É domingo, e por isso cá estamos de novo com mais Leiturtugas para vocês. E hoje a lista é interessante, com presença de oficiais e oficiosos.
Entre os primeiros temos duas opiniões. A primeira chegou via Artur Coelho, que comentou um livro infantil já antigo, onde parece existir algum do maravilhoso mais ou menos típico da literatura dedicada a essa faixa etária. Escrito por Maria Cecília Correia e ilustrado por Maria Keil, o livro é uma coletânea intitulada Histórias da Minha Rua e foi publicado pela A Bela e o Monstro em 2016, reproduzindo a edição original de 1953. Não parece é haver nenhuma FC, portanto o Artur passa a 2c12s.
A segunda veio pela mão do Jorge Candeias (ó pra mim aqui!), que comentou o nº 1 da Lusitânia, um semiprozine editado pelo Carlos Silva em 2012. Aqui existe FC, pelo que as minhas sinalefas passam a 3c3s.
Quanto a oficiosos, temos o dobro das opiniões.
A primeira a chegar foi a da «Charneca em Flor» sobre o romance O Homem Duplicado, de José Saramago. Pela imagem que acompanha o comentário, a «Charneca» leu o livro numa das edições da Caminho, talvez mesmo a original, de 2002. Este romance tem alguma relação com a FC, pelo que vou metê-lo na coluna do «com».
Depois foi o Pedro Miguel Silva a opinar sobre um livro de contos um tanto ou quanto sui generis. De autoria de Luís Afonso, o cartunista, o livro intitula-se A Morte de A a Z e é uma edição já deste ano da Abysmo. Parece conter fantasia com fartura (e humor também), mas nenhuma FC, o que é sempre pena.
De seguida, chegou-nos a brevíssima opinião de uma tal Rita sobre o mais recente livro de D. D. Maio, autoeditado também este ano via Bubok. O título é Vanda e trata-se de um romance de fantasia, sem nenhuma FC.
E se foi José Saramago a abrir a semana no que toca a oficiosos, também foi ele a encerrá-la. Mas o livro alvo da opinião é outro e quem opina também. O livro é agora As Intermitências da Morte, romance de 2005, então publicado na Caminho, que a Diana, a opinadora, leu agora numa das recentes edições da Porto Editora. E ao contrário do livro lido pela «Charneca», este nada tem a ver com FC.
E pronto, está feito. Veremos o que a próxima semana nos trará.
domingo, 31 de julho de 2022
sexta-feira, 29 de julho de 2022
Virgílio Várzea: O Velho Sumares
Se não gostei do primeiro conto deste livro de Virgílio Várzea, deste segundo ainda gostei menos, embora por motivos algo diferentes. O Velho Sumares é um panegírico ao herói, ao velho lobo do mar que, com valentia e arrojo, enfrenta não só os elementos mas a perseguição denodada de um navio de guerra inglês.
Detalhe: o velho Sumares é capitão de um navio negreiro. A carga que transporta de África para o Brasil, ou tenta transportar, são escravos.
Não fora esse detalhe, o conto nem seria mau. Não há aqui a tragédia de faca e alguidar do primeiro conto, não se encontra tão marcado o exagero de adjetivação, e até as vírgulas, apesar de continuarem demasiado abundantes, estão razoavelmente controladas. E a história propriamente dita também tem um certo interesse enquanto narração de aventuras marítimas, desde que se fechem os olhos à carga que o navio transporta.
Coisa que Várzea tenta fazer, de resto. A história centra-se nos feitos de marear do capitão e nas reações da tripulação. A carga, essa, podiam ser sacos de batatas em vez de seres humanos pela relevância que tem na história. É isso o que mais incomoda. Pior que elevar um traficante de escravos a herói é o completo desprezo mostrado pelo escritor pela condição dos escravos que o navio transporta. São uma inexistência. Uma irrelevância. Não-gente.
Não. Não gostei mesmo nada disto.
Conto anterior deste livro:
Detalhe: o velho Sumares é capitão de um navio negreiro. A carga que transporta de África para o Brasil, ou tenta transportar, são escravos.
Não fora esse detalhe, o conto nem seria mau. Não há aqui a tragédia de faca e alguidar do primeiro conto, não se encontra tão marcado o exagero de adjetivação, e até as vírgulas, apesar de continuarem demasiado abundantes, estão razoavelmente controladas. E a história propriamente dita também tem um certo interesse enquanto narração de aventuras marítimas, desde que se fechem os olhos à carga que o navio transporta.
Coisa que Várzea tenta fazer, de resto. A história centra-se nos feitos de marear do capitão e nas reações da tripulação. A carga, essa, podiam ser sacos de batatas em vez de seres humanos pela relevância que tem na história. É isso o que mais incomoda. Pior que elevar um traficante de escravos a herói é o completo desprezo mostrado pelo escritor pela condição dos escravos que o navio transporta. São uma inexistência. Uma irrelevância. Não-gente.
Não. Não gostei mesmo nada disto.
Conto anterior deste livro:
quinta-feira, 28 de julho de 2022
Carlos Silva (ed.): Lusitânia, nº 1
A Lusitânia, lá por fora, julgo que seria englobada na categoria dos semiprozines, i.e., publicações periódicas intermédias entre a edição amadora e a profissional, muito embora também existam fanzines propriamente ditos (i.e., publicações amadoras) com uma abordagem ao ato de editar muito semelhante a esta.
Foi uma iniciativa de vida curta, como acontece quase sempre entre nós, e este é o seu número 1 (bibliografia). A ideia era publicar contos de todos os ramos da ficção especulativa, desde que tivessem alguma coisa a ver com a realidade portuguesa. Daí o nome do zine.
É uma ideia com mérito, mas dado o sempiterno caráter anémico da produção e do consumo de FC&F em Portugal, era também uma ideia praticamente condenada à partida. Se iniciativas abrangentes, que aceitam todos os tipos de coisa, depressa morrem à míngua de histórias com um nível de qualidade minimamente aceitável, tentativas como esta, que restringem os autores (e os leitores) a um tipo específico de produção, têm obviamente uma dificuldade acrescida para se sustentarem. E nem falemos da parte económica da questão, que só permite a sustentabilidade de coisas puramente artesanais, ou então de veículos com uma vertente de marketing importante, como a Bang!
Dito isto, é ótimo que estas pedradas no charco estagnado da FC&F portugesa apareçam de vez em quando. Há sempre a possibilidade de alguma pegar, por ínfima que seja. E sempre se dá escoamento (ou até estímulo) a alguma produção.
Melhor ainda quando a publicação não tem maus contos, como aqui acontece. É certo que também não tem nenhuma história que realmente se destaque, nenhuma história que mereça o qualificativo de muito boa, mas tem várias histórias boas e as que não chegam a tanto são no pior dos casos razoáveis. Não é muito comum que tal aconteça, o que é um ponto claro a favor desta revista. Devo dizer que me surpreendeu pela positiva: esperava a habitual mistura de contos bons e fracos ou menos que isso, com o ocasional conto muito bom ou muito mau a destacar-se do conjunto, mas encontrei um grupo de histórias bastante mais equilibrado do que contava encontrar.
E como nenhuma das histórias realmente se destaca, não destacarei nenhuma aqui. Vejam nos links abaixo o que achei sobre cada uma. Digo apenas que sim, esta é uma leitura que, sem ser obrigatória, sem incluir nada que vá ficar na história da FC&F portuguesa (a menos que alguém pegue nalguma destas ideias e a desenvolva em obras mais elaboradas, claro, o que é sempre uma possibilidade), vale a pena ser feita. Costumo dizer que vale a pena ler todas as publicações que incluam nem que seja um conto muito bom ou vários bons, e esta tem vários contos bons.
Sim. Noutro país, o semiprozine teria tido pernas para andar. Neste, existe, o que já não é mau.
Eis o que achei de cada um dos contos aqui incluídos:
Foi uma iniciativa de vida curta, como acontece quase sempre entre nós, e este é o seu número 1 (bibliografia). A ideia era publicar contos de todos os ramos da ficção especulativa, desde que tivessem alguma coisa a ver com a realidade portuguesa. Daí o nome do zine.
É uma ideia com mérito, mas dado o sempiterno caráter anémico da produção e do consumo de FC&F em Portugal, era também uma ideia praticamente condenada à partida. Se iniciativas abrangentes, que aceitam todos os tipos de coisa, depressa morrem à míngua de histórias com um nível de qualidade minimamente aceitável, tentativas como esta, que restringem os autores (e os leitores) a um tipo específico de produção, têm obviamente uma dificuldade acrescida para se sustentarem. E nem falemos da parte económica da questão, que só permite a sustentabilidade de coisas puramente artesanais, ou então de veículos com uma vertente de marketing importante, como a Bang!
Dito isto, é ótimo que estas pedradas no charco estagnado da FC&F portugesa apareçam de vez em quando. Há sempre a possibilidade de alguma pegar, por ínfima que seja. E sempre se dá escoamento (ou até estímulo) a alguma produção.
Melhor ainda quando a publicação não tem maus contos, como aqui acontece. É certo que também não tem nenhuma história que realmente se destaque, nenhuma história que mereça o qualificativo de muito boa, mas tem várias histórias boas e as que não chegam a tanto são no pior dos casos razoáveis. Não é muito comum que tal aconteça, o que é um ponto claro a favor desta revista. Devo dizer que me surpreendeu pela positiva: esperava a habitual mistura de contos bons e fracos ou menos que isso, com o ocasional conto muito bom ou muito mau a destacar-se do conjunto, mas encontrei um grupo de histórias bastante mais equilibrado do que contava encontrar.
E como nenhuma das histórias realmente se destaca, não destacarei nenhuma aqui. Vejam nos links abaixo o que achei sobre cada uma. Digo apenas que sim, esta é uma leitura que, sem ser obrigatória, sem incluir nada que vá ficar na história da FC&F portuguesa (a menos que alguém pegue nalguma destas ideias e a desenvolva em obras mais elaboradas, claro, o que é sempre uma possibilidade), vale a pena ser feita. Costumo dizer que vale a pena ler todas as publicações que incluam nem que seja um conto muito bom ou vários bons, e esta tem vários contos bons.
Sim. Noutro país, o semiprozine teria tido pernas para andar. Neste, existe, o que já não é mau.
Eis o que achei de cada um dos contos aqui incluídos:
quarta-feira, 27 de julho de 2022
Carlos Silva: A Loja
Logo quando o li, este conto deixou-me um tanto ou quanto desconcertado. Carlos Silva consegue criar bastante bem um ambiente de fantasia, mas depois o conto acaba de forma abrupta, sem nada que se pareça com uma resolução. Há finais em aberto, certo, mas isto é bastante mais que um final em aberto — é só abertura, sem qualquer espécie de final.
Como seria de esperar de uma história intitulada A Loja, a ação decorre numa loja. Mas esta é bastante peculiar, a fazer lembrar as lojas mágicas frequentadas por Harry Potter e seus compinchas (e não compinchas). De resto, não é só aí que se nota alguma inpiração potteriana, pois o final que não o é mostra o protagonista a ficar com um sabre, apesar de aparecer na loja para reclamar junto do lojista por causa de uma compra anterior, não porque desejasse tê-lo, mas porque se sente irresistivelmente atraído por ele. E eu lembrei-me logo da compra das varinhas mágicas, claro.
A coisa está bem feita, apesar do seu caráter um tanto ou quanto derivativo e de ser bastante curta, não passando de uma vinheta. Mas depois, puf, acaba deixando tudo no ar. E eu pensei cá com os meus botões: mas que raio de conto vem a ser este?!
O desconcerto durou até ler o conto seguinte na antologia.
Como seria de esperar de uma história intitulada A Loja, a ação decorre numa loja. Mas esta é bastante peculiar, a fazer lembrar as lojas mágicas frequentadas por Harry Potter e seus compinchas (e não compinchas). De resto, não é só aí que se nota alguma inpiração potteriana, pois o final que não o é mostra o protagonista a ficar com um sabre, apesar de aparecer na loja para reclamar junto do lojista por causa de uma compra anterior, não porque desejasse tê-lo, mas porque se sente irresistivelmente atraído por ele. E eu lembrei-me logo da compra das varinhas mágicas, claro.
A coisa está bem feita, apesar do seu caráter um tanto ou quanto derivativo e de ser bastante curta, não passando de uma vinheta. Mas depois, puf, acaba deixando tudo no ar. E eu pensei cá com os meus botões: mas que raio de conto vem a ser este?!
O desconcerto durou até ler o conto seguinte na antologia.
domingo, 24 de julho de 2022
Leiturtugas #162
Cá estamos outra vez a revelar quais das obras literárias portuguesas ligadas de alguma forma às literaturas do imaginário mereceram esta semana leitura e comentário. Viram? Rima. E se rima é verdade.
Sim, sim, são só as Leiturtugas da semana.
E a colheita foi escassa. Só encontrarão aqui dois links, um para um participante oficial, outro para um oficioso.
O oficial é mais uma vez o Artur Coelho, que nos traz mais uma das suas breves opiniões sobre BD, que como sempre vem mais desenvolvida noutras paragens. Desta vez foi lido o nº 4 da série Holy, de Rafael Marques e Katiurna, uma edição deste ano da RK Comics. É BD, portanto é "sem", e o Artur passa a 2c11s.
Já o oficioso, ou melhor, a oficiosa, é a «Kou Seya Girl», uma estreante nestas andanças, que leu e comentou um romance de Olavo Moreira que parece conter alguns elementos de fantástico. Intitula-se Se o Abismo Existe, e foi uma edição de 2015 da Chiado. Nada de FC, aparentemente.
E foi isto. A próxima semana talvez nos traga mais coisas. Se querem saber se trouxe, já sabem: deem cá um salto.
Sim, sim, são só as Leiturtugas da semana.
E a colheita foi escassa. Só encontrarão aqui dois links, um para um participante oficial, outro para um oficioso.
O oficial é mais uma vez o Artur Coelho, que nos traz mais uma das suas breves opiniões sobre BD, que como sempre vem mais desenvolvida noutras paragens. Desta vez foi lido o nº 4 da série Holy, de Rafael Marques e Katiurna, uma edição deste ano da RK Comics. É BD, portanto é "sem", e o Artur passa a 2c11s.
Já o oficioso, ou melhor, a oficiosa, é a «Kou Seya Girl», uma estreante nestas andanças, que leu e comentou um romance de Olavo Moreira que parece conter alguns elementos de fantástico. Intitula-se Se o Abismo Existe, e foi uma edição de 2015 da Chiado. Nada de FC, aparentemente.
E foi isto. A próxima semana talvez nos traga mais coisas. Se querem saber se trouxe, já sabem: deem cá um salto.
sábado, 23 de julho de 2022
Bernardo Carvalho: Os Liquidâmbares
É estranho, este conto do brasileiro Bernardo Carvalho. A começar pelo título, Os Liquidâmbares, pois embora seja coisa do mundo real, o nome de uma árvore nativa das Américas do Norte e Central que tem visto algum uso como árvore ornamental em certas cidades, parece coisa inventada. É um termo que eu nunca tinha encontrado na vida, pelo menos, e desconheço se existe algum liquidâmbar em Portugal, embora Carvalho nos diga que sim.
Mas a história dele não é de todo sobre isso, o que torna o uso da árvore no título um tanto ou quanto enigmático. A explicação que eu arranjei é a árvore servir como analogia. Tratando-se de algo transplantado de um continente para outro, e sendo a história sobre um homem que cresce no Brasil e descobre que é filho de uma portuguesa — portuense, mais propriamente — que foi abandoná-lo lá, encarar o título como analogia faz algum sentido. Parece-me.
De resto, a história também pode ser vista como analogia mais ampla para a própria natureza de uma parte importante do povo brasileiro, descendentes de portugueses que teriam sido de uma forma ou de outra "abandonados" noutro continente, ainda que essa interpretação possa ser um tanto ou quanto exagerada.
Seja como for, o conto está dividido em três capítulos, cada um contado sob um ponto de vista diferente, e escrito por forma a refletir estilisticamente o ponto de vista: o jovem, que ao saber da sua história decide vir a Portugal para tentar encontrar a mãe e perguntar-lhe porque o abandonou, uma louca, que ele confunde com a mãe, e a mãe verdadeira, que a tudo assiste sem nada dizer. Esta estrutura, e sobretudo a forma que Carvalho encontrou para refletir a personalidade das suas personagens na forma de escrever, é aquilo que mais me agradou no conto. Está muito bem feito; até o facto de ser algo penoso ler o capítulo da louca, feito de frases sincopadas, todas igualmente curtas, contribui para se perceber quem ela é.
A história em si, pelo contrário, não me disse muito, portanto este é mais um daqueles casos em que um texto me parece francamente bom mas esteve algo longe de me agradar realmente. Foi uma leitura mais incómoda do que prazerosa, e suspeito que era precisamente esse o objetivo. Se era, foi plenamente cumprido.
Conto anterior deste livro:
Mas a história dele não é de todo sobre isso, o que torna o uso da árvore no título um tanto ou quanto enigmático. A explicação que eu arranjei é a árvore servir como analogia. Tratando-se de algo transplantado de um continente para outro, e sendo a história sobre um homem que cresce no Brasil e descobre que é filho de uma portuguesa — portuense, mais propriamente — que foi abandoná-lo lá, encarar o título como analogia faz algum sentido. Parece-me.
De resto, a história também pode ser vista como analogia mais ampla para a própria natureza de uma parte importante do povo brasileiro, descendentes de portugueses que teriam sido de uma forma ou de outra "abandonados" noutro continente, ainda que essa interpretação possa ser um tanto ou quanto exagerada.
Seja como for, o conto está dividido em três capítulos, cada um contado sob um ponto de vista diferente, e escrito por forma a refletir estilisticamente o ponto de vista: o jovem, que ao saber da sua história decide vir a Portugal para tentar encontrar a mãe e perguntar-lhe porque o abandonou, uma louca, que ele confunde com a mãe, e a mãe verdadeira, que a tudo assiste sem nada dizer. Esta estrutura, e sobretudo a forma que Carvalho encontrou para refletir a personalidade das suas personagens na forma de escrever, é aquilo que mais me agradou no conto. Está muito bem feito; até o facto de ser algo penoso ler o capítulo da louca, feito de frases sincopadas, todas igualmente curtas, contribui para se perceber quem ela é.
A história em si, pelo contrário, não me disse muito, portanto este é mais um daqueles casos em que um texto me parece francamente bom mas esteve algo longe de me agradar realmente. Foi uma leitura mais incómoda do que prazerosa, e suspeito que era precisamente esse o objetivo. Se era, foi plenamente cumprido.
Conto anterior deste livro:
sexta-feira, 22 de julho de 2022
Miguel Carqueija: A Nave do Silêncio
Outro conto explicitamente lovecraftiano, este A Nave do Silêncio (bibliografia). Mas aqui, como Miguel Carqueija mistura ficção científica razoavelmente clássica aos temas lovecraftianos, o resultado não é o melhor.
Um tripulante de uma nave numa viagem de longa duração desperta da animação suspensa e vai deparar com a nave vazia. E está explicado o título. É uma ideia que poderia resultar num bom conto, mesmo com Lovecraft à mistura, se o autor tivesse sabido encontrar uma forma narrativa capaz de transmitir a angústia e de manter o suspense da situação, pois poucas coisas sustentam melhor uma história que um bom mistério.
Mas não soube. O que aqui está é um misto de relatório com narrativa pessoal, muito pouco envolvente, um infodump quase em estado puro sem nada de interessante na parte mais puramente literária da questão. A brevidade do texto ajuda a piorá-lo, pois esta história, para ser bem contada, para transmitir toda a informação relevante ao mesmo tempo que cria um ambiente e narra a investigação conducente ao desvendar de um mistério, precisaria de muito mais que cinco páginas. Talvez cinquenta não fossem demasiadas.
Velhíssima pecha de tantos autores lusófonos, esta de não deixarem as histórias respirar na extensão que pedem. O resultado é quase sempre fraco, e aqui não estamos perante uma exceção.
Contos anteriores deste livro:
Um tripulante de uma nave numa viagem de longa duração desperta da animação suspensa e vai deparar com a nave vazia. E está explicado o título. É uma ideia que poderia resultar num bom conto, mesmo com Lovecraft à mistura, se o autor tivesse sabido encontrar uma forma narrativa capaz de transmitir a angústia e de manter o suspense da situação, pois poucas coisas sustentam melhor uma história que um bom mistério.
Mas não soube. O que aqui está é um misto de relatório com narrativa pessoal, muito pouco envolvente, um infodump quase em estado puro sem nada de interessante na parte mais puramente literária da questão. A brevidade do texto ajuda a piorá-lo, pois esta história, para ser bem contada, para transmitir toda a informação relevante ao mesmo tempo que cria um ambiente e narra a investigação conducente ao desvendar de um mistério, precisaria de muito mais que cinco páginas. Talvez cinquenta não fossem demasiadas.
Velhíssima pecha de tantos autores lusófonos, esta de não deixarem as histórias respirar na extensão que pedem. O resultado é quase sempre fraco, e aqui não estamos perante uma exceção.
Contos anteriores deste livro:
terça-feira, 19 de julho de 2022
Irmãos Grimm: O Príncipe que não Tem Medo de Nada
Já o disse algumas vezes, mas repito agora: um dos problemas de ler contos tradicionais é o caráter repetitivo que muitos deles tomam, pois as ideias e elementos de enredo que trazem tendem muitas vezes a ser reutilizados, readaptados, reapresentados em múltiplas variações, como cartas de jogar baralhadas e voltadas a dar. As mãos podem ser diferentes, mas um sete de paus é um sete de paus, e só há um número limitado de jogadas que se podem fazer com ele.
Ora, personagens destemidas já por aqui apareceram bastantes, e protagonistas que partem pelo mundo em busca de aventuras ainda mais. E é precisamente isso o que faz O Príncipe que não Tem Medo de Nada, conto em que os Irmãos Grimm até parecem não ter intervindo muito, à parte, provavelmente, retocá-lo para o melhorar enquanto objeto literário.
Porque não tem medo de nada, o príncipe parte mundo fora, ganha a lealdade de um leão, mete-se em sarilhos com gigantes e, depois de muitos perigos e muito sofrimento, anula o feitiço a que estava sujeita uma donzela, evidentemente bela, e acaba casado com ela. Final feliz, que nestas histórias não há casamentos que não o sejam. Final feliz que nestas histórias é obrigatório.
A história deste Hércules principesco e teutónico até é uma boa história, pois as aventuras têm a sua graça. Mas a verdade é que existe sabedoria na edição destes contos em volumes pequenos com um só conto ou um punhado deles — quando vêm todos juntos tudo o que é repetitivo torna-se particularmente evidente e desgasta o desfrute da leitura. E este é o conto nº 121.
Contos anteriores deste livro:
Ora, personagens destemidas já por aqui apareceram bastantes, e protagonistas que partem pelo mundo em busca de aventuras ainda mais. E é precisamente isso o que faz O Príncipe que não Tem Medo de Nada, conto em que os Irmãos Grimm até parecem não ter intervindo muito, à parte, provavelmente, retocá-lo para o melhorar enquanto objeto literário.
Porque não tem medo de nada, o príncipe parte mundo fora, ganha a lealdade de um leão, mete-se em sarilhos com gigantes e, depois de muitos perigos e muito sofrimento, anula o feitiço a que estava sujeita uma donzela, evidentemente bela, e acaba casado com ela. Final feliz, que nestas histórias não há casamentos que não o sejam. Final feliz que nestas histórias é obrigatório.
A história deste Hércules principesco e teutónico até é uma boa história, pois as aventuras têm a sua graça. Mas a verdade é que existe sabedoria na edição destes contos em volumes pequenos com um só conto ou um punhado deles — quando vêm todos juntos tudo o que é repetitivo torna-se particularmente evidente e desgasta o desfrute da leitura. E este é o conto nº 121.
Contos anteriores deste livro:
domingo, 17 de julho de 2022
Leiturtugas #161
Olá a todos os que cá vêm ver o que anda a ser lido por aí no que toca a leiturtugas. Bem-vindos, e tal, mas hoje vão ficar por cá pouco tempo, que esta semana a colheita foi o mais escassa possível mantendo-se colheita. Como aliás já terão percebido, visto que estão a ler este post e já lhe viram o tamanho.
Já perceberam que só temos um comentário a divulgar. Chega-nos pela mão da «Charneca em Flor», e o livro que ela leu foi o romance A Jangada de Pedra, que José Saramago publicou em 1986 pela caminho. Não faço ideia se a leitura foi feita nalguma das edições da Caminho ou nas mais recentes da Porto Editora (ou de alguma das outras, que também as houve do Círculo de Leitores, por exemplo), pelo que o boneco junto é só indicativo, mas
sei que este livro não tem FC alguma.
E é tudo, não é? Até domingo.
Já perceberam que só temos um comentário a divulgar. Chega-nos pela mão da «Charneca em Flor», e o livro que ela leu foi o romance A Jangada de Pedra, que José Saramago publicou em 1986 pela caminho. Não faço ideia se a leitura foi feita nalguma das edições da Caminho ou nas mais recentes da Porto Editora (ou de alguma das outras, que também as houve do Círculo de Leitores, por exemplo), pelo que o boneco junto é só indicativo, mas
sei que este livro não tem FC alguma.
E é tudo, não é? Até domingo.
sábado, 16 de julho de 2022
Álamo Oliveira: Emanuel Félix (1936-2004) - A Evocação Possível
Em princípio, eu não falaria sobre este texto. A ideia aqui é escrever um pouco sobre a ficção que vou lendo, e um pouco sobre poesia, e tendo a deixar os artigos que encontro em revistas para menções rápidas na avaliação global da publicação que depois de ler tudo. Mas resolvi abrir aqui uma exceção. Porque este texto de Álamo Oliveira é um exemplo de como fazer bem este tipo de coisa.
Emanuel Félix (1936-2004) - A Evocação Possível é um elogio fúnebre a um poeta. Um elogio fúnebre escrito com simplicidade e conhecimento de causa, por alguém que está claramente ligado à academia mas não mostra qualquer espécie de vontade de se servir daquele tipo de linguagem academicista que tantas vezes se torna ridícula. Este é um texto claro, diria até mesmo cristalino, que faz um apanhado da obra do poeta falecido e explica por que motivo o autor a acha relevante.
Há exagero no elogio? Provavelmente. Os falecidos têm sempre mais qualidades na hora da morte. Mas o que fica é um texto que pode ser usado por qualquer pessoa para compreender quem foi o poeta e porque merece a evocação, sem pretensiosismos nem pedantismos.
Querem escrever textos destes? É assim que se faz.
Textos anteriores desta publicação:
Emanuel Félix (1936-2004) - A Evocação Possível é um elogio fúnebre a um poeta. Um elogio fúnebre escrito com simplicidade e conhecimento de causa, por alguém que está claramente ligado à academia mas não mostra qualquer espécie de vontade de se servir daquele tipo de linguagem academicista que tantas vezes se torna ridícula. Este é um texto claro, diria até mesmo cristalino, que faz um apanhado da obra do poeta falecido e explica por que motivo o autor a acha relevante.
Há exagero no elogio? Provavelmente. Os falecidos têm sempre mais qualidades na hora da morte. Mas o que fica é um texto que pode ser usado por qualquer pessoa para compreender quem foi o poeta e porque merece a evocação, sem pretensiosismos nem pedantismos.
Querem escrever textos destes? É assim que se faz.
Textos anteriores desta publicação:
sexta-feira, 15 de julho de 2022
Virgílio Várzea: A Vela dos Náufragos
Não surpreenderá ninguém que reconheça o design de capa (e o logotipo) que podem ver aqui ao lado que vos diga que este conto de Virgílio Várzea é sobre o mar, mesmo que não houvesse também o título de A Vela dos Náufragos a não deixar nenhum espaço para dúvidas. O título, de resto, logo indica que não é apenas sobre o mar e sim sobre naufrágios, e o conteúdo confirma.
Mais concretamente, é um conto sobre o perigo inerente à faina marítima e sobre a angústia de quem fica em terra e espera por notícias quando se sabe de tormentas e os marinheiros não regressam na altura prevista. E funciona, não digo que não. Mas apesar de Várzea, segundo julgo saber, se ter rebelado contra o romantismo literário, este seu conto ainda está imbuído de muitos tiques desse romantismo. Não tem fantástico, mas tem tragédia de faca e alguidar, tem uma adjetivação tão omnipresente que chega a tornar-se ridícula e tem vírgulas. Tem carradas e carradas de vírgulas.
São estilos? Sim, são estilos. Não há na escrita de Várzea nada que se possa apontar como incorreto. Mau gosto não é incorreção; não propriamente, pelo menos. Mas que é um estilo que detesto, é. E como a história se torna previsível assim que os seus alicerces e abordagem ficam estabelecidos, a leitura depressa se torna desagradável e a história arrasta-se penosamente até ao fim.
Isto está longe de ser grande literatura, e mais longe ainda está de ser literatura que me agrade minimamente. Não, não gostei.
Mais concretamente, é um conto sobre o perigo inerente à faina marítima e sobre a angústia de quem fica em terra e espera por notícias quando se sabe de tormentas e os marinheiros não regressam na altura prevista. E funciona, não digo que não. Mas apesar de Várzea, segundo julgo saber, se ter rebelado contra o romantismo literário, este seu conto ainda está imbuído de muitos tiques desse romantismo. Não tem fantástico, mas tem tragédia de faca e alguidar, tem uma adjetivação tão omnipresente que chega a tornar-se ridícula e tem vírgulas. Tem carradas e carradas de vírgulas.
São estilos? Sim, são estilos. Não há na escrita de Várzea nada que se possa apontar como incorreto. Mau gosto não é incorreção; não propriamente, pelo menos. Mas que é um estilo que detesto, é. E como a história se torna previsível assim que os seus alicerces e abordagem ficam estabelecidos, a leitura depressa se torna desagradável e a história arrasta-se penosamente até ao fim.
Isto está longe de ser grande literatura, e mais longe ainda está de ser literatura que me agrade minimamente. Não, não gostei.
segunda-feira, 11 de julho de 2022
Miguel Carqueija: Não É Humano
É uma conclusão provisória, o que implica que não é propriamente uma conclusão e sim uma hipótese, ou talvez apenas uma conjetura (são quase sinónimos, eu sei, mas entendo a conjetura como uma hipótese fraca), mas parece-me que Miguel Carqueija, que é quase sempre francamente mau quando tenta escrever FC ou coisas aparentadas, até se sai razoavelmente bem no horror.
Apoiam a hipótese o conto anterior e este Não é Humano, um conto lovecraftiano que pertence à sua série de Pedra Torta. E quando falo de lovecraftiano não me refiro a alusões vagas e semelhanças temático-estilísticas com as histórias de Lovecraft. Não. Este conto é tão lovecraftiano que o seu fulcro é o Necronomicon, mesmo que no volume 2 da obra maldita.
Com base nisso, Carqueija cria uma história interessante sobre uma raça de dinossauros sapientes (algo que outro autor brasileiro, Gerson Lodi-Ribeiro, também já explorou há muito tempo) que se esconde da humanidade, aguardando o momento de um confronto final com Cthulhu, o grande antigo que os teria quase levado à extinção há milhões de anos. Mas para isso têm de conservar o segredo sobre a existência dos Grandes Antigos, o que implica a destruição completa do Necronomicon e de outras obras do género.
Este não será um conto particularmente bom, mas é bastante razoável, muito melhor que as primeiras histórias deste livro, especialmente se ignorarmos a falha lógica básica deste enredo (e de muitos enredos semelhantes, que isto não é coisa só de Carqueija): se temos um grupo de pessoas ou, como neste caso, de não-pessoas, apostado em guardar um segredo a todo o custo, como é que esse grupo permite que as ficções sobre esse segredo venham a público?
Contos anteriores deste livro:
Apoiam a hipótese o conto anterior e este Não é Humano, um conto lovecraftiano que pertence à sua série de Pedra Torta. E quando falo de lovecraftiano não me refiro a alusões vagas e semelhanças temático-estilísticas com as histórias de Lovecraft. Não. Este conto é tão lovecraftiano que o seu fulcro é o Necronomicon, mesmo que no volume 2 da obra maldita.
Com base nisso, Carqueija cria uma história interessante sobre uma raça de dinossauros sapientes (algo que outro autor brasileiro, Gerson Lodi-Ribeiro, também já explorou há muito tempo) que se esconde da humanidade, aguardando o momento de um confronto final com Cthulhu, o grande antigo que os teria quase levado à extinção há milhões de anos. Mas para isso têm de conservar o segredo sobre a existência dos Grandes Antigos, o que implica a destruição completa do Necronomicon e de outras obras do género.
Este não será um conto particularmente bom, mas é bastante razoável, muito melhor que as primeiras histórias deste livro, especialmente se ignorarmos a falha lógica básica deste enredo (e de muitos enredos semelhantes, que isto não é coisa só de Carqueija): se temos um grupo de pessoas ou, como neste caso, de não-pessoas, apostado em guardar um segredo a todo o custo, como é que esse grupo permite que as ficções sobre esse segredo venham a público?
Contos anteriores deste livro:
domingo, 10 de julho de 2022
Leiturtugas #160
Olá, senhoras e senhores, meninos e meninas, chavalos e chavalas, alienígenas e etês e tudo o que de intermédio houver por aí. Esta, como provavelmente já terão percebido, é a relação das Leiturtugas da semana.
E sim, até houve, mas não foram muitas. Foram duas. Uma oficial e uma oficiosa.
A oficial coube-me a mim, Jorge Candeias de meu nome, graças a ter opinado sobre uma antologia temática publicada em 2013 pela Fantasy & Co. Apesar do tema ser o Halloween, o que remete de imediato para o horror ou a fantasia urbana, até traz num dos contos umas pitadas de FC, pelo que vou incluí-lo nos "com". 2c3s, portanto. Não temos é informação sobre quem organizou o livrinho, pelo que só há dois negritos neste parágrafo; talvez tenha sido coisa de comité.
A oficiosa vem via «Toupeira», a qual opinou sobre um romance fantástico de José Saramago. Não sei em que edição ela leu As Intermitências da Morte, provavelmente nalguma das edições recentes da Porto Editora, mas a edição original deste livro foi feita pela Caminho e data de 2005. Aqui não há FC.
E está tudo visto por esta semana. Encontramo-nos na próxima?
E sim, até houve, mas não foram muitas. Foram duas. Uma oficial e uma oficiosa.
A oficial coube-me a mim, Jorge Candeias de meu nome, graças a ter opinado sobre uma antologia temática publicada em 2013 pela Fantasy & Co. Apesar do tema ser o Halloween, o que remete de imediato para o horror ou a fantasia urbana, até traz num dos contos umas pitadas de FC, pelo que vou incluí-lo nos "com". 2c3s, portanto. Não temos é informação sobre quem organizou o livrinho, pelo que só há dois negritos neste parágrafo; talvez tenha sido coisa de comité.
A oficiosa vem via «Toupeira», a qual opinou sobre um romance fantástico de José Saramago. Não sei em que edição ela leu As Intermitências da Morte, provavelmente nalguma das edições recentes da Porto Editora, mas a edição original deste livro foi feita pela Caminho e data de 2005. Aqui não há FC.
E está tudo visto por esta semana. Encontramo-nos na próxima?
sábado, 9 de julho de 2022
Irmãos Grimm: Os Três Aprendizes
O inesperado, na literatura, é sempre um bom amigo que o eu leitor reencontra com um abraço e um sorriso. Especialmente quando lê coisas em que ele não abunda, como contos tradicionais, consabidamente feitos em boa medida de retalhos remastigados e reutilizados à medida das necessidades. E sim, é verdade que há muito de repetido neste Os Três Aprendizes, conto que é mesmo dos Irmãos Grimm, construído a partir de outros dois. Não é a primeira vez que se encontram aqui aprendizes, o número três é repetido até à exaustão, há fartura de outros contos em que os protagonistas partem pelo mundo fora, e mesmo tratos faustianos já apareceram vários nestas páginas.
O que é inesperado aqui não é tanto ou propriamente o que aqui se encontra. É já não ser a primeira vez que aparece um trato faustiano em que aqueles que vendem a alma ao Demo se dão bem com o negócio.
Porque é disso que aqui se trata. Os três aprendizes, sem encontrarem trabalho, veem-se obrigados a aceitar um negócio proposto pelo Diabo, e no fim tudo termina em bem, eles ricos e livres, o Diabo com a alma que queria apanhar (nenhuma das deles), e eu a pensar no motivo que poderá levar o povo teutónico a criar histórias destas.
Também poderia pensar nas razões que obrigam o Diabo a recorrer a este tipo de estratagemas para apanhar a alma de um criminoso, mas não vale a pena procurar lógica nestas histórias. Se valesse, podíamos perguntar: mas então o crime não garante o inferno, segundo os crentes? Nesse caso, para quê tanta coisa, se bastaria esperar? Não se percebe.
O inesperado é um bom amigo, e aqui espreitou. Ainda bem.
Contos anteriores deste livro:
O que é inesperado aqui não é tanto ou propriamente o que aqui se encontra. É já não ser a primeira vez que aparece um trato faustiano em que aqueles que vendem a alma ao Demo se dão bem com o negócio.
Porque é disso que aqui se trata. Os três aprendizes, sem encontrarem trabalho, veem-se obrigados a aceitar um negócio proposto pelo Diabo, e no fim tudo termina em bem, eles ricos e livres, o Diabo com a alma que queria apanhar (nenhuma das deles), e eu a pensar no motivo que poderá levar o povo teutónico a criar histórias destas.
Também poderia pensar nas razões que obrigam o Diabo a recorrer a este tipo de estratagemas para apanhar a alma de um criminoso, mas não vale a pena procurar lógica nestas histórias. Se valesse, podíamos perguntar: mas então o crime não garante o inferno, segundo os crentes? Nesse caso, para quê tanta coisa, se bastaria esperar? Não se percebe.
O inesperado é um bom amigo, e aqui espreitou. Ainda bem.
Contos anteriores deste livro:
Haruki Murakami: Crónica do Pássaro de Corda
Haruki Murakami é reconhecidamente um autor prolixo. Passando os olhos pelas suas obras nas livrarias saltam à vista vários livros razoavelmente anafados, ainda que nenhum o seja tanto como a sua obra mais conhecida, 1Q84. E esta Crónica do Pássaro de Corda insere-se no grupo de livros que podem receber sem grande levantar de sobrancelhas a designação de "calhamaço": são, nesta edição de bolso (ha! boa piada. Quem tem um bolso onde isto caiba?), 630 páginas de letra miudinha e texto denso.
Mas não foi por isso que levei tanto tempo a lê-lo: mais de um ano. Ou não foi principalmente por isso, melhor dizendo, visto que a extensão certamente contribuiu.
Peguei nele numa altura complicada da minha vida, e desde que o fiz a minha disponibilidade para ler (e a vontade, também) sofreu oscilações bastante grandes mas esteve de um modo geral significativamente abaixo do que é hábito. Passei por períodos em que não li nada, ou quase, e por outros períodos mais extensos em que me aborrecia sobremaneira pegar em alguma leitura que não fosse um conto, por não ter disponibilidade mental para encarar leituras mais extensas. E o pobre do Murakami não só ficou arrumado a um canto quando todos os outros livros sofreram o mesmo destino, como ainda por cima se viu preterido pelos outros quando eu resolvia sacudir o pó às leituras em curso.
Claro que neste contexto a apreciação da leitura foi prejudicada, muito embora eu continue a conservar uma boa capacidade de recuperação do fio às meadas literárias mesmo depois de longos hiatos e com outras leituras pelo meio. Boa mas não perfeita. Com tempos de leitura tão espaçados por hiatos tão longos suponho que seja inevitável que qualquer coisa fique pelo caminho.
Mais um pouco quando o livro lido é tudo menos simples. Murakami tece aqui uma densa teia de personagens, acontecimentos, tantas vezes bizarros, interligações, frequentemente tudo menos claras, mistérios vários. É fácil perder o fio à meada, mesmo para quem lê o livro com a pacatez das leituras sequenciais e contínuas. Mais fácil se torna se a leitura é ela mesma turbulenta.
O romance é escrito na primeira pessoa. O narrador e protagonista, um tal Okada, é um profissional que perde o emprego e se resigna a uma vida doméstica, alegadamente para escrever o romance que sempre quisera escrever e nunca tivera tempo. A mulher apoia-o... mas de repente desaparece sem dizer água-vai e a vida de Okada passa a ser regida pela sua busca. Mas antes ainda já começara a ver-se assolada pela bizarria. Um gato que desaparece, o que deixa a mulher à beira de um ataque de nervos, um telefonema de uma mulher misteriosa, um poço seco que o atrai, no jardim de uma casa abandonada no quarteirão em que mora, uma adolescente problemática que o trata como se sempre o tivesse conhecido e parece saber sempre mais do que o que diz. E por aí fora.
O livro é surreal, repleto daquela espécie de magia que se imiscui quase sem darmos por isso no ramerrame quotidiano. Ou por outra, "repleto" talvez não seja o termo mais adequado, pois ela aparece de mansinho, de forma ambígua, só se tornando clara já o número de páginas lidas se conta em centenas. Só no fim, talvez, o termo seja o mais próprio, visto que o caráter fantástico do livro vai sempre em crescendo, culminando numa sequência passada numa espécie de mundo secundário, um lugar onde Okada chega atravessando paredes que o teleportam entre o fundo de um poço e uma espécie de hotel de estranha topologia, onde acaba por travar um duelo violento.
Terminei a leitura com a sensação de que há neste livro simbolismos que não alcanço. Qualquer coisa relacionada com a cultura japonesa, talvez, ou talvez qualquer coisa de um caráter mais filosófico. Ou talvez nada, talvez seja simples sensação sem um fundo de verdade por trás. Talvez seja só consequência da instabilidade na leitura. Talvez. O certo é que me pareceu que há no romance várias meadas cujos fios ficam algures em suspenso, sem serem amarrados, ou sendo-o apenas parcialmente. Um exemplo, pedem vocês?
OK, um exemplo então. O principal motor de todo o romance, aquilo que mais contribui para fazer avançar o enredo é o mistério que rodeia não só o desaparecimento da mulher de Okada mas a própria natureza da família dela, e sobretudo do seu irmão. Não é o único, atenção: há por exemplo longos trechos que se relacionam com isso só de uma forma muito oblíqua e se debruçam sobre aquilo por que passaram os soldados japoneses durante e depois da II Guerra Mundial. Mas é o principal.
É que embora o próprio Okada seja basicamente um plebeu, um pequeno-burguês de origens modestas, a mulher é menina de boas famílias. Pai e irmão fazem parte da elite político-económica do Japão, facto que cria desde sempre problemas ao casal. Para piorar as coisas, o irmão é apresentado como uma criatura francamente sinistra, uma espécie de psicopata, frio, manipulador e por isso mesmo extremamente bem sucedido. Sim, há um certo ódio de Okada, que é, relembre-se, o narrador do romance, pelo cunhado, um ódio que o leitor passa boa parte do romance sem perceber bem se é justificado ou não.
E é precisamente essa figura sinistra a surgir no centro de tudo, dos vários fios de que se tece o romance. Mas se a sua ligação a alguns desses fios e às tantas vezes bizarras personagens que os protagonizam fica clara, a de outros não o fica de todo, é no máximo sugerida. E no fim, o grande homem cai num coma profundo mas ninguém parece ser capaz de dizer ao certo o que é feito dele. Há o tal duelo de que falo acima, mas também este tem resultados ambíguos, até porque é travado num mundo onírico que não é bem o nosso, embora tenha impacto direto sobre o nosso.
E os trechos relacionados com as campanhas japonesas na China e com as vivências dos prisioneiros japoneses nos campos de prisioneiros de guerra na Rússia também parecem não ter relação quase nenhuma com o corpo principal do romance, à parte um detalhe: o homem que os conta tem uma experiência trancendental no fundo de um poço onde é abandonado à morte e do qual consegue escapar de forma milagrosa, o que leva a que Okada procure alguma espécie de iluminação no fundo do poço seco na vizinhança da sua casa. Procure e encontre, o que justifica a digressão... mas mesmo assim esta parece demasiado extensa e detalhada para o impacto que tem na história principal.
Daí, julgo, esta impressão de que há qualquer coisa oculta no romance que não fui capaz de entrever. Por outro lado, também é possível que todos esses fios soltos sejam apenas isso, fios soltos, deixados por Murakami como uma espécie qualquer de comentário à imperfeição da vida. Esta, afinal, também é muito feita de fios soltos, de potencialidades nunca concretizadas, de histórias incompletas, de vidas que se cruzam brevemente com outras sem deixarem nelas grande rasto ou impacto. De imprevisibilidade. De caos.
Talvez seja esse o grande tema deste livro, o caos? Okada, afinal, passa o livro inteiro a ser confrontado com acontecimentos caóticos que lhe deixam a vida de pantanas, aos quais reage de forma quase instintiva sem saber bem o que está a fazer. A sua vida é dominada por outras pessoas, e ele é um barquinho na tormenta, tentando navegar o melhor possível com a sua pequena vela e o seu frágil leme. Sem saber bem como, quase só à força de teimosia e graças à ajuda de aliados que não compreende, acaba por conseguir o que queria. Mais ou menos, porque nunca nada é perfeito. No fundo talvez seja isso. Apenas isso.
É complexo, o livro, isso é. E bom. Mas não sei bem se gostei tanto como me parece que gostei. Talvez tenha gostado; afinal, o livro deixou-me a pensar e é sempre positivo quando isso acontece. Mas vai demorar bastante tempo até regressar a Murakami. Deverei regressar, mas não será em breve. É dos tais escritores de degustação lenta, o que não é nem bom nem mau, limita-se a ser.
Este livro foi comprado.
Mas não foi por isso que levei tanto tempo a lê-lo: mais de um ano. Ou não foi principalmente por isso, melhor dizendo, visto que a extensão certamente contribuiu.
Peguei nele numa altura complicada da minha vida, e desde que o fiz a minha disponibilidade para ler (e a vontade, também) sofreu oscilações bastante grandes mas esteve de um modo geral significativamente abaixo do que é hábito. Passei por períodos em que não li nada, ou quase, e por outros períodos mais extensos em que me aborrecia sobremaneira pegar em alguma leitura que não fosse um conto, por não ter disponibilidade mental para encarar leituras mais extensas. E o pobre do Murakami não só ficou arrumado a um canto quando todos os outros livros sofreram o mesmo destino, como ainda por cima se viu preterido pelos outros quando eu resolvia sacudir o pó às leituras em curso.
Claro que neste contexto a apreciação da leitura foi prejudicada, muito embora eu continue a conservar uma boa capacidade de recuperação do fio às meadas literárias mesmo depois de longos hiatos e com outras leituras pelo meio. Boa mas não perfeita. Com tempos de leitura tão espaçados por hiatos tão longos suponho que seja inevitável que qualquer coisa fique pelo caminho.
Mais um pouco quando o livro lido é tudo menos simples. Murakami tece aqui uma densa teia de personagens, acontecimentos, tantas vezes bizarros, interligações, frequentemente tudo menos claras, mistérios vários. É fácil perder o fio à meada, mesmo para quem lê o livro com a pacatez das leituras sequenciais e contínuas. Mais fácil se torna se a leitura é ela mesma turbulenta.
O romance é escrito na primeira pessoa. O narrador e protagonista, um tal Okada, é um profissional que perde o emprego e se resigna a uma vida doméstica, alegadamente para escrever o romance que sempre quisera escrever e nunca tivera tempo. A mulher apoia-o... mas de repente desaparece sem dizer água-vai e a vida de Okada passa a ser regida pela sua busca. Mas antes ainda já começara a ver-se assolada pela bizarria. Um gato que desaparece, o que deixa a mulher à beira de um ataque de nervos, um telefonema de uma mulher misteriosa, um poço seco que o atrai, no jardim de uma casa abandonada no quarteirão em que mora, uma adolescente problemática que o trata como se sempre o tivesse conhecido e parece saber sempre mais do que o que diz. E por aí fora.
O livro é surreal, repleto daquela espécie de magia que se imiscui quase sem darmos por isso no ramerrame quotidiano. Ou por outra, "repleto" talvez não seja o termo mais adequado, pois ela aparece de mansinho, de forma ambígua, só se tornando clara já o número de páginas lidas se conta em centenas. Só no fim, talvez, o termo seja o mais próprio, visto que o caráter fantástico do livro vai sempre em crescendo, culminando numa sequência passada numa espécie de mundo secundário, um lugar onde Okada chega atravessando paredes que o teleportam entre o fundo de um poço e uma espécie de hotel de estranha topologia, onde acaba por travar um duelo violento.
Terminei a leitura com a sensação de que há neste livro simbolismos que não alcanço. Qualquer coisa relacionada com a cultura japonesa, talvez, ou talvez qualquer coisa de um caráter mais filosófico. Ou talvez nada, talvez seja simples sensação sem um fundo de verdade por trás. Talvez seja só consequência da instabilidade na leitura. Talvez. O certo é que me pareceu que há no romance várias meadas cujos fios ficam algures em suspenso, sem serem amarrados, ou sendo-o apenas parcialmente. Um exemplo, pedem vocês?
OK, um exemplo então. O principal motor de todo o romance, aquilo que mais contribui para fazer avançar o enredo é o mistério que rodeia não só o desaparecimento da mulher de Okada mas a própria natureza da família dela, e sobretudo do seu irmão. Não é o único, atenção: há por exemplo longos trechos que se relacionam com isso só de uma forma muito oblíqua e se debruçam sobre aquilo por que passaram os soldados japoneses durante e depois da II Guerra Mundial. Mas é o principal.
É que embora o próprio Okada seja basicamente um plebeu, um pequeno-burguês de origens modestas, a mulher é menina de boas famílias. Pai e irmão fazem parte da elite político-económica do Japão, facto que cria desde sempre problemas ao casal. Para piorar as coisas, o irmão é apresentado como uma criatura francamente sinistra, uma espécie de psicopata, frio, manipulador e por isso mesmo extremamente bem sucedido. Sim, há um certo ódio de Okada, que é, relembre-se, o narrador do romance, pelo cunhado, um ódio que o leitor passa boa parte do romance sem perceber bem se é justificado ou não.
E é precisamente essa figura sinistra a surgir no centro de tudo, dos vários fios de que se tece o romance. Mas se a sua ligação a alguns desses fios e às tantas vezes bizarras personagens que os protagonizam fica clara, a de outros não o fica de todo, é no máximo sugerida. E no fim, o grande homem cai num coma profundo mas ninguém parece ser capaz de dizer ao certo o que é feito dele. Há o tal duelo de que falo acima, mas também este tem resultados ambíguos, até porque é travado num mundo onírico que não é bem o nosso, embora tenha impacto direto sobre o nosso.
E os trechos relacionados com as campanhas japonesas na China e com as vivências dos prisioneiros japoneses nos campos de prisioneiros de guerra na Rússia também parecem não ter relação quase nenhuma com o corpo principal do romance, à parte um detalhe: o homem que os conta tem uma experiência trancendental no fundo de um poço onde é abandonado à morte e do qual consegue escapar de forma milagrosa, o que leva a que Okada procure alguma espécie de iluminação no fundo do poço seco na vizinhança da sua casa. Procure e encontre, o que justifica a digressão... mas mesmo assim esta parece demasiado extensa e detalhada para o impacto que tem na história principal.
Daí, julgo, esta impressão de que há qualquer coisa oculta no romance que não fui capaz de entrever. Por outro lado, também é possível que todos esses fios soltos sejam apenas isso, fios soltos, deixados por Murakami como uma espécie qualquer de comentário à imperfeição da vida. Esta, afinal, também é muito feita de fios soltos, de potencialidades nunca concretizadas, de histórias incompletas, de vidas que se cruzam brevemente com outras sem deixarem nelas grande rasto ou impacto. De imprevisibilidade. De caos.
Talvez seja esse o grande tema deste livro, o caos? Okada, afinal, passa o livro inteiro a ser confrontado com acontecimentos caóticos que lhe deixam a vida de pantanas, aos quais reage de forma quase instintiva sem saber bem o que está a fazer. A sua vida é dominada por outras pessoas, e ele é um barquinho na tormenta, tentando navegar o melhor possível com a sua pequena vela e o seu frágil leme. Sem saber bem como, quase só à força de teimosia e graças à ajuda de aliados que não compreende, acaba por conseguir o que queria. Mais ou menos, porque nunca nada é perfeito. No fundo talvez seja isso. Apenas isso.
É complexo, o livro, isso é. E bom. Mas não sei bem se gostei tanto como me parece que gostei. Talvez tenha gostado; afinal, o livro deixou-me a pensar e é sempre positivo quando isso acontece. Mas vai demorar bastante tempo até regressar a Murakami. Deverei regressar, mas não será em breve. É dos tais escritores de degustação lenta, o que não é nem bom nem mau, limita-se a ser.
Este livro foi comprado.
sexta-feira, 8 de julho de 2022
Escrita de junho
Olá, olá, aqui é o Jorge que escreve. Estou de volta. Tinham saudades? Já não conversávamos desde... hm... deixa ver... fevereiro?...
Foi muito tempo, foi. Não tanto como podia ter sido, que da última vez que parei de escrever houve um interregno que na prática durou anos, mas cinco meses sempre são cinco meses. Quase meio ano. Horas e mais horas de criatividade morta. Ou morta-viva, pelo menos.
Mas sim, estou de volta.
Não que tenha escrito muito. Os recomeços são sempre difíceis. Lentos. E não se deu propriamente o caso de ter chegado o dia 1 de junho e pumba, toca a escrever. Não. Nada disso. Foi um processo gradual iniciado em meados do mês, primeiro a reler as últimas dezenas de páginas do texto em execução, a alterar uma coisa aqui, a remover outra ali, a acrescentar acolá, e depois sim e finalmente, toca a continuar onde tinha parado.
Tudo somado, em junho o romance cresceu mais seis páginas. Umas duas mil palavras. E só trabalhei nele, não houve ficção escrita fora dele. Não é muito? Não, não é. Mas para recomeço está ótimo.
Sim, estou de volta.
Até ao mês que vem.
Vários: Halloween
Não sou grande fã do Halloween, para não dizer que não sou nada fã do halloween. Não encontro interesse nenhum na ideia de andar pelas ruas disfarçado de monstro, a tocar à porta de quem muitas vezes tem mais que fazer, a fim de tentar obter guloseimas. E se é certo que esta é a visão do Jorge adulto que muitas vezes está a tentar concentrar-se quando o vêm chatear com toques na porta ou telefonemas, recordando quem era o Jorge de 7 ou 8 anos e a relação que tinha com carnavais e coisas que tais, posso afirmar com bastante segurança que nunca encontrei interesse nenhum em tais festas.
Assim, não surpreenderá ninguém se disser que tendo a encontrar muito pouco interesse na arte que se faz com base no Halloween. Os numerosos filmes americanos que têm o Halloween como tema ou cenário tendem a encher-me de bocejos, e a literatura idem aspas.
Há exceções, naturalmente. Há sempre. Bradbury, por exemplo, era um homem que gostava do Halloween e fez alguns contos magníficos em volta do tema. E há outros por aí.
Assim, foi desconfiado mas expectante que peguei neste ebook. Expectante sobretudo para ver o que portugueses, que não têm a festa halloweenesca no âmago da sua cultura, ao contrário dos americanos, poderiam fazer com ela. Não tanto expectante no sentido de esperar grande qualidade, em parte, precisamente, por não haver uma relação íntima entre Portugal e os portugueses e o halloween. Esperava na melhor das hipóteses uns quantos contos interessantes mas algo artificiais, com alguma carência de genuinidade. Na melhor das hipóteses.
E foi mais ou menos o que encontrei nesta antologia.
Tanto mais que alguns dos contos só de raspão roçam o Halloween. Chekhov's Gun, por exemplo, que talvez seja o melhor conto aqui presente, pouco ou nada tem a ver com o tema, e não é a única história a afastar-se dele significativamente. As que não o fazem remetem quase sempre para o imaginário cinematográfico, misturando-o por vezes com histórias fantásticas mais próximas de nós. É o que faz A Menina que não Gostava de Doces, por exemplo, provavelmente a segunda melhor história e a que mais se aproxima do tipo de contos que Bradbury fazia.
Tudo somado, esta foi uma leitura razoável a atitar para o fraco, com um par de contos mais interessantes a contribuir para que o tempo gasto a fazê-la acabe por não ter sido mal empregue.
Eis o que achei de cada uma das histórias:
Assim, não surpreenderá ninguém se disser que tendo a encontrar muito pouco interesse na arte que se faz com base no Halloween. Os numerosos filmes americanos que têm o Halloween como tema ou cenário tendem a encher-me de bocejos, e a literatura idem aspas.
Há exceções, naturalmente. Há sempre. Bradbury, por exemplo, era um homem que gostava do Halloween e fez alguns contos magníficos em volta do tema. E há outros por aí.
Assim, foi desconfiado mas expectante que peguei neste ebook. Expectante sobretudo para ver o que portugueses, que não têm a festa halloweenesca no âmago da sua cultura, ao contrário dos americanos, poderiam fazer com ela. Não tanto expectante no sentido de esperar grande qualidade, em parte, precisamente, por não haver uma relação íntima entre Portugal e os portugueses e o halloween. Esperava na melhor das hipóteses uns quantos contos interessantes mas algo artificiais, com alguma carência de genuinidade. Na melhor das hipóteses.
E foi mais ou menos o que encontrei nesta antologia.
Tanto mais que alguns dos contos só de raspão roçam o Halloween. Chekhov's Gun, por exemplo, que talvez seja o melhor conto aqui presente, pouco ou nada tem a ver com o tema, e não é a única história a afastar-se dele significativamente. As que não o fazem remetem quase sempre para o imaginário cinematográfico, misturando-o por vezes com histórias fantásticas mais próximas de nós. É o que faz A Menina que não Gostava de Doces, por exemplo, provavelmente a segunda melhor história e a que mais se aproxima do tipo de contos que Bradbury fazia.
Tudo somado, esta foi uma leitura razoável a atitar para o fraco, com um par de contos mais interessantes a contribuir para que o tempo gasto a fazê-la acabe por não ter sido mal empregue.
Eis o que achei de cada uma das histórias:
- A Menina que não Gostava de Doces
- Morte Branca
- Bruxaria
- A Noite de Todas as Sombras
- Chekhov's Gun
- Se Uma Árvore Cai na Floresta...
quinta-feira, 7 de julho de 2022
Agustina Bessa-Luís: Casamento e Fuga
Há na literatura, e na verdade noutras formas de arte também, uma certa obsessão com o passado, não sei ao certo se por interesse dos autores, se por vontade do público, se por uma mistura das duas coisas. Seja como for, o registo histórico (ou pseudo histórico... como na fantasia, por exemplo) é frequente e a presença constante nas livrarias de literatura com um ou ambos os pés no passado mostra que o público existe. Mas eu não faço parte dele. Pelo menos não do seu quinhão mais dedicado.
O que quero dizer com isto é que não renego a literatura de base história, e por vezes gosto de a ler, mas de uma forma geral prefiro outra. Tal como entre uma história que gira em torno de casamentos e relações amorosas e outra que se debruce sobre coisas menos telenoveleiras, geralmente prefiro esta última. E tudo isto significa que este Casamento e Fuga de Agustina Bessa-Luís saiu da linha de partida logo em desvantagem. Porque é, precisamente, uma história que gira em torno de casamentos (ou não) e relações amorosas (ou nem tanto) que se passa no princípio do século XX.
Não é surpresa para ninguém que a autora escreve bem, pelo que nem vale a pena mencionar o facto. Também não é surpresa para ninguém que tem na condição feminina, um dos seus principais temas, ou pelo menos a sociedade patriarcal e os seus efeitos. Por conseguinte não será surpresa que este seja um bom conto que descreve, com ironia e verve, as múltiplas relações de um namorador quase profissional no Porto dos anos 20. E sim, é um bom conto. Mas aborreceu-me imenso, porque o meu desinteresse pelo tema é total e a literatura não o compensa. Quero lá saber da multiplicidade de namoradas simultâneas de um galãzeco tripeiro de há 100 anos.
E sim, não me passou despercebido que Agustina traça ao mesmo tempo um retrato da burguesia portuense da época, dos seus valores e das suas prioridades. E sim, sei que essa é a raiz de muito conservadorismo contemporâneo. Mas o que eu sinto por esse conservadorismo não é curiosidade, não é interesse: é repulsa. Portanto não, não gostei deste conto.
Mas é um bom conto, lá isso...
O que quero dizer com isto é que não renego a literatura de base história, e por vezes gosto de a ler, mas de uma forma geral prefiro outra. Tal como entre uma história que gira em torno de casamentos e relações amorosas e outra que se debruce sobre coisas menos telenoveleiras, geralmente prefiro esta última. E tudo isto significa que este Casamento e Fuga de Agustina Bessa-Luís saiu da linha de partida logo em desvantagem. Porque é, precisamente, uma história que gira em torno de casamentos (ou não) e relações amorosas (ou nem tanto) que se passa no princípio do século XX.
Não é surpresa para ninguém que a autora escreve bem, pelo que nem vale a pena mencionar o facto. Também não é surpresa para ninguém que tem na condição feminina, um dos seus principais temas, ou pelo menos a sociedade patriarcal e os seus efeitos. Por conseguinte não será surpresa que este seja um bom conto que descreve, com ironia e verve, as múltiplas relações de um namorador quase profissional no Porto dos anos 20. E sim, é um bom conto. Mas aborreceu-me imenso, porque o meu desinteresse pelo tema é total e a literatura não o compensa. Quero lá saber da multiplicidade de namoradas simultâneas de um galãzeco tripeiro de há 100 anos.
E sim, não me passou despercebido que Agustina traça ao mesmo tempo um retrato da burguesia portuense da época, dos seus valores e das suas prioridades. E sim, sei que essa é a raiz de muito conservadorismo contemporâneo. Mas o que eu sinto por esse conservadorismo não é curiosidade, não é interesse: é repulsa. Portanto não, não gostei deste conto.
Mas é um bom conto, lá isso...
segunda-feira, 4 de julho de 2022
Pedro Cipriano: A Passagem Uivante
É interessante mas tem vários defeitos, este conto de Pedro Cipriano ambientado num futuro indeterminado em que Portugal e, pelos vistos, também a Galiza, está mergulhado numa guerra civil travada com tanques e nenhuma tecnologia a que se possa chamar futurista. O ambiente parece decalcado das histórias de guerra ambientadas na II Guerra Mundial, e esse é um dos seus defeitos. Há uma incongruência entre o futuro em que a história se passa (e é mesmo futuro, não um presente alternativo, visto haver referências a uma Europa unida) e o nível tecnológico que apresenta.
Também é demasiado curto, este A Passagem Uivante (bibliografia), o que leva ao aparecimento de infodumps e "como-sabes-zés", usados para fornecer rapidamente a informação de que o leitor precisa. Um conto mais longo teria espaço para transmitir essa informação de uma forma mais agradável e também para desenvolver melhor as personagens, o que ajudaria a criar empatia, o que por sua vez aumentaria o interesse pelo seu destino. Assim tudo parece apressado e um tanto ou quanto incompleto. A quase todos os níveis.
Mas apesar disso, é um conto com o seu interesse por falar de liberdade e dos seus limites, e das escolhas que subsistem quando esses limites são atingidos. Podia ser melhor? Podia. Mas não é mau.
Contos anteriores desta publicação:
Também é demasiado curto, este A Passagem Uivante (bibliografia), o que leva ao aparecimento de infodumps e "como-sabes-zés", usados para fornecer rapidamente a informação de que o leitor precisa. Um conto mais longo teria espaço para transmitir essa informação de uma forma mais agradável e também para desenvolver melhor as personagens, o que ajudaria a criar empatia, o que por sua vez aumentaria o interesse pelo seu destino. Assim tudo parece apressado e um tanto ou quanto incompleto. A quase todos os níveis.
Mas apesar disso, é um conto com o seu interesse por falar de liberdade e dos seus limites, e das escolhas que subsistem quando esses limites são atingidos. Podia ser melhor? Podia. Mas não é mau.
Contos anteriores desta publicação:
domingo, 3 de julho de 2022
Leiturtugas #159
Mais uma semana, e a malta continua a ler e a comentar o que lê, e parte dessas leituras são made in Portugal. Leiturtugas, portanto. Eis a lista do que encontrei por aí.
Não foi muito. Entre os participantes oficiais no projeto só o Artur Coelho publicou alguma coisa relevante. O Artur parece andar a investigar a obra do Reinaldo Ferreira, aka Repórter X, o autor pulp tuga por excelência (se bem que "excelência" seja uma palavra francamente excessiva neste contexto), e esta semana coube a vez a O Mistério da Rua Saraiva de Carvalho (não, não há cá Otelos), um mirabolante romance de espionagem que foi republicado em 2017 pela Pim! Não tem FC, pelo que o Artur passa a 2c10s.
Quanto aos oficiosos, chegaram-me três opiniões.
A «Toupeira» leu Francisco José Viegas, autor conhecido sobretudo por histórias policiais, mas encontrou no seu Regresso por um Rio "uma atmosfera de sonho, de fantástico, de lenda até [...] uma pitada de sobrenatural". Não sei em que edição ela leu o livro, que data originalmente de 1987. Uma coisa é certa: nada de FC.
Já o Artur leu o mais recente livro de José Carlos Barros, intitulado As Pessoas Invisíveis e publicado há um par de meses pela Leya. Também aqui não existe nenhum sinal de FC.
E por fim, a «Sabine» comenta outro livro sobre Saramago, onde poderá eventualmente haver alguma menção a FC e a coisas da FC mas onde julgo que a probabilidade de tal acontecer é baixíssima. Quase nula, mesmo. Intitula-se o livro A Espiritualidade Clandestina de José Saramago, consiste de um ensaio literário de Manuel Frias Martins, e foi publicado em março último pela Fundação José Saramago. Pelo que ficou dito acima vou contar como "sem FC".
E pronto, por esta semana estamos conversados. Venha a próxima.
Não foi muito. Entre os participantes oficiais no projeto só o Artur Coelho publicou alguma coisa relevante. O Artur parece andar a investigar a obra do Reinaldo Ferreira, aka Repórter X, o autor pulp tuga por excelência (se bem que "excelência" seja uma palavra francamente excessiva neste contexto), e esta semana coube a vez a O Mistério da Rua Saraiva de Carvalho (não, não há cá Otelos), um mirabolante romance de espionagem que foi republicado em 2017 pela Pim! Não tem FC, pelo que o Artur passa a 2c10s.
Quanto aos oficiosos, chegaram-me três opiniões.
A «Toupeira» leu Francisco José Viegas, autor conhecido sobretudo por histórias policiais, mas encontrou no seu Regresso por um Rio "uma atmosfera de sonho, de fantástico, de lenda até [...] uma pitada de sobrenatural". Não sei em que edição ela leu o livro, que data originalmente de 1987. Uma coisa é certa: nada de FC.
Já o Artur leu o mais recente livro de José Carlos Barros, intitulado As Pessoas Invisíveis e publicado há um par de meses pela Leya. Também aqui não existe nenhum sinal de FC.
E por fim, a «Sabine» comenta outro livro sobre Saramago, onde poderá eventualmente haver alguma menção a FC e a coisas da FC mas onde julgo que a probabilidade de tal acontecer é baixíssima. Quase nula, mesmo. Intitula-se o livro A Espiritualidade Clandestina de José Saramago, consiste de um ensaio literário de Manuel Frias Martins, e foi publicado em março último pela Fundação José Saramago. Pelo que ficou dito acima vou contar como "sem FC".
E pronto, por esta semana estamos conversados. Venha a próxima.
sábado, 2 de julho de 2022
Luisa Villalta: Estudo das Sombras
Isto, para variar, não é uma opinião. É simplesmente um texto que serve apenas para registar a presença de Estudo das Sombras nesta revista e para confessar incompetência. É que Luisa Villalta é galega, escreve com a ortografia castelhanizada oficial na Galiza, que para um português pouco familiarizado com ela gera um estranhamento que a grafia reintegracionista não gera, aumentando de forma significativa a proporção de incompreensão, e por conseguinte este poema passou-me basicamente ao lado.
Existe. Pronto. Venha o texto seguinte.
Textos anteriores desta publicação:
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sexta-feira, 1 de julho de 2022
Miguel Carqueija: O que Existe Entre as Estações do Metrô
É significativamente melhor que os dois contos anteriores, este O que Existe Entre as Estações do Metrô. Breve mas eficaz, este conto de Miguel Carqueija é uma história muito clássica de horror, escrita em forma de depoimento de um homem que vê monstros nos túneis do metro do Rio de Janeiro e decide fazer qualquer coisa a esse respeito.
A primeira parte do conto, a mais extensa, consiste basicamente numa descrição das monstruosidades que ele vislumbra ao longo dos trajetos que faz, e o epílogo, muito curto, é um breve par de parágrafos escritos pelo detetive destacado para investigar o caso, que servem para contextualizar o resto e até dar ao todo um final surpresa.
Não sendo perfeito, contendo algumas falhas, inclusive ortográficas ("ei de"? Que aconteceu ao agá?), julgo que este conto chega claramente ao patamar do "bom".
Contos anteriores deste livro:
A primeira parte do conto, a mais extensa, consiste basicamente numa descrição das monstruosidades que ele vislumbra ao longo dos trajetos que faz, e o epílogo, muito curto, é um breve par de parágrafos escritos pelo detetive destacado para investigar o caso, que servem para contextualizar o resto e até dar ao todo um final surpresa.
Não sendo perfeito, contendo algumas falhas, inclusive ortográficas ("ei de"? Que aconteceu ao agá?), julgo que este conto chega claramente ao patamar do "bom".
Contos anteriores deste livro:
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