sábado, 30 de novembro de 2019

Carlos Eduardo Nobre Cesário e Silva: Quem Semeia Ventos, Colhe Tempestades

Mais um autor que assina com o nome completo, este Carlos Eduardo Nobre Cesário e Silva é conhecido do pessoal ligado à FC, de outras cavalgadas e com outro nome, significativamente mais curto. Mas este Quem Semeia Ventos, Colhe Tempestades (bibliografia) não é um conto de ficção científica; é um conto de fantasia.

E é um conto de fantasia sobre uma velha que tem a casa invadida por um trasgo, i.e., um pequeno diabrete. Há nele um detalhe que é daquelas ideias magníficas que dão a um tipo aquela raivinha de "mas porque é que eu nunca me lembrei disto?": o trasgo fala com a velha em mirandês, o que tem o desejado efeito de o identificar como criatura antiga e rural, uma daquelas criaturas de um mundo mágico que a modernidade abandonou há muito. Excelente.

Mas nem tudo o resto é tão bom como esta ideia. O pior é mesmo o final, preguiçoso, pois serve-se do surradíssimo cliché do "afinal foi tudo um sonho" para despachar o conto, evitar mais explicações e resolver com esse abracadabra todas as pontas soltas do enredo. É tão pena uma ideia tão boa como a do mirandês acabar desta forma anticlimática que a raivinha que um tipo sente no fim é bem outra, mais do tipo "mas porque é que fizeste isto?"

Porque o que fica no fim é sobretudo a sensação de mais potencial desaproveitado. A FC&F portuguesa está cheia desta sensação.

Textos anteriores deste livro:

sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Franz Kafka: Um Cruzamento

Muito curto, sem chegar sequer a duas páginas, este continho de Franz Kafka tem pouco interesse, apesar de estar tão bem escrito como seria de esperar do autor. Trata-se de uma breve descrição de uma quimera, Um Cruzamento (sim, eis o título) francamente estranho entre um gato e um cordeiro, que é animal de estimação do narrador. Este, em primeira pessoa, descreve o bicharoco e as suas características, muitas vezes paradoxais.

É possível fazer uma interpretação simbólica e política desta pequena história. É possível olhar para ela e ver no infeliz animal, carente do carinho da única criatura que lho dá, o dono/narrador, sem iguais e ignorado ou escorraçado por todos os que não o são, um símbolo do homem miscigenado. É possível ver nessa infelicidade uma crítica à impureza racial — uma crítica compreensiva, talvez, porque afinal quem narra a história é quem dá carinho ao animal, mas uma crítica. Tal interpretação está certamente de acordo com várias ideologias dominantes na Europa na época de Kafka... mas creio que não bate certo com a ideologia do próprio Kafka, que era um socialista no sentido original do termo.

Pelo que eu prefiro pensar nesta historinha apenas como um texto bem escrito sobre uma quimera inadaptada ao mundo, que no entanto conseguiu encontrar o seu refúgio. Há quem se sinta assim a vida inteira. E há quem nunca encontre esse refúgio.

Quimera de sorte, esta.

Contos anteriores deste livro:

quinta-feira, 28 de novembro de 2019

Maria Júlia Pacheco: Risco Vermelho

Aviso desde já: neste meu texto há spoilers do princípio ao fim. Estão avisados.

Ao terminar de ler este longo conto de Maria Júlia Pacheco, a interrogação que me ocupava a mente era algo como "o que leva uma mulher a escrever uma história destas?" Porque Risco Vermelho é a história, em grande medida desculpabilizadora, de um feminicida.

Maria Júlia Pacheco escreve bem. Bastante bem, até. Mas a história que conta é perturbadora, e não no bom sentido. O seu protagonista é um tipo cheio de inseguranças, vítima de abusos em pequeno, que se apaixona obsessivamente por uma psiquiatra. Não a psiquiatra dele, ainda que precisasse; psiquiatra de outros. A autora conta isto de uma forma sinuosa, e ainda bem porque assim faz literatura enquanto de outra forma estaria muito provavelmente apenas a escrever uma redação. Sim, formalmente o conto é bastante bom. Mas...

... mas a forma que a autora escolhe para contar a história, focando-se no assassino e não na vítima, dissecando os seus motivos e as suas justificações, compreendendo-os ao mesmo tempo que quase ignora a vida da mulher a que ele põe fim, causou-me um forte desconforto. O que leva uma mulher a escrever assim uma história destas? Sim, é certo que este livro foi publicado em 2012, altura em que este assunto estava menos na ordem do dia do que está hoje, mas mesmo assim...

Cada leitor lê as histórias à sua maneira e com base nos seus próprios conhecimentos e valores. É por isso, aliás, que a opinião literária nunca é a verdade, mas apenas uma verdade. Sim, mesmo a que é honesta. E é por isso que a opinião literária deve ser sempre feita a várias vozes. Mas divago. O que quero dizer é que é provável que o facto de eu ter escrito há alguns anos (espera... foi quase há vinte?! Vinte?! Não é possível!) um conto que também era protagonizado por um tipo que mata a mulher à pancada pode ter alguma influência no incómodo. Mas eu não tentei justificar o meu protagonista; pu-lo a dar desculpas esfarrapadas, pu-lo a portar-se como um idiota. Era essa a ideia: retratar o tipo como um cretino. Mas terei conseguido? Cada leitor lê as histórias à sua maneira, não é? Terei conseguido para toda a gente?

Não sei. E isso incomoda-me. Talvez esse incómodo se estenda ao conto da Maria Júlia Pacheco. Que é bom e está bem escrito e bem estruturado. Quanto a isso não tenho dúvidas. Tenho sobre o resto.

Contos anteriores deste livro:

Carla Marques: Luz

E é pelas mãos da Carla Marques que a ficção científica faz a sua estreia neste livro, ainda que de uma forma muito ténue, muito de raspão, pois Luz (bibliografia) é sobretudo uma história de fantasia com alguns elementos de horror cósmico e de FC. E é, mais uma vez, uma história que tenta atafulhar demasiadas coisas num espaço muito curto e sofre por isso.

E podia ter sido uma história interessante; a base é-o. Mas a necessidade sentida pela autora de explicar tudo o que se passa, mantendo a história nos seus estreitos limites, transformou o texto numa coisa insípida e sem emoção (o que é piorado por ser previsível desde o início, e isto não seria o alongamento do texto a evitar), nada adequada à história de apocalipse iminente que se quer contar. Por outro lado, Carla Marques tem a qualidade de evitar o infodump, preferindo transmitir a sua informação através de diálogos que fazem sentido porque colmatam reais carências de informação por parte das personagens; como vimos em opiniões recentes sobre outra antologia portuguesa, nem todos os nossos escritores, mesmo se consagrados, têm essa capacidade. É um ponto claro a seu favor, e é boa parte do que me faz supor que este conto talvez fosse bom se tivesse pelo menos o dobro da extensão, apesar de a autora mostrar algumas fragilidades no domínio da língua. Assim, é outro caso de potencial desperdiçado. Mais um.

Textos anteriores deste livro:

segunda-feira, 25 de novembro de 2019

Charles W. Runyon: Em Tempos Havia os Bois...

Ora aqui está uma noveleta curiosa. Escrevendo uma história de ficção científica militar cruzada com romance planetário, Charles W. Runyon, de que eu nunca tinha lido nada, conseguiu manter-me permanentemente na dúvida sobre o rumo que a sua história ia seguir. E nem o título, Em Tempos Havia os Bois... (bibliografia), dá alguma ajuda, apesar de até fazer pleno sentido quando chegamos ao fim. É essa a principal qualidade desta história.

O protagonista é um linguista, encarregado de estudar e tentar compreender, se possível, a língua dos nativos, caso eles existam. Não é particularmente bem aceite pelos militares que o rodeiam, que têm uma atitude francamente colonialista e consideram eventuais nativos como um problema a ser resolvido por todos os meios necessários, e se esses meios forem o genocídio, pois que sejam. O mais importante, isto é, o estabelecimento de colónias humanas em planetas distantes, tem prioridade. E ainda por cima, o protagonista tem duas características que desagradam fortemente aos militares: é obstinado e indisciplinado.

Claro que vão ser essas as características a salvar a situação, mas até aí há uma série bastante interessante de reviravoltas e descobertas, daquelas que forçam a reavaliar a situação e reorganizar a informação obtida até aí. Tudo gira em volta de uns nativos pequeninos e primitivos que a expedição encontra e de certas características da língua deles, as quais não batem certo com a sua sociedade. Porque uma língua é sempre o reflexo da sociedade que a cria, respondendo através da inovação e da adaptação às necessidades desta.

Não é muito frequente que a ficção científica se desenvolva na interseção da (exo)biologia com a linguística, e menos ainda se a essa interseção se agrega um pouco de reflexão sobre o colonialismo, o imperialismo e a xenofobia. Também por isso, mas não só, gostei bastante desta noveleta.

Fernando Esteves Pinto (org.): 7 Contos Ilustr.s (#leiturtugas)

Eu às vezes chateio-me um bocado, confesso, por deixar de lado livros que me apetece ler, de que tenho uma certeza razoável de que vou gostar, para ler coisas que me despertam outras curiosidades e são incógnitas absolutas ou quase. Sou um leitor aventureiro, suponho, pois ando sempre a petiscar coisas desconhecidas, e com isso tenho apanhado valentes banhadas e tenho deixado de ler coisas que me chegam repletas de boas referências. Às vezes chateio-me um bocado com isso. Mas depois aparecem-me livros como este e compensa.

Não que esta antologia seja particularmente boa. Mas 7 Contos Ilustr.s (bibliografia) tem várias características que fizeram com que valesse plenamente a leitura. Para começar, é praticamente uma antologia de literatura algarvia, pois no grupo reunido por Fernando Esteves Pinto, o organizador, ele próprio algarvio, só um autor não o é também. Em segundo lugar, é praticamente uma antologia de literatura fantástica, sem que esse facto seja alardeado, visto que dos sete contos só dois não têm ligações ao género. E ainda por cima em vários essas duas qualidades cruzam-se, ora através da ambientação dos contos no Algarve, ora por via do recurso a lendas algarvias, como no caso da história de Fernando Pessanha.

Mas como poucas coisas me dão mais prazer do que encontrar ficção científica em lugares inesperados, o facto de esta antologia conter FC foi uma das coisas que me fez dar por mais bem empregue o tempo gasto na leitura.

Além disso, há aqui contos bons. Nenhum é muito bom, e a maioria não ultrapassa o mediano, mas há contos bons e não há contos maus, mesmo que um ou dois sejam mais fracos. O resultado é o nível geral da antologia ser bastante razoável. Destaco dois como os que mais me agradaram: Os Romanos e O Sétimo Céu e as Meninas de Tânger. Mais motivos para a leitura ter valido a pena.

E depois há a razão do título ser 7 Contos Ilustr.s e não apenas 7 Contos. É que todos os contos estão profusamente ilustrados, por ilustradores que, na sua maioria também são algarvios ou radicados no Algarve. De facto, talvez seja mais adequado falar em sete equipas de escritor/ilustrador, pois a cada ilustrador foi atribuído um conto, tendo produzido várias ilustrações para o acompanhar — entre 4 e 8, o que faz com que além dos contos propriamente ditos este livro seja também enriquecido com cerca de quatro dezenas de ilustrações de página inteira. Para um livro de 133 páginas, número que inclui também as pequenas biografias de todos os intervenientes, é bastante.

Em suma: esta foi uma antologia que achei francamente interessante.

Eis o que achei de cada conto:
Este livro foi comprado.

Lídia Jorge: A Espuma da Tarde

Há um efeito curioso em alguns escritos de autoras como a Maria Ondina Braga, a Sophia de Mello Breyner Andresen e a Lídia Jorge, que conseguem incutir-lhes um certo ambiente onírico, um certo odor a fantástico, sem introduzirem no texto nada que possa realmente identificá-lo como texto onírico e/ou fantástico. Talvez seja de se servirem de um certo tom irreal, ou pelo menos de realidade vaga, que cai como uma espécie de bruma de sonho sobre histórias cujos enredos, personagens e até ambientações são basicamente realistas.

É isso o que acontece neste conto de Lídia Jorge, A Espuma da Tarde. Há qualquer coisa de francamente onírico nesta história que consiste numa discussão vagamente existencialista entre vários rapazes, um dos quais está imbuído de toda a mitologia e ideologia do fora-da-lei americano, apesar de todos serem portugueses e da história se passar à beira-mar, num bar da Costa da Caparica. A acompanhá-los, está uma rapariga, claramente atraída pelo perigo representado pelo "bad boy", cujas humidades íntimas vão avançando e recuando ao sabor das marés da conversa.

É esse fluxo e refluxo do desejo da moça, a qual como que corporiza a volúpia da violência, ainda que mais a idealizada que a real, que mais contribui para o tom onírico deste conto. Porque de resto, trata-se de uma daquelas histórias em que alguém conta uma história, tão frequentes na literatura. Aqui, quem conta a história é o bad boy, e a história que conta é uma cena policial na América, com ele próprio como protagonista desajeitado. No papel do criminoso, claro. Os outros, e em especial um deles, justificam a falta de jeito com características pouco abonatórias, e o bad boy vai-se exaltando cada vez mais, até que puxa por uma pistola. E depois, acontece o desfecho.

E é bom, o conto? Sim, creio que é. Está bastante bem escrito e há nele uma teatralidade e um artificialismo que me costumam desagradar profundamente mas que neste caso são fundamentais para o tom onírico de todo o conto e por isso não me desagradam por aí além. E a ironia fina que contém, pelo contrário, costuma agradar-me bastante e aqui não foi exceção, o que compensa.

Contos anteriores deste livro:

domingo, 24 de novembro de 2019

Leiturtugas da semana #42

Pela extensão deste post já vão percebendo que esta foi uma semana cheia de Leiturtugas. Não se enganam, que houve vários bloggers a publicar opiniões sobre leituras portuguesas. E começou com uma continuação: a da Cristina Alves, que continua a falar da coletânea O Caçador de Brinquedos e Outras Histórias, do João Barreiros. É FC, mas como a Cristina já cumpriu os objetivos não vale a pena continuar a seguir o progresso dela com as sinalefas habituais.

Quase ao mesmo tempo, o Artur Coelho publicava também a sua opinião sobre o Almanaque Steampunk 2019, também publicado pela Divergência, em cujo site há que ir vasculhar para se ficar a saber que foi organizado a oito mãos por Ingrid Sousa, Joana Rodrigues, Pedro Guerra e Rogério Ribeiro. É um livro de steampunk, logo com FC, logo o Artur passa a 7c5s... e cumpre os mínimos com mês e picos de folga.

Mas o Artur não parou por aqui, e dias depois publicou outra opinião, desta vez uma daquelas opiniões curtas sobre BD que estão mais desenvolvidas noutro sítio. Cabe a vez a O Filho do Führer, álbum de João Gordinho publicado pela Escorpião Azul.

E para encerrar a semana tivemos mais um comentário do Eduardo Jauch a duas obras portuguesas. Estava previsto ser eu, mas não deu tempo; fica para a semana. O Jauch comentou uma antologia de BD publicada pela Escorpião Azul e intitulada Humanus, cuja lista de autores é demasiado extensa para ser divulgada aqui, e também o conto que a Isabel Cristina Pires publicou na Antologia de Ficção Científica Fantasporto, O Cão. Com estas duas obras, o Jauch subiu a 7c6s e também cumpriu os mínimos com mês e picos de folga.

E por hoje é tudo. Para a semana haverá mais. Até lá.

sábado, 23 de novembro de 2019

Ludovico Hélder Martins Alves: Render da Guarda

Um dos grandes problemas dos autores inexperientes é terem uma noção frágil dos ritmos próprios da literatura e por isso custar-lhes avaliar se uma ideia dá para um conto curto ou um conto mais longo, uma noveleta por aí fora. Ou de que forma, através de que abordagem, a ideia xis poderá dar uma história do tamanho tal. E como a maioria tem como referência principal, quando não é única, os romances, não é raro que tentem atafulhar um romance inteiro em textos (muito) mais curtos. O resultado é, inevitavelmente, um texto a rebentar pelas costuras ou já com as costuras rebentadas.

E é precisamente o que Ludovico Hélder Martins Alves (a propósito: ninguém com alguma experiência assina os textos com o nome completo) apresenta em Render da Guarda (bibliografia): uma história de fantasia a rebentar pelas costuras, que precisava de ser significativamente mais extensa do que é para ter alguma hipótese de ser boa. Assim, é uma história com algumas características e ideias prometedoras e um certo tom de policial, ou de história de espionagem, mas tão apressada que essas ideias parecem cair do céu à medida que são necessárias, sem nada de sólido a sustentá-las. A prosa, ao menos, é competente, o que ajuda o conto a não ser mau.

É mediano. Este é mais um dos muitos contos portugueses de FC&F que mostram potencial mal aproveitado.

Textos anteriores deste livro:

quinta-feira, 21 de novembro de 2019

Ray Bradbury: A Caixinha de Surpresa

Ray Bradbury tem muitos contos fronteiriços, que partem de um género literário para chegar a outro, ou que ficam firmemente ali na fronteira, reunindo elementos de dois géneros, ou mais, num todo que a maior parte das vezes é inteiramente coerente. São por isso mesmo contos difíceis de enfiar nas caixinhas em que geralmente se metem as obras literárias para mais facilmente serem analisadas e compreendidas. A Caixinha de Surpresa é um desses contos.

Parece uma história de fantasia, daquelas firmemente radicadas nos contos populares. Abre com um miúdo, Edwin, que mora numa (estranha) casa rodeada pela floresta, e é esse e apenas esse o seu mundo. O miúdo tem um brinquedo, uma caixa daquelas que se abrem e delas salta um boneco, mas a associação da caixa-brinquedo à caixa-casa e do boneco ao miúdo é imediata. Bradbury diz-nos desde o início que o miúdo é como que prisioneiro daquela casa, o que já começa a introduzir um elemento de horror. E depressa percebemos que na casa vivem também a mãe e uma professora, as quais o preparam para ocupar o lugar do pai desaparecido, alegadamente morto pelos horrores do mundo exterior.

O lugar de deus criador do mundo interior. O qual está cheio de elevadores e escadarias e salas e quartos proibidos que lhe vão sendo revelados à medida que vai crescendo, como uma espécie de ritos de passagem.

Sim, a história é complexa. A professora talvez não seja propriamente uma professora (ou então talvez seja a mãe que não é exatamente uma mãe), a associação do brinquedo à realidade talvez seja algo mais que apenas alegórica, e por aí fora. Mas mesmo que o não seja a alegoria não deixa de estar presente porque todo o conto é alegórico. É uma história sobre o crescimento. E talvez seja uma boa história sobre o crescimento.

Mas não gostei de a ler. O problema, julgo, é a tradução, que me incomoda desde o início do livro e nesta história incomodou o suficiente para ter tornado a leitura penosa. Já não é a primeira vez que isso acontece, mas aqui foi especialmente evidente, em parte por a história ser razoavelmente longa. É pena.

Contos anteriores deste livro:

quarta-feira, 20 de novembro de 2019

Ray Bradbury: A Multidão

Um homem tem um acidente de viação. Não sabe bem como nem porquê, embora o acidente seja sério. Mas acha estranho ver-se rodeado de uma multidão de mirones de uma forma que lhe parece demasiado súbita, e isso vai levá-lo a começar a prestar uma atenção paranoica a casos semelhantes. É este o ponto de partida para este conto de Ray Bradbury, adequadamente intitulado A Multidão.

Embora seja uma daquelas histórias paranoicas clássicas, com um protagonista carregado de razão mas incapaz de fazer os demais compreender que a tem, e apesar de seguir o enredo típico dessas histórias, no qual o protagonista, depois de se aperceber de que algo está errado, procura sem sucesso transmitir àqueles que o rodeiam aquilo que descobriu, este conto consegue manter-se interessante. Em parte por estar tão bem escrito.

E o que é que está errado? É o surgimento súbito daquela gente toda, claro, gente que se repete acidente após acidente, as mesmas caras, as mesmas opiniões, a mesma curiosidade mórbida sobre se o(s) acidentado(s) escapa(m) à morte ou não. O protagonista vai coligindo evidências, tentando pelo menos compreender o que se passa. Mas em vão, sempre em vão. Só no fim do conto compreende. E nós também.

Este conto é bastante bom.

Contos anteriores deste livro:

Jeffrey S. VanderMeer: Assimilação de Tian Shan-Góbi

Não li (ainda) a trilogia Área X mas já li e ouvi falar bastante sobre ela. E não me surpreenderia, tendo em conta o que li e ouvi, que as suas raízes estivessem pelo menos parcialmente na Assimilação de Tian Shan-Góbi (bibliografia), uma terrível doença aqui descrita por Jeff VanderMeer... digo... pelo Dr. Jeffrey S. VanderMeer.

Trata-se, claro, da descrição de uma terrível doença que o Dr. VanderMeer terá encontrado algures na China. Uma infestação por um conjunto diversificado de espécies de fungos parasitas, os quais substituem as funções vitais do hospedeiro de uma forma tão perfeita que quando a doença é detetada é tarde demais, e da vítima já só existe um fantasma.

Ficção científica? Podem apostar. E da boa, misturada com terror, porque a coisa é simultaneamente credível, terrível, verosímil e está muito bem escrita. Um ótimo conto pseudofactual, que apesar de o ser não deixa de ter enredo e constituir uma história com princípio, meio e fim.

Textos anteriores deste livro:

terça-feira, 19 de novembro de 2019

Ray Bradbury: O Pequeno Assassino

Diz-se muitas vezes que a ficção científica, ou mais propriamente a ficção especulativa em geral, é a literatura do "e se?" E se no futuro partilhássemos o mundo com androides, robôs ou extraterrestres? E se existissem fantasmas? E se os animais falassem? E essa é das coisas mais acertadas que se dizem sobre este tipo de literatura porque se é verdade que não é a única a conter esta pergunta (um enredo típico de telenovela, por exemplo, pode remontar à questão "e se a Maria se apaixonar pelo António, casado com a Ana?"), é aquela em que tal questão é mais central, porque determina em grande medida não só o enredo, mas as personagens e o ambiente.

Mas mesmo dentro da ficção especulativa, obras diferentes servem-se em grau diverso do "e se?". Algumas praticamente só têm essa questão e as ramificações que dela partem; outras contêm outras coisas. Os puristas da ficção especulativa tendem a considerar as primeiras melhores que as segundas, mas eu discordo: acho que há coisas boas e coisas más de ambos os lados. Mais: em algumas, essa questão é óbvia, noutras está mais oculta.

No caso deste O Pequeno Assassino, o "e se?" é bastante óbvio. Ray Bradbury deverá ter obtido de alguma forma informação sobre a depressão pós-parto e a subsequente rejeição dos filhos por parte de algumas mães, e terá feito a si próprio a pergunta "e se?" E se não fosse apenas depressão e paranoia? E se o bebé que a mãe rejeita fosse realmente demoníaco? E se tentasse matá-la? Mesmo matá-la?

E a partir daí desenvolveu um conto de terror psicológico (embora também tenha o seu quê de sobrenatural) bastante bom, ainda que pouco original no desenvolvimento do enredo, com a típica personagem paranoica que todos veem como louca mas que na realidade é quem se apercebe realmente da verdade e tenta sem sucesso convencer os outros da realidade. Há nesta história ecos d'O Papel de Parede Amarelo da Charlotte Perkins Gilman e de muitas outras histórias, mas Bradbury consegue mesmo assim torná-la bastante sua. Não só pela prosa, mas também pela prosa.

Contos anteriores deste livro:

segunda-feira, 18 de novembro de 2019

Steve Alten: Meg

Sabem aqueles livros que parecem ser escritos de propósito para serem adaptados ao cinema? Há autores que são verdadeiros especialistas da técnica e, na FC, o nome que me vem mais rapidamente à mente é o de Michael Crichton. Pois bem, ajuizando pelo exemplo deste Meg, Steve Alten é outro.

Parece claro que a inspiração principal veio do filme de Spielberg, Tubarão. Alten pode ter pensado "será possível criar uma história com um tubarão assassino ainda maior e mais assustador do que o do Spielberg?" Provavelmente terá deparado com descrições de ciência popular sobre o primo extinto do grande tubarão branco, o megalodon, e achado que, com os seus 10 m de comprimento médio, com as fêmeas a atingir, provavelmente, uns colossais 17 m de comprimento máximo, esse peixe era o candidato ideal para tal história.

Restava um problema: o megalodon é uma espécie extinta, e para criar um thriller de ficção científica centrado no peixe assustador era preciso que o peixe assustador estivesse vivo. Bem, o celacanto também era uma espécie extinta até ser descoberto pela ciência, vivinho da silva, nas profundezas do oceano. Portanto, lá foi o bom do Alten às profundezas do oceano buscar o seu peixe assustador. Não a umas profundezas quaisquer: às mais profundas (e inacessíveis) das profundezas, a Fossa das Marianas.

Para isso, toma algumas liberdades que um leitor vulgar talvez não apanhe, mas a que alguém que conheça um pouco mais que a média sobre tubarões e oceanos (como um certo tipo que, apesar de não exercer há décadas, sempre tem um curso de biologia marinha: eu) torce o nariz. Esquece, por exemplo, que nas grandes profundidades o principal fator limitativo na fisiologia dos animais não é a falta de luz ou o frio, mas a falta de oxigénio, e que por isso os tubarões das grandes profundidades tendem a ser animais lentos e pachorrentos e pouco ou nada assustadores, apesar de poderem atingir dimensões razoáveis graças à chuva de alimentos que lhes cai do céu aquático, em especial a ocasional carcaça de baleia, capaz de alimentar um cardume inteiro deles durante bastante tempo.

E esquece que para manter o sangue quente, isto é, para conservar uma temperatura interna superior à das águas circundantes, como alguns tubarões fazem, incluindo os da família do grande tubarão branco, não basta o tamanho avantajado, ainda que este ajude: é preciso ter um metabolismo rápido, o que implica gastar oxigénio... que em grandes profundidades não existe.

Mas adiante. Thrillers de ficção científica, especialmente aqueles escritos com o contrato cinematográfico debaixo de olho, nunca foram equivalentes a FC cientificamente credível. Nem a boa FC, mesmo que esta às vezes aconteça sem ser cientificamente credível. Nem a boa literatura. E este Meg certamente não é nenhuma dessas três coisas. Porquê?

Bem, quanto à credibilidade científica estamos conversados. E, sem haver credibilidade científica, para que uma determinada obra ainda possa ser considerada boa FC não pode focar-se na parte tecnológica das coisas. Tem de ser mais filosófica, por exemplo, servindo-se de truques narrativos de FC para refletir sobre grandes questões como a natureza da humanidade, os limites da ética, as limitações da realidade, por aí fora. Ora, Alten está muito longe de ter alguma dessas questões no radar; quer apenas criar uma história emocionante e nada mais, e tenta credibilizar cientificamente essa história. Falha. E o falhanço implica que a história falha também enquanto FC.

E quanto à literatura? Bem, temos personagens rasas, com vilões de cartão e um protagonista torturado-mas-boa-gente e ainda por cima com razão, a fazer lembrar dezenas de personagens do cinema, temos o interesse romântico óbvio quase desde a primeira linha, com tragédias sucessivas a uni-los, temos uma escrita cuja melhor qualidade é ter bom ritmo e que poucas mais tem, e temos um enredo quase totalmente previsível, à parte um detalhe mesmo quase a terminar, que na verdade só é inesperado porque o leitor enquanto vai lendo tende a esquecer-se de que o nome do protagonista é Jonas; se se lembrasse, também isso seria totalmente óbvio.

Em suma, este é um livro bastante fraco, um livro-chiclete, que se masca, entretém durante umas horas e se deita fora sem deixar nada de relevante para trás.

Este livro foi comprado.

domingo, 17 de novembro de 2019

Leiturtugas da semana #41

E mais uma vez, a semana de Leiturtugas começa com uma opinião do Artur Coelho. Desta vez, o Artur debruça-se sobre uma edição da Divergência que já foi comentada no âmbito deste projeto: o romance de horror de Pedro Lucas Martins intitulado As Sombras de Lázaro. É também uma leitura sem FC, pelo que o Artur sobe a 6c5s. E falta-lhe uma.

Mas não foi o Jauch quem chegou a seguir; foi a Cristina Alves, começando uma série de posts dedicados à recente edição de O Caçador de Brinquedos e Outras Histórias pela Divergência. Autor? João Barreiros, claro; é reedição de um livro dos anos 90 (consta que com contos novos). É um livro de FC, pelo que a Cristina passa a 6c8s e cumpre os mínimos.

E parece que é tudo por esta semana. Para a próxima deverá haver mais novidades. Se não for em mais sítio nenhum, pelo menos aqui na Lâmpada. Até lá.

Ray Bradbury: Possuída pelo Fogo

Todos conhecemos pessoas insuportáveis, não é verdade? Ray Bradbury, pelos vistos e apresentados neste seu conto, não é exceção, porque a sua protagonista é, precisamente, uma pessoa insuportável. Mas não uma pessoa vulgarmente insuportável; uma daquelas que o são invulgarmente, das que parecem fazer gala de ninguém poder com elas, daqueles chatos inacreditavelmente chatos, daqueles indivíduos que seriam capazes de levar um anjo celestial a perder por completo a pinha, dar-lhes um par de cabeçadas e um chuto no traseiro e mandá-los para sítios cheios de alhos e lutas, se tal criatura mitológica infinitamente paciente e doce realmente existisse. Anjos celestiais. Coisa que a protagonista deste Possuída pelo Fogo (bibliografia), muito enfaticamente, não é.

Bradbury põe esta protagonista a ser observada por dois velhotes cheios de boas intenções. Um deles tem uma teoria: a de que quando a temperatura chega aos 33 graus (Celsius; Bradbury certamente terá falado em 91 Fahrenheit, ou coisa que o valha) a violência se solta nos homens. E como a mulher deixa atrás de si um rasto de fúria acha que é só questão de tempo e de temperatura certa até que alguém a ataque com violência, provavelmente fatal. Por isso resolve intervir.

E como toda a gente sabe, de boas intenções está o inferno cheio, pelo que a coisa dá para o torto. Não, o conto não é lá muito surpreendente, mas Bradbury consegue mesmo assim deixá-lo bastante interessante. Não será dos seus melhores contos, que não é, mas é um bom conto fantástico.

Contos anteriores deste livro:

sábado, 16 de novembro de 2019

Vítor Gil Cardeira: O Amor é uma Fuga sem Fim

Se há coisa que me aborrece enquanto leitor é deparar com um escritor que subestima a minha inteligência, explicando coisas que não precisam de qualquer espécie de explicação. E Vítor Gil Cardeira cometeu esse pecado, ao arrancar este seu conto, apesar de o próprio título de O Amor é uma Fuga sem Fim (bibliografia) já ser em boa medida explicativo, com uma nota em que explica que "esta estória [que] vos parecerá ter lugar fora do tempo [...] está enraizada nos dias que se colam a quem não sabe que os mais dilacerantes momentos são os que nos trazem as maiores alegrias [...]", que é como quem diz, em parte, "não liguem, que isto parece fantástico mas é no fundo baseado na realidade". Só dá vontade de perguntar: "tá bem, Vítor, e qual é o conto fantástico que não o é?"

Irritações à parte, o conto é engraçado. Cardeira parece ter decidido brincar um pouco com o conceito de sexo dos anjos e escreveu um conto com um anjo como protagonista. Mas não um anjo qualquer: um anjo que, ao contrário dos demais, nasceu, e ainda por cima defeituoso, só com uma asa, e por isso é atormentado pelos outros anjos lá no céu coisa que, convenhamos, não é lá muito angélica. De tal forma que decide vir-se embora e transformar-se em homem. Seguem-se aventuras várias, incluindo o amor e a fuga sem fim.

Mas o conto seria mais engraçado sem o pendor que Cardeira demonstra para a divagação. É frequente interromper o fluxo narrativo para se perder em elucubrações laterais à história e em frases de efeito, cujo efeito principal é afastar o leitor da história que está a contar. É um estilo, suponho; há quem goste de coisas escritas assim, palavrosa e arrebicadamente. Mas eu não sou uma dessas pessoas; a forma, para mim, deve estar ao serviço do conteúdo. Quando se lhe começa a sobrepor, temos um problema. Foi o que aconteceu aqui: o conto, que tinha tudo para ser muito interessante, tornou-se a espaços aborrecido. E foi por isso que este conto não me pareceu tão bom como tinha potencial para ser. É um conto entre o razoável e o bom menos, em parte salvo pela ironia, com uma ideia de base muito interessante, mas cuja execução deixou algo a desejar.

Contos anteriores deste livro:

quinta-feira, 14 de novembro de 2019

FC portuguesa? Existe?

Existe. Próxima pergunta.

Não, esperem, voltem cá. Este título tem mais que se lhe diga e a resposta é mais complexa do que isto. Porque vem na sequência de um outro artigo em que tentei perceber o que significa a expressão "FC portuguesa", o qual surgiu em resposta a um artigo da Cristina Alves (ou divagação, como ela lhe chama) que me causou várias discordâncias.

Uma dessas discordâncias é a afirmação da Cristina de que "temos poucos autores e poucas histórias". É uma discordância parcial, porque depende da forma como olharmos para o problema e de quanto o restringirmos à FC, e a uma FC "pura e dura", seja lá isso o que for. Se o olharmos numa perspetiva histórica, abrangendo toda a produção existente até hoje, não temos assim tão poucos autores como isso, especialmente se não tentarmos definir "FC" de uma forma demasiado estreita. E obras tampouco, apesar de termos uma percentagem talvez demasiado elevada de autores de uma só obra, ou de poucas, aqueles autores que tentam uma vez ou duas, não conseguem vingar (seja lá o significado que essa palavra tem num meio como o da FC portuguesa) e desistem.

A ideia de que temos poucas coisas publicadas foi o que me levou a dar início à sucessão de sites que vieram a dar no Bibliowiki, julgando ingenuamente que uns meses de trabalho e ficava a coisa feita. Vão quase vinte anos desde a primeira encarnação da ideia, e está muito longe de ficar completa. Não temos poucas coisas publicadas. Também não temos muitas. Temos um número razoável delas. Podem é não ter a qualidade desejável, na sua maioria, mas isso é outra questão.

A verdade é que, durante muito tempo, não tivemos produção anual suficiente para construir uma antologia da melhor FC do ano, mesmo incluindo excertos de romances, e mesmo incluindo coisas francamente más para compor o volume, se necessário. Houve algumas exceções, anos fora de série com uma produção particularmente abundante (1993, por exemplo), mas eram exceções a confirmar a regra. No entanto sempre tivemos material suficiente para fazer isso de cinco em cinco anos, ou de década em década, e o volume resultante não sairia mau. É pena que nunca ninguém tivesse tido essa iniciativa (por outro lado ainda vamos a tempo; antologias retrospetivas podiam ser boa ideia), ainda que eu compreenda perfeitamente que quem o fizesse enfrentaria muito trabalho e se calhar algumas confusões para pouco retorno.

Mais: as coisas estão hoje melhores do que estavam há uma década ou duas, apesar da frustração que causa ver a imensa lentidão e os avanços e recuos do progresso. Temos mais gente a escrever FC, temos mais gente a publicar FC, temos uma variedade maior de abordagens e, até certo ponto, de perspetivas, temos mais gente atenta ao que pode aparecer fora dos sítios "do costume", e etc. Falta-nos público, como sempre faltou, falta-nos massa crítica dedicada a separar o trigo do joio, falta-nos uma porção de coisas, mas há alguns progressos. Hoje já seria possível publicar-se uma antologia anual que republicasse contos e excertos de romances de FC, embora continuasse a ser necessário incluir nela material fraco para compor o volume (o que, sendo os gostos o que são, e havendo tanta gente a tecer grandes elogios a coisas que pouco valem e/ou a desprezar as obras mais interessantes, talvez nem fosse necessariamente mau), e ainda que em certos anos particularmente fracos talvez houvesse dificuldade em arranjar material.

Claro, esta discordância vai entroncar com a anterior. Será toda a FC que se produz em Portugal realmente portuguesa? Não é. Há autores que não saíram da imitação acrítica do que vem de fora, julgando que essa imitação pode levá-los a obter um sucesso maior do que se tentassem ser genuínos. O raciocínio parece ser: o que se faz lá fora tem sucesso, o que se faz cá dentro não tem, portanto vou fazer como se faz lá fora para ver se tenho sucesso. O problema com esse raciocínio é, claro, que o que se faz lá fora só muito raramente tem sucesso. Estas coisas são icebergues, com uma grande massa submersa invisível a manter à tona a pequena fração do material bem sucedido. Se e quando estes autores compreenderem que a literatura com sucesso cá é aquela que é genuína — excluindo destas contas a literatura que tem sucesso porque o autor é conhecido por outras vias — no contexto português e/ou de cada autor em concreto, poderão incorporar as influências externas na sua própria verdade e obterão resultados bem melhores e bem mais portugueses. O João Barreiros é um bom exemplo de alguém que fez isto. Não por acaso, é o nosso melhor autor de FC.

Mas isto já entra na conversa sobre "o que fazer?" E essa é outra conversa.

quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Franz Kafka: Relatório a uma Academia

Pelos vistos não é por acaso que a obra mais famosa de Franz Kafka gira à volta de uma metamorfose de humano em animal. Relatório a uma Academia descreve o processo inverso, uma metamorfose de animal em humano, ainda que a novela famosa e o sucesso que esta teve pode ter tido influência decisiva na inspiração do escritor para escrever este conto, uma vez que este é posterior àquela.

E este é um conto com bastante profundidade. O protagonista é um macaco, que foi capturado na sua terra natal e encerrado numa gaiola, num navio com rumo à Europa. Prisioneiro, sem nenhuma saída óbvia da situação em que se vê metido, decide, ou o seu corpo decide por ele, que a única forma de se livrar daquela prisão é transformar-se em homem.

É essa transformação, os motivos que lhe estiveram subjacentes e o processo e o que foi sentido enquanto ela acontecia que ele agora narra à academia do título. E é isso, o conto: uma apresentação, uma narrativa em primeira pessoa. Tanto pode ser verdadeiro, isto é, resultado de uma metamorfose realmente acontecida, como falso, produto de loucura. Mas em ambas as alternativas, é uma reflexão bastante interessante sobre a condição humana. Nisso, aproxima-se de muita ficção científica, habituada a esse tipo de reflexões sempre que trata de criaturas não humanas (por completo ou parcialmente), embora nada exista nele de FC.

É um bom conto, este.

Contos anteriores deste livro:

terça-feira, 12 de novembro de 2019

Em outubro falou-se de...

Este mês mais tarde do que é hábito, que deixei atrasar um bocado a construção das listas, cá temos a relação do que foi alvo de leituras e opiniões no mês passado. Para os que caem aqui de paraquedas, sem saber o que isto é, cá ficam as explicações. O que são, de onde vêm, e que limitações têm estes posts está explicado no primeiro de todos. Este, os publicados anteriormente e os que vierem a ser publicados no futuro, estão todos reunidos na tag leituras fc. E no fim do post, depois das listas, há alguns comentários com algumas ideias que elas me despertam, e um destaque dos factos que achei mais relevantes, para quem não quiser estar a perder tempo com as listas propriamente ditas. Para já, é de listas que se trata:

Ficção portuguesa:
  1. Fronteiras, org. Maria Augusta e António de Macedo
  2. Autópsia, de João Nuno Azambuja (2x)
  3. A Recriação do Mundo, de Luís Corredoura (2x)
  4. Efeitos Secundários, org. António de Macedo e Maria Augusta
  5. A Viagem, org. Silvana Moreira e António de Macedo 
  6. Pecar a Sete, org. Silvana Moreira e António de Macedo
  7. Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago (4x)
  8. O Homem Duplicado, de José Saramago
  9. O Confessor, de João Seixas (conto)
  10. Mensageiros das Estrelas, org. Adelaide Meira Serras, Duarte Patarra e Octávio dos Santos
  11. Tudo Isto Existe, de João Ventura
Ficção luso-brasileira:
  1. Dieselpunk, org. Gerson Lodi-Ribeiro
Ficção brasileira:
  1. Amália Atrás de Amália, de Marco Aqueiva
  2. Só os Objetos Salvam!, de Roberto Pio Borges 
  3. Entre a Luz e a Escuridão, de Ana Beatriz Brandão (5x)
  4. Serpentário, de Felipe Castilho (5x)
  5. Teslapunk, org. Maurício Coelho (2x)
  6. A Rainha do Ignoto, de Emília Freitas
  7. As Cinco Esposas de Nathan, de Clovis Nicacio (3x)
  8. A Ilha dos Mortos, de Rodrigo de Oliveira 
  9. A Senhora dos Mortos, de Rodrigo de Oliveira 
  10. O Vale dos Mortos, de Rodrigo de Oliveira
  11. O Silêncio dos Livros, de Fausto Luciano Panicacci (9x)
  12. Delírios Mortais, de Luiz Gabriel Pereira
  13. A Revolução dos Animais Transmutantes, de Allan Pitz
  14. Favela Gótica, de Fabio Shiva
  15. Alcova da Morte, de Enéias Tavares, Nikelen Witter e A. Z. Cordenonsi
  16. Stowe, de Giovanna Vaccaro
Ficção portuguesa e internacional:
  1. Steampunk Internacional, org. ??
Ficção internacional:
  1. Shada, de Douglas Adams e Gareth Roberts
  2. Mundos Apocalípticos, org. John Joseph Adams (2x)
  3. Imperfeitos, de Cecelia Ahern
  4. Jornada de Esperança, de Brian W. Aldiss
  5. Os Robôs da Alvorada, de Isaac Asimov
  6. Trilogia da Fundação, de Isaac Asimov
  7. Madaddão, de Margaret Atwood
  8. O Conto da Aia, de Margaret Atwood (2x)
  9. The Testaments, de Margaret Atwood
  10. A Besta, de Peter Benchley
  11. Os Passageiros do Tempo, de Alexandra Bracken 
  12. Farenheit 451, de Ray Bradbury
  13. 4 Contra o Apocalipse, de Max Brallier (2x)
  14. Laranja Mecânica, de Anthony Burgess
  15. John Carter, de Edgar Rice Burroughs
  16. Parable of the Sower, de Octavia E. Butler
  17. Parable of the Talents, de Octavia E. Butler
  18. A Guerra das Salamandras, de Karel Čapek
  19. A Cidade e as Estrelas, de Arthur C. Clarke
  20. Em Chamas, de Suzanne Collins
  21. Jogos Vorazes, de Suzanne Collins
  22. Cavalo-Marinho no Céu, de Edmund Cooper 
  23. Os Doze, de Justin Cronin
  24. Vox, de Christina Dalcher 
  25. A Máquina Preservadora, vol. 1, de Philip K. Dick
  26. O Homem do Castelo Alto, de Philip K. Dick (3x)
  27. Realidades Adaptadas, de Philip K. Dick
  28. Tempo Desconjuntado, de Philip K. Dick
  29. Ubik, de Philip K. Dick (3x)
  30. World of Tiers, de Philip José Farmer
  31. Incarceron, de Catherine Fisher
  32. Lua de Larvas, de Sally Gardner
  33. O Periférico, de William Gibson
  34. Senhor das Moscas, de William Golding 
  35. Ficções, nº 10, ed. Luísa Costa Gomes
  36. Spoonbenders, de Daryl Gregory 
  37. A Mão Esquerda da Escuridão, de Ursula K. Le Guin
  38. Os Despossuídos, de Ursula K. Le Guin (2x)
  39. Como Parar o Tempo, de Matt Haig
  40. Submissão, de Michel Houellebecq
  41. Serotonina, de Michel Houellebecq
  42. Novembro de 1963, de Stephen King
  43. O Instituto, de Stephen King (4x)
  44. Os Justiceiros, de Stephen King
  45. A Queda do Governador, vol. 1, de Robert Kirkman e Jay Bonansinga
  46. Contágio, de David Koepp
  47. Nas Montanhas da Loucura, de H. P. Lovecraft
  48. Criaturas da Noite, de Marie Lu
  49. Legend, de Marie Lu
  50. Ladra de Almas, de Sarah J. Maas 
  51. Reveal Me, de Tahereh Mafi
  52. Inspeção, de Josh Malerman (4x)
  53. A Flor de Vidro, de George R. R. Martin (conto)
  54. Nightflyers, de George R. R. Martin
  55. Máquinas como Eu, de Ian McEwan 
  56. Light Years, de Kass Morgan
  57. Mundo em Caos, de Patrick Ness
  58. As Primeiras Quinze Vidas de Henry August, de Claire North
  59. 1984, de George Orwell (2x)
  60. Zoo, de James Patterson e Michael Ledwidge
  61. W ou a Memória da Infância, de Georges Perec
  62. Os Reinos do Norte, de Philip Pullman
  63. Origem Mortal, de J. D. Robb
  64. O Labirinto dos Ossos, de James Rollins 
  65. Crave a Marca, de Veronica Roth (2x)
  66. Destinos Divididos, de Veronica Roth (4x)
  67. Skyward, de Brandon Sanderson
  68. Brilhantes, de Marcus Sarkey
  69. A Última Colônia, de John Scalzi (2x)
  70. Encarcerados, de John Scalzi
  71. Guerra do Velho, de John Scalzi (2x)
  72. Vilão, de V. E. Schwab
  73. Frankenstein, de Mary Shelley (2x)
  74. A Nuvem, de Neal Shusterman
  75. O Sexto Palácio, de Robert Silverberg (conto)
  76. Outros Tempos, Outros Mundos, de Robert Silverberg
  77. O Médico e o Monstro, de Robert Louis Stevenson
  78. O Médico e o Monstro e Outros Experimentos, de Robert Louis Stevenson 
  79. Battle Royale, de Koushun Takami
  80. Através do Vazio, de S. K. Vaughn
  81. Cama de Gato, de Kurt Vonnegut
  82. Herdeiros do Império, de Timothy Zahn
Poesia portuguesa:
  1. No Rasto dos Duendes Eléctricos, de Adolfo Luxúria Canibal
Não-ficção internacional:
  1. O Futuro da Humanidade, de Michio Kaku
  2. The Inevitable, de Kevin Kelly
  3. O Mundo Ainda é Jovem, de Domenico de Masi
  4. Sobre a Escrita, de Stephen King
E este foi um bom mês para as leituras de FC portuguesa. Não só o total de 11 títulos ultrapassa os 10 que me parecem o mínimo aceitável, como houve bastante mais comentários do que isso porque pela primeira vez há múltiplos comentários múltiplos no setor português destas listas. São omnipresentes no setor internacional, são comuns no brasileiro, mas por cá nunca houve tantos. Por outro lado, pelo menos quatro desses títulos correspondem a micro-opiniões, não a opiniões desenvolvidas, pelo que as coisas não foram tão boas como parecem à primeira vista. Mas foram boas e há destaques a fazer: Saramago, que foi alvo de 5 comentários distribuídos por 2 obras, é o principal, mas João Nuno Azambuja e Luís Corredoura, com dois comentários cada aos respetivos lançamentos recentes, e António de Macedo, alvo de 4 comentários a outras tantas antologias que organizou com duas ajudantes diferentes, também merecem destaque. E assim se esgota quase por completo a lista de autores portugueses comentados em outubro.

Também bom foi o mês para o Brasil, ainda que o número total de títulos (16) esteja algo longe do melhor dos meses que já por aqui passou. É que esses 16 títulos correspondem a um número total de opiniões que ultrapassa as 30, graças sobretudo a três livros de edição recente que têm sido muito comentados... ou pelo menos alvo de campanhas de marketing bem sucedidas. Como estes correspondem basicamente aos destaques, vamos lá. O mês foi especialmente bom para Fausto Luciano Panicacci, cujo romance distópico foi alvo de 9 comentários, ainda que a razão para isso tenha sido em grande medida o facto de eu ter descoberto o site dele durante outubro, site esse onde o autor republica as opiniões que vai encontrando por aí. Felipe Castilho, com 5 comentários ao seu último livro e Ana Beatriz Brandão, também com 5 comentários ao seu, compõem o ramalhete dos destaques do mês, embora no caso desta última os comentários pareçam ser principalmente resultado de marketing.

E no que toca às leituras internacionais, também aqui temos uma subida, embora mínima: de 79 para 82 títulos. Como sempre, há alguns autores que se destacam: Margaret Atwood foi alvo de 4 opiniões distribuídas por 3 títulos, Philip K. Dick é o autor mais lido do mês, com 9 opiniões distribuídas por 5 títulos, Stephen King recebeu 6 opiniões distribuídas por 3 títulos, Josh Malerman viu o seu romance mais recente ser comentado 4 vezes, Veronica Roth foi alvo de 6 opiniões distribuídas por 2 títulos e John Scalzi teve 5 comentários distribuídos por 3 títulos. Quase tudo autores consagrados com vasta obra publicada; ou seja, não houve daqueles livros que toda a gente parece querer ir a correr ler ao mesmo tempo, ainda que o livro de Malerman se aproxime disso.

Por fim, o mês que passou trouxe também opiniões sobre material relativamente raro, como antologias de ficção portuguesa e brasileira, portuguesa e internacional e até algo muito raro como poesia portuguesa. Um título cada. Relativamente comuns são as leituras de não-ficção internacional, que aparecem quase todos os meses. Mas não é muito comum chegarem a 4 títulos, pelo que isso também é de destacar.

E quanto a mais destaques, eles virão daqui a um mês. Até lá.

segunda-feira, 11 de novembro de 2019

Ana Pessoa: Os Crimes de Agnieszka

Ana Pessoa escreve francamente bem. Mais importante do que isso, talvez, é Ana Pessoa escrever de uma forma interessante, salpicando o seu texto de pormenores inesperados, pois há muitos autores que escrevem bem, por vezes até bastante melhor que ela, mas de uma forma bem mais aborrecida. E é essa a explicação, creio, para eu ter gostado tanto deste conto, apesar do tema ser daqueles que pouco interesse costumam despertar-me.

Os Crimes de Agnieszka são os crimes de uma polaca, casada com um português e há já bastantes anos a viver em Portugal, a qual ganha a vida como mulher-a-dias. E crimes, aqui, levam aspas, pois nada existe de verdadeiramente criminal na situação. Os crimes dela só são crimes aos olhos da moral vigente. Há neles algumas ressonâncias do Crime do Padre Amaro, mas são ténues, pois os crimes deste estavam bastante mais próximos dos crimes verdadeiros mesmo sendo o fundo da história igualmente moral.

Agnieszka limita-se a fazer algo que, segundo rezam as histórias, as criadas e mulheres-a-dias fizeram desde tempos imemoriais, seja por iniciativa sua, seja por iniciativa alheia: iniciar sexualmente o filho do patrão. E fá-lo por iniciativa sua, e repetidamente, o que não encara como crime algum, bem pelo contrário. O crime é ser apanhada. É por isso que foge, se vai embora, deixa a vida, o marido e Portugal para trás, recupera a liberdade.

Uma história banal, dizem? Pois é. Mas escrita tão bem, tão invulgarmente, que não me aborreceu. Ana Pessoa mereceria que eu lhe tirasse o chapéu, se usasse tal coisa.

Contos anteriores deste livro:

João de Melo: A Versão de Marta

A Versão de Marta não é um conto: é um excerto de um romance. Tudo bem, já não é o primeiro caso do género nesta antologia. O problema é que enquanto em casos anteriores isso mal se notava, funcionando os excertos perfeitamente como contos, aqui isso nota-se bastante.

Tenho uma ténue lembrança de ter lido o livro de onde é extraído este fragmento, Gente Feliz com Lágrimas, pouco tempo depois de ter sido publicado. Mas foi há muitos anos e a lembrança é mesmo ténue. Lembro-me da maravilhosa prosa de João de Melo e há um ou outro detalhe do que li aqui que ressoa a qualquer coisa reconhecível, mas é só; a memória quanto à história que o livro conta, às personagens, aos ambientes e por aí fora está completamente vazia. Ou quase completamente.

E foi isso o que me faltou nesta leitura. Contexto. A prosa magnífica está lá, mas o texto não funciona bem lido assim de forma isolada. Sem contexto. Talvez resulte como aperitivo, como despertador de curiosidade pelo romance, e é esse o principal objetivo, mas como leitura inteira em si mesma deixa a desejar.

Contos anteriores deste livro:

Ana Garrett: Fadas, Unicórnios e Novenas

Há quem comente as suas ilustrações com textos informativos sobre as técnicas utilizadas ou as ideias que lhes subjazem, há quem não as comente de todo, há quem se fique por uma frase, há quem escreva pequenos contos. Ana Garrett escreveu um poema.

E este Fadas, Unicórnios e Novenas (bibliografia), cujo título praticamente explica o conteúdo, não é mau. Há poemas muito piores do que este na secção a eles dedicada, mesmo sendo este, em teoria, um simples texto acessório de uma ilustração. Não é bom, tem erros crassos, nomeadamente na colocação de vírgulas (nunca pôr vírgulas entre sujeito e predicado, nunca), mas é coerente, falando do desinteresse da ilustradora/autora pelas polémicas estéreis entre fantasistas amigos dos mitos ancestrais e os religiosos que os odeiam. Francamente? Esperava pior.

Textos anteriores deste livro:

FC portuguesa? Que é isso?

Recentemente, a Cristina Alves pôs-se a divagar lá no seu blogue sobre o futuro da ficção científica portuguesa, numa perspetiva de divulgação lá fora, e eu discordei de tanto do que ela lá escreveu que achei que tinha de escrever uma espécie qualquer de resposta. Ou de respostas. Provavelmente não será só uma, até porque ninguém tem paciência para ler textos longos na internet. E porque, para compreender realmente as coisas, é útil isolar as questões tratando mais tarde das suas interrelações.

A minha discordância relativamente à Cristina, ou pelo menos ao que eu percebi das ideias dela a partir do que deixou escrito, o que pode não ser bem a mesma coisa, tem raízes nas próprias premissas da questão. Porque ela fala de FC portuguesa como sendo uma FC que envolva "as características mais comuns dos portugueses" ou incluam "referências ou tradições portuguesas" ou os "elementos fantásticos presentes na narrativa tradicional", e eu, mesmo percebendo que isto são só exemplos que ela dá e não significa que ela julgue que tudo se resume a isso, não deixo de achar que essa é uma forma superficial de encarar a questão.

Não que essas coisas sejam para pôr de parte. Não. Todas essas características ou tradições podem ser bem usadas para ajudar à portugalidade das histórias, mas não são de forma alguma suficientes para transformar seja o que for em FC portuguesa.

Porque a FC é necessariamente portuguesa se quem a faz estiver inserido na cultura portuguesa, na vivência portuguesa, no dia-a-dia português, e evitar a tentação de se entregar ao simples mimetismo acrítico do que vem de fora. E sem isso não o é, por mais elementos mais ou menos portugueses que possa conter.

(O mesmo se aplica, diga-se em forma de parêntesis, a qualquer outro género artístico. Não é exclusivo da FC)

Alguns exemplos para ajudar à compreensão do que quero dizer:

Um autor americano pode escrever um livro inteiro centrado na figura do Adamastor que dificilmente a literatura que faz deixará de ser profundamente americana, porque dificilmente deixará de conter a perspetiva americana sobre o mundo.

Eu em tempos escrevi um conto chamado Littletown, sobre um homem que vai fazer turismo para um corpo alugado num cenário de cowboys instalado num satélite habitável de um planeta gigante. Um conto inspirado em parte pelos filmes de faroeste que vi em miúdo, em parte pela forma de escrever do Dick, mas apesar disso, de ter à superfície tanto de americano, esse conto é das coisas mais portuguesas que escrevi, pelo menos até às ficções das passarolas. Porque a inspiração mais forte foi a minha vivência algarvia, cheia de coisas enxertadas para turista ver, desde Vilamoura, que mais parece uma aldeia nórdica enfiada na costa algarvia, até aos jipes pintados em padrões de zebra ou girafa, que levam os bifes a passear pela serra em "safaris" transplantados. Foi essa, e não a pintura superficial de faroeste, a inspiração principal. Esse é mais que um conto profundamente português, na verdade: é um conto profundamente algarvio.

Inversamente, um autor cuja maior ambição seja ser um "Tolkien português" ou um "Asimov português" dificilmente chegará algum dia a produzir coisas realmente portuguesas, independentemente do que diga o seu cartão de cidadão e por mais coisas portuguesas que enfie nelas, a menos que queira e se consiga libertar da mera imitação.

Em suma: aquilo que realmente transforma a FC em portuguesa é a verdade que ela possa conter. A verdade de um autor inserido na nossa realidade, de um autor que a vive, de um autor que a tenha como referência, mesmo que essa referência não seja óbvia.

É perfeitamente possível e perfeitamente legítimo que dessa verdade nada saia de universal. É em parte por isso que me parece tão negativa a mania nacional de procurar validação no exterior, se não em exclusivo pelo menos prioritariamente. Mas é igualmente possível e legítimo que saia algo de universal, porque a cultura portuguesa não é estanque há séculos (se é que alguma vez o foi, o que é duvidoso) e está aberta a influências externas, mesmo sem contar com o simples facto de que português é gente como toda a gente e há vivências e perspetivas que nos são mais ou menos comuns a todos. Tem é de ser uma verdade com raízes aqui, neste espaço civilizacional e/ou geográfico e/ou populacional e/ou cultural e/ou por aí fora.

Óbvias ou não.

domingo, 10 de novembro de 2019

Vários: Histórias de Fantasmas

Ignoro por que razão a 11-17 achou que não valia a pena dar crédito a quem de direito pela responsabilidade pela seleção destas Histórias de Fantasmas (bibliografia), mas parece-me má ideia, por vários motivos. Um deles é eu não poder agora dar os parabéns à pessoa responsável. É que o resultado foi uma escolha bastante interessante, variada e, apesar de o livro conter alguns clássicos, em boa medida não óbvia, e apetecia-me mesmo parabenizar alguém.

Poderão achar que esse problema se resolve parabenizando a 11-17. Mas enganam-se, porque se a seleção dos contos é bastante boa, outros aspetos deste livro são tão deficientes que fazem com que o todo da edição não mereça parabéns. Há falhas gritantes de revisão, especialmente em alguns contos, com palavras desaparecidas, frases que não fazem sentido, vírgulas e pontos fora do lugar. Há falhas de impressão, concentradas no conto da Charlotte Perkins Gilman, que fazem com que páginas inteiras se tornem difíceis de ler porque as letras ficaram como que desfocadas, atacadas de miopia. E há outras falhas menores, espalhadas aqui e ali. Portanto eu queria parabenizar especificamente quem escolheu as histórias, coisa que não posso fazer. A ausência dessa informação é tão gritante como seria a ausência de informação sobre um tradutor ou um autor, pois o antologista também é de certa forma um autor.

Em todo o caso, falhas à parte, este livrinho é um bom livrinho. Não contém nenhum conto mau e contém pelo menos dois, O Papel de Parede Amarelo e Mais Tarde que são bastante bons. Também contém bastante mais humor — e um humor de boa qualidade, ainda por cima — do que o tema levaria a esperar. E até contém um conto de ficção científica, coisa de que eu não estava mesmo nada à espera. O tema é abordado de forma irreverente, e isso melhora o resultado, tornando-o mais variado. E, de passagem, fazendo com que a leitura fique mais interessante.

Sim, apesar das falhas da edição esta é leitura que vale a pena. Aprovado.

Eis o que achei de cada um dos contos presentes no volume:
Este livro foi comprado.

Leiturtugas da semana #40

Mais uma semana em que as Leiturtugas marcaram presença na internet e, curiosamente, com os mesmíssimos protagonistas da semana passada. E pela mesma ordem. Primeiro chegou o Artur Coelho com a breve opinião que publicou sobre o número 4 da revista de BD Apocryphus, uma iniciativa da MigHell Publishing. Trata-se de um número inteiramente dedicado à FC mas, como as BDs contam sempre como "sem FC", o Artur passa a 6c4s.

E depois chegou o Eduardo Jauch com mais uma opinião múltipla, na qual fala do conto de FC Uma Manhã em Lisboa, do Nuno Fonseca, publicado no site Tecnofantasia, de outro conto de FC publicado no Tecnofantasia, Reconversão de Excedentes, de Telmo Marçal, de duas bandas desenhadas de Luís Louro, ambas publicadas pela Asa, Watchers e Sentinel, e ainda de um conto de Sophia de Mello Breyner Andresen integrado na coletânea Histórias da Terra e do Mar: Saga. Cinco obras ao todo, duas das quais com FC, levam o Jauch ao limiar do cumprimento dos objetivos do projeto: está com 6c5s. Falta só uma opinião e está feito.

Algo me diz que é capaz de ser para a semana. Será? Daqui a uma semana veremos. Até lá.

sábado, 9 de novembro de 2019

Pedro Afonso: Aquilo

Já tínhamos tido, nesta antologia, contos que andavam a rondar, um mais de perto, outro de um pouco mais longe. E agora, com este Aquilo (bibliografia), de Pedro Afonso, temos um que é mesmo um conto de ficção científica.

O ambiente é de distopia futurista, embora de um futuro não muito distante, facto que vai ficando claro ao longo da leitura através de apontamentos mais ou menos subtis. Pedro Afonso tem a qualidade, que a outros autores infelizmente falta, de não começar ou interromper a sua história com um longo despejo da informação a dar conta do ambiente. E então acontece ao seu protagonista aquilo.

Aquilo o quê?

Aquilo. Simplesmente aquilo. Um fenómeno qualquer, não se percebe bem se psicológico ou relacionado com alguma rotura na continuidade do espaçotempo, que o leva, pelo menos parcialmente, do ponto onde estava para outro lugar qualquer, não sabe bem qual. Nunca sabe bem qual, porque se trata de algo recorrente.

E depois... o conto acaba.

E essa é a sua maior falha. Percebo que a tentativa talvez fosse a de deixar o final em aberto, mas a sensação que fica é a de excerto, ou de ideia insuficientemente desenvolvida, de autor que se meteu em assados, e até nuns assados interessantes, mas não sabe para onde ir a partir dos assados em que se meteu. Não sabe como sair deles. E o conto fica coxo, quando tinha potencial para ser bom.

Contos anteriores deste livro:

sexta-feira, 8 de novembro de 2019

L. Timmel Duchamp: Alongamento Vestigial das Vértebras Caudais

L. Timmel Duchamp parece ter entendido a proposta deste livro de uma forma um pouco mais séria, mais borgesiana, do que os organizadores tinham em mente. Pelo menos a ajuizar pelo Alongamento Vestigial das Vértebras Caudais (bibliografia) e comparando este texto com as introduções bastante mais humorísticas daqueles. É que este é um daqueles pseudofactuais que estão escritos de forma a gerar no leitor a dúvida sobre se se trata de ficção ou realidade.

Não que esteja isento de ironia, entenda-se. Trata de uma enfermidade, aparentemente genética, que afetaria uma determinada família real europeia: as criancinhas nascem com cauda, à macaco. Duchamp descreve a coisa com frieza e objetividade clínica, mas sem grande rasgo, seja este literário, seja imaginativo. É daqueles pseudofactuais que não me agradam por aí além, mas de que os cultores do género devem gostar bastante.

Textos anteriores deste livro:

Franz Kafka: Chacais e Árabes

Um europeu no deserto entre árabes tenta dormir mas não consegue. É assim que começa este conto curto de Franz Kafka, cujo título de Chacais e Árabes é bastante ilustrativo do conteúdo do conto. Não estamos aqui perante um texto que grite "kafkiano" a cada página, mas não deixa de ser um conto fantástico, com o seu quê de fábula e uma atmosfera que remete um pouco para os ambientes das Mil e Uma Noites.

E também tem outra coisa, bastante menos agradável: uma clara corrente subjacente de antiarabismo, dando voz ao velhíssimo preconceito cristão, ou talvez judaico-cristão (é difícil ter a certeza; Kafka era judeu mas, como qualquer judeu europeu, a base cultural em que estava mergulhado era cristã, e isso tem uma influência que pode ser decisiva), sobre os árabes serem inerentemente desonestos.

É que os chacais vêm ter com o europeu, tentando convencê-lo a chacinar todos os árabes, que apresentam como seus eternos inimigos. O europeu resiste, pouco disposto ao genocídio, mas os chacais insistem, de uma forma crescentemente ameaçadora. No entanto, no fim de contas as coisas não são bem assim e o conto termina em surpresa.

Esta é uma história muito bem contada e bastante bem escrita, mas deixa um certo sabor desagradável na boca ao terminar a leitura.

Conto anterior deste livro:

Armando Jorge Oliveira Fermandes: Genie

Armando Jorge Oliveira Fernandes é outro ilustrador que decidiu fazer acompanhar a sua ilustração por uma pequena ficção. E o título, Genie (bibliografia), apesar de algo incongruentemente em inglês, já dá uma ideia bastante concreta da inspiração e do conteúdo.

Trata-se de uma historinha crítica do moderno mergulho nos mundos eletrónicos dos telemóveis, por intermédio de um irreverente génio da lâmpada que não tem paciência para quem não sabe que desejo pedir depois de o fazer sair da lâmpada mágica. Não é grande coisa enquanto história, mas pelo menos tem a qualidade de não ser vazia, mesmo que não haja grande originalidade no seu conteúdo. Digamos que como texto sucedâneo de uma ilustração, num conjunto em que esta é a parte mais relevante e no qual a criação literária estaria mais que provavelmente limitada a uma página, não está mal.

Textos anteriores deste livro:

quinta-feira, 7 de novembro de 2019

E. Nesbit: O Quarto 17

A minha forma razoavelmente caótica de ir saltitando de livro em livro, e um certo pendor para a coincidência que as minhas leituras mostram de vez em quando, têm destas coisas. Apenas dias depois de ler uma história cujo protagonista é um caixeiro-viajante, A Transformação, eis que deparo com outra onde todas as personagens têm essa mesma profissão.

O Quarto 17 (bibliografia) é um quarto de um certo hotel frequentado por caixeiros-viajantes. Estes, quando ficam lá alojados, tendem a juntar-se à conversa na sala de estar, e o que E. Nesbit nos conta é uma dessas conversas. Uma conversa sobre fantasmas, claro, de contrário pouco sentido faria o conto estar nesta antologia.

Trata-se de um daqueles contos, muito clássicos, em que não é propriamente contada uma história de fantasmas, mas sim uma história sobre um grupo de pessoas em que alguém conta uma história de fantasmas. Ou de horror, em geral. Neste caso, é a história de um quarto mal-assombrado num hotel frequentado por caixeiros-viajantes, onde se sucedem mortes misteriosas. Mas no fim, a história tem uma reviravolta que a coloca plenamente no âmbito da definição de fantástico de Todorov: será verdade? Não será?

Este é um conto bem contado e eficaz, ainda que não seja tão surpreendente nem divertido como alguns dos anteriores. Mas fecha bem esta antologia.

Contos anteriores deste livro:

quarta-feira, 6 de novembro de 2019

Adriano Santos: O Animal Enjaulado

E aqui temos um conto que me deixou ambivalente: há nele coisas que me agradaram muito, outras nem por isso. Começando por uma destas últimas, Adriano Santos não se mostra aqui tão bom a manusear as palavras como alguns (ou até mesmo, talvez, a maioria) dos seus colegas nesta antologia, apresentando uma prosa com algumas fragilidades e sem aquela consistência estilística que está presente noutros textos. Não que seja mau: é competente. Mas falta-lhe um pouco mais de rasgo.

Por outro lado, eis uma coisa que me agradou bastante: O Animal Enjaulado é um conto fantástico. E é um conto fantástico com um grau razoável de sofisticação, servindo-se de uma plasticidade da realidade com muito de surrealista, e também com bastante simbolismo à mistura, para contar a história de um homem que está ou se sente encurralado pelo mundo que o rodeia, cuja mudança permanente só serve para lhe constranger a liberdade. Um dia acorda, e, enquanto no prédio em frente um velho o olha fixamente, descobre que a porta do quarto se reduziu até quase não conseguir passar por ela. E isso é só o começo: daí para a frente vai dando por si em situações cada vez mais problemáticas, a que os outros se mostram totalmente alheios, julgando que está tudo na sua cabeça, e em que o tal velho, que parece estar permanentemente a fitá-lo, marca presença praticamente constante.

Todo o desenvolvimento da história é muito interessante, um pesadelo daqueles em que quanto mais se faz piores ficam as coisas, e o leitor (ou este leitor, pelo menos) fica suspenso da história, na expetativa de saber onde o autor o leva. E isto leva-nos a um segundo ponto que me agradou: o final. Pareceu-me bastante anticlimático — e um tanto ou quanto infantil, também — reduzir tudo aquilo a mero simbolismo de relações familiares, estreitar a amplidão castradora do mundo inteiro a um só progenitor.

Tudo somado, este é um conto com aspetos muito interessantes, muito promissores, mas que não me parece que passe do razoável.

Contos anteriores deste livro: