, acaba por conseguir chegar à idade adulta. E também sobre o modo como, aí chegada, a sociedade exterior ao seu pequeno mundo de sobrevivalistas a encara e à inevitável excentricidade causada pelo modo como passara a infância e a juventude. Embora não seja propriamente uma obra-prima, é um conto interessante, que aborda um tema muito batido por uma via pouco vulgar.

Lido: O Barril de «Amontillado»

O Barril de «Amontillado» (bibliografia) é um conto curto de horror de Edgar Allan Poe que eu, claro está, já tinha lido e comentado aqui na Lâmpada. Até por mais de uma vez. Consequência de ser um dos contos mais célebres de Poe, e por isso dos mais republicados.

E como nada tenho a acrescentar ao que disse das vezes anteriores, armo-me em agente da autoridade em cena de crime e grito «circular, circular, aqui não há nada para ver, não se juntem, circular, circular!»

Contos anteriores deste livro:

Lido: O Nível de Vida

O Nível de Vida é um conto de Dorothy Parker, francamente irónico, que descreve um jogo jogado (muito a sério) por duas amigas e que consiste em imaginarem sonhando (ou sonharem imaginando) o que fariam se de repente lhes caísse no regaço uma daquelas riquezas impossíveis que só mesmo em sonhos. Mas o jogo quase acaba abruptamente um belo dia em que elas, num impulso, entram numa ourivesaria para se informarem sobre o preço de um colar de pérolas e ficam a saber que a riqueza que julgavam impossível, afinal, pode ser facilmente desbaratada em menos que uma mancheia de artigos de luxo. Um conto interessante, apesar de andar bem longe dos territórios literários que mais me agradam.

Conto anterior deste livro:

domingo, 20 de dezembro de 2015

Lido: Antologia do Humor Português

A Antologia do Humor Português é um grosso livro de contos, excertos de textos maiores, poemas, crónicas, textos para teatro e televisão e por aí fora, que têm como fio condutor o humor nas suas várias vertentes. Não todo, evidentemente; aquele que foi sendo publicado nos quarenta anos que distam de 1969 a 2008 e, como a própria introdução sublinha, "só o que saiu em livro e mesmo assim há uns que, se calhar, não deviam aqui estar e outros que não estão e deviam estar."

E realmente é essa a principal fragilidade deste livro: assim (de)limitado, aparecem nele uns quantos erros de casting mais ou menos flagrantes, e há ausências tão conspícuas como comprometedoras para um apanhado do humor português razoavelmente recente. Outra fragilidade clara é algum imediatismo de certos textos mais recentes, que foram claramente selecionados sem que o tempo tratasse de determinar se lhe resistem bem ou não e que lidos agora, alguns anos depois do livro editado, torna-se já claro que não. Em certos casos sublinha o erro de casting de alguns autores; noutros é pena, pois os seus autores teriam certamente material melhor, ou pelo menos mais resistente à erosão do tempo, que os representasse de uma forma mais adequada.

Mas fragilidades à parte, o livro é bom. É quase sempre divertido, às vezes de gargalhada, ocasionalmente de ir às lágrimas, e inclui material de quase todos os monstros sagrados do humor português da segunda metade do século XX. Não sendo um apanhado perfeito, que não é, é um bom apanhado. A organização, cronológica, perde a oportunidade de jogar com sinergias entre textos e autores, mas resolve de forma simples outros problemas mais ou menos bicudos, que aparecem sempre quando chega a hora de decidir o que vem antes e o que vem depois. Mas isso faz com que valha pelos textos e praticamente só por eles, ainda que as introduções sobre cada autor ou projeto tenham bastante interesse em si mesmas (apesar de serem a parte menos divertida da coisa).

Ah, sim, e para mim teve ainda o interesse acrescido de vários destes textos poderem ser enquadrados na literatura fantástica. Já comprei pelo menos um livro por causa deste (Casos do Beco das Sardinheiras), e julgo que não ficarei por aqui. Também é para isto que as antologias servem, quando são bem sucedidas.

Quanto ao que os textos valem, eis a muito longa lista do que eu fui achando deles ao longo de quase dois anos de leitura:
Este livro foi comprado.

Lido: The Secret Life of Maria McCune

The Secret Life of Maria McCune é mais um pseudofactual de Jeff VanderMeer, este realmente pseudofactual e, além disso, inteiramente credível enquanto literatura realista, mesmo que a protagonista tenha a invulgar característica de ser fascinada por cardos. Esse fascínio leva-a a, nas horas livres da sua primeira vida como estenógrafa judicial, mergulhar numa vida secreta (o leitmotiv de todas estas historinhas pseodufactuais, afinal) como escritora, em cujos textos os cardos têm sempre lugar promeninente. Nada de particularmente estranho; excentricidades dessas são mato, se me perdoarem o infame trocadilho. E talvez por ser tão credível enquanto história da vida real, este foi, dos quatro continhos pseudofactuais, aquele que menos me agradou.

Textos anteriores deste livro:

sábado, 19 de dezembro de 2015

Lido: Recordar é Viver

Recordar é Viver é mais um conto de Mário de Sá-Carneiro, trágico e bastante curto, embora não tanto como os anteriores. A protagonista é uma velhinha, coitadinha, que vai visitar uma tal Quinta das Violetas, perto de Lisboa, onde teria vivido e sido feliz. Tão propositada e lacrimejante é a visita que o desfecho depressa se adivinha e quando ele chega fá-lo sem a mais pequena surpresa. Um conto inteiramente banal, que só não é mau por estar bem escrito. Mas mesmo a prosa roça o precipício do ridículo presunçoso. Não chega a cair nele, mas não é por muito.

Será esta a mais fraca destas primeiras histórias de Sá-Carneiro? Provavelmente, provavelmente.

Contos anteriores deste livro:

Lido: As Primas do Bruno Viola

As Primas do Bruno Viola, mais uma historinha de infância de Ondjaki, contam uma festa e um assédio misturados com atrações cruzadas e amores (se é que chega a tal coisa) platónicos. Uma historinha muito banal, porque banal é o que nela sucede e porque até a prosa, que em Ondjaki tem sempre uma qualidade quase dançante, parece perder aqui um pouco do seu habitual bailado. Esta é, pareceu-me, uma das mais fracas destas histórias.

Contos anteriores deste livro:

Lido: A Verdade no Caso do Sr. Valdemar

A Verdade no Caso do Sr. Valdemar (bibliografia) é um conto de horror de Edgar Allan Poe cujo ponto de partida é uma experiência... médica, digamos assim. Trata-se de um depoimento, escrito por quem levou a cabo a experiência, alguém cujo interesse pelo hipnotismo (na verdade e no original trata-se de mesmerismo; a tradutora desta edição decidiu chamar-lhe hipnotismo, o que não é bem a mesma coisa) o levou a interrogar-se sobre o que aconteceria se se hipnotizasse um moribundo, alguém sem esperança de sobrevivência. Esse alguém foi o Sr. Valdemar a que o título se refere, e o depoimento resulta de o caso insólito a que a experiência deu origem ter supostamente resultado em grande interesse público, o qual, segundo o narrador, se revestiu de aspetos fantasiosos e distantes da verdade. A ideia é, pois, explicar o que se teria realmente passado, e por isso a experiência é descrita passo a passo. Não a revelo, pois é da sucessão dos acontecimentos que o conto se sustenta. Digo apenas que é uma ideia inteiramente lógica se se partir do pressuposto de que existe uma alma ou espírito que anima o corpo e de que o processo que leva ao mesmerismo reside na tomada de controlo (mesmo que parcial) sobre essa alma e, portanto, sobre o corpo que ela anima. O desfecho da história, bastante horrendo, nasce do conflito entre o processo natural da morte e o controlo de um terceiro sobre o espírito, que o retém.

O conto é muito bom. Na verdade, está tão bem feito, e jogou tão bem com as superstições da sua época, que foi durante bastante tempo encarado por muitos como relato verdadeiro. Talvez por isso, é também dos contos mais republicados de Poe.

Contos anteriores deste livro:

sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

Lido: Na Mó de Cima

Na Mó de Cima é um conto de James Thurber, de quem eu ainda não tinha lido nada, passado no ambiente corporativo novaiorquino. O protagonista, Mr. Martin, é um daqueles homenzinhos insignificantes e diligentes, que vivem no e para o trabalho e como que fazem parte da mobília nas grandes empresas. Este Mr. Martin estava feliz e contente no seu canto até que um aziago dia chega à empresa uma tal Ulgine Barrows, que é precisamente o seu oposto. De tal forma a recém-chegada lhe faz a vida negra, que o bom do Martin decide "apagá-la". A palavra é mesmo esta.

O conto descreve essa tentativa de "apagamento," o qual começa por ser um assassínio mas depois, fruto de uma ideia súbita, se transforma em coisa bem distinta. Trata-se de um conto curioso, razoavelmente divertido e que, sim, justifica plenamente a sua presença numa compilação de comédias sociais.

Lido: The Secret Life of Terry Tidwell

The Secret Life of Terry Tidwell é, teoricamente, mais um dos continhos pseudofactuais de Jeff VanderMeer sobre as vidas mais ou menos secretas de variadas personagens. Escrevo teoricamente, porque este é bastante menos pseudofactual e bastante mais conto do que os anteriores, descrevendo a vida muito pouco secreta do protagonista desde que, uma bela noite, deu (ou recebeu) um encontrão num sem-abrigo e, após a conversa que se seguiu, ficou obcecado com autómatos setecentistas e muito em particular com um deles: um pato criado na década de 1730 por Jacques de Vaucanson, ambos, pato e criador, bem reais. Trata-se de um bom conto fantástico, que explora de forma inteligente — e insólita — um detalhe histórico pouco conhecido mas fascinante.

Mas não é uma delícia de conto. Isso não é.

Textos anteriores deste livro:

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Lido: Passaporte Para o Eterno

Passaporte Para o Eterno (bibliografia) é uma coletânea de contos de ficção científica de J. G. Ballard, escritos na fase inicial da sua carreira. E isso nota-se, em especial em alguns deles. As histórias ballardianas por excelência, embora variadas em quase tudo o resto, têm uma atmosfera muito própria, muito característica e, apesar de vários dos contos aqui contidos já a mostrarem, outros ainda não.

Talvez por isso, ou pelo menos também por isso, esta coletânea é algo irregular. Há aqui alguns contos da melhor qualidade e a maioria deles é, até, do bom para cima, mas aqui também se encontram alguns que são bastante mais fracos do que fui habituado a esperar de Ballard, ou pelo menos alguns com os quais o tempo foi mais cruel do que com os restantes. E a sua compilação nada faz para melhorar o conjunto: sem nenhuma unidade estrutural a gerar alguma espécie de diálogo entre umas histórias e as outras, o que aqui temos é apenas uma soma de partes. Sendo a maioria das partes boas, contudo, a soma também o é. Não tão boa como poderia ser sem dois ou três destes contos, mas boa.

Eis o que achei de cada uma das nove histórias que compõem o livro:
Este livro foi comprado.

Lido: Amor Vencido

Amor Vencido é um conto de Mário de Sá-Carneiro com particular interesse por ser o primeiro que se pode enquadrar no horror. Muito curto, com menos de uma página tal como os outros contos que abrem este livro, é um conto romântico que conta como um homem, noivo apaixonadíssimo de uma rapariga que é extraordinariamente parecida com a mãe, se vai ver confrontado com o inesperado quando a senhora morre. O horror, aqui, é apenas psicológico, sem nada de sobrenatural, mas está bem presente no desfecho da história, o qual não revelarei porque dele depende toda a eficácia do conto.

Não me parece que esta historinha seja muito boa. Ainda é demasiado faca e alguidar, ainda é prosa de um autor em busca de si mesmo. Mas aqui, creio, já começa a encontrar-se, o que eleva o conto acima de quase todos os que o antecederam.

Contos anteriores deste livro:

Lido: Bilhete com Foguetão

Bilhete com Foguetão é, como já perceberam pela imagem junta, mais uma das historinhas de infância de Ondjaki, e uma das melhores. Doce e ternurenta, conta a traços largos um momento de uma paixão de terceira classe em que o pequeno protagonista, poeta precoce, se decide, após muito hesitar, a ercrever e enviar um bilhete a Petra, o alvo da sua atração. As coisas não correm bem, mas ao mesmo tempo até correm. Paradoxal? Só na primeira aparência.

Contos anteriores deste livro:

quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Lido: A Carta Roubada

A Carta Roubada (bibliografia) é um conto de Edgar Allan Poe que eu, evidentemente, já tinha lido e comentado aqui na Lâmpada, visto que se trata de um daqueles contos que são republicados com grande regularidade e tendem reaparecer um pouco por todo o lado. Por vezes, entre as leituras distam anos suficientes para o leitor mudar quanto baste para a opinião evoluir. Não é o caso; com a leitura anterior fresca de meros dois anos, a opinião atual é precisamente igual à que era, o que facilita e abrevia este texto.

Contos anteriores deste livro:

Lido: Chamem-nos Legião

Chamem-nos Legião (bibliografia) é uma novela eletropunk de João Barreiros, com a habitual qualidade dos trabalhos do autor, mas também com a sua não menos habitual autorreferencialidade.

Neste texto, que tanto tem existência própria e razoavelmente independente do resto do livro, como serve para o rematar e atar as pontas soltas que ele foi deixando, vamos encontrar um espião inglês em viagem marítima para Lisboa, transportando consigo uma carga duplamente secreta, pois não só é secreta para os seus destinatários (parte de uma conspiração destinada a espiar a realeza portuguesa), como para o próprio agente secreto. E vamos também encontrar uma freira exorcista, cuja função é absorver "contaminações anímicas," uma espécie de fantasmas movidos a campos elétricos que, em atmosferas supersaturadas, tendem a contaminar (e a animar, por vezes) vivos, mortos e objetos inanimados. Efeito esse que, de resto, serviu de motor a praticamente todas histórias deste livro.

Espião e freira vão-se revezando nas páginas desta história, sem nunca se encontrarem ou sequer saberem um do outro, em duas linhas narrativas que apenas convergem no fim. Até lá, quem conhece a obra de Barreiros vai encontrar numerosos reflexos dela espalhados por todo o texto, como se este servisse um pouco como manta de retalhos de ideias antigas. Dos brinquedos animados e assassinos d'O Caçador de Brinquedos e de Noite de Paz aos grupos de combate compostos por uma unidade central e sapiente e uma legião de unidades-satélite a ela sujeitas das Crónicas do Exílio Lunar ou de Disney no Céu Entre os Dumbos, da metarrealidade de A Verdadeira Invasão dos Marcianos, que integra na realidade ficcional outras realidades ficcionais alheias a essa, à Lisboa apocalíptica submersa numa atmosfera líquida de Por Detrás da Luz, e por aí fora. É como se Barreiros estivesse constantemente a digerir-se a si mesmo enquanto autor, numa espécie de ficção recursiva da qual esta novela é apenas a mais recente iteração.

O resultado é bom, mas cansativo. Porque Barreiros escreve realmente bem e sabe como poucos tornar palpáveis os seus mundos fantásticos, e, até certo ponto, também as personagens, mas é impossível alguém que acompanha o que ele vem escrevendo ao longo das últimas duas décadas livrar-se da sensação de dejà vu. Para quem o descobre pela primeira vez, será provavelmente um deslumbramento. Mas para os mais experientes já não é.

Contos anteriores deste livro:

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Lido: Os Vespões de Ouro

Os Vespões de Ouro, do belga Peter Randa, é um romance planetário já bem antiguinho (data de 1960) e bastante pulpesco que, não obstante, ainda mantém alguns motivos de interesse.

Como é timbre dos romances planetários, este desenrola-se num mundo distante, ao qual, depois de uma viagem aparentemente rápida, o que é bem típico da FC pulp, que só raramente quer saber da imensidão das distâncias espaciais e da consequente dificuldade e demora de ir de um sítio a outro, chega uma nave saturnina tripulada por humanoides oriundos de outros mundos do Sistema Solar, Vénus, Saturno, etc., mas cujo herói é, obviamente um terrestre, Ariézi. É este o protagonista e é pelos seus olhos, embora não em primeira pessoa, que vamos tomando contacto com o novo mundo.

Este assemelha-se em tudo à Terra, o que também é muito típico da literatura pulp, cuja falta de imaginação chega por vezes a ser confrangedora: plantas verdes, animais, céu azul e gente. Gente quase idêntica à terrestre, claro, ou pelo menos mais parecida com o protagonista do que com os restantes tripulantes da nave. Mas apesar disso estranha, com uma estranheza que não é física, mas sim de comportamento, pois reage de maneiras que deixam todos os tripulantes da nave perplexos.

Estranhos também são os vespões de ouro com que os recém-chegados depressa deparam. Insetos de grandes dimensões, muito semelhantes a vespões dourados, mas, também eles, mostrando um comportamento à primeira vista pouco compreensível. Mas só à primeira vista.

Um dos pontos mais fracos do romance reside aqui: um leitor com alguma experiência de ler FC, a qual nem sequer precisa de ser muita, compreende os traços gerais do que se passa muito antes de alguém na nave o fazer. Não é bom para a suspensão da descrença, e por conseguinte para a qualidade da experiência, quando durante a leitura começamos a pensar coisas como "mas será que estes tipos são todos estúpidos?"

No entanto, o livro também tem os seus pontos positivos. A história está contada em bom ritmo, com eficácia, até, caso consigamos ultrapassar ou ignorar os piores ataques à verosimilhança, e não é tão básica como seria de supor num livro deste género. O pulp é muitas vezes vazio, limitando-se a histórias formulaicas de aventuras, carregadas de ação, com vencedores predeterminados pelo papel que cada personagem representa na história e com pouco ou nenhum conteúdo além desse. E esta história é, até certo ponto, tudo isso: uma história formulaica de aventuras, com vencedores predeterminados pelo papel de cada personagem. No entanto, não se concentra exclusivamente na ação, não é esta que a move. O seu motor principal é o desvendar do grande mistério do planeta e dos vários mistérios subsidiários que dele dependem.

E, melhor um pouco, está clara neste pequeno romance uma crítica ao militarismo e à corrida aos armamentos, coisa de toda a relevância no momento em que o livro foi escrito e publicado, no auge da Guerra Fria. Basta lembrar que o momento em que o nosso mundo mais próximo esteve da aniquilação global, a Crise dos Mísseis de Cuba, estava só dois anos no futuro quando Randa publicou este seu romance. Esta é, portanto, uma ficção científica que, sob uma primeira camada de superficialidade e escapismo futurista, esconde uma segunda camada atenta ao presente do autor e dos seus primeiros leitores. É essa a sua grande qualidade.

Não chega para tornar este romance bom, mas chega para o tornar razoável.

Este livro foi comprado.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Lido: 2014 Campbellian Anthology - Henry Lien

Henry Lien está presente nesta antologia com dois contos:

Pearl Rehabilitative Colony for Ungrateful Daughters é um divertido conto carregadinho de referências à cultura chinesa e aos filmes de artes marciais, contado na primeira pessoa por uma adolescente filha de pais ultrarricos, chamada Suki Jiang que, segundo afirma logo a abrir, prefere ser tratada como "Sua Graça, Radiante Deusa-Princesa Suki," e se vê internada, a grande contragosto, numa colónia de reabilitação cujo nome é o título da história. A reabilitação parece consistir quase exclusivamente de treinos de artes marciais futuristas, nas quais a protagonista se mostra imbatível. Ou quase. É que tem uma rival. E é a história dessa rivalidade e dos vários embates e competições que faz mover o conto. Tudo muito chinês, tudo francamente irónico, tudo muito divertido (a adolescência, e em particular a adolescência feminina, sai daqui bastante maltratada), mas sem grande profundidade. O conto não é nada de superlativo, mas não deixa de ser uma olhadela engraçada, interessante e até de certa forma original sobre a cultura chinesa.

Supplemental Declaration of Henry Lien é outro conto irónico, consistindo este de uma declaração legal relativa a um fideicomisso a que Lien teria ficado ligado por morte do seu amante, que envolve comunicações com o falecido por via onírica e todos os enredos legais que esse tipo de coisa tende a gerar. Também é um conto divertido, também é um conto algo superficial, também é uma abordagem com a sua originalidade mas, dos dois, preferi o primeiro.

domingo, 13 de dezembro de 2015

Lido: Contos a Oeste

Contos a Oeste (bibliografia), de Ana Cristina Luz, é uma pequena coletânea de cinco histórias próximas do realismo mágico e do horror sobrenatural, todas marcadamente românticas, que oscilam entre o fraco e o bom, ainda que o mais frequente é serem razoáveis, incluindo tanto aspetos interessantes e bem conseguidos como fragilidades mais ou menos óbvias.

O conjunto, no entanto, é superior à soma das partes, porque há uma unidade nestas histórias que não é norma encontrar nas compilações de contos, mesmo as de autor único. Há em todos eles uma certa doçura, uma aura romântica, mulheres solitárias em busca de amor ou à sua espera, e há em todos eles o ideal feminino do amante misterioso, transbordante de charme mas mais ou menos inalcançável. Essa unidade melhora a qualidade do livro, reconheço, mas devo dizer que o lugar de onde ela vem também piora a sua adequação ao meu gosto pessoal. Poucas coisas me enchem mais de tédio do que histórias românticas deste género; acho-as demasiado banais, cheias de chavões utilizados em milhares de livrinhos cor-de-rosa sofregamente consumidos por um público quase exclusivamente feminino. Não tenho paciência, em suma.

Mas para quem gosta, este livro poderá ser uma leitura agradável. Não creio que muita gente o chegue a considerar bom, mas poderá ser agradável para muita gente. E, como digo com frequência, basta um bom conto para se justificar uma publicação, e este livro contém um bom conto.

Eis o que achei das cinco histórias de que ele se compõe:
Este livro foi comprado.