domingo, 31 de dezembro de 2017

Números de fim de ano no Ficção Científica Literária

Não conhecem o Ficção Científica Literária?

É um projeto que eu tenho há algum tempo, destinado a divulgar o que se vai publicando por aí em língua portuguesa sobre a ficção científica na literatura e à volta dela. Desenvolvido originalmente no scoop.it, transferi-o para blogue em maio deste ano porque o scoop.it ganhou a mania de fazer alterações que me prejudicavam o trabalho sem dar cavaco nem resposta.

Desde maio deste ano, portanto, venho publicando lá links para o que vou encontrando por aí sobre FC, em português e na rede aberta (isto é, fora de facebooks, goodreads, skoobs e quejandos), agrupados em conjuntos de cinco ou até preencher o espaço que o Blogger destina a etiquetas. Ao todo, já foram publicados 476 posts. Isso corresponde a uns 2200 links. Ou seja: no espaço destes oito meses (ou menos: não comecei logo a 1 de maio), consegui detetar mais de 2200 artigos e posts em português, relacionados de alguma forma com a ficção científica na literatura, e com toda a certeza haverá mais em que eu não reparei.

A 16 de dezembro comecei também a incluir nas etiquetas informação sobre as publicações que publicam o material. Essa parte da coisa tem, portanto, apenas meio mês de existência. Mas a lista de publicações já chegou às 104.

A maior parte do material é brasileiro, naturalmente. Não só o Brasil tem bastante mais gente que Portugal e é, além de Portugal, o único país lusófono que parece ter uma blogosfera literária (ou uma internet, em geral) minimamente desenvolvida, como atravessa um boom de publicação de ficção científica, tanto produzida lá como traduzida. Dos 476 posts publicados no FCL, 453 fazem alguma referência ao Brasil. Os que fazem referência a Portugal são 391, e embora haja alguma diferença em opiniões e notícias de lançamentos, ela deriva muito em especial da muito menor produção portuguesa de artigos, e da inexistência de podcasts e quase inexistência de vídeos, pelo menos que sejam divulgados na rede aberta.

Seja como for, estes são números que deviam deixar a pensar quem anda constantemente a queixar-se de que não há nada, não se faz nada, não se diz nada, não nada. Devia haver mais? Devia. Devia sempre. Em quantidade, em qualidade e em variedade. Mas daí a não haver nada vai uma distância considerável.

sábado, 30 de dezembro de 2017

Lido: Mundos em Mundos

Não creio que já tivesse lido algum conto de Vítor Frazão antes deste Mundos em Mundos, um continho muito breve e muito dialogante sobre livros. Obviamente. O conto insere-se na publicação em que se insere, afinal.

É uma fantasia divertida que tem como ideia base a de que ao lermos estamos a experimentar a história que lemos. Não, não, não estão a perceber: estamos literalmente a experimentar a história que lemos. Por isso, o conto abre com o protagonista a cair de dentro de um exemplar do Moby Dick, ensopado até aos ossos, e segue-se uma conversa entre ele e a irmã, a qual consiste basicamente de uma série de sugestões mal-intencionadas do que ler a seguir, e termina com um remate cómico bem amanhado que provoca um sorriso ao mesmo tempo que explica o motivo das más intenções da maninha.

Não é nenhuma obra prima, obviamente, mas é uma historieta engraçada e bem conseguida.

Contos anteriores deste livro:

sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Lido: Linguagem Óptica

"Imagine o senhor uma terra de côncavo e convexo alternados". Assim começa mais um conto de Alexandra Pereira (e sem dedicatória! Fartou-se?) e basta esse começo para se lançar forte a suspeita: será fantástico?

É.

Linguagem Óptica é um conto inspirado pelas histórias populares, recolhendo delas alguns truques típicos, como o situar a ação num reino distante e perdido no tempo, usado como caso exemplar para a moral da história. Mas é apenas inspirado por elas, não pretende emulá-las. É bastante mais desenvolvido do que o que é comum encontrar-se nessas histórias, escrito numa linguagem significativamente mais rebuscada, e a moral, embora presente, não é nem tão vincada nem tão despida de ambiguidades. Fala de um reino com os seus problemas, boa parte dos quais causados por intolerâncias de vária índole: xenofobias, racismos, machismos/feminismos (que a autora põe em plano idêntico), por aí fora. O rei decide resolver esses problemas decretando a obrigatoriedade de todos os intolerantes usarem lentes corretivas mágicas, capazes de conformar as pessoas odiadas pelos súbditos aos parâmetros definidos pelos seus preconceitos: pretos tornados brancos (e brancos pretos), mulheres masculinizadas (e homens feminizados), etc., etc.

E depois as coisas correm mal.

É mais um conto bem escrito e razoavelmente bem concebido, muito embora me pareça que a primeira parte, o que decorre até o rei ter a sua ideia, é demasiado extensa para o desenvolvimento da segunda, que é o fulcro da história. Esse é um fator de desagrado, mas há outro mais importante para o leitor que eu sou: Alexandra Pereira trata todos os "preconceitos" como se fossem equivalentes, quando na realidade não são. Machismo não é equivalente a feminismo; racismo de brancos contra negros não equivale a racismo de pretos contra brancos. Isto fez-me torcer o nariz a esta história. Não se trata de um mau conto; na verdade, para o género, até o acho bom pois faz bem o que pretende fazer e é, sem dúvida, interessante. Mas...

Contos anteriores deste livro:

terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Lido: Os Sete Corvos

De volta às histórias dos Irmãos Grimm. E esta, Os Sete Corvos, não tem muito que se lhe diga. É mais um conto composto, amalgamado pelos Grimm a partir de duas histórias diferentes, e descreve as desventuras de uma família de pai, mãe e sete filhos que desejava uma filha. Quando a pequena finalmente nasce, o pai manda os filhos buscar água a um poço e estes atrasam-se tanto que o pai, num acesso de raiva, deseja que todos se transformassem em corvos. O que acontece. O resto é uma muito rápida crónica das aventuras da pequena, que parte em busca dos irmãos assim que tem idade para isso, e o que o conto tem de mais interessante é a raridade de ter como principal protagonista uma rapariga aventureira. Tudo em pouco mais de duas páginas, o que contribui para que esteja longe de ser memorável.

Contos anteriores deste livro:

segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

Lido: Da Mayor Speriencia

Na ficção científica lusófona são relativamente poucas as ficções que têm no tratamento do texto o seu fulcro essencial e menos ainda as que o fazem bem feito, não só no que toca ao tratamento do texto propriamente dito mas também no não descurar da história. Este Da Mayor Speriencia é, por isso, uma absoluta raridade. Estamos em Portugal, nos idos de mil e trezentos, em pleno reinado de El-Rei D. Fernando, e este, regressado de uma expedição de caça por bandas que mais tarde viriam a ficar conhecidas como Beira Alta, relata por escrito um estranho encontro com mais estranha ainda criatura que dir-se-ia não poder pertencer à divina criação.

O notável deste conto é estar escrito com um respeito profundo pelas crónicas da época, obedecendo-lhes não só em estilo, mas também em vocabulário e até em grafia, relatando um encontro entre um nobre medieval e um extraterrestre acabado de sair de um disco voador, sob o ponto de vista do primeiro, com todas as limitações e os erros de perspetiva a isso inerentes. Mais notável ainda é ter-nos sido tal obra legada por um escritor brasileiro que não é conhecido pela generalidade das pessoas interessadas por FC, não só em Portugal como, suspeito, até no seu Brasil natal: Nilson Martello.

Porque este, meus caros, é um conto muitíssimo bom, provavelmente o melhor conto de FC ufológica que eu já li. É para mim incompreensível que não seja mencionado com maior frequência.

Contos anteriores deste livro:

Lido: Lydia's Orange Bread

Lydia's Orange Bread é mais uma das historinhas de Bruce Holland Rogers que mereceram tradução para português e foram lidas e comentadas aqui na Lâmpada nos já algo distantes idos de 2011. E que deliciosa historinha esta é! Como de resto já então eu pensava, que o que o Jorge de há seis anos escreveu poderia ter escrito hoje.

Outras histórias divulgadas na newsletter de Bruce Holland Rogers:

domingo, 24 de dezembro de 2017

Lido: Os Exilados

E por falar em Marte...

A ficção especulativa, ou literatura fantástica em sentido lato, ou literaturas do imaginário, chame-se-lhe como se prefira, tem várias facetas. Mas se algumas obras estão bem definidas enquanto ficção científica, fantasia, horror, etc., outras há que resistem a serem encaixotadas univocamente num dos (sub)géneros. Assim surgem os híbridos. Frankenstein, de Mary Shelley, por exemplo, é uma obra de horror mas também de ficção científica, na mesma medida em que as obras da franquia Star Wars podem ter a aparência superficial de ficção científica mas a estrutura e muitos dos temas são típicos da fantasia. E poderia dar muitos mais exemplos, tanto na literatura como fora dela.

Em Os Exilados (bibliografia), Ray Bradbury apresenta um desses híbridos. O conto abre com três estranhas bruxas a fazer bruxedos, e sem a conversa sobre híbridos que está ali em cima o mais certo era que quem estivesse a ler isto coçasse a cabeça, confuso, sem perceber bem o que terão três bruxas a ver com Marte.

Pois a resposta começa a desenhar-se à segunda página, quando deparamos com uma nave espacial em rota para Marte, na qual estranhos acontecimentos se vão sucedendo, e percebemos que as bruxas são apenas uma forma de defesa de Marte contra a invasão terrestre. Mas é mais do que isso, pois a Terra futura que Bradbury nos esboça é, mais uma vez, o reino do racionalismo científico onde não existe espaço para a imaginação, e todos os grandes escritores de horror gótico, ou pelo menos os seus fantasmas, estão exilados em Marte. Este assalto do racionalismo, retratado como frio e desumano, contra a imaginação corporizada pelo Halloween e pela literatura que lá vai buscar inspiração é um tema recorrente nas ficções bradburianas, transformando, em certa medida, algumas das suas ficções científicas em ficções anticientíficas.

O problema, no entanto, é outro. O problema é o mesmo que acomete todos os autores que escrevem repetidamente sobre os mesmos temas ou das mesmas formas: as suas ficções tornam-se repetitivas e previsíveis. Bradbury tem sobre muitos a vantagem de ser um escritor magnífico, mas mesmo assim contos como este ressentem-se quando quem os lê já conhece bastante bem a sua obra.

E é em boa parte por isso que não creio que este conto seja dos melhores do autor.

Contos anteriores deste livro:

Lido: As Atribulações de Jacques Bonhomme

Nos bons velhos tempos do e-nigma, depois de ter editado uma antologia de contos curtos, intitulada O Planeta das Traseiras, que foi recebida com algum agrado, tive uma ideia: e que tal pegar nestes contos sobre Marte, abrir nova convocatória para contos mais extensos sobre o mesmo tema para se lhes irem juntar, usar a promissora tecnologia do print-on-demand e pôr cá fora um livro físico, uma antologia de ficção científica e fantasia que tivesse em Marte o seu fulcro?

E como era meu hábito, da ideia à execução foi um curto passo. Abri a convocatória, recebi um conto bastante bom de um autor desconhecido, que aceitei imediata e entusiasticamente... e o projeto foi morrendo lentamente com a passagem dos meses porque nunca mais recebi nenhum outro com qualidade suficiente para ser publicado. A convocatória nunca chegou a ser encerrada; limitou-se a morrer suave e discretamente como quem cai num sono profundo para nunca mais despertar.

Esse autor era Telmo Marçal.

E é por isso com alegria e, confesso, uma certa dosezinha de orgulho que reencontro esse conto neste As Atribulações de Jacques Bonhomme (bibliografia), livro produzido em condições de profissionalismo que o meu projeto antológico não poderia ter tido.

Vem acompanhado por mais onze histórias, entre o conto curto e a noveleta, todas elas bastante bem escritas, todas elas fortes, narrativamente falando, e todas elas muito, muito negras, em absoluta distopia. Na verdade, várias destas histórias têm ambientes e narrativas tão semelhantes que deixam a suspeita de pertencerem ao mesmo universo ficcional e formarem uma série. E mesmo as outras não se afastam muito dessa atmosfera sombria. É bom? É, sim senhor. Em certos casos é até muito bom. Mas há um problema: as histórias talvez sejam demasiado semelhantes umas às outras, ao ponto de se começarem a tornar repetitivas e por isso previsíveis. Se a existência de uma série fosse assumida e Marçal tivesse arranjado algum arco narrativo capaz de reunir pelo menos metade destas histórias num todo maior e numa narrativa mais vasta, isso talvez pudesse ter sido evitado ou pelo menos suavizado, transformando este livro num dos melhores livros de sempre da ficção científica portuguesa. Mas o Telmo não o fez, não sei se por não ter conseguido, se por nem sequer se ter lembrado de tal coisa.

O resultado é um livro bastante bom mas que ao fim de alguns contos se torna repetitivo e por isso perde um pouco de interesse. Não é uma obra-prima? Não, não creio que seja. Mas é bom o suficiente para figurar por mérito próprio em qualquer lista das boas publicações de FC portuguesa das últimas décadas.

Eis o que achei de cada uma das histórias:
Este livro foi comprado.

sábado, 23 de dezembro de 2017

Lido: Los Crímenes que Conmovieron al Mundo

Los Crímenes que Conmovieron al Mundo é um conto muito mau, rematando da pior forma possível esta antologia de ficção científica mexicana. Não que as ideias o sejam, propriamente. O conto é um relato das tragédias causadas pela moda de implantar interfaces para chips no cocuruto da cabeça das pessoas, na segunda metade deste século, o que, sem ter nada de genial, até poderia resultar num conto ou noveleta com algum interesse. O problema é estar escrito como uma redação escolar, literariamente indigente, infodump puro. Não há uma personagem, não há um diálogo, não há um enredo minimamente interessante. Só há descrição, que nem sequer está disfarçada de artigo científico ou de imprensa, o que lhe poderia dar um pouco de interesse literário. Nada. É como se um miúdo que nunca tivesse escrito ficção na vida resolvesse aplicar as técnicas para escrever redações aprendidas na escola e achado o resultado suficiente.

Não posso saber se José Luis Velarde só é capaz disto ou foi aqui particularmente infeliz: nunca tinha lido nada dele. Mas sei que o exemplo que aqui apresenta não me dá nenhuma vontade de descobrir. Este foi dos piores contos que li em todo o ano.

Contos anteriores deste livro:

Lido: Manuais Escolares

Em contraste com o conto anterior, este Manuais Escolares tem um final simplesmente perfeito, a rematar com grande qualidade outra divertida história de fantasia sobre uma aprendiza de demónio que foi castigada pela mãe por excesso de travessura. A historinha pouco mais é que uma conversa entre a protagonista e o irmão, mas Raquel da Cal (de quem eu nunca tinha lido nada) escreve-a bem, com bom ritmo e boa e credível aplicação do discurso direto através do qual (não só mas principalmente) entrega a informação necessária sem infodumps, e não mais que a informação necessária. Bastaria isto para a história já ser boa, mas aquele final consegue transformá-la num dos melhores contos desta antologia. O que ele tem de pior é o título, pouco inspirado e não muito adequado ao conteúdo.

De vez em quando há boas surpresas. E também é para isto que servem as antologias.

Contos anteriores deste livro:

sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

Lido: A Maldição de Hemingway

Decerto já viram esta imagem verde e negra aqui ao lado e, se têm acompanhado a Lâmpada nos últimos tempos, sabem que aí vem mais uma opinião a mais um dos contos da Alexandra Pereira. Pois acertaram em cheio.

Este é outro conto sem dedicatória, mas para variar tem um mote: uma notícia do Público, que decerto lhe terá servido de inspiração, sobre um incêndio que destruiu o museu Hemingway nas Baamas. Ou seja, é um conto sem dedicatória explícita, mas com dedicatória implícita; percebe-se logo a abrir que Pereira pretende prestar uma pequena homenagem a mais um dos seus escritores favoritos.

E é o que faz. O título, A Maldição de Hemingway, aponta para histórias de fantástico sobrenatural ou de horror, e realmente é isso o que aqui temos. De uma forma sinuosa no tempo e no espaço, Alexandra Pereira apresenta uma história bem contada que começa pela morte da mãe do protagonista, a qual lhe terá sugerido não muito tempo antes que o pai, que ele não conhecera, tinha sido o escritor americano. Depois da morte da mãe, ele começa a ver o fantasma de Hemingway. Aliás, não só a vê-lo: a ser por ele assediado para que cumpra uma sua vontade: a destruição daquela casa predileta nas Baamas, pois a seu ver fora conspurcada por um fluxo constante de turistas e estava farto. Tinha de a ver destruída e, sendo fantasma, não podia fazê-lo ele.

Um enredo interessante, um português de uma qualidade globalmente boa (há uns pormenores que me desagradam, mas são pormenores), uma estrutura narrativa não inteiramente linear, ainda que não muito sofisticada. Um bom conto.

Contos anteriores deste livro:

quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Lido: História do Grão-de-Milho

Se este fosse um dos contos dos Irmãos Grimm, seria (re)composto com uns bocadinhos daqui e outros dali e formaria um todo enxuto e despido de badalhoquices. Mas é um dos contos recolhidos por Adolfo Coelho e por isso não só nos aparece incompleto, pois a pessoa que lho contou não se lembrava de parte da história e por isso deu um salto na narrativa, como tem como única concessão ao bom gosto e à decência novecentista o facto de não escrever por extenso a palavra "caga" na exclamação "C... aí! C... aí!"

A História do Grão-de-Milho é, claro, um conto fantástico (vertente maravilhoso), cujo protagonista é filho milagroso de um casal que o pediu a Nossa Senhora, por terem-se passado demasiados anos sem filhos, de forma tão desesperada que o aceitariam mesmo que fosse do tamanho de um grão de milho. Dando provas de infinita bondade (ou se calhar não), a milagreira subdivindade deu-lhes mesmo um filho do tamanho de um grão de milho e o que move a história são os problemas e vantagens que a criança tem por ser tão pequena. No fim, tudo acaba em bem.

O conto é etnograficamente interessante, fazendo-me lembrar um pouco um conto infantil que me leram em miúdo, O Pequeno Polegar (e este é dos dos Grimm), mas literariamente nem por isso, e não só por causa da solução de continuidade.

Contos anteriores deste livro:

Lido: Um Casamento Perfeito

A ficção científica de meados do século passado inclui uma corrente inteira de obras centradas na ideia de sociedades mecânicas e determinísticas, geridas por gigantescos computadores infalíveis, nas quais cada detalhe está predeterminado "cientificamente" e não há lugar nem para a imaginação nem para a liberdade individual. É uma ideia caída em desuso, até pela própria evolução da ciência que entretanto integrou noções probabilísticas e princípios de incerteza, afastando-se também ela deste tipo de inflexibilidade. De vez em quando a ideia ainda aparece por aí, mas de forma anacrónica, o que tem como consequência que histórias deste género sejam no fundamental datadas pelos seus pressupostos básicos.

Um Casamento Perfeito (bibliografia) é uma dessas histórias. Nela, André Carneiro desenvolve uma distopia clássica, que seria integralmente mecânica e determinística se não fossem os elementos subversivos que se dedicam a colocar uns grãozinhos na engrenagem. O enredo gira em volta de um casamento, claro, e da vida em comum dos casados. Como é natural, a união é determinada pelo computador que tudo vê e tudo decide, mas o casamento é turbulento e gera sentimentos fortes. É o contraste entre essa turbulência e a expetativa de perfeição qualquer coisa que fosse determinada pelo computador que serve de motor à narrativa e, nisso, Carneiro é bastante bem sucedido. No entanto, não gostei por aí além do conto. Há nele um certo ludismo que me desagrada, apesar de compreender bem a sua origem (o pseudo-cientificismo das ditaduras da época e de décadas anteriores, com certeza) e o estilo que Carneiro aqui apresenta, muito descritivo e bastante seco, também não é muito do meu agrado.

Ou seja, este é um conto muito datado e que eu só acharia um pouco mais que razoável mesmo se não o fosse.

Contos anteriores deste livro:

Lido: Missy Victoria

Muitas histórias de literatura fantástica, ou pelo menos daquela literatura fantástica mais especulativa e menos seguidora de fórmulas, têm na sua génese uma pergunta: e se? Este continho de Bruce Holland Rogers, Missy Victoria, respeita plenamente essa regra. E se, parece interrogar-se, os nomes determinassem a personalidade de quem os tem? E se, por causa disso, houvesse um sistema judicial dedicado a corrigir situações problemáticas de personalidade e relacionamentos através da mudança dos nomes? Como seria?

Rogers explica como seria, partindo de uma situação em que Missy está com problemas por causa do filho mais velho, Nick, o qual aparentemente anda a vandalizar a escola, para grande desagrado da (muito chata) sogra, Alice. E o resultado é uma historinha muito divertida, telenovelesca mas em bom, cuja principal virtude, para mim, é a maneira como Rogers consegue em apenas cinco páginas fazer-nos retratos credíveis das três personagens mais importantes. E pelo menos o miúdo tem esse retrato feito por duas vezes, pois depressa se torna claro que vai ser condenado a mudar de nome. E talvez não seja o único.

Esta é uma história divertida em que, mais que o resultado final propriamente dito, o que realmente sobressai é a perícia do escritor.

Outras histórias divulgadas na newsletter de Bruce Holland Rogers:

quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

Lido: A Longa Chuva

Há histórias de uma qualidade superlativa e por isso inesquecíveis. Mas também há histórias que se tornam igualmente inesquecíveis mesmo sem terem a qualidade das primeiras. Algumas são muito boas, mas nem isso é necessário (na verdade podem ser até muito más). Algumas estão quase a atingir o grau superlativo mas falta-lhes qualquer coisa. Este A Longa Chuva (bibliografia) é, para mim, uma destas últimas. Ambientada em Vénus, não o verdadeiro, infernal e seco, mas aquele que a ficção científica imaginava antes de a ciência desvendar a sua verdadeira natureza, quando apenas se conhecia a camada contínua de nuvens que o cobre — interminavelmente húmido, em permanente dilúvio — é uma história que mistura a ficção científica e o horror de uma forma que está a um passo de ser genial.

Ray Bradbury apresenta-nos uma equipagem de astronautas náufragos num Vénus luxuriante e pleno de uma vida agressivamente vivaz. Qualquer coisa aconteceu que os deixou apeados, a caminhar pela selva húmida em busca do refúgio que bases instaladas nos confins da selva poderão fornecer, sob bátegas contínuas de uma chuva de enlouquecer. O perigo é real. Não só a chuva cria condições para o crescimento explosivo de fungos parasíticos, como vem por vezes acompanhada por intensíssimas trovoadas, capazes de deixar de pantanas os equipamentos elétricos (e não só) mais bem protegidos.

O resultado é uma história de FC pesada, sufocante, em que o enredo vai avançando de desastre em desastre até ao desastre final... ou talvez não, num clima de incerteza que só contribui para a impressão geral que o conto causa. Li este conto na adolescência e nunca o esqueci; agora, relê-lo foi como reencontrar um velho amigo perdido durante décadas mas ainda velho amigo, embora me tenha ocorrido algo que não ocorreu na altura: o contraste e complementaridade, provavelmente propositados, entre esta história e as (mais bem conhecidas) histórias de Bradbury passadas na sua versão de Marte, seco, desértico, e habitado por uma civilização para a qual cada gota de água é preciosa. Mas suave e civilizado, ao contrário de um Vénus que o autor retrata como impiedosamente selvagem. Este é um grande conto. Não se contará entre os melhores de Bradbury, mas não anda longe.

Contos anteriores deste livro:

Lido: Reportagem Especial

A BD não é um género que eu consuma muito e, se há dois anos houve uma exceção que levou até a serem de BD alguns dos melhores livros do meu ano, se decidi então dedicar-me à BD quando passasse por aquelas alturas em que não me apetecesse ou tivesse tempo para ler coisas em texto corrido e se este ano até tive um período desses, a verdade é que não obedeci a essa decisão (o período deste ano nem para ler BD deu) e a única obra de banda desenhada que acabei por ler foi este Reportagem Especial.

E não se trata de uma BD comum. É uma BD criada com fins educativos, para transmitir aos mais jovens informação básica sobre os problemas que as alterações climáticas irão criar em Portugal, e as soluções possíveis para esses problemas. É, portanto, uma BD portuguesa, com argumento de Bruno Pinto e arte de Penim Loureiro (desenho) e Quico Nogueira (cor).

E, pesem embora os meus fracos conhecimentos de banda desenhada, parece-me que faz razoavelmente bem aquilo que se propõe fazer. A informação que transmite é clara e correta (a publicação teve consultores científicos, outra raridade na BD) e, como o objetivo era transmiti-la, o facto de por vezes se intrometer na história que é usada para a transmitir (a de uma jornalista que é encarregada de escrever um artigo sobre alterações climáticas e por isso vai recolher informação) acaba por ser pouco relevante. Eu posso não ter gostado muito da leitura por causa dessas intromissões e por já saber praticamente tudo o que aqui é dito, mas não posso dizer que isso é defeito. É feitio. É consequência da natureza do projeto. E assim sendo, nada tenho a opor.

Se recomendo a leitura? Depende do leitor. Pessoas que já conheçam bem o problema pouco daqui retirarão; pessoas que prefiram vê-lo tratado com profundidade também são capazes de achar esta BD insuficiente. Mas pessoas que procurem informação básica mas correta podem achar esta leitura leve uma boa forma de a obter.

E quanto às outras, também não perdem nada se lerem esta BD. Nem dinheiro: o álbum está disponível gratuitamente na internet, numa edição em PDF que pode ser obtida no site do Oceanário.

Mudanças?

Para quem não conhece, se calhar convém começar por explicar de quem vou falar a seguir.

O Jovem Conservador de Direita (perdão: o doutor Jovem Conservador de Direita) é um projeto de humor, carregado de ironia e sarcasmo e com muita, muita piada, que ganhou projeção no Facebook e chegou às páginas dos jornais (o Dr. JCD teve uma crónica semanal no i, se bem me lembro, e há vários artigos sobre ele; um exemplo; outro exemplo) e a livro, cuja capa decora este meu post. Não, não li; pelo menos não li todo. Li muitas das crónicas publicadas antes de ele sair e que julgo fazerem parte dele. E basta-me isso, francamente, para o recomendar.

Mas não é do livro que quero aqui falar, é de outra coisa.

Recentemente, o Dr. JCD foi alvo de um ataque concertado no facebook por parte da extrema-direita, incomodada (como de resto quase toda a direita e até a parte mais burra da esquerda, que não compreende que aquilo é humor) com a forma como é ridicularizada. Nada de invulgar nem de inesperado: a extrema-direita é assim e sempre assim será.

O que é invulgar e de certa forma inesperado é o Facebook ter aceite as queixas e eliminado a página do Jovem Conservador de Direita, sob a absolutamente ridícula desculpa de fazer "discurso de ódio". A personagem revelou-o no twitter, nestes moldes:


Ora bem, isto para mim marca uma fronteira. Se até agora tenho usado as redes sociais, em especial o twitter, para publicar algumas coisas, nomeadamente coisas mais afastadas dos livros, é muito provável que passe a fazê-lo cada vez menos e passe a usar as redes sociais cada vez mais em exclusivo para divulgar o que publico noutros sítios. Estar-se dependente de um instrumento que protege a extrema-direita (são às centenas os fachos e as páginas de fachos no facebook) e censura a sátira é, numa palavra, burrice. Não há outro termo. Portanto é muito provável que a Lâmpada vá deixar de ser o blogue quase exclusivamente de livros e leituras que tem sido nos últimos anos e passe a ser mais variado, como era no início, incluindo bastante mais política, humor, coisas pessoais, enfim, tudo aquilo que é o dia-a-dia de publicações nas redes sociais.

E mais: apelo a que todos façam o mesmo. Não que saiam das redes sociais (embora essa também seja uma opção, que de resto há bastante gente a tomar), mas que as usem de uma forma diferente. Principalmente, que não se limitem, que não se encarcerem publicando em exclusivo nas redes sociais, mas usem os blogues para publicar e as redes sociais apenas ou primordialmente para divulgar o que publicam. Assim, não só o material não se perde se alguma dessas redes se armar em parva como o facebook fez agora, como podem chegar a um público muito mais vasto publicando na internet aberta do que na cidadela cada vez mais fechada e cheia de bolhas de visibilidade e invisibilidade que são as redes sociais.

E isto tanto serve para o humor e a política como para os livros. Tanto serve para o facebook como para o goodreads ou o skoob.

Pensem nisso. Em tudo isto.

terça-feira, 19 de dezembro de 2017

Lido: El Libro de García

Se há coisa que se pode dizer com absoluta certeza de não se estar a emitir nenhum disparate é que Jorge Luis Borges deixou ampla descendência literária. E no caso de Mauricio-José Schwarz nem é preciso dar grandes voltas à imaginação para incluir este seu El Libro de García nessa descendência, pois o conto faz referência direta ao argentino e à biblioteca infinita que ele imaginou. Mas mesmo que a não fizesse a referência seria óbvia, pois no centro do enredo está uma livraria, propriedade do García do título que, não sendo propriamente infinita, tem no entanto o caráter exaustivo e metódico de Borges, pois as suas prateleiras estão cheias com todas as edições possíveis, em todas as línguas possíveis, de Alice no País das Maravilhas de Lewis Carroll. Porquê? Como? Para quê? São essas as interrogações do protagonista da história, que fica fascinado e não consegue livrar-se daquela loja até conseguir descobrir-lhe os segredos. De uma forma bastante semelhante à que Lygia Fagundes Telles utiliza no conto de que falei aqui ontem.

Este conto de Schwarz, de resto, tem também vários pontos de contacto com o da autora brasileira, incluindo o facto de, não sendo propriamente ficção científica (está mais para weird fiction, para algo de próximo ao realismo mágico, com muito de surreal e onírico à mistura), se vê incluído numa antologia de FC. E ser igualmente um bom conto, felizmente não estragado pelos erros de paginação que atormentam outras histórias da publicação em que se insere. De bónus, inclui ainda uma reflexão curiosa sobre a natureza e utilidade da literatura. Boa leitura, sem dúvida.

Contos anteriores deste livro:

Lido: Leitura Entre Lençóis

Uma das técnicas literárias que pode produzir resultados mais interessantes na ficção curta e ultracurta é o jogo com as expetativas do leitor. São muitas as histórias em que tudo é escrito como se personagens, situações ou locais fossem uns e depois a dado ponto vem-se a perceber que afinal não, que são outros, e é razoavelmente frequente que essas histórias sejam no mínimo interessantes. No entanto, esta técnica é tanto mais eficaz quanto maior for a naturalidade com que tudo acontece, e em contos muito curtos também convém que a reviravolta esteja muito perto do fim.

E é precisamente nisto que o conto Leitura Entre Lençóis, de João Rogaciano, se mostra insuficiente. A ideia é engraçada: começamos por ser apresentados a alguém que lê na cama um livro de terror sobre vampiros, e a reviravolta aparece quando descobrimos quem e o que é esse alguém. O problema é o conto prolongar-se demasiado depois desse momento, como se Rogaciano quisesse assegurar-se, muito para lá do necessário, de que o leitor percebe a ideia. Há três parágrafos a mais. Não parece muito mas, quando o conto só tem 13, é.

Ou seja: o conto não é mau, mas o final é demasiado fraco para permitir que seja bom.

Contos anteriores deste livro:

Lido: Ibêje-Ìbeji

Oh diabo! Que fez a Alexandra Pereira às dedicatórias? Dois contos consecutivos sem nenhuma?! Estará bem, ela?

Bom, mas vamos ao que interessa: o conto. Ibêje-Ìbeji é um conto luso-brasileiro (com passagem por África e pelo Japão) sobre um par de gémeos cearenses que vêm a Portugal à procura da avó que nunca conheceram. E é um conto bem contado, escrito de uma forma sinuosa mas que nunca perde o rumo, no qual há apenas um elemento de irritação para o leitor que eu sou: a exageradíssima transcrição fonética (portuguesa, claro) do sotaque brasileiro dos dois manos, sem correspondência em nenhuma outra personagem. Percebe-se a vontade de introduzir um pouco de humor mas, como diria o outro, não havia necessidade.

Ignorando esse detalhe, é um conto bom e bem escrito, dos mais extensos do livro, um conto ternurento sobre os zigues e os zagues das vidas e dos trajetos que elas escolhem. Sobre encontros e desencontros entre pessoas e territórios. E não, caso estejam curiosos: ao contrário de vários dos outros este nada tem de fantástico.

Contos anteriores deste livro:

segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

Lido: Presas e Predadores

Após um longo hiato, regressam aqui à Lâmpada as opiniões sobre as historinhas (e poemas, que é o que alguns destes textos são) de Luiz Bras. E regressam com Presas e Predadores, um conto profundamente político sobre o choque que o protagonista sente quando se apercebe da natureza de um mundo em que tudo parece resumir-se à relação entre presas e predadores. A estranheza insinua-se nos parágrafos curtos, e o leitor fica como outra personagem qualquer: sem entender lá muito bem de onde vem todo aquele choque, toda aquela... surpresa. Será que o homem enlouqueceu? É que, convenhamos, nada daquilo é propriamente novidade. Esta nossa bela Terra está repleta de canalhas, de gente que se julga no direito de atropelar tudo e todos para alcançar os seus fins.

E depois chega o final e os pontos trepam para cima dos is. Estamos no campo da ficção científica, mesmo que bem soft, quase saramaguiana, em certo sentido (refiro-me, naturalmente, ao Saramago do Ensaio Sobre a Cegueira), e o homem não é de cá. Não exatamente de cá, pelo menos. Um continho muito bem escrito e bastante bem concebido e executado.

Textos anteriores deste livro:

Lido: A Caçada

As fronteiras da ficção científica são fluidas e porosas, como bem sabemos todos. Variam consoante o fim a que se destina a classificação e o ponto de vista de quem a faz. As que eu próprio utilizo são variáveis, sendo muito mais apertadas quando penso no que leio do que quando escolho o que incluir ou deixar de fora do Ficção Científica Literária. Por exemplo.

E é isso o que explica a inclusão deste conto de Lygia Fagundes Telles nesta antologia, que se afirma "de ciencificção". Isso e o renome da autora, imagino. Porque este A Caçada (bibliografia) não me parece ter rigorosamente nada a ver com ficção científica.

É uma história sobre alguém que, ao passar pela montra de um antiquário, fica transfixado por uma velha tapeçaria que mostra uma cena de caça. Transfixado ao ponto de mal conseguir arrancar-se à sua contemplação, ao ponto de regressar repetidamente para voltar a observá-la. E ao ponto de, por fim, mergulhar nela.

E isto sem qualquer elemento tecnológico à mistura que pudesse eventualmente servir de maquilhagem tecnofantástica capaz de justificar o ródulo de FC. Estamos perante simples magia, fantasia, numa abordagem muito semelhante à que mais tarde veio a receber o nome de realismo mágico. O conto é bom, no sentido de mostrar uma língua bem trabalhada e uma segurança total na condução da narrativa, mas tem um problema de contexto (algo não-FC numa publicação que se reivindica de FC) e peca um pouco na originalidade, pois contos destes, em que pessoas são absorvidas por cenas de vários tipos, desde tapeçarias, como aqui, a quadros, passando por espelhos ou fotografias, são razoavelmente comuns na literatura fantástica. O leitor com alguma experiência não demora a ser assaltado pela suspeita sobre onde a autora quer levar a sua história, e depressa essa suspeita se vê confirmada (até porque o conto é curto).

Mas o conto é bom. Não só pelo que ficou dito acima, mas também, ou talvez sobretudo, por uma subtil reviravolta final que faz com que o remate da história não seja bem aquele que se esperaria. A leitura acaba com um "Ah! Boa!", e isso é sempre muitíssimo satisfatório.

Contos anteriores deste livro:

Lido: Resumé

Resumé é mais uma das pequenas histórias distribuídas na newsletter de Bruce Holland Rogers e esta sim, viu tradução portuguesa e publicação em Portugal. E também viu opinião aqui na Lâmpada, no já algo distante ano de 2012. Não tenho muito a acrescentar a essa opinião, salvo dizer que este é um conto fantástico com fortes elementos de horror, o que aliás nem é muito necessário pois esta é informação que se pode entrever com alguma clareza na minha opinião original.

Outras histórias divulgadas na newsletter de Bruce Holland Rogers:

Lido: Um Som de Trovão

Há dois ou três contos de Ray Bradbury que têm lugar assegurado em qualquer antologia séria da melhor ficção científica de sempre em forma curta, resumindo-se a dificuldade à escolha entre eles, caso exista em tal projeto a tão comum limitação de um conto por autor. Um desses contos é, sem dúvida, Virão Chuvas Suaves. Outro, com igual certeza, é este Um Som de Trovão (bibliografia).

Trata-se de uma história de viagem no tempo magnificamente construída. Uma empresa privada, a Safaris no Tempo, Inc., encontrou um lucrativo modelo de negócio: enviar caçadores a épocas longínquas, em que seriam capazes de caçar animais entretanto extintos, podendo depois levar consigo, se não os troféus, pelo menos fotografias da façanha. Para tal, e a fim de evitar causar alterações imprevisíveis e por isso perigosas no espaçotempo, a empresa investiga minuciosamente o passado, procurando animais que, mesmo sem que o caçador os mate, acabem por morrer pouco depois do momento escolhido para a caçada, e instalando uma passadeira flutuante de onde os viajantes no tempo não poderão de forma alguma sair, a fim de evitar que alguma bota distraída acabe por esmagar inadvertidamente alguma criatura relevante. E o nosso protagonista lá vai, caçar dinossauros. Ou melhor: um dinossauro específico.

Bradbury leva os leitores pela mão, desvendando tudo isto com plena mestria, pondo naturalmente as coisas a correr mal e relatando o que acontece depois. Mas tudo tão bem feito que, mesmo havendo já em cima deste conto mais de sessenta anos de histórias de ficção científica, algumas das quais sobre temas semelhantes, não me parece possível algum leitor ficar indiferente a esta velha história. Julgo que parte do fascínio está no final do conto, que apresenta um jogo de expetativas e reviravoltas absolutamente brilhante, mas tudo o resto é igualmente muito bom.

Nada bate ler-se este conto pela primeira vez sem nada se saber sobre ele. Mas eu, que já o li várias vezes em várias publicações diferentes, continuo a fazer uma vénia mental ao mestre sempre que termino mais uma leitura. Um clássico é isto.

Contos anteriores deste livro:

domingo, 17 de dezembro de 2017

Lido: Starfish

É uma velha injustiça da ficção científica que se tenha desde sempre dedicado muito mais a explorar literariamente (e não só) o espaço sideral do que o espaço submarino, apesar de contar, nos seus primórdios, com o clássico Vinte Mil Léguas Submarinas, de Jules Verne. No entanto, este livro deixou muito pouca descendência, comparativamente falando, apesar de as regiões submarinas do nosso planeta serem em muitos aspetos, e ainda hoje, mais desconhecidas do que planetas como Marte ou Saturno. E até mais perigosas para a sobrevivência continuada do Homo tecnologicus do que, digamos, a órbita terrestre.

Pois este Starfish (título que significa, literalmente, "estrela-do-mar"), de Peter Watts, é uma das poucas obras que vai contra a corrente.

Ambientado num futuro razoavelmente próximo, numa estação submarina de monitorização de um sistema de captação de energia geotérmica, situada na dorsal de Juan de Fuca, ao largo da costa ocidental da América do Norte, é daquelas histórias claustrofóbicas de ficção científica que é tão comum encontrar ambientadas no espaço. Histórias em que os seres humanos sobrevivem em habitats limitados, tremendamente longe de qualquer lugar que lhes possa possibilitar a sobrevivência sem auxílio tecnológico. Aqui o isolamento não é tão absoluto como em muita da FC espacial (se bem que ela por vezes o elimine pondo as naves a saltar magicamente de planeta em planeta e estes quase invariavelmente com atmosferas respiráveis e habitados), pois a superfície do planeta está a algumas horas de distância e as personagens têm uma possibilidade maior de sair da estação do que é comum encontrarmos nas histórias de FC hard ambientadas no espaço. Mas se excetuarmos essas diferenças mais ou menos de pormenor a atmosfera é muito idêntica.

Watts interroga-se sobre como seria a vida num ambiente desses. Os seus "e se?", no entanto, vão mais longe: em vez de tripular a estação com os típicos heróis destemidos e inabalavelmente equilibrados de histórias mais simples, Watts pergunta ao leitor "e se a corporação privada que explora esta coisa só conseguir ou só quiser encontrar tripulantes muito desequilibrados da cabeça?" Assassinos, vítimas de abuso, psicopatas, pedófilos... Gente antissocial, em suma, gente que a sociedade civilizada lá de cima rejeita e/ou que rejeita a sociedade comum. O refugo e as vítimas desse refugo com sequelas psicológicas duradouras.

Com esse truque simples, o autor consegue criar logo à partida uma série de tensões, tanto internas a cada personagem como entre elas, que se vão somar à periculosidade do ambiente e ao seu caráter claustrofóbico para sustentarem boa parte do romance. A isso acrescenta-se o facto de não estarmos a falar de seres humanos inalterados mas de pessoas sujeitas a tratamentos de engenharia genética para melhor se adaptarem às profundezas do oceano (facto que Watts aproveita para explicar parte do motivo de serem os inadaptados a descer até lá abaixo; gente bem integrada, com mais amor-próprio, mostra mais relutância em sujeitar-se a tais mudanças... e quebra mais facilmente). E a isso vai acrescentar-se mais um elemento fulcral. Um elemento que faz com que esta história tenha um parentesco evidente com a novela O Destruidor de Mundos, de Charles Sheffield, que foi aqui comentada há pouco tempo.

É que, postula Watts, nas profundezas oceânicas do nosso planeta vivem estranhas criaturas. Micróbios tão filhos da Terra como os da superfície e das pequenas profundidades mas cujos metabolismos seguem outros caminhos bioquímicos. Uma biosfera diferente da nossa, apesar de partilhar o mesmo planeta. Micróbios que, apesar disso, podem entrar em simbiose com os organismos da outra biosfera e que, ao fazê-lo, os alteram, propiciando gigantismo e melhorando as suas capacidades de sobrevivência. E que têm sobrevivido ao longo dos milénios confinados ao fundo dos mares, sem conseguirem sair de lá. Mas o que aconteceria se saíssem? Aconteceriam chatices das grossas, ah pois!

Este é um romance de ficção científica bastante bom. Como em vários outros exemplos de FC claustrofóbica, há nele muitos elementos de horror, e o tom é definitivamente sombrio do princípio ao fim. Quem goste daqueles livros muito movimentados e repletos de ação pode achá-lo pouco apelativo, especialmente na primeira metade (talvez um pouco mais), pois Watts concentra-se aí mais na exploração das tensões psicológicas das suas personagens e na criação do ambiente do que propriamente em fazer avançar o enredo. Na segunda metade as coisas começam a acontecer a um ritmo mais elevado, e a história acaba bastante em aberto (este é o primeiro livro de uma trilogia e há que deixar ganchos para o próximo), e com quase tudo absolutamente em causa. Mas apesar disso achei o final satisfatório, sem aquele sabor a pouco que muitas vezes acompanha os finais em aberto.

Em suma, uma boa leitura. Boa e gratuita, pois Watts tem o livro disponível no seu site sob uma licença Creative Commons. Só vantagens. Recomendo.

Lido: Vuelo Libre

É uma constante nos últimos contos desta antologia: Vuelo Libre aparece mais uma vez como um bloco quase único de texto, no qual o único sinal daquilo que deveriam ter sido parágrafos são espaços mais longos a separar algumas frases. E, tal como acontece com os outros contos que sofrem deste erro sistemático, também a leitura desta história de Federico Schaffler se vê bastante prejudicada por ele.

Por entre os erros de paginação consegue-se perceber que se trata de uma história interessante de ficção científica hard, sobre um sistema semiautónomo alado, dotado de uma IA limitada e de nanitos e parcialmente controlada remotamente por operadores humanos, cujo objetivo é produzir energia ao mesmo tempo que despolui os céus da Cidade do México (ou talvez seja mais adequado falar da Megalópole do México), e que acaba por ser desviado dessa função por um desses operadores que o autonomiza e põe em voo livre ao longo de todo o planeta, recuperando a atmosfera.

Cheio de ideias interessantes, este conto peca, no entanto, por um excesso de infodumps e de descrição. Dedica muito tempo a apresentar o cenário e muito pouco a desenvolver personagens e enredo e isso desequilibra-o. Parece-me, portanto, que teria mais impacto se fosse desenvolvido numa história mais ampla, na qual as (boas) ideias viessem acompanhadas por personagens bem desenvolvidas e um enredo mais sólido. Assim, poderia deixar de ser apenas interessante; poderia tornar-se muito bom. Mas não é isso o que aqui temos, e é pena.

Contos anteriores deste livro:

segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Lido: Felicidade

Em quase todas as antologias temáticas há um ou outro conto que só de raspão respeita a proposta. A desta antologia são minicontos e vinhetas que tenham os livros como tema, e cabe aqui a este Felicidade, de Jorge Palinhos, cumprir o papel de rebelde iconoclasta: os livros fazem aqui uma breve aparição, mas não são de nenhum modo fundamentais para a história e podiam facilmente ser substituídos por várias outras coisas. No entanto, os organizadores acharam-no suficientemente próximo ao tema para o aceitarem, e ainda bem, porque é um conto interessante.

Num futuro talvez não muito distante, um futuro utópico de certa forma semelhante ao de Admirável Mundo Novo, no qual a população é sistematicamente feliz, um rapazinho perde um animal de estimação e mergulha num estado de preocupante tristeza. Isso leva os pais a consultar um médico, o qual fica alarmado com o que vê e se apressa a receitar tratamento ao rapaz. Não há motivo para preocupações: depressa o miúdo estará de novo feliz. E não se compreende por que motivo isso é tão arrepiante. Pois não? Sim, este é, definitivamente, um continho interessante.

Contos anteriores deste livro:

sábado, 9 de dezembro de 2017

Lido: A Décima-Terceira História

A Décima-Terceira História (que realmente é a décima terceira... nunca tinha visto tal forma de decidir um título) é uma raridade: uma história que Alexandra Pereira não dedica a ninguém, limitando-se a apresentá-la com este estranho título que nada diz sobre ela e a lançar-se naquilo que quer contar. E o que quer contar é uma história de amor, cumplicidade e timidez entre chineses, provavelmente imigrantes entre nós, pois há em fundo alfarrobeiras e festas ao padroeiro Agostinho e o nome próprio da mulher é Rosalina. Uma história sem nada de fantástico.

Bem escrito, sem aqueles diálogos artificiais que por vezes estragam as histórias de Alexandra Pereira (esta tem diálogos, mas não são artificiais), e com sensibilidade, este é um bom conto, ainda que esteja longe de ser daquelas histórias que mais me despertam o interesse. As minhas preferências são outras. Mas este conto é bom, independentemente do interesse que me desperte ou deixe de despertar.

Contos anteriores deste livro:

Lido: A Bôlha e a Cratera

Na ficção científica de um período do século XX que vai mais ou menos dos anos 50 aos 70, a Lua ocupou lugar de destaque, alimentando-se de, e alimentando, o interesse do público pelo nosso satélite, tendo depois sido posta um pouco de parte tal como aconteceu na realidade da exploração espacial. Isto sem prejuízo das obras anteriores e posteriores lá ambientadas, naturalmente, que também existiram e continuam a existir. Foram os Estados Unidos a liderar essa ascensão e queda, como seria de se esperar dado ser lá o epicentro da FC mundial, mas isso é fenómeno que não se resumiu aos EUA, tendo também tido reflexos nos países lusófonos.

A Bôlha e a Cratera (bibliografia), de Rubens Teixeira Scavone, conto que já aparece datado pela grafia usada logo no título, é um desses reflexos. Ambientado numa base lunar estereotipicamente situada numa cratera recoberta por cuma cúpula (a bolha do título) gira não em volta disso, mas de um sorteio e de um crime. Contada na primeira pessoa pelo jornalista da base, a história relata com (excessiva) abundância de apartes muito descritivos e cristãos o que acontece quando um jovem que perdeu sucessivos sorteios para ir de visita à Terra decide que dessa vez não se deixará ficar na Lua, dê lá por onde der. E a investigação acaba por revelar outros segredos, igualmente trágicos.

Podia ser um conto muito interessante, este. Scavone escreve bem e a história que cria tem abundância de mistério e reviravoltas. O problema são os apartes, as derivações, que quebram o ritmo narrativo, em parte porque nem são bem introduzidos no fluir da história, nem ficam bem resolvidos, na sua maioria. As consequências são uma história que poderia ser emocionante mas se torna aborrecida e um texto que poderia ser de grande qualidade mas perde parte dela por causa da inabilidade demonstrada pelo autor em segurar a narração. É pena.

Conto anterior deste livro:

sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Lido: Dinosaur

É por causa de historinhas como esta que Bruce Holland Rogers é tão bom escritor de contos muito curtos. Em Dinosaur, ele consegue, em muito poucas linhas, contar a história de uma vida inteira, ao mesmo tempo que reflete sobre o conformismo e a tensão que existe sempre entre esse conformismo, social ou qualquer outro, e a mais profunda natureza de cada pessoa... ou de cada criatura. E em muitas outras das suas histórias faz coisas semelhantes, sempre numa prosa elegante, muitas vezes com ironia e quase sempre com grande subtileza.

Dinosaur conta a história de um miúdo que queria ser dinossauro quando fosse grande. Pais e sociedade, naturalmente, encararam tal desidério com desagrado e rejeição, sugerindo-lhe outros rumos para a sua vida. Depois, o miúdo foi grande e não foi dinossauro. E depois foi velho... e nesse momento em que uma vida se completa, a verdadeira natureza dessa vida tem quase obrigatoriamente de vir à superfície.

Já perceberam que esta é uma ótima história, não foi? Pois é. Ótima.

Outras histórias divulgadas na newsletter de Bruce Holland Rogers:

quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

Lido: Os Pomos Dourados do Sol

Há histórias que praticamente não envelhecem, mesmo no género que entre todas as formas literárias tende a envelhecer mais rapidamente. Outras, porém, sentem com força o peso dos anos a acumular-se, e tornam-se frágeis, prontas a desfazer-se com um sopro. Para isso, e muito embora a qualidade original tenha a sua influência, talvez seja a sorte o fator mais importante. A sorte e o sempre imprevisível caminho seguido pela sociedade, pelo pensamento, pela tecnologia, são o que determina em grande medida se uma história sobrevive incólume ao passar dos anos ou não.

Os Pomos Dourados do Sol (bibliografia) não é das histórias que melhor sustentaram a passagem das décadas porque se debruça sobre um problema difícil: como conhecer a natureza do Sol? Ou por outra, não é por se debruçar sobre esse problema em concreto, mas porque o faz avançando com soluções que hoje, em retrospetiva, nos parecem um bom bocado ridículas: Ray Bradbury coloca-nos dentro de uma nave cuja missão é aproximar-se do Sol até quase tocá-lo, pôr em operação uma espécie de colher gigantesca, tocar com ela o Sol e trazer lá dentro uma amostra da sua substância, tudo muito inútil para uma civilização que conhece a espectroscopia, sabe o que são linhas de absorção e de emissão e tem instrumentos capazes de observar o Sol em qualquer comprimento de onda e um arsenal teórico suficiente para deduzir a partir dessas observações não só a sua constituição superficial mas até a sua estrutura interna.

O melhor que este conto nos legou, parece-me, foi o título. Porque Bradbury o usou para intitular uma coletânea de contos muitas vezes brilhantes, quase sempre mais resistentes ao desgaste do tempo do que este, uma coletânea que consegue ser excelente apesar de contos como este. Porque sim, este não o é. Não o é hoje e creio mesmo que nunca o foi, nem mesmo quando era novo.

Contos anteriores deste livro:

terça-feira, 5 de dezembro de 2017

Lido: Brinca Comigo! e Outras Estórias Fantásticas com Brinquedos

Se é verdade que há livros que acabam por se revelar melhores do que os autores poderiam fazer prever à partida, seja por serem desconhecidos, seja por obras anteriores serem muito promissoras no que toca à sua qualidade, não é menos verdade que há outros que acabam por desiludir, apesar dos nomes que apresentam.

Brinca Comigo! e Outras Estórias Fantásticas com Brinquedos (bibliografia), pequena antologia temática organizada por Miguel Neto com três noveletas e um conto escritos por alguns dos autores de género mais competentes cá do burgo, é destas últimas. Porque as suas duas obras de ficção científica, uma de fantasia científica e uma de horror, desenvolvidas em volta dos brinquedos, estão abaixo, e no caso de Barreiros bastante abaixo, do melhor que os respetivos autores já produziram. A exceção que confirma a regra é a história de Luís Filipe Silva, de longe a melhor do livro. Basta ela, na verdade, para a publicação ter valido a pena.

Sublinhe-se que nenhum dos contos é mau. A antologia não desilude por incluir ficção de má qualidade, mas por não corresponder à expetativa que os nomes dos autores criam no leitor conhecedor da FC&F portuguesa. Fosse uma publicação feita com autores pouco conhecidos não traria qualquer desilusão, bem pelo contrário, e calculo que um neófito acabe por ler estas páginas com pleno gosto. Porém, feliz ou infelizmente, eu não sou neófito, já conheço bastante bem os autores e esperava deles mais. Saí desta leitura pouco satisfeito. Não fosse a noveleta do Luís Filipe Silva, seria uma antologia apenas razoável. Com ela chega ao bom.

Eis o que achei das quatro histórias:
Este livro foi comprado.

Lido: El Rescate

El Rescate é outro dos contos que ficaram muitíssimo prejudicados pelos erros de paginação no PDF — também ele foi reduzido a uma mancha de texto contínua que dificulta e torna penosa a leitura, embora menos que o anterior, visto ser um conto mais curto. O autor, Andrés Tonini, cria uma daquelas histórias que parecem realistas até mesmo ao fim, altura em que finalmente se percebe que se trata de uma história de FC. E esta, tal como a de Holstein de que falei logo abaixo, é também uma história que mistura o horror à ficção científica, aqui horror da vertente psicológica, pois é protagonizada por uma mulher capturada por um grupo de guerrilheiros ou terroristas, que a maltratam, violam e pretendem matá-la, até que in extremis surgem soldados que a resgatam. O que para o mal dos seus pecados não constitui grande vantagem.

Apesar de alguns pormenores de enredo que me desagradaram muito, como aquilo que o autor põe a prisioneira a fazer após ser violada e a forma como transforma o violador no único bonzinho da história, este conto podia ser interessante se não fosse o desastre na paginação: é contado na segunda pessoa, opção que até faz sentido, tem um bom ritmo, e entrega bem a dose de cinismo político-militar que pretende entregar. Mas a paginação desastrada estragou-o.

Contos anteriores deste livro:

Lido: Leituras

Há uma quantidade razoável de histórias que tão facilmente se encaixam na ficção científica como no horror. O mais óbvio exemplo vem do cinema e é uma série inteira, os filmes dos Aliens, mas a literatura também está cheia deles, do velho horror cósmico de Lovecraft a alguns dos exemplares da moderna moda das distopias, passando por muitíssimos livros e filmes baseados em epidemias, com mortos-vivos à mistura ou não.

Este pequeno conto de Álvaro de Sousa Holstein, Leituras, é também um exemplo disso mesmo. Protagonizado por uma espécie de grande aranha inteligente, a qual atrai humanos à sua armadilha lendo-lhes livros, foi um conto que me pareceu ter mais história do que a que cabe no texto. Por outras palavras: pareceu-me que o seu impacto aumentaria sobremaneira se se prolongasse duas ou três vezes mais, dando assim tempo ao leitor para mergulhar no ambiente, sentir-se nele inquieto mas confortável, e desferir depois a conclusão. É um conto com interesse, mas podia ser melhor.

Contos anteriores deste livro:

segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

Lido: O Buda de Lisboa

Não, suas gracinhas, não é um conto sobre o António Costa.

O Buda de Lisboa, mais um conto, como já terão reparado pelo boneco junto, da Alexandra Pereira (e que, claro, começa com mais uma dedicatória, esta a um tal João Louro que não faço ideia se é o artista plástico ou outro qualquer), é um daqueles exercícios de estilo que deixam um tipo ao acabar a leitura com aquela sensação de "eh pá, OK, porreiro, mas e daí?" Com toques de fantástico, sugerindo que o tal Buda pode não ser uma pessoa de carne e osso mas um ornamento que ganhou vida, este conto é sobretudo um retrato, não tanto do dito Buda, que passa boa parte do texto simplesmente a observar, mas de variegados tipos lisboetas, humanos e paisagísticos. Sim, está bem escrito, sim, há alguns achados literários, sim, a ironia não se perde na leitura, pelo contrário, como que se entrevê nas entrelinhas a autora aos risinhos, mas... e daí? Sabem como é? E daí?

Haverá com toda a certeza quem goste. Eu encolhi os ombros.

Contos anteriores deste livro:

domingo, 3 de dezembro de 2017

Lido: Água de Nagasáqui

Se eu algum dia me metesse a organizar uma antologia de ficção científica brasileira para a apresentar ao público português (algo que não está nos planos, esclareça-se, apesar de me parecer uma ótima ideia que alguém trate disso... e do vice-versa), este conto estaria com toda a certeza lá.

Água de Nagasáqui (bibliografia) foi uma grande surpresa. Muito bem escrito, em jeito de testemunho, este conto de Domingos Carvalho da Silva (autor verdadeiramente lusobrasileiro, pois nasceu em Portugal e cresceu no Brasil) relata a história de Takeo Matuzaki, um natural de uma ilha próxima de Nagasáqui, que era adolescente quando os americanos despejaram sobre a cidade a segunda e última (até agora) bomba atómica usada militarmente na história da Humanidade. É descrita a vida do homem, entre a sua ilha natal, a cidade de Nagasáqui, Tóquio e finalmente a emigração para o Brasil, com tudo no seu lugar próprio, um ritmo impecável e um português de qualidade. E um mistério que se vai desenvolvendo até ser esclarecido quase no final: o homem nunca se defende da radioatividade, limita-se a ignorá-la. E no entanto, ao contrário de muitos outros, incluindo pessoas mais ou menos próximas, não morre. Nem sequer adoece. O que se passa?

Este é um belo conto de ficção científica, com toques fortes de horror. Vale muito a pena ser lido.

sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

Fui à Wook e vim desapontado convosco

Aproveitando o facto de precisar de comprar mais um dicionário, desta vez um dicionário de calão e/ou gírias do submundo (já precisei várias vezes de algo assim para as minhas traduções, e vou voltar a precisar muito em breve; aceitam-se e agradecem-se sugestões de boas alternativas ao único que encontrei — e encomendei — o Dicionário de Calão do Eduardo Nobre), resolvi premiar-me por ter ultrapassado um período complicado comprando uns livros. Por isso, dei um salto à secção de ficção científica na Wook.

E vim de lá desapontado convosco.

É que há alguns anos que apanho tudo o que vai sendo divulgado por aí no que toca às edições de ficção científica em português, via Ficção Científica Literária (em versão blogue e na anterior, no scoopit), e mesmo assim há uma série de edições de que não me lembro de ter ouvido falar.

Vocês andam-me a falhar.

Encontrei por lá um tal Livro Mistério 2, sem autor identificado, aparentemente publicado em 2016 por "Diversos", 416 páginas e cuja sinopse é:

Ficção científica
Realidade virtual
Cultura pop dos anos 80
Caça ao tesouro
E se o mundo for apenas um videojogo?

E vocês nem me falaram disto nem me explicaram o que raio vem a ser isto.

Mas há pior, muito pior!

Também encontrei por lá um tal Holocausto Lunar, de Sofia Guilherme Lobo, aparentemente um romance curto de 158 páginas publicado em 2017, sim, este ano, pelas Edições Vieira da Silva, e que tem como sinopse o seguinte:

Serina é uma menina da Lua, filha de um herói de uma revolução socialista e irmã de um soldado do Exército Vermelho. É uma menina protegida pelo sistema mas à sua volta outras crianças não o são, pois são vítimas de perseguição religiosa e de recrutamento forçado… Luanda, uma menina de 8 anos, a quem Serina chama de irmã, é recrutada à força como criança-soldado; sem conseguir ficar indiferente a esta injustiça, Serina acompanha-a voluntariamente na convicção que a consegue a salvar. Mas mais vidas estão em jogo…

E vocês? Nada.

Mais: encontrei A Visão do Inferno de Diogo Figueira, publicado em 2015 pela Esfera do Caos, um romance volumoso com 388 páginas e uma sinopse apetitosa:

Nas profundezas da Via Láctea, dois grupos rivais de máquinas inteligentes governam uma parte da galáxia. A Terra é o principal alvo. Quem vencerá esta batalha cósmica? Difícil de classificar, talvez por estar no cruzamento da literatura fantástica com a ficção científica, esta obra intensa e vibrante faz pensar, porque nos confronta com dilemas e opções que mergulham no âmago dos nossos maiores desafios existenciais.

Felizmente, este livro tem na wook um extrato disponível para ser folheado; o texto é beato e com uma qualidade literária bastante baixa. Mas mesmo assim, vocês falharam-me: deviam ter-me falado do lançamento.

Tal como me deviam ter falado de O Oásis, de Pedro Águas, um livro de contos publicado em 2011 pela Lugar da Palavra, editora que não parece ter achado necessário informar quantas páginas tem o livro, mas pelo menos divulgou uma sinopse:

Deixe-se levar para um mundo novo, absolutamente fantástico e surpreendente, e mergulhe, hoje, no abismo do futuro, pela mão de Pedro Águas, um dos poucos autores a escrever (bem) ficção científica.

E também não deviam ter omitido os livrinhos da Áurea Justo, apesar de tudo. Anéis de Fogo é outra edição da Lugar da Palavra, e também de 2011, uma novela com 92 páginas e uma sinopse que o faz antever pavoroso:

O passado e o futuro andam de mãos dadas nesta saga de ficção científica em que as personagens principais, terrenas e saturnianas, se envolvem numa arrebatadora história de amor interplanetário. O destino de Saturno (e também da Terra) está ameaçado. E a única solução parece ser um objeto sagrado legado pela civilização Maia, a Mãja… que Ângela tem em seu poder, mas não sabe como usar. Mas os perigos são muitos e poderosos… Depois de Anéis de Saturno, Anéis de Fogo é o segundo livro desta trilogia de ficção científica apaixonante.

E não só o faz antever pavoroso como indica a existência de um livro anterior, embora quem procure por "anéis de saturno" fique de mãos a abanar. É que, com a típica eficiência de certas editoras, a sinopse está errada e o livrito chama-se...

As Estrelas de Saturno, um título que apesar de ser levemente disparatado foi publicado em 2010 pela Cidade Berço (e com toda a certeza integralmente pago pela Áurea Justo), mais uma editora que não parece achar necessário fornecer um mínimo de informação ao putativo comprador, visto que nem informa do número de páginas (mas eu fui ao site da BN e sei: são 127) nem sequer fornece aquela coisinha básica de qualquer edição: uma sinopse.

Tampouco me disseram nada sobre Os Impossíveis Possíveis, livro de Vasco Farinha editado em 2012 pela Ecopy e que, para coletânea de contos, até é volumoso com as suas 320 páginas. A sinopse diz que:

«Os impossíveis possíveis» é uma colectânea de contos de ficção científica que combina com mestria o relato dos factos mais banais do quotidiano com uma surpreendente descrição dos mais fantasiosos princípios científicos, criando enredos intrigantes e arrebatadores. Capaz de esbater completamente a ténue linha que separa o passado, o presente e o futuro, este livro desafia-nos a reflectir sobre as questões mais relevantes da humanidade.

E o trecho que está disponível para folhear até mostra uma prosa agradável, o que não querendo dizer que os contos sejam bons dá pelo menos indicação de que podem sê-lo.

E depois, claro, há as edições da Chiado. Mas essas são demasiadas para incluir aqui: dariam para um post inteiro do tamanho deste.

Portanto sim, estou desapontado convosco. Deviam informar-me destas coisas. Oh, eu sei que vocês, as pessoas individuais que estão a ler isto e até têm os seus blogues e sites onde divulgam por carolice aquilo que vos vai chegando ao conhecimento pouca ou nenhuma responsabilidade têm: quase todos estes livros são publicados por editoras-parasita, que se aproveitam da ingenuidade dos autores, fazem-nos pagar bom dinheiro para terem o seu livrinho cá fora sob o argumento inteiramente falso de que "todas funcionam assim" e depois não cumprem com um mínimo de promoção e quase também não cumprem com um mínimo de distribuição, deixando os livros ao deus-dará e aos autores todo o gasto da divulgação das suas obras, uma vez que já têm a edição paga à partida e não precisam de mexer uma palha para terem lucros. O meu "vocês" foi deixado vago precisamente por isso, porque a responsabilidade para este desconhecimento não é, na esmagadora maioria dos casos, da malta da FC. É das "editoras", com abundância de aspas, que não fazem chegar os livros ao conhecimento de quem poderia querer lê-los, o que é um requisito básico para que uma empresa possa arrogar-se ao nome de editora.

Iniciativas amadoras ou semiamadoras como a Imaginauta ou a Divergência fazem um trabalho incomparavelmente melhor para os respetivos autores do que estas coisas.

Mas este post também aparece por outro motivo: diz-se com demasiada frequência que não há nada na ficção científica portuguesa, que não se publica nada, que estamos no deserto. Não é verdade. Podemos queixar-nos da qualidade do que é escrito (se bem que para isso convém ler o que é escrito, e aqui temos um problema) e da qualidade de edição do que vai sendo editado (para isto, felizmente, não é indispensável ler nada; basta assinalar comportamentos). Mas não podemos dizer que não há nada. Porque há. Precisávamos era de quem se dedicasse a encontrar estas coisas e a separar o presumivelmente pouco trigo do certamente muito joio que vai aparecendo por aí. Isso é que parecemos não ter mesmo.