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segunda-feira, 16 de maio de 2016

Acordo ortográfico: ponto da situação

Em Portugal prossegue a campanha de mentira sistemática sobre o acordo ortográfico levada a cabo pelo caturredo, em petições, moções, livros, raivosos artigos na aldeia gaulesa caturra chamada Público (mas sem druida nem poção mágica), e por aí fora. Uma das mentiras mais constantes, que ressurgiu em força após a marcelada em Moçambique, é a de que só Portugal o ratificou e de que só Portugal o aplica. Será portanto útil sistematizar e divulgar o verdadeiro estado de aplicação do acordo nos vários países lusófonos. É o que faço aqui:

Angola
Assinou o acordo mas ainda não o aprovou no governo nem o ratificou, alegando razões ligadas ao estatuto das línguas nacionais e a "aspetos culturais e históricos." Tem reiterado que o acordo, em si, não está em causa, mas sim a sua adaptação à realidade angolana. As últimas declarações dão conta de "progressos".

Brasil
Assinou, aprovou, ratificou o acordo e tem-no em aplicação plena.

Cabo Verde
Assinou, aprovou, ratificou o acordo e tem-no em aplicação praticamente plena. Está em fase de conclusão da transição ortográfica.

Guiné-Bissau
Assinou, aprovou e ratificou o acordo mas ainda não o aplica na prática, decerto devido à crónica instabilidade política que afeta o país.

Guiné Equatorial
De lusofonia recente, desconheço o estatuto do acordo na Guiné Equatorial. Sei, no entanto, que o português é língua oficial apenas juridicamente, sem qualquer existência prática, com acordo ou sem ele.

Moçambique
Assinou o acordo e aprovou-o no governo mas ainda não o ratificou. Como Angola, alega razões ligadas ao estatuto das línguas nacionais para o atraso e, como Angola, afirma que é só questão de tempo até que o faça. Ao contrário de Angola, já produziu o seu vocabulário nacional (que é um dos instrumentos da implementação do acordo).

Portugal
Assinou, aprovou, ratificou o acordo e tem-no em aplicação plena.

São Tomé e Príncipe
Assinou, aprovou e ratificou o acordo, mas ficou à espera da aplicação plena em Portugal para avançar com a sua. Está agora a avançar com o trabalho.

Timor-Leste
Assinou o acordo, mais tarde devido a não ser independente aquando da sua assinatura original, aprovou-o, ratificou-o e tem-no em aplicação plena, em especial no ensino, onde o acordo tem especial importância devido à dependência de Timor da cooperação portuguesa e brasileira no campo do ensino do português.

Em resumo: o processo de transição da antiga ortografia para a nova vai avançando aos poucos e em ritmos diversos nos vários países, mas vai avançando. E sem volta atrás, segundo o secretário executivo da CPLP, um moçambicano.

E a verdade é esta.

sábado, 30 de maio de 2015

Sobre pessoas que nunca mais deviam pôr os pés na RTP

A história é edificante.

Aqui há tempos, a RTP emitiu, tanto no primeiro como no segundo canais, uma peça miserável sobre o acordo ortográfico, repleta de mentiras, de desinformação, de comentários ao lado sobre coisas que nada têm a ver com o AO, e por aí fora. Uma coisa inqualificável.

Margarita Correia teve o desplante, vejam só, de contactar o provedor do telespetador a queixar-se da peça, ainda para mais emitida numa estação que tem obrigação de fazer serviço público. O resultado desse contacto pode ser visto aqui.

Rita Marrafa de Carvalho ficou histérica. Publicou no facebook uma imagem retirada do programa com o seguinte comentário:


E eu, quando vi isto a ser partilhado no meu facebook, fiquei abismado com tamanha falta de noção. Quem diabo é a Rita Marrafa de Carvalho para querer proibir a Margarita Correia ou seja quem for de "pôr os pés na RTP," essa televisão de serviço público pago, também, com os meus impostos?!

Perguntei-lhe isto mesmo no twitter, onde era um dos meus contactos. Era. Já não é. Porquê?

Ora, porque respondeu desta forma:


Por enquanto, enfim, escapa. Apesar de se custar a perceber onde raio está a indecência de protestar contra uma peça miseravelmente mal feita e tendenciosa, ou qual a desonestidade intelectual de repor a verdade, isto é uma resposta que se aceita, com alguma boa vontade. Ah, mas logo a seguir veio isto:


À segunda mensagem, sem sequer me dar tempo para responder à primeira, veio o primeiro insulto. Quando eu finalmente consegui responder à primeira mensagem com um "Cuspir no prato?! Fazem peças carregadas de aldrabices e depois quem vos corrige está a cuspir no prato?!" a resposta foi a seguinte:

E logo a seguir:

E logo a seguir:

Não, não estou a omitir nada. A coisa veio mesmo assim, incoerente, saltando de umas coisas para outras sem que se perceba um fio condutor, com jornalistas que pelos vistos deviam ter sido "perturbadas," e por aí fora. Daqui, no meio de muita patetice, regista-se uma coisa importante: para a Marrafa, a jornalista não está obrigada a procurar o contraditório: pode dizer todas as asneiras possíveis e imaginárias numa peça, todas as aldrabices, que não se passa nada. Mas quem se queixa ao provedor, isso sim, tem de procurar contraditório. Nem é o próprio provedor, note-se, porque a sanha da Marrafa está dirigida contra a Margarita Correia, não contra o provedor e quem elabora o respetivo programa: para a Marrafa, são os que se queixam da qualidade miserável do trabalho jornalístico que têm a obrigação de tentar ir perguntar à "jornalista" que o fez quem foram as fontes, e se calhar, já agora, por que raio não consultou uma fonte que soubesse alguma coisa sobre o que estava a falar. Sabem? Porque raio não fez... como é a palavra?... Ah!, sim.

Contraditório.

Entretanto, eu tinha conseguido finalmente responder à mensagem com o primeiro insulto, a segunda deste arrazoado, com uma mensagem sarcástica:

Citando: "Se calhar, esta senhora nunca mais põe os pés na RTP, não? "

Não é proibir nada, claro. Naaada.

 E a Marrafa:


Claaaro que não é. Pois haveria de ser o quê?


Aqui seria eu a exclamar "olhem-me bem para a indecorosa desculpabilização que aqui vai!" Seria, mas não tive tempo, porque entretanto estava a tentar responder àquela em que a pseudo-dona-disto-tudo "garante que [Margarita Correia] não volta mesmo" a pôr os pés na RTP, mais ou menos ao mesmo tempo que me tentava fazer de parvo a dizer que não estava armada em porteira de discoteca a decidir quem entra e quem não entra. E devo confessar que aqui já estava eu também enxofrado. Um tipo só consegue aturar estupidez e má-criação até certo ponto. O que lhe mandei foi o seguinte:

A fürer Marrafa manda. Indecoroso é desinformar, indecoroso é mentir. Indecoroso é aldrabar o povo.
E aí, a nossa queridinha remata com:


Boa educação a toda a prova, hã? Mas esperem. A seguir ainda veio outra:
 
Sobre as dezenas de aldrabices que a coleguinha disse, nem palavra. Aliás, é "desonestidade intelectual" falar delas. Mas a única parte da intervenção da Margarita Correia em que ela não foi cem porcento factual (sim, é verdade, ratificar não é assinar, se bem que também seja absoluta verdade que TODOS assinaram... entretanto, a miserável peça que a Marrafa defende com unhas e dentes dizia que só quatro países ratificaram, quando a verdade é que SEIS países ratificaram... mas que interessa isso?), ah, isso justifica proibi-la de entrar na RTP. E quem chama a atenção para a vigarice da peça é intelectualmente desonesto, iletrado semântico sem uma "life" e um alarve que diz alarvidades.

E é a isto que o dinheiro dos meus impostos paga o salário.

De facto há aqui alguém que devia ser proibido de entrar na RTP. Mas de certeza que não estou a falar da Margarita Correia.

No meu twitter, pelo menos, não volta a entrar. O block é uma grande invenção. E espero bem que não me voltem a maçar no facebook com partilhas de asneiras bolsadas por esta senhora.

Adenda: Este blogue é moderado precisamente para evitar que comentários que comecem com "ó Candeias, mete o AO naquele sítio," ou coisas do género, venham poluí-lo. Querem mandar-me comentários desses? Façam favor. Eu até me divirto a lê-los. Fazem bem ao ego. Mostram até que ponto estou do lado certo. Mas não esperem que eles sejam publicados, porque não serão. Esclarecidos? Ainda bem.

Adenda de 2 de maio: Parece que os "tradutores contra o acordo ortográfico" (é pelo menos um tipo, que até já foi à televisão e tudo, começar a gritar por cima de quem estava — infrutiferamente — a tentar debater com ele) acham muito bem a atitude da Marrafa. Ora veja-se:


Parece-me naturalíssimo: não há nada que mais ameace os aldrabões do que haver quem lhes rebata as mentiras. É natural que queiram proibir quem fala a verdade de ir à RTP e a qualquer outro canal de televisão. E à rádio e aos jornais e por aí fora. Para esta gente, devia haver censura prévia, não fosse dar-se o caso de alguém conseguir furar o bloqueio de vigarice e explicar as coisas tais como elas são. Aliás, há quem se aproxime de tal forma de algo que só pode ser qualificado como fascismo ortográfico que qualquer dia vão querer enfiar os "acordistas", e especialmente os "empedernidos", num tarrafalzeco para lhes passar essa tendência para "trair a pátria". Já faltou mais. Não propriamente pelo texto (até porque é texto obtido na imprensa, não é de lavra própria), mas o título... ah, o título é todo um programa político.

terça-feira, 19 de agosto de 2014

Dois pitacos sobre o projeto do Pimentel

Ernâni Pimentel é um professor de literatura brasileiro que pertence àquela fação dos críticos ao último acordo ortográfico da língua portuguesa que o criticam não porque se tenha ido longe demais, mas porque, segundo eles, não se foi longe o suficiente.

Desde há alguns anos que anda a promover a sua visão de como a língua deveria ser escrita. Não é o único: uma das poucas discussões civilizadas e construtivas que tive com opositores do acordo, em que de facto se trocaram argumentos com pés e cabeça em vez da habitual histeria, falácias e ausência de um mínimo de solidez argumentativa que tão deprimentemente comum é na margem opositora, foi com alguém que, muito provavelmente, concordará com Pimentel. Detalhe: era um português.

O que Pimentel propõe é radical. Quer levar a lógica do rompimento com a etimologia às últimas consequências, suprimindo os h iniciais em palavras como homem, disseminando o uso do k, abolindo o u em palavras como quem, dando coerência fonológica ao uso do x e do z, e por aí fora. Duvido que alguém tenha feito um estudo quantitativo do impacto dessa mudança, mas é seguro afirmar o seguinte: o número de palavras cuja grafia se alteraria caso a ideia fosse avante seria em muitas ordens de grandeza superior ao número de palavras alteradas pelo AO90. Provavelmente andará próximo da revolução causada pela reforma de 1911. E é possível que seja até superior.

Julgo que discutir esta proposta, os seus prós e os seus contras, faz todo o sentido, embora não me pareça que o momento certo seja agora. A ortografia não deve nunca ser encerrada numa redoma e, além disso, para muitas das alterações propostas por Pimentel existem precedentes nas próprias línguas latinas. A supressão do h inicial, por exemplo, foi feita na mais latina de todas elas (pelo menos no que diz respeito ao seu território de origem): o italiano. O nosso homem, o hombre dos espanhóis, o homme dos franceses, é o uomo dos italianos. Portanto sim, acho muito bem que a proposta surja, se bem que eu preferisse que ela aparecesse mais tarde, quando esta última alteração das regras estivesse assimilada, e gostaria que fosse discutida pesando bem os prós e os contras.

O Pimentel apresenta um único verdadeiro pró: a simplificação, com a remoção das irregularidades oriundas da etimologia, permitiria facilitar o ensino do português escrito e concomitantemente diminuir a quantidade de erros dados pelos utilizadores. Creio que é uma vantagem real, embora talvez não tanto como ele apregoa. No entanto, vejo também bastantes contras.

Para começar, há a questão do impacto. Se um conjunto reduzido de alterações como o que tivemos no AO90 tem um impacto igualmente reduzido, permitindo a transição sem grandes sobressaltos a quem realmente tem alguma capacidade linguística e/ou um mínimo de vontade para a fazer, uma revolução da ordem da de 1911 seria bem diferente.

Depois, e mais importante, há a questão de me parecer que Pimentel não pensou bem em todas as implicações do que propõe. Tomemos, por exemplo, a ideia de transformar em x tudo aquilo que tenha som de x. Parece lógico, não é? Chuva, por exemplo, passaria a ser xuva e nenhum mal daí viria ao mundo, exceto para quem se preocupa mais com a pegada gráfica das palavras do que com as palavras propriamente ditas.

O problema é que a palavra chuva não tem o som de x em toda a língua portuguesa. A diferenciação entre x e ch, que hoje é apenas etimológica na quase totalidade dos territórios lusófonos, não o é em todos. Ela tem origem em dois sons diferentes que, embora se tenham fundido por quase todo o lado, ainda se mantêm diferentes numa zona do Norte de Portugal. Chuva, em Chaves, diz-se "txuba," não apenas "xuva" como na generalidade dos territórios em que se fala português.

E isto, esta falta de profundidade de base, somada à amplidão da mudança, para mim é suficiente para rejeitar a ideia. Há mais motivos, mas estes dois, para mim, bastam. Não devemos voltar a fazer mudanças ortográficas sem estudos sólidos e aprofundados sobre as realidades dialectais do português, e não só em Portugal e no Brasil mas também nos demais países de língua portuguesa. Depois desses estudos feitos — e bem feitos, por gente competente, por gente que vá à procura do que realmente existe e não apenas tentar arranjar argumentos para uma posição previamente assumida, atitude anticientífica demasiado comum entre nós — poder-se-á então verificar se existem vantagens em fazer mais mudanças que superem os contras que também existem sempre. Com argumentos, para variar. Baseados em realidades e não em fantasias, para não ser sempre a mesma coisa.

Enquanto esses estudos não existirem, que fique tudo como está. O que eu respondo a isto, portanto, é rotundamente não.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Confissão ortográfica

O mais engraçado nas 150 mil palavras (e umas 350 mil de tradução; soma-se e dá meio milhão) que escrevi no ano passado foi terem sido todas, sem exceção, escritas segundo a nova ortografia, a tal que, de acordo com uns Emilianos que por aí andam, ninguém é capaz de usar.

Estas coisas divertem-me, confesso. Estou aqui feito bolinha amarela com olhinhos e traço curvo.

sábado, 8 de junho de 2013

A diferença entre uma pessoa séria e o Bagão Félix

Grosso modo (isto de começar um texto com uma expressão latina fica sempre bem), há duas formas de avaliar o impacto de uma mudança. Digamos, assim ao calhas, uma mudança ortográfica. A das pessoas sérias e a dos aldrabões.

As pessoas sérias pegam num texto qualquer, ou de preferência até em vários, e analisam o que muda nesses textos, a proporção do que se altera e do que fica igual, se há algum problema gerado pelas mudanças, etc., etc. Convém que sejam textos escritos por outras pessoas. Não é obrigatório que sejam literários, mas também não faz nenhum mal que o sejam. Convém é que sejam escritos por quem conhece a língua, por quem a usa quotidianamente (ou cotidianamente, tanto faz; é facultativo), por quem faz dela o seu instrumento de trabalho ou de expressão artística. Textos literários ou jornalísticos são um bom ponto de partida.

Ou seja, fazem mais ou menos o que eu fiz aqui com um texto do David Soares. Demonstrar o oposto do que o Soares queria demonstrar é só um bónus, e não está garantido à partida; as pessoas sérias analisam os factos tal como eles são, não retorcem a realidade para convir aos seus preconceitos.

Pelo contrário, os aldrabões escrevem textículos de propósito para a "análise", empilhando neles o máximo possível de alterações, escolhendo a dedo exemplos que possam ser problemáticos, quer façam sentido, quer não passem de uma pilha de disparates. Para potenciar o fator histeria, pintam as alterações a VERMELHO, não vá alguém correr o risco de não entender a mensagem, que isto há por aí gente burra que tem dificuldade em entender mensagens.

Basicamente o que o Bagão Félix fez com este pedacinho de... hum... enfim, chamemos-lhe prosa à falta de termo mais apropriado:


Empilhando frases sem sentido consegue "provar-se" qualquer coisa. Querem ver? Olhem: "O Bagão Félix é um ser vivo; um piolho é um ser vivo; logo, o Bagão Félix é um piolho." Viram?

E para "provar" este disparate precisei de menos palavreado que o Bagão Félix para "provar" o dele.

O que realmente se prova quando se empilha frases sem sentido, e agora "prova" vem sem aspas, é que quem o faz é claramente um aldrabão. Que não é sério.

(Abre parêntesis. Sabem que respeito me merecem aldrabões, sabem? Zero. Rigorosamente zero. Fecha parêntesis.)

E Bagão Félix consegue até ser tolo, ou pelo menos incompetente, porque entre os exemplos que dá da "nova ortografia" nem sequer foi capaz de encontrar só daquelas mudanças que o são de facto, mudanças obrigatórias. Atira-se a espetador, desconhecendo ou ignorando que essa palavra passa a ter dupla grafia e quem quiser continuar a escrever espectador pode; atira-se a andamos desconhecendo ou ignorando que essa palavra passa a ter dupla grafia e quem quiser continuar a escrever andámos pode.

O Bagão, que tem andado ortograficamente inFélix, tadito, tem todo o ar de alguém que acha tudo isto muito confuso. Mas só quem não tem grande coisa na cabeça pode achar confusas frases como "a ata não ata nem desata" (que é das poucas que fazem algum sentido naquela estúpida salganhada). Será que alguém com mais que um neurónio na cabeça vai pensar que "a ata" pode não ser um nome? Haverá alguém que seja tão perfeitamente zero à esquerda que não conheça e nem consiga individualizar a expressão "não ata nem desata"? Não compreender ou achar confusas frases como esta revela, muito mais do que maldades ou bondades do acordo ortográfico, um grau de incompetência linguística verdadeiramente atroz.

Gente como o Bagão Félix, aliás, deve ser completamente incapaz de falar e escrever português tal como ele já era antes do AO90, pois na nossa bela língua há frases como as que alguém deixou num comentário à patetice felixiana:
Eu rio enquanto junto ao rio gelo por causa do gelo que se acumulou durante a noite. Se me queimar, penso que vou ter que pôr um penso. Mas cedo cedo à dor.
E o bónus é que estas três frases fazem sentido, coisa que o Bagão Félix foi incapaz de conseguir. Tal como sentido fazem as que eu arranjei aqui há tempos para ilustrar umas noçõezinhas básicas sobre homografias, homofonias e homonomias. Se achasse que valeria de alguma coisa, aconselhava os bagões félixes que por aí andam a irem ler, para ver se aprendiam alguma coisinha. Mas não vale de nada. Porque os bagões félixes não são sérios. Não passam de aldrabõezecos ignorantes que se estão nas tintas para o conhecimento ou, sequer, para uma discussão minimamente séria das coisas. Só querem lançar a confusão, o alarmismo, fazer com que coisas que mal se notam pareçam titaniques prestes a afundar-se com todos os icebergues do mundo em cima, dizer que aumentam divergências que diminuem, gritar aqui d'el-rei que os brasileiros isto e aquilo quando quem já papa as consoantezinhas mudas quase todas na fala são os não brasileiros, etc., etc., etc. e mais etc.

Em suma: são desprezíveis.

(Abre parêntesis. Gente como o juiz Rui Teixeira, que acha que com o AO90 cágado passa a cagado e facto passa a fato não entram necessariamente na categoria dos aldrabões, a menos que insistam na asneira mesmo depois de se lhes explicar os factos pertinentes. Por conseguinte não entram automaticamente na categoria dos desprezíveis. Entram na dos patetas com opiniões firmes sobre assuntos que desconhecem por completo, mas não nas dos desprezíveis. Fecha parêntesis.)

E gente desprezível deve ser tratada com desprezo. Ponto final.

quarta-feira, 24 de abril de 2013

Só especula quem não sabe; quem sabe informa

O David Soares, caturra ortográfico dos mais ferrenhos, publicou hoje um texto que se compõe de um excerto razoavelmente longo de um dos seus romances, "sem AO", segundo afirma, e de uns considerandos prévios à coisa. Nestes considerandos convida os leitores "à especulação de imaginarem como ficaria o texto que se segue vertido em "acordês"."

Só especula quem não sabe. Como eu sei, posso-lhe dizer precisamente como o texto que lá pôs ficaria vertido na nova ortografia. Podia colocá-lo aqui, inteirinho, com todas as 911 palavras, mas ele era capaz de se chatear. Ele é assim, chateadiço, como todos os caturras. Portanto não o vou fazer. Vou só dizer-lhe exatamente quantas e quais palavras mudariam se ele tivesse usado a nova ortografia. E o resultado é...

(rufo de tambores)

Cinco. Ou quatro, dependendo de como se conta. Ou até três. A lista completa, e sublinho completa, é:
  1. Infetada, em "como quem esvurma uma ferida infectada";
  2. Pelo, em duas frases: "e os torrões que se lhe grudaram no pêlo emprestaram-lhe um semblante pagão" e "sacudindo os grãos de terra que lhe polvilhavam o pêlo";
  3. Caráteres, em "de corpos e carácteres despidos." Mas atenção, que a supressão do c nesta palavra não é obrigatória, portanto ela podia ficar tal e qual como o David Soares a escreveu;
  4. Hemorroidas na frase "Castiguei os filisteus com ratos e hemorróidas."
Cinco, ou quatro, ou três palavras em 911. Dá, quê?, uns 0.5%? Na melhor das hipóteses?

Realmente, o "acordês" é uma catástrofe do caraças, pá! Caneco! Convenci-me!

Mas o que mais vontade de rir me dá, e confesso que soltei uma gargalhada, é o David Soares não usar a ortografia de 43. Usa uma ortografia sui generis, lá dele, mas não usa a ortografia de 1943. É que se usasse a ortografia de 1943 não teria escrito "hás de morrer e ressuscitar, numa das minhas vomições", pois a ortografia de 1943 obrigava ao uso do hífen em "hás-de", cretinice ortográfica que só foi corrigida com o AO90 que o caturra Soares diz não usar. E tampouco escreveria "mas eu não pedi para ser feito, ò Deus", pois aquele "ò" é, simplesmente, um erro ortográfico. Sim, um erro ortográfico. É que existe a interjeição "oh", que indica dor, espanto, etc., e a interjeição "ó", que invoca, e que seria o que o Soares deveria ter ali usado. "Ò" também existe, mas é uma coisinha popularucha, contração informal de "ao", como na frase "eu fui ò mercado". É usada pela mesma gente que diz "prontos, tá bem" e coisas assim. Não pela malta das "vomições."

Em suma, o trecho com quase 1000 palavras que o caturra Soares usa para mostrar às pessoas como ficaria morto como escritor se por acaso passasse a usar a abominação da nova ortografia (acha-a "inconciliável com a [sua] voz autoral, animada por um léxico muitíssimo específico, tão arcano quanto neológico", o que também me fez rir), tem 3 palavras que seriam obrigatoriamente diferentes na nova ortografia, as quais usa um total de 4 vezes, mais 1 palavra que só alteraria se quisesse, mais 1 palavra que alterou mas não devia caso quisesse recusar liminarmente a nova ortografia e ainda 1 erro ortográfico.

De facto, concordo: isto é absolutamente exemplar.

Editado: Chamaram-me a atenção para que "carácteres" também é um erro ortográfico. Toda a razão. O plural de "carácter" é "caracteres", já na ortografia pré-AO, e quem decidir suprimir o c passa a escrever "caráter" e "carateres". Pessoalmente, não gosto, mas é assim. O que torna tudo isto ainda mais exemplar. O Soares conseguiu escolher um trecho com pouco mais palavras mutáveis na nova ortografia do que erros ortográficos dele. É proeza.

terça-feira, 12 de março de 2013

Consagrações pelo uso

Muito se tem falado de exceções consagradas pelo uso a propósito do acordo ortográfico de 1990. Tanto que eu decidi ir ver ao texto quantas vezes tais expressões aparecem. E também, como termo de comparação, ao texto que define a ortografia de 1945. E descobri, com alguma surpresa, que é expressão que pouco aparece, tanto num como no outro. Na verdade, até eu, que já li aquilo tudo várias vezes, tinha ficado com a sensação de que era coisa mais frequente. Mas não. Vejamos:
  • O texto das bases do acordo de 1945 tem 10670 palavras;
  • O texto das bases do acordo de 1990 tem 9075 palavras;
  • A expressão "consagrado pelo uso", ou similares, aparece no texto das bases do acordo de 1945 apenas duas vezes;
  • A mesma expressão, ou similares, aparece no texto das bases do acordo de 1990 apenas quatro vezes;
  • em termos de frequência, pode-se dizer que ela mais que duplica de 1945 para 1990. Mas mesmo assim, surge neste último só uma vez por cada 2269 palavras.
Pessoalmente sou de opinião que essas quatro vezes são quatro vezes a mais. O ideal, em termos de coerência ortográfica, seria não haver nenhuma. Mas o facto permanece: os usos consagrados não são tão relevantes como a celeuma à volta deles pode levar a supor. E não são novidade de 1990, visto que eram coisa que já existia no texto de 1945.

sábado, 9 de março de 2013

Nem as opiniões mais interessantes se salvam na oposição ao AO

Desidério Murcho, que nada sabe de ortografia e acha que saber-se que proporção de palavras convergem e que proporção de palavras divergem com a nova ortografia depende de como se fazem as contas republicou há dias um contributo que um tal H. Castro (não sei se nome se pseudónimo) deixou no site do grupo de trabalho da AR que acompanha a implementalção do acordo ortográfico. Uma das pessoas que comentou contestou uma afirmação particularmente tola que se faz nesse contributo, afirmando que nem valia a pena ler mais, o que foi contestado por outro comentador, que acha que um contributo tão estruturado merece uma resposta, também ela mais estruturada. Tudo isso pode ser encontrado aqui.

Até concordo com o segundo comentador. Apesar do disparate ser muito, o tal contributo tem algumas ideias que vale a pena debater. O resultado é este texto, muito longo, que inclui a citação completa do contributo do tal H. Castro, bem como o que tenho a dizer sobre ele.

1. Enquadramento da matéria

Diz o Castro:
Discute-se a aplicação do acordo ortográfico de 1990 (AO90). Este surgiu após várias tentativas goradas de unificação da ortografia de Portugal e do Brasil, desde o início do século passado. Uma dessas tentativas conseguia uma unificação de praticamente 100% e mesmo assim não foi seguida por ambas as partes. Ao fim de quase um século de deriva gradual, tentou-se então uma vez mais regressar à quimérica “unificação” com o AO90.
Isto é uma deturpação grosseira da realidade. Não houve um século de deriva gradual, mas sim um século de gradual convergência, após a divergência iniciada por Portugal em 1911 e prosseguida pelo Brasil nos anos 30. Desde aí, todas as alterações ortográficas que se vieram fazendo e implementando no português tiveram como resultado uma convergência efetiva entre as duas ortografias oficiais da língua. O AO90 dá sequência a esse trabalho e, mais uma vez, aproxima os usos ortográficos, apesar de não os unificar completamente. Tem, no entanto, uma diferença importante relativamente a acordos anteriores: pela primeira vez desde a divergência, o documento que define a ortografia do português é um só. É isso que se quer dizer com unificação ortográfica. Os dois documentos existentes até aqui unificaram-se, passando a ser só um.
Esta não só não é conseguida com o presente “acordo” como as alterações propostas não colhem a aceitação dos especialistas. Nem do lado de cá nem do lado de lá do Atlântico. Daí que chamar-lhe “acordo” seja um abuso.
Mais disparates. O acordo não colhe a aceitação de alguns especialistas, mas colhe a aceitação de outros, começando por aqueles que o negociaram e que incluíam algumas das maiores sumidades da linguística lusófona do século XX. Quem ignora factos tão básicos como quem foi Lindley Cintra ou Antônio Houaiss devia ter, pelo menos, um pouco de tento nos arroubos estilísticos.
Este facto foi olimpicamente ignorado e prosseguiu-se na aplicação cega de uma completa inutilidade, recorrendo-se por diversas vezes nesta história a expedientes, no mínimo, duvidosos (para não lhes chamar uma verdadeira batota, de que é exemplo icónico o II Protocolo Modificativo) para levar esta empreitada em frente, sem que daí advenha qualquer vantagem para os utilizadores da língua.
Não vou perder tempo a falar de expedientes duvidosos. Basta-me apontar para aqui e para aqui, entre oh! tantos outros exemplos possíveis, para se perceber bem quem em toda esta história mais se socorreu de expedientes duvidosos.
Bastariam algumas questões elementares:
– Vem resolver alguma coisa? (Não)
– Serve para alguma coisa? (Não)
– Melhora a situação anterior? (Não)
Aqui estou parcialmente de acordo. De facto, bastam essas três questões elementares. Só que as respostas são, às três, sim. Uma explicação completa daria para vários artigos, portanto dou apenas um exemplo de cada uma (até porque, na verdade, basta um exemplo de cada para a resposta passar a sim).

Vem resolver alguma coisa? Vem. Vem, como dito acima, acabar com a situação anómala em que a língua portuguesa se encontrava entre as grandes línguas internacionais, a única que tinha dois documentos normativos mutuamente exclusivos a definir-lhe a ortografia. Hoje, há apenas um. Problema resolvido.

Serve para alguma coisa? Sim. Serve para aproximar os usos ortográficos na língua portuguesa.

Melhora a situação anterior? Aqui, entramos no reino da opinião pura e simples. Se se considerar desejável que a língua portuguesa tenha apenas um documento normativo a definir-lhe a ortografia e que a prática ortográfica sofra aproximações, então sim. Se não, não.
Não deveria ser preciso mais do que isto para ser evidente que o AO90 é um absurdo inútil, mas continuemos para os pontos seguintes.
Não deveria ser preciso mais do que isso para ser evidente que o AO90 é de toda a utilidade, de facto. E adiante.

2. Objectivos do Acordo Ortográfico
Unificação da língua: não acontece
Simplificação da língua: não acontece
Evolução da língua: não acontece
Três asneiras crassas. Nunca foi objetivo do acordo ortográfico unificar, simplificar ou fazer evoluir a língua. O acordo é ortográfico, não linguístico. A própria ideia de um acordo linguístico, aliás, é completamente estapafúrdia. As línguas não mudam por decreto. As ortografias que as representam, sim. Isto é absolutamente básico.

Não, os objetivos do AO não são esses. São unificar dois documentos normativos num só. São estabelecer uma forma nova de trabalhar, de cooperação entre os vários países que têm o português como língua oficial, de decisão conjunta, por forma a evitar duas coisas que se considerou ser negativas: o domínio neocolonialista de Portugal sobre os demais países lusófonos nas questões linguísticas, e/ou a tentação de fragmentar ainda mais a grafia do português, com cada país adotar a sua própria norma.

Numa discussão intelectualmente séria, pode-se discutir se esses objetivos foram, ou não, bem sucedidos. O que não se pode é inventar objetivos diferentes dos reais para depois se dizer que não se cumprem. Haja algum decoro.

3. Vantagens decorrentes da aplicação do Acordo Ortográfico
Não há.
É a opinião do Castro. Há outras. Mas isto dava uma série de artigos.

4. Inconvenientes e problemas resultantes da aplicação do Acordo Ortográfico

É aqui, finalmente, que se encontra algum sumo. Dispensavam-se os muitos disparates que ficaram para trás, francamente. Se o contributo se reduzisse a isto teria sido bem melhor. Não que não haja aqui também muita asneirola, mas há algumas ideias decentes. Vamos lá.
a) As “soluções” encontradas pelo AO90 para “resolver” as diferenças ortográficas podem sintetizar-se em:
- admissão de facultatividades naquilo que é irresolúvel (na prática, não só não resolve nada como aumenta a confusão)
Não propriamente. Em primeiro lugar, não há nada que seja irresolúvel. Aliás, um dos argumentos mais válidos usados pelos defensores da primazia etimológica para a escrita do português é, precisamente, que isso permite resolver uma série de questões que com critérios fonológicos se tornam mais problemáticas. Claro: a etimologia cria outros problemas, motivo pelo qual foi posta em plano secundário em 1911. A verdade é que as duplas grafias surgem, basicamente, em duas situações:
  • quando há uma oscilação na pronúncia de determinadas consoantes entre os vários dialetos da língua;
  • quando há uma oscilação entre a pronúncia aberta e fechada de algumas sílabas tónicas.
E isto não é nada de novo. Já antes do AO90 havia em português uma grande abundância de palavras com formas múltiplas, parcialmente originadas por variações dialectais (ramela/remela), parcialmente criadas pela dicotomia entre as derivações populares e as eruditas (ervanária/herbanária).
- referência à “forma consagrada pelo uso” sem que esteja definido em lado nenhum o que está consagrado pelo uso e o que não está; além de que quem está a aprender a língua não tem forma de adivinhar isso
Esta é uma objeção válida, e concordo que o uso e abuso das "formas consagradas pelo uso" é uma das maiores fragilidades do texto do AO90. Não tanto pelo motivo que o Castro aqui aponta (afinal, formas consagradas pelo uso não têm grande mistério: são as formas já dicionarizadas e/ou que se encontram na literatura), mas principalmente porque reduz a coerência das soluções encontradas.
- referência à “norma culta” (conceito já completamente ultrapassado) sem que esteja registada foneticamente em lado nenhum essa dita norma culta
Esta também é uma objeção válida, mas convém lembrar que o texto do AO90 já tem mais de vinte anos de idade. Desde então muita água passou debaixo das pontes. O conceito de norma culta tinha muito mais força nessa época do que tem hoje. Hoje poderia ser substituída, com vantagem, por referências às pronúncias dos falantes instruídos da língua.
- convergência do Pt-Br para o Pt-Pt: alteração de acentos/trema e hífenes
- convergência do Pt-Pt para o Pt-Br: alteração de acentos e hífenes, amputação de letras
- para obedecer ao critério da fonética, inventam-se formas novas para o Pt-Pt que, pasme-se, desunificam ao invés de unificar
Basicamente correto, embora não seja apenas nos hábitos ortográficos portugueses que surgem formas novas. E não me pasma nada que apareçam algumas formas divergentes: elas são consequência da evolução assimétrica dos vários dialetos da língua na mesma direção geral, evolução essa que vem decorrendo há muitos séculos: a supressão de sequências consonantais. Essa é uma das mais constantes e profundas tendências da nossa língua, e as divergências, em princípio, tenderão por isso mesmo a ir desaparecendo com o tempo à medida que esse processo se for completando.
- afirma-se reiteradamente a máxima de que “o que não se pronuncia não se escreve”, mas depois não se aplica: basta pensar em todas as palavras começadas por “h”, ou em todos os casos de “u” mudo a seguir ao “q”; afinal é para seguir a fonética ou não?
É para seguir a fonética, sim, tal como foi para seguir a fonética que se fez a reforma de 1911. Mas será que vale a pena fazer alterações em ortografias que não levantam quaisquer problemas aos utilizadores da língua e são iguais em todo o lado (com a única exceção da família de húmido)? Não se achou agora que valesse, como não se achou que valesse em 1911. E eu concordo: não vale. Mas não me chocaria ver mudanças também aí. O italiano suprimiu os "h" iniciais e não sobreveio nenhuma catástrofe. O espanhol regularizou o "qu", transformando o q em c sempre que o u é pronunciado e nenhum cataclismo caiu sobre os países de língua espanhola. Nós poderíamos fazer o mesmo, sem qualquer problema. Mas valerá a pena? Não me parece, em especial enquanto houver problemas mais sérios por resolver.

E não vi aqui nenhum inconveniente nem problema. Só uma caracterização, em geral correta, do que muda e do que não muda.
b) Com o AO90, há uma perda de informação irrecuperável. Isto é comprovado pelo facto de não existir um “anti-Lince” que reponha o português na forma correcta (sem AO90). Tal não é possível porque se perde, por exemplo, a distinção entre formas verbais de tempos diferentes (compramos/comprámos, chegamos/chegámos), a distinção entre “pára” e “para” e tantos outros exemplos. É sempre possível passar automaticamente de um texto sem o AO90 para um texto com o AO90, mas o inverso não é verdadeiro.

Desta perda de informação decorre uma menor clareza na leitura, ou seja, na transmissão da mensagem para o receptor. Isto não é bom, útil ou minimamente desejável. Os defensores do AO90 parecem centrar-se nas (alegadas) vantagens da escrita, esquecendo-se daquilo que é mais importante num texto escrito: a sua leitura.
Ora aqui está uma objeção que, superficialmente, parece fazer todo o sentido. De facto, o AO90 aumenta o número de palavras homógrafas. O aumento não será grande, mas existe. E é verdade que sempre que um par de palavras não homógrafas passa a homógrafas, uma análise individualizada, centrada nas palavras e só nas palavras, ignorando tudo o que as rodeia, torna mais difícil saber-se quais os seus significados. Portanto, à primeira vista, a inexistência de um anti-Lince parece provar que o Castro tem razão. Mas vamos um pouco mais fundo, sim?

Um anti-Lince não existe, para começar, porque não é necessário. O conversor faz sentido como ferramenta de apoio à transição da velha ortografia para a nova, e foi para isso que foi criado. Em princípio, as pessoas sabem como se escrevia segundo a ortografia de 1943, portanto para quê estar a desperdiçar tempo e recursos a criar uma ferramenta informática que ajude a fazer o trajeto oposto que não é útil para ninguém? Não há a mínima necessidade.

Porque se fosse necessário existiria. É que a leitura, e a própria língua, não é um processo tão sequencial como pode parecer aos desavisados. Nós não lemos nem falamos ou escutamos apenas palavra a palavra, letra a letra, fonema a fonema. Pelo contrário: há uma componente holística que vai buscar uma quantidade apreciável de informação ao contexto. E isso é replicável informaticamente. Vão ao Google Translator, um tradutor que é pior que qualquer tradutor humano com um mínimo de competência, e digitem "eu jogo um jogo." Verão que o tradutor não se confunde com as homógrafas e traduz corretamente, por exemplo para inglês: "I play a game."

O que isto quer dizer é que a informação não desaparece com a esmagadora maioria das novas homógrafas. Ela continua lá. A única coisa que lhe acontece é mudar de sítio, da grafia para o contexto. Querem provas? Voltem ao Google translator e digitem: "ontem jogamos um jogo."

Mas isto só é verdade relativamente à esmagadora maioria das novas homógrafas, não a todas. Em quatro anos a usar exclusivamente a nova ortografia só encontrei problemas com a supressão do acento diferencial em pára. É o único caso em que, de facto, existe em certos casos uma supressão de informação que impossibilita a cabal compreensão do que é escrito, e concordo que, nesse caso em concreto, o acento deveria regressar.

Quanto à distinção entre formas verbais em tempos diferentes, curiosamente, encontrei-a mais vezes ausente em textos (até textos literários) publicados antes do AO90 entrar em vigor do que depois. Porque temos aí um caso em que a informação já não existe na fala em certos dialetos, e portanto já antes da nova ortografia havia quem não a transpusesse (ou neste caso não a criasse) quando reproduzia essa fala por escrito. A mim, que sou falante de um dialeto em que a distinção existe, causa-me estranheza, e obviamente mantenho-a nos textos que escrevo, mas imagino que essa minha estranheza seja simétrica à que falantes de um dialeto em que ela não existe sentem quando a encontram nos textos que leem.
c) Afirma-se que o AO90 “simplifica” a língua e ao mesmo tempo permitem-se duplas (ou quádruplas ou múltiplas) grafias, o que é uma contradição à própria noção de ortografia. Ou seja, se, em vez de saber sem qualquer dúvida como se escreve “caracterizámos”, temos, em vez disso “caracterizámos/caraterizámos/caracterizamos/caraterizamos”, em que medida é que isto constitui uma simplificação? Dir-se-ia antes que ficou quatro vezes mais complicado. Chamar a isto “ortografia” é um abuso.
Aqui voltamos ao completo disparate, que não é por ser muitas vezes repetido por pessoas que tinham obrigação de saber alguma coisa do que estão a dizer que é menos disparatado. Vamos ao básico dos básicos: definir o que raio é uma ortografia:
  • Ortografia é um conjunto de regras segundo as quais uma determinada língua se expressa corretamente por escrito.
Curiosamente, o AO90 é um conjunto de regras segundo as quais a língua portuguesa se expressa corretamente por escrito. Por conseguinte, o AO90 define a ortografia do português. Pode-se concordar ou discordar dessas regras, mas afirmar que não existem é, numa palavra, estúpido. E dizer que são o oposto da ortografia, então, ultrapassa em muito a simples estupidez. Mostra a completa ignorância de quem faz tais afirmações sobre o assunto em pauta.

Este argumento também me dá vontade de rir por outro motivo: é que sempre que o encontro penso cá com os meus botões: "pronto, mais um pateta que não sabe como fala". É que se Fulano não sabe sem qualquer dúvida como se escreve "caracterizámos" é porque não sabe como se diz "caracterizámos" e só por isso. Eu, que sei bem como falo, e sei que em geral falo corretamente, não tenho qualquer dificuldade em saber que "caracterizámos" está bem escrito. Tal como sei que ouro está bem escrito. Ou bêbado. Ou ervanária. Ou qualquer outra das milhares de palavras com várias grafias ou variantes que já existiam na língua portuguesa antes do AO90 — e ainda bem, porque essa variabilidade tem sido usada com bom efeito pelos melhores cultores da língua escrita.
d) Com o AO90, em vez de assegurar a sobrevivência da língua, o que se está a verificar na prática é a contribuição para a extinção a passos largos do português de Portugal. Com o AO90, este já está a ser completamente eclipsado, por exemplo, em qualquer pesquisa na Internet e desde logo em inúmeros “sites” de acervo e/ou repositório (a Wikipedia, por exemplo). Experimente-se pesquisar “material elétrico” sem especificar que queremos páginas de Portugal e veja-se o que acontece. Repita-se a experiência com “material eléctrico”. Em que é que isto pode ser bom para as empresas portuguesas?
Curioso. Concluo, então, que o Castro concorda comigo quando digo que os números que circulam por aí a falar de uma divergência ortográfica criada pela nova ortografia são puras invenções. É que se houvesse divergência ortográfica haveria menos dificuldade do que antes em identificar o "português de Portugal", visto que as diferenças seriam maiores, o que, segundo o Castro, contribuiria para a sua salvação. Certo? Então estamos de acordo que a nova ortografia reduz as diferenças, ao contrário do que se apregoa por aí. Ainda bem.

O que o Castro volta a dar mostras de ignorar é que não há extinção nenhuma de português de Portugal nenhum porque o acordo é ortográfico, e a diferença entre o português de Portugal e o do Brasil é principalmente questão dialetológica, não ortográfica. A wikipédia é como é porque demasiados wikipedistas portugueses foram suficientemente patetas para se recusarem a colaborar na wikipédia em português, preferindo dedicar-se à versão em língua inglesa, aumentando assim artificialmente a proporção de brasileiros envolvidos no projeto. E isso conheço eu bem porque andei por lá durante o arranque da coisa. Fui eu, aliás, quem criou as primeiras regras de convivência linguística do projeto (há frases inteiras nesta página que ainda continuam a ser basicamente iguais ao que eu escrevi há uma década. Esta passagem, por exemplo: "A Wikipédia em língua portuguesa, também chamada de Wikipédia lusófona é de todos os falantes do português, seja qual for a variante que utilizam. Consequentemente, mudar da variante "A" para a "B" não é bem-vindo, porque isso significa uma falta de respeito para com os editores anteriores.") e quem teve violentas discussões com xenófobos linguísticos, tanto portugueses como brasileiros, que exigiam que tudo estivesse escrito conforme a sua ignorância determinava. E de resto, com a nova ortografia, uma vez que as diferenças diminuem, a wikipédia em português tenderá a tornar-se mais legível para os leitores portugueses, o que será ótimo.

Em que é a unificação de palavras como "elétrico" boa para as empresas portuguesas, pergunta o Castro, dando mostras de monumental miopia. Pois bem, não é boa, de facto. É ótima: abre-lhes mais facilmente as portas de um mercado imenso e em crescimento, ao contrário do deste nosso país, em encolhimento há anos e que levará mais anos a encolher, porque é, o país e o mercado, sistematicamente sabotado por gente pequenina e sem visão. Por cegos. Porque só cegos não compreendem que, sobretudo neste momento da nossa história, nós temos muito mais interesse em tudo o que nos aproxime do que os brasileiros. Neste momento da nossa história, Portugal não oferece oportunidades a ninguém. O Brasil sim. Fechar-nos em volta do nosso umbigo equivale a darmos um tiro na cabeça. É suicídio, puro e simples.
e) Com o AO90, para “aproximarmos” o português de Portugal (Pt-Pt) do português do Brasil (Pt-Br), afastamo-lo das restantes línguas europeias; não se vê qualquer vantagem daí decorrente, nem para os portugueses que queiram aprender outras línguas nem para os estrangeiros que queiram aprender português. Qualquer professor competente consegue explicar as diferenças entre o Pt-Pt e o Pt-Br sem que isso constitua um obstáculo intransponível para quem aprende. (Continua a ter de explicá-las, em qualquer dos casos, porque, mesmo que a ortografia ficasse igual – que não fica –, a sintaxe e a semântica continuam a ser diferentes.) O AO90 altera, sim, a forma como as palavras se pronunciam. Ouve-se até à exaustão o argumento da pharmácia/farmácia para justificar a “evolução” da língua, mas esses defensores do AO90 esquecem-se de que ao passar de “pharmácia” para “farmácia” não se alterou absolutamente em nada a forma como a palavra era lida. Ao passar de “fraccionar” para “fracionar” altera-se, sim, inegavelmente, a leitura da palavra. Ou de “espectador” para “espetador”, para dar um exemplo mais conhecido...
A questão do afastamento do português das restantes línguas europeias (quais? o russo?) é totalmente irrelevante. E disparatada. A língua não se move um milímetro; a ortografia não é a língua. E as vantagens de uma escrita próxima da fonética na aprendizagem de línguas são demasiado óbvias para se perder muito tempo a explicá-las. Basta dizer que em línguas como o inglês é necessário fixar as pronúncias das palavras quase uma a uma, enquanto em línguas de escrita mais fonológica basta aprender-se algumas regras genéricas e depois aplicá-las.

E a alteração da pronúncia das palavras com o AO90 é mais uma ideia velha, poeirenta, cheia de teias de aranha e errada. A base da língua é a oralidade, não a escrita. É a palavra X que se escreve da forma Y, não é a palavra Y que se da maneira Z. Quando se aboliu o trema em Portugal, em 1943, ninguém passou a dizer "frekência". Passar de "fraccionar" para "fracionar" não altera em nada a forma como a palavra é pronunciada: o A permanece aberto, como era até aqui. Tal como o E de espetador é aberto quando se trata de alguém que assiste a um programa de televisão. Tal como o primeiro O de "eu jogo" é aberto. Tal como não apareceu nenhum U em "treze" para os lisboetas desatarem a dizer "treuze". O que determina a pronúncia não é a forma como as palavras se escrevem; é a história da pronúncia das palavras.

Só existe uma maneira de alterar pronúncias por causa da escrita: quando as pessoas são suficientemente ignorantes para não saberem que língua é fala e a escrita é apenas a representação da língua. Representação essa que é sempre imperfeita. Para evitar deturpações, basta não disseminar disparates.
f) Com o AO90, continua a ser necessário haver duas traduções, uma para o Brasil e outra para os restantes países de língua oficial portuguesa. A necessidade de duas versões diferentes era apresentada como um dos principais motivos para a indispensável e propalada “unificação”. Continua... exactamente na mesma.
Objeção habilidosa, esta. Quem ignorar que o que realmente era problemático era a necessidade de existirem duas versões diferentes em documentos oficiais até pode pensar que isto é verdade. Porque, de facto, se estivermos a falar de livros continua a ser necessário, ou pelo menos conveniente, fazer adaptações ao dialeto dominante em cada mercado. Mas nunca foi objetivo do AO90 acabar com essas diferenças, e se alguém assim o apresentou estava muito mal informado. Repito: o AO90 é um acordo ortográfico, e disso não passa. Diferenças lexicais ou gramaticais não estão, nem podem estar, abrangidas por ele.

Mas, uma vez que com o AO90 passa a haver um único documento normativo da ortografia do português, bastará escrever uma única versão dos documentos, em obediência às regras nele definidas, para se estar a cumprir, até porque o jargão jurídico é praticamente idêntico em toda a língua. Era isso que estava em causa, nada mais. E isto não tem nenhum impacto na vida normal de quem se expressa em português; o objetivo era apenas remover obstáculos desnecessários à projeção do português como a grande língua internacional que é.
g) Por causa do AO90, já houve gastos inúteis e incompreensíveis, nomeadamente no ensino e na administração pública, com a “nova” “ortografia”. Mais grave ainda porque foram feitos sem que esta tivesse sido sequer definida com rigor (provavelmente porque é impossível definir-se com rigor aquilo que assenta em "regras" que o negam à partida).
Que gastos? A substituição normal dos manuais, que se faria com acordo ou sem ele? Isso teve custo zero — a atualização dos manuais é periódica e não foi antecipada, aconteceu ao ritmo a que aconteceria de qualquer maneira. Ou estará o Castro a referir-se a ações de formação, que só foram necessárias por causa da monumental campanha de desinformação que foi desencadeada pelos opositores da mudança? Se é a isso que se refere, tem razão, mas a culpa não é do AO90: é de quem disseminou quantidades abjetas de lixo, procurando lançar o máximo de confusão possível. Seria bom que se lhes apresentasse a conta, realmente. Diminuiria bastante a circulação de asneiras.
h) O documento de base do AO90 contém erros, ambiguidades, incongruências e parte de premissas falsas. Contém opiniões (tão válidas como quaisquer outras...) e nem um único estudo científico que sustente o que é afirmado.
Esta é para rir, não? Então o Castro queria que o documento legal que contém o AO90 contivesse estudos científicos? Lanço aqui um desafio: mostre-me uma lei que contenha um estudo científico. Basta uma.

Patético.
Há, pelo contrário, e como se sabe, muito mais pareceres negativos do que positivos (estes, aliás, no singular... porque só há um). Além de isto ser academicamente inacreditável, um documento assim não tem qualquer credibilidade. Não pode servir de base a coisa alguma e muito menos à ortografia de mais de duzentos milhões de pessoas. Uma vez que as “regras” do AO90 são sobretudo a consagração das excepções, há um fenómeno evidente de sobrecorrecção e de total confusão por parte de quem escreve.
Nem vou perder tempo com isto. Só quem nunca leu uma palavra do texto do AO90 pode fazer afirmações como "as regras do AO90 são sobretudo a consagração das exceções". Aconselho o Castro a ir ler o acordo, uma vez que obviamente ainda não o fez.
Se muitas pessoas escrevem com o AO90 (em muitos casos, unicamente porque a isso são obrigadas), isso deve-se sobretudo ao facto de ser possível carregar num botão para transformar a ortografia automaticamente e não tanto porque saibam efectivamente aplicar a “nova” “ortografia” (uma vez mais, como saber aplicar aquilo que não tem regras claras?). Isto, na prática, corresponde a um inegável analfabetismo funcional.
Mais asneira a rodos. Vou ser curto e grosso: quem não sabe escrever segundo a nova ortografia é incompetente no uso da língua. A generalidade das regras é simples, clara, e não exige o uso de nada além do cérebro de cada um.

Aliás, essa é uma vantagem inesperada do acordo. Um efeito secundário positivo. Destapar muita incompetência, ignorância e má-fé que andavam escondidas por aí. Por vezes entristece ver até que ponto elas chegam, mas é preferível sabermos onde estão os incapazes do que continuarmos a julgá-los capazes.
i) Com o AO90, em vez de uma unificação, temos uma multiplicação de ortografias. Em vez de Pt-Pt e Pt-Br, temos: Pt-Pt, Pt-Br, AO90-Pt, AO90-Br e ainda o uso de critérios diferentes para o estabelecimento daquilo que se considera ser o AO90 em Portugal e no Brasil... variações deixadas ao critério de cada um, porque o documento de base não é claro ou é omisso nas diversas possibilidades. Porquê esta falta de clareza e esta omissão? Porque as “soluções” apresentadas são uma farsa que na prática não resolve nada.
Estamos a meio do período de transição. Só por completa má-fé se pode exigir que a meio de uma transição tudo esteja estabilizado. É evidente que a meio de uma transição tem de haver mais do que uma ortografia em uso. Há trabalho a fazer em vários níveis, que aliás já estaria muito mais adiantado do que está se houvesse menos disseminação de aldrabices e menos arrastar de pés por parte de algumas pessoas infelizmente colocadas em posições de influência. E é um facto que a ABL, a ACL e o IILP se têm mostrado incompetentes no trabalho que lhes compete: a elaboração do vocabulário ortográfico da língua portuguesa. Especialmente esse fóssil que é a ACL. Não é por acaso que o vocabulário oficial é, hoje, aquele que foi produzido pelo ILTC. Mas, de novo, a culpa não é do AO90 mas sim da incompetência destas entidades. Algumas incoerências e sobretudo omissões presentes no acordo não ajudam, é certo, mas isso está muito longe de explicar por que motivo o trabalho, 23 anos depois da assinatura do AO, ainda não está concluído, tanto mais que temos hoje milhares, talvez milhões, de pessoas a escrever segundo a nova ortografia sem dificuldades de maior.

5. Proposta que apresenta
Suspensão imediata da aplicação do Acordo Ortográfico de 1990.
Pontos nos is: uma ortografia evoluir é admissível e em muitos casos desejável; uma ortografia ficar estável também; mas uma ortografia andar aos ziguezagues, ora agora é assim, ora agora é assado, é idiota, e pode ser catastrófico. Nada pode ser pior do que voltar para trás depois das alterações ortográficas estarem em aplicação generalizada. Nem que a nova ortografia fosse o absurdo que alguns dizem ser, e que está muito longe de ser, voltar para trás faria o mínimo sentido. Não se pode andar a brincar dessa maneira com a ortografia da nossa língua.

É por isso que toda esta discussão é extemporânea. Não é depois das coisas aprovadas e aplicadas que elas devem ser discutidas. Há dois momentos bons para a discussão: antes das coisas serem aprovadas, e depois de passar tempo suficiente desde a sua aplicação para a poeira assentar e se poderem ver resultados reais em vez de alarmismos mais ou menos histéricos. Os outros momentos são maus, mas nenhum é pior do que durante a implementação. Ou seja: nenhum é pior do que este.

Esta é, aliás, uma doença de que Portugal padece há muito, e que contribuiu sobremaneira para nos trazer ao estado miserável em que nos encontramos: esta tendência estúpida para discutir insuficientemente as coisas antes de as aprovar, para desatar depois a discuti-las durante a implementação, com muito mais histeria do que ponderação, e para acabar por fazer alterações em cima do joelho, muitas vezes deitando no processo milhões pela janela. No caso do AO, felizmente, os impactos financeiros são reduzidos, mas há outros impactos muito mais importantes do que o dinheiro.

Esta discussão teria feito sentido há duas décadas. No ponto em que estamos, a única coisa inteligente a fazer é aplicar o AO90 o melhor e o mais completamente possível e esperar até que a poeira assente. Depois, avaliar os resultados, com calma, ponderação, competência e algum sentido de história. De seguida, alterar o que houver a alterar, aperfeiçoar o que houver a aperfeiçoar. Será esse o momento para recuar no pára, por exemplo. Será talvez esse o momento para ir mais além no que agora ficou por fazer. Será esse o momento para reavaliar que consoantes são mudas, e quais as que não o são. Até lá, que se aplique!
Obrigar milhões de pessoas a alterar a sua ortografia sem que isso sirva para alguma coisa de válido é de uma falta de senso indescritível. Em vez de uma “unificação” ortográfica reconhecidamente impossível a esta altura, promovamos o intercâmbio cultural, científico e de oportunidades de trabalho entre todos os países de língua oficial portuguesa. Reforcemos o ensino de Português no estrangeiro em vez de fecharmos leitorados. Não é preciso unificar a ortografia para fazer nada disto e seria muito mais eficaz para a promoção da língua no mundo. Existem mecanismos democráticos mais do suficientes para anular este erro colossal: uma iniciativa legislativa de cidadãos pela revoção da RAR 35/2008 (o instrumento que forçou a entrada em vigor do AO90) ou uma iniciativa legislativa dos próprios deputados para o mesmo efeito.
Estou inteiramente de acordo que se devia também promover o intercâmbio cultural, científico e de oportunidades de trabalho entre todos os países de língua oficial portuguesa. Estou inteiramente de acordo que falta, e não devia faltar, uma verdadeira política de língua que não se limite ao acordo ortográfico. É verdade que não é preciso unificar a ortografia para fazer isso, mas é inegável que unificar a ortografia facilita. E pode-se, e deve-se, fazer tudo ao mesmo tempo.

6. Outras questões
Este acordo ortográfico não resolve nenhum dos alegados “problemas” que pretendia “solucionar”. Baseia-se, além disso, num paradoxo fundamental: procura unificar a língua utilizando ao mesmo tempo um critério, o da fonética, que torna automaticamente impossível a referida unificação, dadas as variadíssimas cambiantes de pronúncia entre os milhões de falantes da língua. Partindo de premissas erradas é impossível chegar-se a conclusões correctas. Ou válidas.
Exato: partindo de premissas erradas é impossível chegar-se a conclusões corretas. É precisamente por isso que as conclusões a que o Castro chega são quase todas erradas.
O AO90 nega a real evolução da língua portuguesa, fazendo de conta que esta não existiu. A verdade é que o português de Portugal e o português do Brasil já se afastaram (sim, irremediavelmente – admitamo-lo de uma vez por todas)
Longe disso. O português de Portugal e o português do Brasil estão, isso sim, em convergência. É consequência inevitável do fim do isolamento que existiu durante 200 anos, originado primeiro pelos media tradicionais (só quem não viu os brasileirismos entrarem com toda a naturalidade no léxico português após a chegada das primeiras telenovelas ignora este facto) e mais recentemente pela internet. Essa convergência far-se-á com acordos ortográficos ou sem eles simplesmente porque a lusofonia é hoje uma realidade concreta e presente na vida de milhões de cidadãos lusófonos que intercambiam usos linguísticos todos os dias e nada indica que deixe de ser, bem pelo contrário. Só entre os infoexcluídos e em grupos muito dados à criação de modas linguísticas, frequentemente de vida curta, como os jovens, a língua continua a divergir. E normalmente não são esses os grupos mais determinantes no futuro das línguas.

Aliás, o próprio facto de que o uso de critérios fonológicos para alterar a ortografia origina muito mais convergências ortográficas do que divergências é prova cabal de que as antigas ortografias do português exageravam o afastamento entre os dialetos portugueses e brasileiros. Eles são, sendo obviamente diferentes, bastante mais próximos do que a divergência ortográfica levava a crer. E bastaria essa revelação para conferir utilidade ao AO90.
e estas duas variantes já não voltam a ficar iguais, nem que por acaso o AO90 conseguisse unificar a ortografia (que não consegue). Não pode designar-se como “evolução”esta proposta lamentável e inútil de ortografia “unificada”. Em conclusão, o “acordo” “ortográfico” de 1990 não é sério e não pode ser levado a sério. Suspenda-se de imediato a sua aplicação.
Enfim... mais tolices, pois então.

sexta-feira, 8 de março de 2013

Da indigência

Helena Buescu apresentou na AR um "parecer" em que se refere obliquamente à análise que aqui fiz sobre o Vocabulário da Mudança. Insiste na fraude perpretada por Regina Rocha e publicada no Público, e diz que ela foi, cito:
objecto de contra-resposta que não apresentou qualquer comprovada anulação baseada em dados alternativos
Claro que não. Eu não me baseei em dados alternativos: baseei-me nos mesmos dados que Regina Rocha diz ter utilizado para obter os números que inventou.

E claro que não apresentei "qualquer comprovada anulação". Só forneço a tabela com todos os dados, todas as contas e todas as fórmulas a quem ma pedir (e desde a última vez que o mencionei já a forneci a mais três pessoas, subindo o total para cinco — uma das quais opositora ao AO (finalmente!), pelo menos por enquanto). Mais nada. Coisa pouca, bem sei. O que é isso comparado com todas as provas que a Regina Rocha fornece de que não inventou os seus números? Hm?

Já agora, que foi ao certo que Regina Rocha forneceu a quem quiser verificar a bondade dos seus dados e contas? É que estou aqui a puxar pela cabeça e não me lembro de nada.

Deve ser, decerto, falha na minha memória. Com certeza que há abundante materal comprovativo. Uma tabelinha com contas, talvez? Talvez feita em papel? Uns rabiscozinhos a lápis? Não?

Doutoramentos à portuguesa...

domingo, 3 de março de 2013

O Vocabulário da Mudança, o excel e eu

Quem acompanha a Lâmpada com regularidade certamente saberá que gastei os tempos livres que fui tendo ao longo de cerca de uma semana a dissecar o Vocabulário da Mudança, para tentar perceber o que há de verdade e o que há de mentira em toda a propaganda anti-nova ortografia que tem vindo a lume nos últimos tempos dando conta de uma pretensa divergência ortográfica gerada por ela.

Quem não acompanha aqui o meu velho bloguezinho, no entanto, provavelmente só terá tomado contacto com essa análise através de um artigo em que resumi os resultados principais e que o jornal Público acabou por publicar. Para surpresa minha, há que dizê-lo, dada a consabida sanha anti-nova ortografia de que esse jornal tem dado vastas provas desde que as mudanças começaram a sair da teoria legislativa e a ganhar lugar na vida prática dos falantes e escreventes de português.

O artigo no Público, contudo, está atrás da pagarede (que tal este neologismo para substituir paywall? Podem usar à vontade) do jornal. Mas como o Ciberdúvidas da Língua Portuguesa tem vindo a republicar todos os tipos de artigos sobre a controvérsia, achei que seria boa ideia mandar-lho, e eles, claro, publicaram-no.

Depois surgiu uma questão: eu tinha feito uma análise muito mais detalhada do que aquilo que, por constrangimentos de espaço, foi possível incluir no artigo enviado para o Público. Não seria boa ideia dar aos interessados uns lamirés sobre os mais relevantes desses resultados? Está certo que eles já estavam publicados aqui na Lâmpada, mas se os resultados gerais chegaram à muito maior visibilidade do Ciberdúvidas, não seria boa ideia que os detalhes principais também chegassem? Achei que sim. E o pessoal do Ciberdúvidas também. Portanto escrevi um artigo complementar, que também foi publicado no Ciberdúvidas, com aquilo que me parecia mais necessário dizer sobre este assunto.

Entretanto, no post que deu início à divulgação da análise aqui na Lâmpada voluntariei-me para fornecer a folha excel com os resultados a qualquer um que ma pedisse. Até agora, só duas pessoas o fizeram. Uma levou-a ainda numa fase inicial da análise, a outra levou-a já completa.

Não posso dizer que isso me surpreenda.

sábado, 16 de fevereiro de 2013

Notas finais à análise do Vocabulário da Mudança

E pronto. Foi isto. Não estou a ver bem que dados se possam tirar mais do Vocabulário da Mudança (mas se tiverem alguma ideia, continuo recetivo, se bem que não garanta que a ponha em prática... é que isto, parecendo que não, ainda deu uma trabalheira), mas já aqui ficam bastantes. Mais que suficientes para tornar cristalino até que ponto é treta o que certos "estudiosos" andam a dizer sobre a nova ortografia originar divergência em vez de convergência. É preciso uma grande vesguice de análise ou uma grande dose de má-fé para afirmar uma coisa dessas. Sim, há casos de divergência, mas há muitas vezes mais casos de convergência, o que faz com que, no global, a ortografia convirja. Como é óbvio. E quem vos disser o contrário, estará a tentar aldrabar-vos. Não deem ouvidos a aldrabões.

Notem que esta minha análise, porque parte do mesmo ponto de partida daquele lamentável simulacro de estudo da Maria Regina Rocha, incide só e apenas sobre o Vocabulário da Mudança. E o VdM não é exaustivo. Há bastantes palavras que ficaram de fora, não só as formas verbais de que já tinha falado num dos primeiros posts da análise, mas outras também. Na verdade, e apesar de muitas vezes tentarem sê-lo, nenhum vocabulário de uma língua viva é exaustivo, precisamente porque a língua é viva. Uma língua viva está constantemente a mudar, há constantemente palavras novas a serem criadas ou importadas de outras línguas, palavras a cair na obsolescência, palavras a ser resgatadas dessa obsolescência, etc. Porque todas as línguas vivas têm os seus utilizadores criativos — e ainda bem que assim é; que seria da literatura sem eles? — e esses não se contentam com o que há e inovam... e também porque todas as línguas vivas têm os seus utilizadores ignorantes — e tantos que eles são, até muitos que julgam não o ser — e esses não sabem bem o que há e deturpam. Uns e outros são os agentes da mudança, e a mudança é constante e imparável. E isso implica que o momento em que um putativo vocabulário ficasse completo seria o exato momento em que se tornaria obsoleto.

Portanto, o Vocabulário da Mudança não é, nem nunca seria, algo de completo. No entanto, nada indica que não se trate de uma amostragem fiel do que muda e como. Uma amostragem que permite ter uma ideia bastante aproximada (sujeita a erro, como todas as amostragens, mas com um erro bastante pequeno) das tendências globais da mudança ortográfica e do que lhes está subjacente. Os números totais de cada categoria em que o fui subdividindo ao longo da análise seriam certamente diferentes com um eventual vocabulário completo, mas as proporções entre uns números e outros deviam ser muito idênticas. E as tendências gerais também.

E pronto, fico-me por aqui. Foi uma trabalheira. Mas também foi divertido, e foi, com toda a certeza, bastante instrutivo.

Uma nota final: caso não tenham reparado, criei uma tag própria para a análise: "

O resto

E chegados a este ponto, restam 31 palavras no Vocabulário da Mudança que não sofreram alterações devido a nenhum dos casos de que falei antes. A grande maioria destas palavras sofrem alterações devido à supressão da acentuação diferencial em paroxítonas. Trata-se do que aconteceu ao antigo "pára" e derivados ("pára-brisas", por exemplo), ao antigo "pêlo", ao antigo "pêro", etc. Passaram a "para", "para-brisas", "pelo" e "pero", e fizeram-no em todo o espaço lusófono. Isto corresponde a 27 dessas 31 palavras, e em todos os casos menos um trata-se de grafias únicas que mudaram mas se mantiveram grafias únicas. A única exceção é a palavra "pólo", que tinha, no Brasil, dupla grafia, "pólo" e "pôlo". Com a supressão dos acentos essa dupla grafia desaparece e a grafia converge para "polo".

Restam apenas 4 palavras. Em todas havia divergência de grafia nas ortografias pré-AO, e todas a nova ortografia transforma em duplas grafias. "Forma" e "fôrma", "judo" e "judô", "húmido" e "úmido" e "lambugem" e "lambujem". Ou seja, na prática, estas 4 palavras continuam a escrever-se como dantes.

Em resumo, nestas últimas palavras do Vocabulário da Mudança encontram-se:
  • 4 casos de grafias divergentes que passam a duplas.
  • 26 casos de grafia única que se transformam noutras grafias únicas.
  • 1 caso de convergência para uma forma nova.
E para acabar isto resta-me só escrever umas notas finais. Noutro post.

Novos hífenes

As novas regras da hifenação tiveram como resultado o desaparecimento de centenas de hífenes da língua portuguesa, e desde logo o mais absurdo de todos: o hífen em "há-de" (por que raio se há de hifenar "há de" se não se hifeniza "terá de"?!). Mas também criaram alguns novos.

Assim, há, no Vocabulário da Mudança, 25 casos de palavras que não eram hifenadas e passaram a sê-lo. Tal como acontece com os hífenes preexistentes, também aqui a mudança é feita em conjunto e com uma uniformidade que só não é total porque algumas palavras incluem também alterações que têm a ver com outras regras. Os números são:
  • São 2 os casos de grafias divergentes que passam a grafias múltiplas.
  • São 21 os casos de grafia única que continua a ser única.
  • Não há casos de divergência.
  • São 2 os casos de convergência, um para a forma anteriormente usada no Brasil, o outro para uma forma nova.
E não há mais nada a dizer sobre os números deste caso. São baixos, mais também são bastante claros.

O hífen antigo

E eis-nos no último grande grupo de palavras que consta do Vocabulário da Mudança: as hifenadas. Aqui, embora houvesse alguma divergência ortográfica entre as regras brasieiras e as dos demais países, o grosso da evolução é feita em conjunto, com regras novas para todos e uma unidade generalizada na forma de usar o hífen. Dividi a análise em dois grupos: o das palavras que já continham hífen antes do AO90, quer em toda a lusofonia, quer só em parte dela, e o das palavras que não eram hifenadas e passaram a sê-lo. Aqui falo apenas do primeiro desses grupos.

Entre as palavras presentes no Vocabulário da Mudança, as que tinham hífen nas antigas ortografias eram bastante numerosas: 1060. Cerca de um sexto do total. Mas uma parte destas palavras estão no vocabulário devido a mudanças noutras questões, não no hífen. Aquelas em que existe mudanças no hífen são só 902. Subdividem-se da seguinte forma:
  • Existem 14 casos de ortografias anteriormente divergentes e que, apesar das mudanças na hifenação, passaram a duplas ou múltiplas grafias. Em todos esses casos a multiplicidade gráfica deve-se a outros fatores, não ao hífen.
  • Os casos de mudanças em toda a lusofonia, ou seja, os casos em que uma grafia comum passa a outra grafia comum, são de longe os mais numerosos: 821.
  • Existem 64 casos de convergência.
  • Há apenas 3 casos de divergência, todos devidos a alterações que não têm a ver com o uso do hífen.
  • Entre os casos de convergência, 17 fazem-se para a forma que anteriormente era a portuguesa.
  • São 31 os que se fazem para a anterior forma brasileira.
  • São 16 os que se fazem para uma forma nova.
No que toca ao hífen, portanto, e por confusas que as regras possam ser (e eu acho que algumas são, embora também ache que o problema está longe de ter solução simples), a unidade ortográfica é total. A divergência que existia antes do AO90, que já era reduzida para começar, deixou de existir.

E neste momento falta-me falar-vos de pouco mais de 50 palavras. Mais três posts e isto acaba. Ufa!

Outros ditongos e vogais duplas

Além dos dois casos anteriores, razoavelmente numerosos, há mais alguns casos de mudanças na acentuação de vogais duplas e ditongos, embora todos eles sejam bastante raros. São os seguintes:

O ditongo OI nem sempre era acentuado no O. Também havia, na anterior grafia brasileira, casos de acentuação no I, como em "maoísta". Este acento também desaparece, e portanto todas as palavras que, no Vocabulário da Mudança, mostravam esse ditongo passaram a escrever-se sem acento. São apenas 4, e todas convergem para a anterior forma portuguesa.

Algo mais numeroso é o caso do ditongo IU em que, na anterior grafia brasileira, se acentuava o U. O exemplo mais comum é o da palavra "feiúra". Este acento também desaparece, e são mais 11 palavras do Vocabulário da Mudança cuja grafia converge para a anterior forma portuguesa.

Quando a vogal se repete, como na palavra "voo", a anterior grafia brasileira acentuava o primeiro O com um acento circunflexo. É mais um acento que o AO90 faz desaparecer, e é, portanto, mais um caso de convergência total para as antigas formas portuguesas. O Vocabulário de Mudança inclui 10 palavras destas. De notar que a mesma regra serve para o desaparecimento do acento circunflexo em certas formas verbais, como "lêem". Mas como se trata de formas verbais e no VdM os verbos só surgem no infinitivo, essas palavras não aparecem nas listas.

Ao todo, portanto, são apenas pouco mais de duas dezenas de palavras a sofrer este tipo de alterações, mas em todas elas o processo é o mesmo: grafias que antes do AO90 eram diferentes passam a ser iguais à forma que anteriormente era a usada em toda a lusofonia à exceção do Brasil.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Ei!

Ainda na acentuação de ditongos em palavras paroxítonas, temos agora um caso completamente diferente, embora o princípio que leva à mudança ortográfica seja o mesmo do post anterior: o do ditongo EI. Aqui, o uso anterior à nova ortografia era com frequência diferente no Brasil, onde o E era muitas vezes acentuado, e nos restantes países lusófonos, onde não era. Um exemplo: "europeia", que no Brasil se escrevia "européia".

Pois as palavras do Vocabulário da Mudança que incluem esse ditongo são 267 e, como o acento é suprimido, todas elas sofrem alterações. E aqui, a convergência é esmagadora. Temos que:
  • Não há um único caso de grafias divergentes nas antigas ortografias que se mantenham na nova como duplas grafias.
  • Existem 2 casos de uma grafia idêntica que é alterada para outra grafia idêntica.
  • 265 casos de convergência. Todos para as anteriores formas portuguesas.
  • Não existe uma única divergência.
De novo, os números falam por si e dispensam comentários. Resta-me apenas sublinhar que basta esta alteração introduzida pelo AO90 para fazer convergir mais vocábulos do que os que divergem somando todas as mudanças. Isso, confesso, diverte-me bastante quando penso no que se afirmava no artigo que me levou a fazer esta análise.

Oi?

Deixando para trás as consoantes mudas, voltamos aos acentos. Aqui falarei da acentuação do O nas palavras paroxítonas que incluem o ditongo OI. Essa acentuação, na nova ortografia, cai. Um exemplo: "heróico", que se escrevia assim em toda a lusofonia e passa, com o acordo ortográfico, a escrever-se "heroico".

E é isso o que acontece na vasta maioria dos casos: aqui, a mudança dá-se em uníssono, passando-se quase sempre de uma ortografia única antes do AO90 para outra ortografia única depois ao AO90. Quase sempre.

São, no Vocabulário da Mudança, 535 palavras que continham o ditongo OI acentuado, e em todas essas 535 palavras o ditongo perde o acento. O que acontece depois é o seguinte:
  • Há apenas 3 casos de grafias divergentes, devido a outros fatores, que passam a duplas grafias.
  • O número de palavras em que uma grafia idêntica é transformada noutra grafia idêntica é de 529. Quase a totalidade deste grupo de palavras.
  • Existem 3 casos de convergência.
  • Não há nem um único caso de divergência.
  • Entre as convergências, 2 fazem-se para a antiga forma portuguesa e 1 para uma forma nova.
E não há grandes comentários adicionais a fazer. Trata-se de uma mudança simples, que afeta por igual todos os utilizadores da língua.

Outros casos de emudecimento de consoantes

Além do P e do C, que emudecem em toda a lusofonia, embora em graus algo diferentes, há alguns casos de emudecimento de consoantes que só ocorrem nos dialetos brasileiros e que, portanto, só afetaram a anterior grafia brasileira. São invariavelmente casos em que o acordo ortográfico não teve qualquer impacto prático: embora as grafias anteriormente divergentes tenham passado a duplas, as palavras continuam após a adoção da nova ortografia a escrever-se tal e qual se escreviam antes: os brasileiros de uma forma, os outros de outra. E além disso a proporção dessas palavras é bastante baixa. Mas, por uma questão de completude desta análise, aqui ficam.

Na fonética brasileira, a sequência GD sofre ocasionalmente e num conjunto bastante restrito de palavras o emudecimento do G. Por conseguinte, na ortografia brasileira palavras como "amígdala" passam por vezes a "amídala". O número destes casos é bastante baixo: são apenas 16 as palavras do VdM que incluem essa sequência, e só 15 estão no vocabulário por causa do emudecimento do G. Todas elas tinham grafia divergente e passaram a ter dupla.

Também a sequência MN sofre em alguns casos, no Brasil, o emudecimento do M, e palavras como "amnistia" escrevem-se do outro lado do Atlântico sem M: "anistia". No Vocabulário da Mudança encontram-se 46 vocábulos que incluem essa sequência, mas só existe emudecimento do M em 31 deles. De novo, todas essas palavras tinham grafia divergente e passaram a tê-la dupla.

Na sequência NN não se pode falar propriamente de emudecimento, mas havia, e continua a haver, uma divergência no uso brasileiro e dos demais países. A palavra é "connosco", que do outro lado do Atlântico se escreve só com um N: "conosco". Mais uma grafia divergente que passa a dupla.

A sequência BD também sofre no Brasil, em casos muito raros, o emudecimento do B. O caso mais conhecido é a palavra "súbdito", que do outro lado do mar se escreve "súdito". No Vocabulário da Mudança encontram-se 21 vocábulos que incluem essa sequência, mas só 2 deles lá estão devido ao emudecimento do B. Em ambos, a grafia divergente passa a dupla.

Por fim, e ainda no Brasil, também na sequência BT se assiste por vezes ao emudecimento do B. O caso mais conhecido, "subtil", tinha antes do acordo ortográfico grafia dupla no Brasil, aceitando-se as formas "subtil" e "sutil". Há no VdM um total de 12 palavras a incluir essa sequência, embora só metade lá estejam por causa dela. Em todos esses 6 casos, as grafias divergentes passam a duplas.

Ao todo, são 55 vocábulos em mais de 6500. Muito pouca coisa.

O P como consoante muda: finalmente alguma divergência

É quando a consoante que tende ao emudecimento é o P que finalmente se encontra alguma divergência na nova ortografia. Tal como acontece com o C, há três casos distintos, um dos quais é bastante mais frequente do que os outros dois: O PT, o PC e o PÇ.

O caso mais abundante é, claro, o das palavras que incluem a sequência PT. São, no Vocabulário da Murança, em número de 300, embora em três dezenas delas haja alterações por outros motivos, não pelo emudecimento do P. Isto acontece apenas com 269 dessas palavras. E entre esses 269 vocábulos encontramos o seguinte:
  • São 151 os casos de grafias anteriormente divergentes que, na nova ortografia, passam a duplas. Bastante mais de metade.
  • Uma vez mais, não existem casos em que uma grafia anteriormente única continue a sê-lo.
  • Há apenas 15 casos de convergência, todos para a anterior forma brasileira.
  • Os casos de divergência são 103.
Aqui, como se vê, a divergência domina esmagadoramente, numa razão de quase 7:1. E domina ainda mais nas outras duas sequências consonantais cuja consoante muda tende a ser o P, apesar dos números absolutos serem muito menores.

A sequência PC conta 24 vocábulos no VdM, e todos lá se encontram devido precisamente ao emudecimento do P.
  • O número de casos de grafias anteriormente divergentes que passam a duplas é, aqui, de 6.
  • Não há nem qualquer caso de grafia anteriormente única que continue a sê-lo, nem nenhum caso de convergência.
  • Os casos de divergência são, portanto, 18.
Quanto à sequência PÇ, conta 22 vocábulos no VdM, também todos lá presentes devido ao emudecimento do P. Subdividem-se da seguinte forma:
  • São também 6 os casos de grafias anteriormente diferentes que continuam a sê-lo.
  • Volta a não haver nenhum caso de grafias iguais que continuem iguais.
  • 1 caso de convergência. Para a anterior forma brasileira.
  • Os casos de divergência são 15.
Tudo somado, estamos perante menos de 400 palavras, num universo de mais de 6500, entre as quais, realmente, a divergência é muito superior à convergência, apesar da maioria continuar a pertencer às palavras que tinham grafias divergentes antes do acordo ortográfico e passam agora a tê-la dupla. Todas as convergências se fazem para as anteriores formas brasileiras, como seria de esperar uma vez que só em Portugal permaneciam as consoantes mudas de origem etimológica.

Mas ainda há mais consoantes mudas. Esperem pelo próximo post.

Outras sequências consonantais com C

Além da sequência, CT, o Vocabulário da Mudança inclui palavras com outras duas sequências consonantais (ou só uma dependendo do ponto de vista) que incluem a letra C com tendência de emudecimento: a sequência CC e a sequência CÇ. A frequência de ambas é, no entanto, muito inferior à da sequência CT.

A primeira conta 146 palavras, no VdM, quase todas envolvidas na mudança. Aquelas em que o emudecimento do primeiro C leva a alterações ortográficas são 143. Entre estas, temos que:
  • Contam-se 58 casos de grafias anteriormente divergentes que hoje são duplas.
  • Não há nenhum caso de grafias anteriormente idênticas e que hoje continuem a sê-lo.
  • Existem 76 casos de convergência ortográfica.
  • 9 casos de divergência.
  • A convergência faz-se quase toda para as antigas formas brasileiras: são 74 palavras aquelas em que isto acontece.
  • De novo não há convergências para antigas formas portuguesas, mas há 2 para formas novas.
A novidade neste grupo de palavras é a convergência ser o subgrupo mais importante, ultrapassando até a situação que costuma ser mais comum: a de grafias divergentes antes do AO90 continuarem a sê-lo depois dele ou pelo menos admitirem grafias múltiplas. A razão convergência/divergência é, aqui, de mais de 8:1.

A outra, que inclui o C cedilhado, mostra números bastante semelhantes, embora algo inferiores. Num total de 125 palavras, das quais 124 estão envolvidas na mudança por causa do emudecimento do C, há:
  • 50 casos de grafias anteriormente divergentes que hoje são duplas.
  • De novo, não há nenhum caso de grafias anteriormente idênticas que continuem a sê-lo.
  • Os casos de convergência são 65.
  • Os casos de divergência são de novo 9.
  • As convergências são, na sua esmagadora maioria, para a anterior forma brasileira. São 62 os casos desses.
  • Uma vez mais, não há qualquer convergência para as antigas formas portuguesas, mas há 3 para formas novas.
E o comentário que se pode fazer a este grupo é em tudo idêntico ao anterior. Exceto a razão convergência/divergência, que é um pouco mais baixa. Só um pouco mais de 7:1.

E quanto ao C mudo estamos conversados. A convergência é esmagadora, embora, somando todos, continuem a predominar os casos em que a divergência prévia permanece, e ela faz-se esmagadoramente para anteriores formas brasileiras. Segue-se o P mudo. Noutro post.