sexta-feira, 29 de junho de 2012

Lido: A Cabeleira

A Cabeleira, de Guy de Maupassant, é um daqueles contos fantásticos que pretendem deixar o leitor na dúvida sobre se o que é nele contado é ou não verdade. Tem a curiosidade de ser narrado ao mesmo tempo na primeira pessoa, na terceira e de novo na primeira. Confusos? É caso para isso. É que o narrador, que obviamente fala de si próprio na primeira pessoa, quase se limita a passar ao papel uma história que lhe é transmitida por um médico psiquiatra, ao qual se refere na terceira pessoa. Mas este não conta a história de memória; lê-la de um depoimento escrito pelo punho de um dos seus pacientes. E este, o verdadeiro protagonista do conto, descreve uma relação que terá tido com um fantasma, o fantasma de uma mulher que se mantém presa à sua antiga cabeleira (daí o título). Descreve-a, está bom de ver-se, na primeira pessoa.

A história de fantasmas (d)escrita pelo louco — e será mesmo louco? — tem o seu interesse, mas o que realmente se destaca neste conto é a sua estrutura, particularmente complexa para história tão curta. Maupassant era um escritor e peras, e esta história é disso prova. Muito bom.

Conto anterior desta publicação:

Lido: Aliens

Aliens é um poema de ficção científica, de Joe Haldeman, que eu achei bem interessante dada a forma como sugere, num número muitíssimo limitado de palavras, tanto um futuro longínquo e radioso para a espécie humana como a existência de outra espécie inteligente, os aliens do título, com uma opinião algo divergente da nossa sobre esse futuro. Aprovado.

Lido: Nem Barras de Ferro

Nem Barras de Ferro (bib.) é uma noveleta de ficção científica de James Blish ambientada no mesmo universo ficcional de Tempo Normal. Os enredos, aliás, têm alguns pontos de contacto. Aqui, o leitor depara de novo com uma nave interstelar equipada com um motor experimental, embora desta vez não se trata de um voo de teste, mas uma expedição de colonização. E de novo algo acontece de muito inesperado, algo que vai colocar a tripulação da nave numa situação para a qual não estava preparada: é que algo na interação entre os mundos relativísticos e quântico vai fazer com que a nave e tudo o que contém como que mingua até que um único eletrão se agiganta na sua frente como se fosse um pequeno planeta, ao mesmo tempo que todas as pessoas na nave dão por si a partilhar os pensamentos com todas as outras.

Gostei muito menos desta história do que de Tempo Normal. Porquê? Pensei bastante nisso, e creio que consegui pôr o dedo mental na resposta. Mas vou ter de fazer um preambulozito antes de lá chegar.

Tal como a anterior, esta é uma daquelas histórias de ficção científica que se centram na resolução de problemas. A FC é rica em histórias deste género, e houve autores, como Isaac Asimov, que construíram carreiras inteiras quase exclusivamente com base nelas. São histórias em que algo acontece de inesperado, e nas quais as personagens têm a responsabilidade de compreender o problema e de tentar arranjar solução para ele. E, o que é fulcral, são histórias que dependem de uma certa verosimilhança para funcionarem. Se o leitor não acredita no problema, não terá grande interesse na busca da solução, logo não terá grande interesse na história como um todo.

E é aqui que esta história de Blish falha comigo. Por imaginativa que ela seja, não consegue levar-me a acreditar no problema em que mergulha as personagens. Por demasiados motivos que não me parece que valha a pena escalpelizar, mas que começam logo por Blish se servir da velha e estafada analogia planetária para o átomo, proposta por Ernest Rutherford por volta de 1910 e ultrapassada ainda nos anos 20. Ora, o conto foi escrito 30 anos mais tarde.

Quer isto dizer que achei este conto bastante fraco, o pior do livro até agora.

Contos anteriores desta publicação:

quinta-feira, 28 de junho de 2012

A minha nota de rodapé nas ciências astronómicas

Quem topar por um improvável acaso com este minúsculo cantinho da vasta internet e, em vez de se ir imediatamente embora, passar os olhos pela longa lista de apelidos que lá se encontra, é possível que repare que perdido no meio daquele matagal de letras se podem ler as seguintes: "J. Candeias."

Sim, sou eu.

Para quem olha para ali e não percebe do que se trata, eu explico. É a publicação científica respeitante à descoberta de dois pequenos mundos, e eu estou listado como co-descobridor por ter colaborado com o projeto Ice Hunters (entretanto fechado), uma iniciativa de "ciência cidadã" que propunha aos cibernautas passarem a pente fino imagens captadas por alguns dos melhores telecópios do planeta em busca dos pontinhos e dos traços que indicam a presença de objetos do cinturão de Kuiper (KBO) ou de asteroides. Ou de estrelas variáveis, a praga do projeto.

Foram achadas algumas dezenas de objetos novos, mas por enquanto só aquelas duas descobertas foram publicadas. Os dois mundinhos têm os "nomes" de 2004 LV31 e 2004 LW31, na velha tradição astronómica de dar maus nomes às coisas. Não se sabe quase nada sobre eles, claro; afinal, acabaram de ser descobertos. Mas já se lhes conhecem as órbitas e a luminosidade, o que permite ter uma vaga ideia do seu tamanho.

2004 LV31 é o mais pequeno e o mais próximo de nós. Orbita o Sol a uma distância média de 43,95 unidades astronómicas (ou seja: quase 44 vezes mais longe da nossa estrela do que a Terra) e dá-lhe uma volta a cada 291 dos nossos anos. Calcula-se que terá uns 30 ou 40 km de diâmetro, embora a palavra "diâmetro" não deva aplicar-se, porque o mais certo será nada ter de esférico. Não deve ultrapassar o tamanho do satélite de Saturno Pandora, mas deve ter uma superfície menos lisa; a de Pandora é suavizada por material que cai dos anéis.

O outro, 2004 LW31, é maior e mais longínquo. Orbita a 46,39 unidades astronómicas do Sol e dá-lhe uma volta a cada 316 anos. Terá entre 75 e 110 km de diâmetro, embora também se aplique ao diâmetro o que disse acima. Ou seja: não deve ser maior que outro satélite de Saturno, Febe, e é bem capaz de ser muito parecido com ele, visualmente falando: deve ter forma de batata e ser pejado de crateras.

Porreiro, hã?

Uma nota: eu não tenho a certeza de ter realmente detetado estes dois mundos em concreto. Sei que detetei pelo menos três novos KBOs, mas parece-me que aquela lista de co-descobridores não se refere àqueles que viram os mesmos objetos que eu, mas sim a todos os que descobriram alguma coisa no decorrer do projeto. Se assim for, é provável que todas as publicações resultantes do projeto venham com o meu nome lá perdido no meio. Já perguntei a quem geria o Ice Hunters se assim é, mas o forte deles não é a comunicação e ainda não obtive resposta. Parece-me, contudo, que tenho razão, e por isso podem vir aí mais notinhas de rodapé. Por um lado acho que é pena: gostava de saber o que foi, ao certo, que vi. Por outro... pá... sou oficialmente um descobridor de mundos! Se isto não é completamente do caraças (sim, é o termo técnico), não sei o que é.

Se quiserem tentar ter também as vossas notinhas de rodapé na ciência, o Ice Hunters tem sucessor. Chama-se Ice Investigators e está aqui. Boa sorte.

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Lido: Mandrágora

Mandrágora é um conto curto de terror de Pedro Medina Ribeiro em que finalmente desaparece a sensação de estar a ler pastiches de contos do século XIX, apesar de existirem algumas semelhanças entre este conto e o anterior. O ambiente continua antigo; o conto ambienta-se algures, num reino não identificado no qual o povo mantém intacta a ligação ao sobrenatural. Um agrimensor aproxima-se de uma aldeia e, pouco antes de chegar à vista do povoado, aceita, quase por reflexo, uma caixa que uma estranha velha lhe entrega, seguindo depois caminho. Mas ao chegar à aldeola acaba por descobrir que talvez não devesse tê-lo feito.

O conto está bastante bem concebido e é eficaz, incluindo o final que, embora não seja supreendente, acentua a sensação de ameaça que a história pretende criar. Pareceu-me um bom conto, provavelmente o melhor do livro até agora.

Contos anteriores desta publicação:

Lido: Trânsito

Trânsito (bib.) é um conto curto de Urbano Tavares Rodrigues que, numa prosa poética e elaborada, basicamente descreve uma caminhada que leva o protagonista da normalidade da vida urbana quotidiana a um território estranho, uma parte da cidade que não reconhece e, provavelmente, nem faz parte da cidade. "Entrámos numa praça," diz-se a dado passo, "de uma geométrica monumentalidade — formas elípticas, fachadas de mármore sobre pilares, temas espaciais de livres diafragmas suspensos." E por aí vai. Há aqui algo de ficção científica, algo de sonho (ou pesadelo), mas o elemento mais forte é de terror; o conto termina em aberto, mas com uma forte sugestão de que algo de infernal se passa ali.

Muito bem escrito, é, no entanto, daqueles contos que me parecem francamente bons ao mesmo tempo que não me agradam por aí além. Depressa comecei a esquecê-lo. Há algo nele que não ressoa no leitor que sou. Conter um claro predomínio da forma sobre o conteúdo, certamente. Mas não só; há algo mais, algo que não consigo definir. Um dia talvez o releia por causa disso.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Lido: Terrortório

Terrortório (bib.), antologia de terror publicada no final dos anos 80 do século passado, parece ter tido como principal critério uma tentativa de delimitação de um território, e ao mesmo tempo criar uma espécie de seleção nacional de escritores capazes de escrever no género, misturando-os com grandes autores consagrados de outras literaturas, especialmente da americana. Não me convenceu. Vários foram os contos que não me agradaram, e também foram vários os que não me pareceram ter grande coisa (ou coisa nenhuma) a ver com o terror. Há aqui contos de terror, sim, mas também há contos que hoje seriam vistos como fantasia urbana, há um conto humorístico sem nada de assustador (um conto de terrir?), e há até um, ainda por cima muito fraquinho, cuja inclusão em qualquer das literaturas do imaginário me desperta as maiores dúvidas.

Os melhores contos, como talvez fosse inevitável, foram os estrangeiros, e os piores portugueses, embora a fronteira não seja estanque e haja ali uma faixa mediana em que uns e outros se misturam. Não sei se este tipo de mistura é boa ideia. Sim, uma literatura precisa de espaço para se desenvolver, os autores precisam de ser publicados e de dar pelo menos alguns ouvidos ao seu público para irem afinando alguns pormenores. Mas pô-los assim lado a lado com referências internacionais do género é um pouco maltratá-los. Todas as fragilidades saltam mais à vista. Toda a juventude, inexperiência e sobretudo falta de familiaridade com o género em que supostamente estariam a escrever também. Sim, que metade dos autores portugueses estava, à época, apenas no início das respetivas carreiras, e dos outros não conheço nada ligado ao género além do que aqui publicaram.

Mas apesar de tudo isto, não se trata duma má antologia. Há aqui bons contos, e isso, para mim, chega para ter valido a pena a leitura. Seria bom que todos o fossem, mas o mundo não é perfeito.

Eis o que achei de cada um:
Este livro foi comprado.

Lido: Efemérides

Efemérides (bib.) é um conto curto de ficção científica, de João Barreiros. Num universo alternativo em que ao programa Apollo se seguiu a colonização da Lua e Kennedy não foi morto pelo atentado de Dallas, um jovem colono prepara-se para um dia de festa, entre vívidas descrições do seu ambiente, o qual está muito longe da perfeição um dia sonhada por quem concebeu um futuro longe do planeta natal. É um conto principalmente sitacional, como aliás é comum acontecer na FC mais curta (textos muito curtos não dão para grande enredo), cuja grande força está no final, que obviamente não revelarei. Um conto muito curto — dos mais curtos que Barreiros já escreveu — mas bastante bom.

Contos anteriores desta publicação:

terça-feira, 19 de junho de 2012

Lido: Barroco Tropical

Barroco Tropical, romance de José Eduardo Agualusa, leva-nos a Luanda. Não à Luanda de hoje, mas à Luanda de um futuro próximo, numa Angola liderada por uma mulher (Agualusa nunca lhe dá nome, mas não me surpreenderia se ao escrevê-la tivesse em mente a filha do atual presidente, Isabel dos Santos), dividida entre o caos da corrupção social e política e arremedos interrompidos de desenvolvimento e de alguma megalomania. Os protagonistas são dois: Kianda, uma cantora "do regime" e tremendamente bem sucedida tanto em Angola como fora dela, e uma mulher problemática por natureza, e Bartolomeu Falcato, escritor e cineasta, talvez um pouco alter ego do próprio Agualusa.

O ambiente é, portanto, o de uma certa camada social angolana, que paira entre o mundo artístico e a elite política, com ocasionais incursões por faixas menos privilegiadas da sociedade. Kianda e Falcato são amantes, com uma relação que não é propriamente fácil, e boa parte do romance centra-se superficialmente nessa relação. Mas é só superficialmente, pois ela é afetada pelas pessoas com quem um e outro se vão cruzando, e estas pintam um colorido fresco das contradições e convulsões de toda uma sociedade. Agualusa utiliza a relação como coluna vertebral do romance, mas nunca é ela o que mais lhe interessa. Cavando um pouco mais fundo, para lá dessa camada narrativa superficial, encontram-se muitas outras coisas.

Entre essas coisas destaca-se um retrato sombrio de uma Angola futura, que vai vivendo sob uma espécie de ditadura mansa movida a petrodólares, na qual a violência e a barbárie se exercem com suavidade, quase com simpatia, com um sorriso nos lábios. Um retrato, também, de uma sociedade em desagregação, na qual as velhas superstições africanas se entrelaçam de forma tensa com uma modernidade e um desenvolvimento muito ligados ao exterior. Um retrato de uma sociedade dilacerada por cismas, na qual as questões colonial, racial e linguística continuam mal resolvidas. Um retrato distópico de uma sociedade, da sociedade do seu país, uma espécie de grito de alerta como quem diz "cuidado; é neste sentido que caminhamos." O mesmo grito de tantas outras distopias.

Barroco Tropical é um livro de ficção científica social, com muito de ciberpunk, mesmo que a tecnologia e o ciberespaço tenham nele um papel reduzido. É isto um paradoxo? É. Mas é um paradoxo perfeitamente resolúvel nesse continente de paradoxos que é África.

Mais: Barroco Tropical é um bom livro de ficção científica social. Muitíssimo bem escrito, muito bem idealizado e realizado, aqui e ali divertido, acolá a abrir portinholas para o horror, um horror bem concreto e por vezes a roçar (apenas a roçar) o sobrenatural. É por tudo isso um livro fascinante, que para mim mais fascinante se tornou por ser o primeiro livro angolano de FC que tive o prazer de ler, embora eu duvide que Agualusa o assuma como tal. Mas quer o assuma, quer não, é isso que ele é. E eu recomendo-o sem reservas. Muito bom.

Este livro foi comprado.

domingo, 17 de junho de 2012

Lido: O Ouro

O Ouro (bib.) é uma vinheta de Bruce Holland Rogers muito semelhante a As Pervincas. De novo, a história desenrola-se em diálogo puro entre quem quer contar a parábola e um interlocutor cético e bastante falho de inteligência. Desta vez, a parábola é sobre a nobreza de caráter e a possibilidade ou impossibilidade de ser comprada com ouro. De novo temos nela uns pozinhos de perlimpimpim fantástico, e de novo nada direi além disto. Acrescento apenas que, embora tenha gostado mais da primeira história, até por nesta já não existir muito de inesperado visto seguir tão de perto o esquema da outra, esta também me pareceu boa.

Lido: As Tumbas de Saint-Denis

As Tumbas de Saint-Denis é um conto de Alexandre Dumas ambientado em Paris na época do Terror, que se seguiu à revolução francesa. Com um fundo político que quanto melhor se conhecer a história do período (e da França em geral) melhor se será capaz de apreender, embora seja fácil descobrir nele a crítica aos excessos das épocas revolucionárias, o conto é também uma história de fantasmas, de maldições e de vingança. O que despoleta a história é o excesso de um homem que, enquanto os cadáveres dos outros reis de França eram exumados das suas luxuosas sepulturas e voltados a enterrar numa vala comum, resolve dar um estalo no cadáver de Henrique IV, um dos mais populares reis que França teve (o conto apelida-o de "o rei do povo"). E a partir daí vê-se perseguido por azares e pela rejeição de todos.

Gostei bastante. Dumas é um grande escritor, e este conto está bem escrito, bem construído e bem rematado. Em suma: é bom.

Lido: As Despesas da Festa

As Despesas da Festa (bib.) é um conto de ficção científica pós-apocalíptica, de James Blish, que descreve, com abundância de infodumps, a vida nos abrigos subterrâneos enquanto continua a travar-se na superfície uma guerra de destruição total entre os dois blocos da Guerra Fria. Que no conto, claro, se tornou quente anos antes. Ao contrário do que é habitual nos contos desta época, porém, trata-se mais de uma guerra biológica do que de uma guerra nuclear, e todo o conto gira em volta de conceitos médico-biológicos que, lidos hoje, só me conseguiram fazer pensar na imensa evolução que as ciências biológicas tiveram desde a década de 50 do século passado até aos nossos dias. Todas as ideias de base em que Blish fundamenta a história estão erradas. Todas. E como o conto pouco tem além de ideia, visto que é composto quase inteiramente por pessoas a explicar coisas umas às outras, é um daqueles contos de FC que já morreram mesmo que ainda não tenham consciência disso. Não creio que alguma vez tenha sido um bom conto (os infodumps encarregam-se de lhe baixar a qualidade) mas, mesmo que o tivesse sido um dia, envelheceu de forma irrecuperável. É de longe o pior do livro até agora. Paz à sua alma.

Contos anteriores desta publicação:

Lido: Dos Anéis do Poder e da Terceira Era

Dos Anéis do Poder e da Terceira Era é mais uma noveleta de J. R. R. Tolkien que, num estilo intermédio entre o registo de caráter histórico e a ficção propriamente dita, faz a ponte entre os acontecimentos antigos relatados no Quenta Silmarillion e nos demais textos anteriores do livro e aquilo que é relatado n'O Senhor dos Anéis.e n'O Hobbit. Fornece uma série de informações que para qualquer fã da série são um autêntico tesouro, embora deixe por esclarecer a origem dos hobbits, o que me parece algo estranho visto que todos os outros povos da Terra Média têm as suas origens e histórias escalpelizadas de forma mais ou menos detalhada ao longo das várias histórias deste livro. Para um não fã volta a ser um texto sem grande interesse (a menos, talvez, que se tenha particular predileção por exercícios de worldbuilding), e para alguém que não tenha lido O Senhor dos Anéis suponho que chegue mesmo a ser bastante confuso. E como eu não sou fã, não gostei muito.

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sábado, 16 de junho de 2012

Lido: O Caminheiro

O Caminheiro é um conto de horror de Pedro Medina Ribeiro, bastante bem construído apesar de manter o ambiente novecentista de contos anteriores, o qual continua a levantar-me dúvidas. Desta feita, a maior parte do conto é ocupada com a reprodução de uma lenda — que julgo ter sido inventada por Ribeiro, embora se baseie fortemente em lendas que de facto existem, aparentadas com as do vampirismo — segundo a qual existiria algures na Alemanha um tal Caminheiro, entidade sobrenatural que calcorrearia as estradas e atacaria viajantes solitários. E à parte a reprodução da lenda o resto do conto consiste de um relato em que, como é vulgar acontecer neste tipo de história, o narrador cético é confrontado com o sobrenatural, perdendo assim o ceticismo.

Gostei bastante mais deste conto do que do anterior, embora continue a não me agradar que Pedro Medina Ribeiro tenha decidido (começa a parecer-me claramente tratar-se uma decisão consciente) fazer dos seus contos pastiches de contos novecentistas. Está bem construído e bem escrito, o que compensa até certo ponto o cliché do estilo e do ambiente, e tem um remate eficaz.

Contos anteriores desta publicação:

Lido: A Aparição das Trevas

A Aparição das Trevas (bib.), noveleta de horror de H. P. Lovecraft, surpreendeu-me pela positiva. Não sei se por intermédio de uma tradução capaz de limpar a prosa de Lovecraft daquilo que ela tem de pior, se por, no fim da vida e da carreira, o autor americano ter finalmente aprendido a escrever sem sobrecarregar o texto de adjetivos e advérbios, o facto é que não vi aqui aquela verdadeira selva palavrosa que normalmente faz com que me seja tão penoso ler a prosa do senhor Howard Phillips. E isso é ótimo, porque, despida desse peso, a história consegue vir ao de cima.

Trata-se de um conto do Cthulhu Mythos, embora isso só se torne inteiramente claro no fim, apesar de todo o texto mostrar sinais. O fulcro da história é uma estranha igreja abandonada em Providence, Rhode Island, e a não menos estranha morte de um tal Robert Blake, escritor, pintor, e estudioso de mitos e lendas. Isto é-nos dito logo no início, de modo que nem sequer se pode dizer propriamente que o conto é previsível. Sim, não só o conto começa logo com a revelação de que Robert Blake está morto, como quem conheça alguma coisa de Lovecraft depressa adivinha o que se passa na tal igreja; os sinais estão todos lá. Mas apesar disso a história consegue sustentar o interesse.

E eu, que geralmente acho Lovecraft ilegível, gostei. Mais: parece-me que este é um dos melhores contos do livro. E vivam as surpresas agradáveis.

Contos anteriores desta publicação:

Lido: FC, o Banho e Não Só

FC, o Banho e Não Só (bib.) é uma vinheta de Mário-Henrique Leiria (aqui, bizarramente, identificado como "Mário Henriques Leiria") que, realmente, junta no mesmo texto ficção científica, um banho e não só. O (primeiro) protagonista está calmamente a tomar um banho de imersão quando o ralo da banheira se transforma num portal interdimensional e o atira para um areal sem horizonte e iluminado por dois sóis. Do banho, portanto, passa-se à FC. Mas eis que surge o não-só sob a forma de um ministro, e o conto acaba em plena ironia.

É um conto bastante típico de Leiria, e bastante bom também: ficção científica somada a abundantes quantidades de surrealismo e de um humor irónico e corrosivo, profundamente político. Dificilmente poderiam ter escolhido para esta antologia conto mais representativo da obra do autor. Não será o melhor — e não seria fácil escolher o melhor — mas Leiria é aquilo. Não há que enganar.

sexta-feira, 15 de junho de 2012

Lido: As Anémonas-do-Mar

As Anémonas-do-Mar (bib.) é uma vinheta de Bruce Holland Rogers que explica a origem das anémonas-do-mar. Parece que é bicho de criação recente, e que o seu surgimento se deve a Cupido. Esse mesmo, o rechonchudinho do arco e das setas mágicas, que parece não ser exatamente tão queriducho como o retrata o folclore moderno, mas temperamental e dado a irritações. E que parece que um belo dia se irritou com uma congregação religiosa puritana e resolveu dar-lhe uma lição. A começar pelo pregador, bem entendido.

É um continho iconoclasta, vagamente blasfemo e carregado de ironia, que se lê de sorriso nos lábios. É também algo previsível, principalmente por causa do título, bastante revelador, mas essa previsibilidade acaba por ter muito pouca importância. Muito bom.

quinta-feira, 14 de junho de 2012

Lido: Uma Obra de Arte

Uma Obra de Arte (bib.) é um muito melómano conto de ficção científica de James Blish. Algures no futuro, Richard Strauss (sim, o compositor alemão) desperta para uma pós-vida que o confunde, recordando-se de estar a morrer, e depressa toma conhecimento com Barkun Kris, escultor de mentes, o qual lhe explica que de facto está morto mas a sua personalidade foi como que enxertada num novo corpo. Depois desta introdução, o conto prossegue descrevendo as surpresas com que Strauss depara no fantástico mundo do seu futuro e a sua luta por regressar à atividade nesse futuro em que por vezes parece não ter lugar. E isto com grande riqueza de pormenores musicológicos que me deixaram aqui e ali um pouco perdido mas contribuem sobremaneira para emprestar credibilidade à história. No fim, Strauss tem uma última e grande surpresa... maior, aliás, que a do leitor.

Gostei muito deste conto, apesar da tradução "à Argonauta". Está muito bem concebido, e combina de forma quase exemplar a exploração da mentalidade obsessiva do compositor no ato de criação com a ficção científica, género que não é conhecido pela sofisticação de caracterização das suas personagens. Muito bom.

Conto anterior desta publicação:

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Lido: A Face Obscura da Lua

A Face Obscura da Lua é um conto de (algum) terror, de Pedro Medina Ribeiro, cujo narrador conta a história de um amigo que conhece em Praga, cidade a que ambos terão chegado em 1883 para estudar. Após concluído o curso, a vida do narrador desenvolve-se calmamente. Mas o amigo mete-se em experiências sobrenaturais com a mulher com quem acaba por casar, e isso vai ter as terríveis consequências que é demasiado fácil prever. Sobre o enredo direi apenas mais uma palavra: licantropismo.

De novo, trata-se de uma história praticamente decalcada de histórias do século XIX, tanto em tema como em atmosfera, e até em estilo literário. Não está mal escrita, não está mal concebida, mas também não é lá muito interessante, porque segue absolutamente à risca fórmulas inventadas há mais de cem anos. Ao contrário da primeira história do livro, que apesar do tom passadista trazia alguma inovação, esta é puro cliché. Não será má, mas também não me parece que seja boa.

Conto anterior desta publicação:

Lido: O Aplaudido Dramaturgo Curado Pelas Pílulas Pink

O Aplaudido Dramaturgo Curado Pelas Pílulas Pink (bib.) é um conto curto de Natália Correia que, como já o título indica, é no fundamental um grande gozo. É contado na primeira pessoa por um narrador que tem a insalubre característica de ser como que perseguido pelo aplaudido dramaturgo curado pelas pílulas pink, embora este nunca lhe apareça duas vezes com a mesma cara e trajo. Quando o nosso pobre protagonista menos o espera, pimba, eis que uma qualquer pessoa com que se cruze por acaso se lhe apresenta com a fatídica frase: "Eu sou o aplaudido dramaturgo curado pelas pílulas pink." Como está bem de ver-se, o bom do narrador depressa perde a paciência, com resultados menos trágicos do que se poderia supor. Ou mais, dependendo do ponto de vista. É que o aplaudido dramaturgo blá blá blá parece ser mágico. O protagonista até tenta matá-lo e tudo, mas nada parece conseguir afastar de si aquela peste.

Sabem aquelas moscas chatíssimas do fim do verão? É mais ou menos isso.

Se não fosse o tom ligeiro, este conto até podia ser de horror. Mas não, é um conto fantástico, sarcástico, que goza despudoradamente com um certo tipo de intelectual armado aos cágados e mais ou menos medíocre, e até, quiçá, com a própria natureza do divino. Não sendo propriamente uma obra-prima (não gostei particularmente dos diálogos, por exemplo — achei-os um pouco forçados. Não tanto como por vezes acontece em textos portugueses, mas um pouco), parece-me um bom conto e é um conto divertido.

quinta-feira, 7 de junho de 2012

Lido: Akallabêth

Akallabêth é uma noveleta de J. R. R. Tolkien, forte e assumidamente baseada no mito da Atlântida, que relata uma série de acontecimentos intermédios entre os descritos no Quenta Silmarillion e os dos livros mais conhecidos do autor. Em tom também é algo intermédio, situando-se algures entre o mito de criação, o documento histórico e o conto propriamente dito. Descreve a ascensão e queda dos numenoreanos, habitantes de uma ilha (continente?) situada a oeste da Terra Média, e pertencentes à raça dos homens, mas uns homens especiais, de vidas longas. Estes, originalmente amigos dos elfos, caem quase todos sob a influência de Sauron, o mesmo espírito maligno que vai ter um papel importante n'O Senhor dos Anéis, e isso tem como consequência última a perdição de Númenor.

De novo, compreendo que um fã se delicie com este texto: ele concretiza vários elementos que são apenas entrevistos na trilogia principal do universo tolkieniano e fornece um pouco de história a Sauron, que na trilogia é elemento constante mas sempre muito nebuloso, um perigo presente mas distante e misterioso, truque eficaz, diga-se de passagem, para a construção da sensação de ameaça que está presente ao longo de toda a viagem de Frodo e companheiros.

Mas, como já disse várias vezes, eu não sou um fã. E o maniqueísmo tende a irritar-me sobremaneira, pelo menos em textos que se mostrem como mais que simples lendas, como é o caso. Portanto voltei a não gostar lá muito do que aqui li, e só não gostei menos porque achei interessante a forma como Tolkien integrou os mitos atlânticos na sua narrativa e no seu universo.

Textos anteriores desta publicação:

quarta-feira, 6 de junho de 2012

Bradbury

Cada vez me irrita mais a tendência de ignorar por completo as pessoas enquanto elas são vivas e, assim que morrem, desmultiplicarmo-nos em homenagens e, no caso dos artistas, comprar compulsivamente tudo o que mexe e saiu da criatividade do recém-falecido. É tendência muito humana, bem sei, que tem a ver com a também muito humana ilusão de que as coisas de que gostamos são eternas, mas irrita-me e, de vez em quando, chega a repugnar-me. Porque o momento certo para homenagear os artistas que nos dão prazer, o momento apropriado para comprar aquilo que produziram, o momento correto para recomendar a terceiros aquilo que achamos que devemos recomendar é enquanto eles estão vivos e ainda podem usufruir do que lhes podemos dar em troca do que eles nos dão a nós.

Bradbury foi importante para mim, e a sua morte doeu. Não porque fosse inesperada ou chocante: de um homem de 91 anos, e já doente há alguns, não se espera que continue a viver muito mais tempo. Não porque a sinta como uma perda em si mesma: o Bradbury recente era uma sombra do genial escritor de outrora e o seu conservadorismo não lhe permitiu acompanhar a mudança dos tempos. Em muitas coisas, Bradbury manteve-se agarrado ao seu apogeu, em meados do século XX. Não liguem a quem diz que os escritores de ficção científica não são homens como os outros, porque são. Alguns também chegam a um ponto em que se deixam ultrapassar pelo futuro em que passaram a carreira a pensar. E o Bradbury dos últimos anos era assim, nostálgico por um tempo que já não existe, o da sua juventude, e pelo futuro otimista e luminoso que desse tempo se entrevia. Mesmo apesar das nuvens ocasionais. Um futuro ingénuo. Como hoje sabemos, essa luz não se cumpriu.

Não foi, portanto, por isso que a morte de Bradbury me doeu. Foi por um motivo bem mais próximo, bem mais íntimo. Porque o primeiro livro de Bradbury que li, já nem me lembro bem qual (talvez As Máquinas da Alegria, talvez O Homem Ilustrado), foi-me passado para as mãos por um homem de olhos brilhantes de entusiasmo. "Lê isto," disse o meu pai, ainda só com alguns fios brancos no cabelo, a um eu adolescente que acabara de descobrir a ficção científica e de se apaixonar por ela. "Lê isto, que é uma maravilha." E eu li, e era, e a minha paixão pelo género solidificou um pouco mais graças a esse livro, a essa frase e ao brilho daqueles olhos.

Foi por isso que a morte de Bradbury me doeu. Porque com ele morreu mais um pouco do meu pai, morreu um pouco mais do seu entusiasmo, morreram as discussões que, segundo me contou, teve com os intelectuais que constituíam o seu círculo de amigos, tentando infrutiferamente convencê-los, lá pelos anos 50 ou 60, antes de eu sequer estar nos planos do Universo, de que Bradbury era um dos maiores escritores americanos vivos. Ele sempre gostou mais de Bradbury do que eu, e não surpreende que assim fosse: Bradbury era um homem do seu tempo, mas nunca foi do meu.

Quanto ao que eu acho que Bradbury foi, não vou escrever aqui nada. Não vale a pena: fui escrevendo sobre ele ao longo dos anos, enquanto ele ainda estava vivo. Basta-me enviar-vos para esses textos. Ei-los:

No E-nigma:
Aqui na Lâmpada:
E não vou pôr-me a ler Bradbury de propósito, agora que ele morreu. Tenho um livro dele na pilha, e lá ficará até chegar o seu tempo. Como acho que deve ser. Afinal, o homem pode ter morrido, mas o escritor ainda por cá anda e andará enquanto os seus livros forem resistindo ao tempo.

E é aí que os escritores não são homens como os outros.

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Lido: A Peste Negra

A Peste Negra (bib.) é uma coletânea de Gomes Leal, composta por um conto e uma noveleta que, embora mostrem alguns elementos em comum, são bastante diferentes um do outro. Gomes Leal é conhecido fundamentalmente como poeta, embora também tenha sido tradutor de alguns dos grandes autores fantásticos do século XIX, e essa queda para a poesia nota-se bastante nestes dois textos, em especial no primeiro. Nada tenho contra o facto; a prosa poética é uma forma tão legítima de escrever como qualquer outra e pode dar origem a obras maiores. Mas não, julgo, quando ofusca tudo o resto, quando se substitui aos outros elementos que devem estar presentes no ato de contar uma história.

E aqui, se nos abstrairmos do burilar das imagens, os textos tornam-se completamente banais. O primeiro, sobretudo, mostra tudo o que de pior existe nos contos românticos (o texto pesado e exageradissimamente sentimental, a adjetivação omnipresente, a inevitabilidade da tragédia, etc.) e, bem espremido, dá muito pouco sumo. E segue tão fielmente as convenções do melodrama que não há a mínima surpresa. A leitura arrasta-se, mesmo num texto que não passa de conto. O segundo, ainda que bastante melhor, volta a perder-se ocasionalmente em frases de efeito e a sua inclusão numa coleção de contos fantásticos parece-me forçada.

Em todo o caso, estas duas histórias são suficientemente diferentes uma da outra para que eu renita em delas concluir que Gomes Leal foi um mau contista. Com base em tão pouco não me atrevo. Mas posso dizer que fiquei sem curiosidade, sem vontade de ler mais. Não gostei deste livro. Está na lista de candidatos à pior leitura do ano e, para já, muito bem posicionado para arrebatar esse duvidoso troféu.

Eis o que achei das duas histórias:
Este livro foi comprado.

Lido: O Practical-Jocker

O Practical-Jocker (bib.), ou O Pratical-Joker, consoante se está a consultar o título no topo da história ou o índice, respetivamente (sim, a sério), é um mundaníssimo conto curto de Luísa Costa Gomes que relata uma saída noturna de uma senhora muito composta, na companhia de uma amiga e de dois desconhecidos, um dos quais tem um gosto algo exagerado por pregar partidas, para grande divertimento do outro. Todos americanos, por algum motivo que não entendi; uma historieta tão banal, sem a mínima especificidade cultural, podia passar-se em qualquer ponto do dito mundo ocidental. Sim, a banalidade deste conto é completa, e não se fica por tema e ambiente, pois também o uso que nele é feito da língua portuguesa não é mais que mediano. Na história que conta não encontrei interesse nenhum (não, as crises existenciais de dondocas em saídas noturnas não me interessam minimamente) e o conto, na publicação em que vem incluído, é um completo erro de casting. Ao terminar a leitura fiquei boquiaberto. Não haveria melhor que isto para publicar? Será isto que para Luísa Costa Gomes é uma história de terror?

De muito longe, o pior conto do livro até agora... e só falta um para acabar.

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domingo, 3 de junho de 2012

Lido: Disney no Céu Entre os Dumbos

Disney no Céu Entre os Dumbos (bib.) é uma novela de ficção científica de João Barreiros e, diga-se desde já, talvez a melhor das novelas da FC portuguesa. É verdade que a nossa ficção científica não produziu lá muitas novelas ao longo da sua vida, não tão curta como às vezes parece. É certo que sempre pareceu preferir histórias menos extensas, o que se deve em parte às grandes limitações que sempre existiram nos veículos disponíveis para a divulgação de ficções mais longas, mas só em parte, como se comprova com a relativa escassez até de romances, tradicionalmente mais acarinhados pelo público do que a ficção curta. É um facto, até, que o autor mais prolífico nesta extensão é, precisamente, João Barreiros. Mas nada disto tira mérito a este Disney, um texto de qualidade seja qual for o critério usado para a avaliação.

A história acompanha a lenta desagregação de Marklin, um trabalhador ciborgue destacado para um asteroide, enquanto uma criatura alienígena, predatória como todos os ETs de Barreiros e apelidada de "dumbo" por possuir mais ou menos a forma daquela personagem da Disney, lhe vai bebendo as memórias. O dumbo que ataca Marklin é um renegado da sua espécie, uma fêmea paranoica, grávida de uma multidão de milhares de pequenos dumbos, que procura escapar-se ao controlo eugénico obrigatório, usado para limitar a população e evitar que ela expluda a cada geração. Perante ela, Marklin está tão indefeso como um rato encurralado por um gato, embora tente congeminar uma fuga em conluio com um rato holográfico de desenho animado, criado por um dos subsistemas da inteligência artificial do asteroide, que logrou furtar-se ao controlo do dumbo. Mas a desagregação da memória, e da sua própria individualidade, vai dificultar a tarefa.

É um texto imaginativo e escrito em bom ritmo, com diálogos em geral bons, ainda que as tiradas palavrosas tanto do rato holográfico como do dumbo acabem por se tornar um pouco irritantes (o que acontece também noutros textos de Barreiros). E dá pano para mangas, tanto no que toca à relação entre a memória e a individualidade, como nos vários simbolismos mais ou menos ocultos, mais ou menos evidentes, que se podem encontrar na patética impotência do protagonista em confronto com uma fêmea dominadora e com um outro invasor e mortífero. No contexto da obra de João Barreiros, esta novela é fulcral. Não creio que seja possível compreender por inteiro a generalidade das obsessões literárias do autor sem que seja lida.

Contos anteriores desta publicação:

Lido: As Pervincas

As Pervincas (bib.), vinheta de Bruce Holland Rogers, é uma brilhante parábola sobre o bem e o mal. Trata-se de um diálogo puro, entre quem conta a parábola e um interlocutor cético. Este, diga-se de passagem, não é lá muito inteligente. Mas a parábola é. Conta a história de dois homens que morrem, um bom e um mau, e mistura à história alguns pozinhos de perlimpimpim fantástico. E mais não digo, senão estrago o prazer a quem ainda for ler. Muito bom. Mesmo.

Lido: Tempo Normal

Tempo Normal (bib.) é uma estranha noveleta de ficção científica, de James Blish, sobre o que acontece a um piloto de testes quando embarca numa viagem interestelar a fim de testar uma nova tecnologia que permite viajar dezenas de vezes mais depressa do que a luz, depois de experiências anteriores terem resultado no desaparecimento de naves e pilotos sem deixar rasto. Toda construída em volta de bizarras distorções temporais, e centrando-se quase até ao fim no raciocínio íntimo do piloto enquanto procura tirar algum sentido do que lhe está a acontecer, a história é curiosa, e mais o é se se tiver em conta que data do já longínquo ano de 1953. E, contrariamente a muitas outras histórias de FC dessa época, continua ainda hoje a funcionar. O fim é um infodump bem construído, um debriefing entre piloto e cientista que serve para situar o leitor sobre o que acabou de ler ao mesmo tempo que funciona como sequência lógica e coerente do acontecido. Um bom conto de um dos meus autores de FC preferidos, portanto.

Lido: A Séance

A Séance é uma noveleta de Pedro Medina Ribeiro construída em volta de uma sessão espírita. E bastante bem construída, diga-se de passagem. O conto é contado na primeira pessoa por alguém que começa logo por dizer-se cético mas com dúvidas no que toca à existência do sobrenatural. O narrador descreve os acntecimentos que terão levado ao surgimento dessas dúvidas na sua visão do mundo, originalmente racionalista, e lança-se numa narração que segue na globalidade os parâmetros da literatura fantástica sobrenaturalista do século XIX, embora com a introdução de reviravoltas de enredo mais características de thrillers modernos. É descrita a sessão espírita que serve de fulcro à história e a sucessão de acontecimentos estranhos ou, mais propriamente, de mortes estranhas, que ela ocasiona.

Como disse, é um conto bastante bem construído e, apesar de falhas pontuais aqui e ali, também bastante bem escrito. Não percebi bem se a adoção do estilo novecentista é característica anacrónica da escrita do autor, se se trata de pastiche e/ou homenagem. É uma dúvida que ficou. Provavelmente os contos seguintes irão esclarecer-me a esse respeito.

Lido: O Espelho da Marquesa

O Espelho da Marquesa (bib.) é uma noveleta de Gomes Leal que tem muito pouco a ver com o fantástico da coleção em que o livro a que pertence foi incluído. Trata-se de uma história romântica e, claro, trágica, ambientada na alta sociedade lisboeta do século XIX, e contada por um homem que se apaixona perdida mas platonicamente por uma marquesa. Já se sabe que nas histórias tragico-românticas novecentistas raramente as paixões dão bom resultado, especialmente as platónicas, e esta história segue à risca esse padrão; o interesse do protagonista pela mulher vai fazer com que a observe, e esta observação vai levar à revelação de um crime, com as trágicas consequências que é fácil prever.

Apesar do convencionalismo e da linguagem empolada, apesar da previsibilidade do desfecho, apesar, sobretudo, do romantismo de tudo aquilo, acabei por não desgostar por completo desta história porque a forma como o protagonista vai desvendando o crime tem interesse. E está bem escrita, para quem gosta de prosa poética. E Leal consegue aqui fazer com que esta não se intormeta muito no desenrolar da história, ao contrário do que muitas vezes acontece, em especial em autores pouco experientes ou pouco talentosos. E isso também é positivo.

Quanto ao género, há apenas leves alusões ao sobrenatural que talvez permitam incluir esta história na literatura fantástica tal como foi definida por Todorov, embora pessoalmente me pareça que ela tem os dois pés fora do género, com não mais que uma unha dentro. Uma unha cortada rente.

Contos anteriores desta publicação: