sexta-feira, 19 de junho de 2015

Lido: A Corte a Dinah Shadd

A Corte a Dinah Shadd, conto razoavelmente extenso de Rudyard Kipling, é daqueles contos que das duas uma: ou têm de ser lidos na língua original, de tal forma peculiares são as soluções estilísticas usadas pelo autor para chegar aos resultados que pretende, ou então têm de passar por uma tradução feita com pinças, imaginação, muito talento e as adaptações necessárias para trasmitir para a língua de destino, se não exatamente o efeito pretendido, pelo menos algo de muito semelhante. A história divide-se entre uma primeira parte em que são relatadas algumas movimentações militares, e uma segunda que consta de uma conversa entre o narrador e um seu camarada de armas, durante a qual este lhe conta como fez aquilo a que o título faz referência: a corte a uma tal Dinah Shadd, arrebatadora de corações castrenses.

Kipling usa extensamente uma grafia e estruturas gramaticais que se destinam a plasmar no texto os oralismos do dialeto irlandês, o que só por si transforma este conto num pequeno pesadelo de tradução. O resultado, no original, provavelmente será bom (afinal de contas, Kipling é escritor nobelizado), mas a verdade é que não sei se porque a camioneta da tradutora ficou positivamente soterrada por baixo de uma gigantesca montanha de areia, aquilo que aparece nesta tradução portuguesa é um bom bocado tosco. Não foi leitura que me deixasse bem impressionado.

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quinta-feira, 18 de junho de 2015

Lido: O Pianista

O Pianista (bibliografia) é um conto curto de Ana Cristina Luz que a princípio parece mainstream mas mais para o fim se revela pertencente a um fantástico próximo do realismo mágico, e que é de caras o melhor conto do livro até agora (e atendendo ao facto de ser o penúltimo, provavelmente será mesmo o melhor conto do livro). Romântico, como parece ser comum a todos estes contos, tem como protagonista uma mulher que chora uma perda num bar em algum dos vários São Pedros que existem espalhados pelo país (ou pela imaginação da autora, o que também é possível). Coincidentemente, a esse bar chega outro espírito perturbado, um homem que, sem dizer nada a ninguém, se senta ao piano e se põe a tocar, e de imediato se estabelece uma ligação entre os dois, ou pelo menos entre a mulher e a música que o homem toca. Lírico, bem escrito, com um ritmo que, ao contrário do que aconteceu em todos os outros contos, nunca fraqueja, e bem rematado, este é um conto realmente bom.

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quarta-feira, 17 de junho de 2015

Lido: Os Óculos da Charlita

Os Óculos da Charlita é outra historieta de juventude de Ondjaki, de novo ternurenta, agora sobre uma família de vizinhos cujas filhas viam todas muito, muito mal, mas só uma, a Charlita, tinha óculos, com os quais conseguia ver decentemente a telenovela. E praticamente é só isto, o conto. Ao contrário de alguns dos outros, cujas histórias são muito maiores do que o texto em que estão contidas, a deste é, parece-me, bastante mais pequena. O que a meu ver o torna pior que os outros, sim.

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Lido: 2014 Campbellian Anthology - Jeffrey A. Ballard

De um Ballard para outro e de uma publicação para outra, Stewart C. Ballard está presente com uma só história intitulada:

The Highlight of a Life. Trata-se de um conto de laboratório bastante clássico, muito típico de uma certa abordagem à ficção científica, desenvolvendo uma história tipicamente convoluta em volta de experiências ligadas a viagens entre universos... pelo menos em teoria. A complicar as coisas, a tornar tudo mais pesado, há também uma história de tragédia pessoal à mistura.

As ideias neste conto não são más, mas tampouco são tão frescas como poderiam ser. Pior, no entanto, é a execução, que deixa demasiadas pontas soltas e é demasiado óbvia na tentativa de puxar ao sentimento para realmente resultar. Pelo menos para este leitor que aqui escreve.

Lido: Escape

Escape (bibliografia) é um conto de uma ficção científica algo surreal, de J. G. Ballard, que se desenrola em ambiente doméstico. Um casal está pacatamente a ver televisão quando o homem se começa a irritar com uma avaria que parece não ter sido detetada pela emissora: como se fosse um velho vinil riscado, a gravação do programa chega a um certo ponto e volta para trás, recomeçando normalmente a partir de algo que já tinha sido emitido cerca de quinze minutos antes.

Só que se calhar não é na emissora que está a avaria; é no próprio tempo.

A FC tem relativa abundância de histórias sobre anomalias espaçotemporais, em que aparecem portais, ciclos mais ou menos fechados, toda uma panóplia de alterações topológicas no espaçotempo, que muitas vezes se abatem sobre cidadãos desprevenidos, deixando-os não raro tão confusos e à deriva como ao leitor. Muitas vezes esse tipo de alteração dá boas ou excelentes histórias. E esta é uma dessas histórias.

Contos anteriores deste livro:

Lido: O Retrato Oval

O Retrato Oval (bibliografia) é um conto curto de horror de Edgar Allan Poe que... hm... acho que este é mais um dos tais casos de... sim, é mesmo, foi outro conto que já tinha lido e comentado, este há quase cinco anos. E sim, o que penso agora é basicamente o que escrevi então, com uma agravante: desta vez lembrava-me de o ter lido, o que tem como consequência que o final surpresa, que é o fulcro de todo o conto, perde ainda mais impacto.

Há contos que se releem muito bem, por um motivo ou por outro. Há contos que a cada releitura se desvendam um pouco mais ou apresentam facetas um tudo-nada diferentes ou que são uma delícia de ler e reler pela pura qualidade que apresentam. Este não. Este é conto de uma leitura só.

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segunda-feira, 15 de junho de 2015

Lido: 2014 Campbellian Anthology - Stewart C. Baker

Stewart C. Baker é simultaneamente o primeiro homem a aparecer na sequência (alfabética de apelido) da antologia e o primeiro autor a estar presente com mais do que um texto. Nomeadamente:

Behind the First Years é um conto de ficção científica ambientado no futuro distante, depois de alguma calamidade indefinida ter praticamente esvaziado a Terra, a bordo de uma nave-geração, talvez de refugiados, prestes a chegar a um destino potencialmente habitável... ou será que não? Ou será que tudo isto é mentira? Não se trata de uma ideia nova (ainda há dias li uma história de Ballard com muitos pontos de contacto), mas o conto, bastante melancólico, está muito bem escrito e concebido.

Raising Words é um conto de fantasia, ambientado no seio de uma espécie de tribo pouco sofisticada, que traz consigo todo o poder das coisas profundamente sentidas. De novo muito bem escrito e concebido, o conto é construído com uma série de analepses encadeadas, compostas pelas memórias da jovem protagonista relacionadas com a vida e a morte do pai. Bom. Francamente bom.

Lido: Tratado das Paixões Mecânicas

Tratado das Paixões Mecânicas (bibliografia) é uma noveleta de João Barreiros que quase bastaria dizer que é de João Barreiros para já se saber o que nela se vai encontrar. No ambiente eletropunk desta antologia, Barreiros traz-nos uma invasão vinda do Norte de África, por parte de uma Matriz cibernética coadjuvada por escravos (semi-)humanos, algures na zona da Costa da Caparica. O eixo principal do conto, como em tantos outros contos do autor, é a incompetência. A incompetência da inflexibilidade da programação mecânica, sobretudo, muito à semelhança do que acontece em histórias como Se Acordar Antes de Morrer... ou Quatro Milhões de Lolitas, mas também a incompetência dos defensores que, como em tantas outras histórias, disparam primeiro e pensam depois. Também o ambiente de território sitiado é comum a uma quantidade de outras histórias, em particular as pertencentes à série Fortaleza Europa, e o conceito de subunidades semiautónomas foi anteriormente explorado em histórias como LisCon 2060, entre outras. A novidade quase se resume à adaptação de todas estas ideias já vistas e já exploradas ao novo ambiente aqui criado, de uma espécie de história alternativa de base retrofuturista, mas por outro lado também nesta história é verdadeira a ideia de que, por mais que Barreiros se repita, fá-lo muitíssimo bem. O contraste em qualidade literária entre esta história e algumas das anteriores é quase gritante.

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sábado, 13 de junho de 2015

Lido: O Ginásio

O Ginásio, de Pedro Mexia, é um texto de baralhar e voltar a dar. Pega no tema de Nós, os Gordos, baralha com a humilhação ritual e sentido de ridícula irrealidade de A Pátria em Cuecas e distribui para jogo. O resultado é uma sensação de remastigação da mesma coisa, com dois ou três achados bem desarrincados a temperar a salada. O Mexia escreve bem? Escreve, sim senhor. Tem piada? De vez em quando sim, tem. É tragável? Aí é que a porca torce o rabiosque, que ao fim de três ou quatro textos temo bem que já não. Não há paciência que resista a tanta mesmice. Ou se calhar até há, eu é que sou rezingão. Mas como isto é o meu blogue com as minhas opiniões, o veredicto que este texto daqui leva é um aborrecido meh.

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Lido: 2014 Campbellian Anthology - Athena Andreadis

Athena Andreadis é mais uma autora (e não, não são só mulheres) que está presente com um único texto. Este:

The Wind Harp é uma space opera bastante tosca que pretende gerar interesse no leitor recorrendo a convolutas politiquices, cheias de traições, subterfúgios e tentativas de assassínio, nas altas esferas de domínios planetários inteiramente medievaloides. Não consegue. Pelo menos com este leitor que aqui está, decididamente, não consegue. Tudo isto é demasiado básico, demasiado cliché, demasiado sumário, para me despertar o mínimo interesse. Se penso que reduzir-se sociedades inteiras a intrigas de corte ou medições de forças entre exércitos é uma forma de destruir o que de complexo e fascinante um mundo de fantasia pode ter, por maioria de razão o mesmo penso quando se trata de ficção científica (ou de algo aparentado, pelo menos). Quando há mais do que isso (uma teoria do desenvolvimento das sociedades, como na Fundação de Asimov, preocupações ecológicas como nas Dunas de Herbert, e por aí fora), a coisa pode funcionar. Quando não há, e aqui não há mesmo, o resultado é mau. Muito mau.

Lido: O Tiro

O Tiro é um conto de Alexandr Pushkin que, embora se desenrole em ambiente militar, pouco tem a ver com a guerra, em mais um exemplo de tiro mais ou menos ao lado dado por quem escolheu os textos para estas pequenas antologias.

É um conto interessante sobre a vingança e, mais ainda, sobre as limitações da violência para resolver questões de honra e, por extensão, quaisquer outras. Como muitos outros contos oitocentistas, este é contado na primeira pessoa por um narrador-testemunha, em jeito de depoimento sobre factos acontecidos. O protagonista é um soldado, particularmente reverenciado pelos camaradas de armas pela sua intrepidez que, no entanto, deixa passar sem o duelo que se diria inevitável um insulto à sua honra. Isto na primeira parte do conto. Passam-se anos. Na segunda parte vamos reencontrar o narrador noutra fase da vida, já não soldado mas agricultor pobre, e é-nos revelada o resto da história de uma forma algo inverosímil, diga-se, por um certo excesso de coincidência.

Um conto bastante típico de uma época (está incluído num livro editado em 1831) e que por isso poderia talvez correr o risco de ficar algo datado, mas que quando se escava um pouco mais consegue conservar a relevância razoavelmente intacta até aos dias de hoje porque embora os homens já não resolvam todas as questiúnculas com duelos, a violência persiste e mantém as suas limitações como forma de resolver problemas.

sexta-feira, 12 de junho de 2015

Lido: 2014 Campbellian Anthology - Laurel Amberdine

Laurel Amberdine também só está presente com um texto, uma vinheta intitulada:

Airship Hope. Trata-se de uma vinheta de fantasia sobre a fé e a dúvida, centrada na vontade de fazer um estranho artefacto, feito de seda de aranha e sustido pela fé, voar por sobre uns certos picos gelados. Um continho muito bem escrito, e que me parece até ter o tamanho rigorosamente certo para contar a história que quer contar, mas que, à semelhança do de Alering, também não deixa grande marca.

Lido: Condução Perigosa

Condução Perigosa (bibliografia), conto curto de Ana Cristina Luz, é uma história de horror que, curiosamente dado eu ter falado há tão pouco tempo de outra, acompanha uma viagem noturna que corre mal. No caso desta história o viajante é um empresário, egoísta e arrogante, que segue ao volante de um topo-de-gama e não está com contemplações para com os outros (poucos mas estranhos) utentes da estrada.

O conto não está mal escrito, mas tem problemas sérios, o mais importante dos quais talvez seja a forma nada verosímil como o protagonista reage às ocorrências insólitas que o vão cercando. Por exemplo? A páginas tantas, o homem convence-se de que está com visões. Qualquer pessoa que fosse ao volante de um carro, e ainda por cima de noite, e sequer aventasse a hipótese de estar com visões, a primeira coisa que faria era dirigir-se a uma berma qualquer e estacionar, fosse em estrada normal, fosse em via rápida, fosse em autoestrada.

E são várias as reações inacreditáveis deste género, o que faz com que a suspensão de descrença, indispensável para se apreciar devidamente qualquer história deste tipo, se desfaça. A consequência? Uma experiência de leitura coxa, um conto que acaba por ser fraco.

Conto anterior deste livro:

quinta-feira, 11 de junho de 2015

Lido: 2014 Campbellian Anthology - Alisa Alering

Alisa Alering está presente com um conto chamado:

The Wanderer King. Trata-se de um conto algo onírico, com o seu quê de  surrealista, sobre um pequeno grupo de sobreviventes numa paisagem pós-apocalíptica, devastada por uma guerra entre os "Wanderers" e os "Fixers," que procuram arranjar maneira de chegar ao "mundo de cima." É uma história bizarra, perdida num território obscuro situado algures entre a FC e a fantasia e que, embora se leia bem, não deixa grandes marcas.

Lido: Jerri Quan e os Beijinhos na Boca

Jerri Quan e os Beijinhos na Boca é outra historinha de infância de Ondjaki, na qual o jovem e muito inocente Ndalu vai servir de pau-de-cabeleira a um namoro interracial, proibido mas protegido pelos pais dele, Ndalu, que nada são a nenhum dos namorados, com as consequências que não será muito difícil imaginar. É um continho bastante divertido, mais pelo que deixa por dizer do que propriamente por aquilo que diz. É bastante interessante como Ondjaki conseguiu com uma historinha tão breve sugerir tantas coisas. Muito bom.

Contos anteriores deste livro:

quarta-feira, 10 de junho de 2015

Lido: 2014 Campbellian Anthology - Ania Ahlborn

Vou começar a falar aqui de uma gigantesca antologia que tenho vindo a ler aos poucos desde novembro do ano passado. E quando digo "gigantesca" não estou a exagerar. É um ebook, mas se fosse livro físico, com uma paginação normal, chegaria quase às 2500 páginas e não, não meti aqui nenhum zero a mais.

Reúne obras dos autores elegíveis para o Prémio Campbell de 2014, que é atribuído aos melhores novos autores, os quais se mantêm elegíveis durante dois anos, e está organizado autor a autor. Será também assim que falarei deles, começando pela primeira, Ania Ahlborn, que está presente com:

Seed, um excerto de um romance de horror que começa de uma forma já vista, com uma viagem rodoviária noturna, uma súbita aparição no meio da estrada, e um acidente. Até o nosso velho Hugo Rocha tem uma história com uma premissa semelhante. No entanto, ajuizando pela amostra aqui contida, Ahlborn tem uma prosa eficaz, que constrói e sustenta bastante bem a tensão de um romance centrado no medo. Interessante. Não o suficiente para me levar a comprar o livro, mas interessante.

Lido: Uma Questão de Reingresso

Uma Questão de Reingresso (bibliografia) é uma extensa noveleta de ficção científica de J. G. Ballard que se ambienta na Amazónia brasileira. Este ambiente, bastante semelhante ao do romance O Mundo de Cristal, serve de palco a uma investigação muito pouco detetivesca, por paradoxal que isso possa parecer, destinada a localizar uma cápsula que, depois de ir à Lua, se teria extraviado no regresso à Terra, acabando por se despenhar numa região remota da Amazónia, habitada apenas por índios. Talvez. Ninguém sabe bem.

A busca, que já decorre, infrutífera, há algum tempo, tem dois objetivos principais: recuperar os dados trazidos pela cápsula, e descobrir se o seu único tripulante teria sobrevivido ou não, devolvendo-o "à civilização" em caso afirmativo.

No entanto, não parece ser bem a questão da cápsula e da viagem lunar o principal interesse de Ballard. Esta história parece bastante mais interessada em debruçar-se sobre a natureza dos povos "primitivos," as suas superstições e a forma como o conhecimento e a tecnologia podem ser usados por brancos sem escrúpulos para os levar à certa. No entanto, Ballard fá-lo de uma forma tão eurocêntrica, retratando os índios como canibais, incapazes de prover ao próprio sustento, apenas à espera da comida que lhes seria entregue pelo governo, que torna a leitura algo penosa em certos trechos. Fruto do tempo, talvez, embora em 1963, data da primeira edição desta noveleta, já houvesse ideias bastante mais avançadas sobre este tipo de questões etnográficas do que aquelas que aqui são refletidas.

Não me parece que este seja dos melhores contos de Ballard. Trata-se de uma noveleta que manuseia as técnicas e ideias da ficção científica de uma forma invulgar, como é costume do autor, e isso é o que tem de melhor, bastando por si só para fazer com que não seja um mau texto. Mas, além das reservas que deixa no que toca a questões mais ideológicas, a noveleta também não me parece particularmente bem sucedida enquanto história. Ballard tem muito melhor.

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terça-feira, 9 de junho de 2015

Lido: Sonho Febril

Sonho Febril (bibliografia) é um romance de horror de George R. R. Martin, ambientado ao longo do Mississípi, durante a época áurea dos vapores fluviais, em meados do século XIX. O título, na verdade, é um trocadilho (coisa em que Martin é useiro e vezeiro, e eu que o diga), com que a tradução portuguesa lidou o melhor possível mas que não conseguiu evitar perder. No original, o livro chama-se Fevre Dream, o nome do vapor onde se desenrola boa parte da ação, e que faz referência ao rio Fevre, um modesto afluente do Mississípi que nele desagua perto da cidade de Galena (por cujo nome também é conhecido), na extremidade noroeste do estado do Illinois. Este nome, corruptela de uma palavra francesa que nada tem a ver com febres, mas sim com favas (!), é associado àquelas por semelhanças fonéticas e ortográficas com a palavra inglesa para febre, fever. E sonho febril, em inglês fever dream, mostra essas mesmas semelhanças, o que está longe de ser casual.

De facto, o enredo do romance pode bem ser encarado como um sonho febril, e dos pesados. Ao iniciar o livro conhecemos um homem do rio chamado Abner Marsh, dono de uma modesta companhia de navegação, quase a abrir falência, que alimenta o sonho de um dia possuir um vapor capaz de competir com os melhores (e vencê-los!) nas subidas e descidas do Mississípi. Mas para isso precisa de dinheiro, que não tem onde arranjar. Até que conhece um homem rico e excêntrico que lhe propõe sociedade, fazendo em troca algumas exigências invulgares que Marsh, embora hesitante, acaba por aceitar.

A primeira parte do romance acompanha a evolução dessa sociedade e a lenta tomada de consciência por parte de Marsh de que Joshua York, o sócio, não é bem o que parece. Que se trata de um vampiro.

Um vampiro bastante próximo da tradição ficcional dos descendentes do Conde Drácula, mas não exatamente igual ao mais famoso de todos os vampiros. York é um vampiro com muito em comum com os vampiros elegantes e sensíveis de Anne Rice, sujeito à Sede, como todos os da sua raça, mas livre dela até certo ponto graças a um preparado que desenvolveu e que a reprime, permitindo-lhe viver entre os seres humanos sem se ver obrigado a depredá-los.

A ligação deste livro às ficções de Anne Rice, aliás, é forte. Não só se serve também da ideia do vampiro sensível, como se ambienta mais ou menos nas mesmas geografias e numa época razoavelmente próxima. Martin parece ter querido pegar nas mesmas ideias e ambientes e criar com elas um livro um pouco mais negro, um pouco mais terra-a-terra, mais sólido em termos de verosimilhança, centrado mais no rio propriamente dito do que nas terras das suas margens.

E parece-me que conseguiu. Em parte, na parte que pouco ou nada tem a ver com vampiros, nas histórias do rio e dos seus homens, nas corridas dos vapores, na paixão de que Marsh dá mostras por tudo isso, este livro é uma homenagem a uma época e a uma forma de vida. E penso que é isso o que o livro tem de melhor, embora possa parecer um pouco herético que um tipo que praticamente vive literatura fantástica, como eu, o diga.

Claro, há tudo o resto. As personagens estão bem caracterizadas e são complexas, bem distantes das coisinhas bidimensionais que aparecem em tantas histórias deste género. O enredo, movido a conflitos interiores, a sonhos e a desejo de vingança e redenção, está muito bem amarrado. Há um pouco de maniqueísmo, com personagens, tanto humanas como vampíricas, que parecem ser inerentemente malignas e outras que, pelo menos na base, se mostram boas, mas é um maniqueísmo bastante atenuado por circunstâncias e formas de ver a realidade. E o livro está, obviamente, bem escrito, embora lhe falte o génio de que Martin dá mostras em certos trechos das Crónicas.

Mas este é um livro incomparável com as Crónicas de Gelo e Fogo: o tema é outro, a extensão também, foi escrito uns 15 anos antes, é muitíssimo menos complexo. Não tem nem algumas das qualidades das Crónicas, nem alguns dos seus defeitos. No entanto, pareceu-me ser um livro realmente bom. Gostei bastante.

Este livro foi comprado.

segunda-feira, 8 de junho de 2015

Lido: Eleonora

Eleonora (bibliografia) é um conto curto de fantasia, de Edgar Allan Poe, muito romântico, sobre um ditoso casal que vive numa espécie de paraíso fora do mundo chamado Vale da Relva Multicor. Vivendo a princípio em plena inocência, os dois, primos, vão acabar por se perder de amores e causar dessa maneira uma profunda alteração na natureza do vale, a qual parece estar indissociável e magicamente ligada aos seus sentimentos. Mas a história é romântica, portanto nada pode ficar paradisíaco para sempre e tem de haver tragédia para fazer soltar uma lagriminha às donzelas.

Apesar de Poe ter tido o bom gosto de não fazer chover adjetivos sobre esta história, o que não era muito comum nas histórias românticas e por isso ainda mais se agradece, e apesar de alguns detalhes muito interessantes, não posso dizer que o conto me tenha agradado por aí além. Está longe das melhores histórias de Poe, isso parece-me certo. Não é por acaso que Poe é principalmente recordado pelas suas histórias de terror e crime — elas são, de facto, melhores que as restantes. E esta, apesar dos apontamentos trágicos que contém, chega a ser delicodoce, em particular no final.

Contos anteriores deste livro:

Lido: Fuga

Fuga (bibliografia) é um conto de Joel Puga que, ou muito me engano, ou tem muito de autobiográfico. Conta a história de um trabalhador informático (no mundo eletropunk criado nesta antologia existem computadores, mas não como os que temos hoje) que odeia o seu trabalho e sonha ser escritor. A história relata detalhadamente a rotina do protagonista e o momento em que recebe um convite de uma editora (um pouco aparentada com a Chiado, aparentemente) para assinar com ela um contrato. Momento de felicidade total, e lá vai ele.

Há demasiados pontos em comum entre o protagonista e Puga para ser coincidência. O conto beneficia disso? Bem, digamos que a personagem principal é credível, os ambientes também (o que só em parte é mérito dos escritores, tendo em conta o ponto de partida deste livro) e que existe uma ironia bastante palpável em todo o enredo. Por outro lado, Puga está longe de ser um estilista e há qualquer coisa na sua prosa que me insatisfaz. Mas o enredo funciona e o final é bom. Tudo somado, é mais um conto razoável.

Contos anteriores deste livro:

domingo, 7 de junho de 2015

Lido: A Pátria em Cuecas

A Pátria em Cuecas é uma crónica de Pedro Mexia sobre como ele, Mexia, terá atravessado aquele inefável momento que a todos os putativos recrutas para o serviço militar obrigatório coube aguentar: o momento da inspeção. E é fraquinha a crónica. OK, dá para recordar os momentos deprimentes passados na companhia do resto dos "mancebos," a andar de um lado para o outro a toque de caixa. OK, a crónica está bem escrita. Mesmo. E tudo bem que a autoironia do Mexia às vezes tem real graça, apesar de todo o seu umbiguismo mas, por outro lado, ao fim de algum tempo essa autoironia umbiguista torna-se repetitiva e por isso aborrecida. É talvez o que aqui se passa. À terceira crónica, já se sabendo o que se vai encontrar, começa a insinuar-se na leitura uma certa vontade de bocejar. E isso, como se sabe, é fatal.

Textos anteriores deste livro:

Lido: A Voz do Coração

A Voz do Coração (bibliografia) é um romântico conto curto de Ana Cristina Luz sobre uma mulher que tem o poder de, tocando um morto, ouvir o último pensamento deste antes de morrer e que tem uma relação intermitente mas apaixonada com um tal Tiago. Duas coisas que parecem não ter nada a ver uma com a outra, mas que até acabam por ter.

De novo, é um conto curioso mas que não me parece que seja realmente bom e que certamente não é inovador. Poderia ser um bom conto, mesmo sem ser inovador, se estivesse excelentemente escrito, mas não está: a prosa é competente, mas está longe de ser extraordinária. E há algo que este conto tem em comum com o anterior e que veremos se continua nas próximas histórias: o caráter estereotipado das personagens. Julgo que é isso o que mais me afasta destas narrativas.

Por outro lado, volta a ser um conto que também não é mau. De novo, cai no âmbito do razoável.

Conto anterior deste livro:

quarta-feira, 3 de junho de 2015

Lido: O Kazukuta

O Kazukuta é mais um continho de infância de Ondjaki que, desta vez, nos fala de um velho cão, o Kazukuta, e do dia em que o tio Joaquim decidiu dar-lhe uma demorada lavadela, para surpresa da criançada. Parecia ser mais um conto ternurento mas morno, como os anteriores, até que de repente, crás, nos cai em cima a razão do estranho comportamento do tio Joaquim e o conto atinge um nível bem diferente. Sim, este é um pequeno grande conto, bem mais em consonância com o que eu esperava de Ondjaki.

Contos anteriores deste livro:

Lido: As Torres de Vigia

As Torres de Vigia (bibliografia) é uma noveleta de J. G. Ballard, ambientada numa cidade (num mundo?) que está sob a omnipresente vigilância de umas estranhas "torres" que, aparentemente, estão suspensas sobre as casas e as vidas das pessoas, em fileiras regulares e ordenadas que se prolongam até perder de vista. Nunca se chega a perceber bem o que são as torres, ficando no ar a hipótese de serem algo de alienígena ou pelo menos algo pertencente a uma casta distinta da humanidade que vive, ou apenas sobrevive, cá em baixo à superfície.

Na verdade, toda a noveleta tem uma certa qualidade onírica, em parte motivada pela falta de explicação do que se passa. A curiosidade sobre o que são, ao certo, as torres, qual o seu objetivo, quem está lá dentro, todos os comos, quandos e porquês, é boa parte do que faz a história sustentar o interesse até ao fim e para lá dele. Isso e a rebeldia do protagonista, isolado (ou quase) numa cidade de gente resignada e temerosa, que não está disposta a fazer nada que possa eventualmente desagradar aos vigias das torres. Ou talvez seja mais adequado dizer que não está disposta a fazer nada, ponto.

Este é um conto muito ballardiano no sentido em que nos apresenta uma sociedade desestruturada por um acontecimento traumático e, neste caso, inexplicável ou inexplicado. Também é uma história altamente paranoica, daquelas de que só a FC é capaz. Há algo de Big Brother nas torres de vigia, e também há algo de Dick em todo o ambiente, e em particular no desenlace.

Estamos, portanto, perante uma boa noveleta? Estamos, sim senhor. Muito boa, até.

Contos anteriores deste livro:

Lido: Uma Descida no «Maelström»

Uma Descida no «Maelström» (bibliografia) é um conto de Edgar Allan Poe que relata precisamente o que o título indica. Para quem não sabe, um maelstrom é um tipo particularmente forte de redemoinho existente nas costas norueguesas, causado pelas correntes e pelas marés que, aí, têm uma amplitude considerável. Os fluxos cruzados de água geram vórtices com alguma força que, no entanto, estão muitíssimo longe de se comparar com os fenómenos arrasadores descritos nas ficções oitocentistas.

Esta é uma dessas ficções oitocentistas (outra, que eu tenha lido, é um trecho do romance 20 000 Léguas Submarinas, de Júlio Verne), e consiste de um vívido relato, feito por um "velho" de cabelos brancos, de uma ocasião em que ele teria sido arrastado para o interior do redemoinho, só se salvando por milagre.

O relato é impressionante, mesmo quando já se sabe de antemão de que é em grande medida fantasioso. O desespero do confronto dos homens com forças naturais muito para além daquilo a que um homem é capaz de resistir, colocando a vida em iminente risco, é daquelas qualidades intemporais que geram regularmente histórias fortíssimas, seja na literatura, seja em outros media. E neste conto de Poe está de facto muito bem conseguido.

Contos anteriores deste livro:

segunda-feira, 1 de junho de 2015

Lido: Energia das Almas

Energia das Almas (bibliografia) é um conto de João Ventura que, à semelhança de outros contos dele (estou a lembrar-me, por exemplo, do que publicou na Vaporpunk) se debruça sobre modos alternativos, e neste caso fantasiosos, de produção de energia. Bastante ancorado às histórias do João Barreiros que deram origem a esta antologia, o conto pega nas equações de um obscuro germano, esquecido por todos, chamado qualquer coisa Einstein, e nas experiências sobre a perda de massa no momento da morte, feitas por um médico também razoavelmente obscuro chamado MacDougall, e constrói, ao seu estilo direto e irónico, uma história na qual um cientista de topo português faz uma descoberta com potencial para resolver vários problemas de uma cajadada. Resolvê-los-á mesmo? Isso é o que o conto nos mostra.

É um conto curioso, especialmente no contexto desta antologia, mas que julgo que não funcionaria muito bem autonomamente. Volta mais uma vez a não ser um mau conto, longe disso, mas também não me parece que seja dos melhores até agora.

Contos anteriores deste livro:

Lido: Dagon, nº 0

O Dagon foi um fanzine de ficção científica e fantasia (bem sei que os editores lhe chamavam "revista", mas não me parece que quer a forma de produção, quer o modo de comercialização, justifiquem essa designação), do qual foram publicados alguns números entre 2009 e 2013, com edição física e virtual, à exceção, julgo, deste nº 0 (bibliografia), que tanto quanto penso saber só teve edição virtual.

Digo com regularidade que, para mim, basta uma compilação de histórias e/ou artigos, seja revista, fanzine, coletânea ou antologia, incluir um texto que vale realmente a pena para que a publicação como um todo a valha. E é o que acontece aqui. O conto do Luís Filipe Silva e duas ou três peças de não-ficção justificam plenamente a leitura e a existência da publicação, mesmo que haja também nestas páginas alguns textos que deixam algo, ou muito, a desejar.

Globalmente, julgo que o conteúdo é razoável mas daí não passa. O ponto mais fraco talvez seja o enorme diferencial de qualidade entre os melhores textos e os piores, mas também a diagramação da maior parte dos textos apresenta falhas, por vezes gritantes (sobretudo nos poemas da Carla Ribeiro, "enlatados" em colunas quando deviam ter tido espaço para se espraiar à largura da página). Por outro lado, quem gosta de ilustração fantástica encontra aqui algumas imagens de regalar o olho.

Tenho vindo a comentar brevemente os vários textos ao longo dos últimos dias, num total de seis pequenos grupos. Eis o primeiro, o segundo, o terceiro, o quarto, o quinto e o sexto. E o que tenho mais a dizer sobre esta publicação encontra-se aí.

Lido: Four Minutes Thirty Three Seconds


















Contos anteriores desta publicação: