quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Lido: Breckenridge e o Contínuo

Breckenridge e o Contínuo (bib.) é mais uma história bastante experimental de Robert Silverberg. Com o tamanho de uma noveleta, centrada num tal Breckenridge, homem de negócios de Wall Street que tem uma espécie de epifania e descobre-se preso numa vida sem sentido. A história é, uma vez mais, descontínua, e subdivide-se entre a vida banal do Breckenridge-de-Wall-Street e episódios das andanças de um outro Breckenridge, ou do mesmo, talvez arrancado ao seu lugar próprio no contínuo espaço-temporal e atirado para um futuro muito, muito longínquo, no qual o mundo está reduzido a uma cidade murada no meio de um deserto salgado, de uma forma bastante surreal, bastante onírica.

O conto é tudo menos fácil, e eu acabei a leitura com a impressão de que há nele uma dimensão simbólica, provavelmente relacionada com o judaísmo, que me passou grandemente ao largo, ainda que não por completo. Por exemplo: o Breckenridge do futuro longínquo conta histórias a um grupo de outros homens, algo alterados relativamente aos homens do presente, que terá encontrado ao achar-se naquele lugar. Todos gostam muito, todos o ouvem com grande atenção. E as histórias que Breckenridge conta são subversões de mitos, lendas e literatura da civilização humana. Coisas como a "história de Xerazade e os Quarenta Gigantes", por exemplo. É como se, através dessas histórias de Beckenridge, Silverberg nos estivesse a querer dar uma ideia de enovelamento do contínuo em que a sua história se desenrola, de interseção e mistura de diferentes tempos, de diferentes mitos, de diferentes ideias, de diferentes personagens.

Mas isso é só um detalhe ente muitos. Esta é daquelas histórias escritas não tanto para contarem uma história, mas para serem interpretadas. Uma daquelas histórias que convidam à exegese — tal como a mitologia que lhe serve parcialmente de matéria-prima, aliás. Pode ser só uma brincadeira de um Silverberg travesso que apresenta o manuscrito e como que diz "vá, tomem lá esta coisa, vejam lá se arranjam para ela algum sentido". Pode ser mais, e provavelmente é mesmo. Seja como for, não é noveleta para qualquer leitor. É noveleta para aqueles leitores que gostam de escarafunchar o mais fundo possível nos significados ocultos do que leem. Esses, julgo eu, têm aqui pratinho cheio. Quem procure história, ação, até, de certa forma, profundidade psicológica das personagens — o Breckenridge não é a personagem de papelão tão típica de tanta FC, mas também não merece aqui um retrato muito aprofundado, até porque a dimensão do texto não o permitiria — talvez deva ir procurá-las a outro sítio.

Pessoalmente, estou algures no meio. Não tenho paciência (nem tempo) para tentar aprofundar muito a análise, mas apreciei bastante a complexidade que Silverberg conseguiu incutir nesta história, e o experimentalismo do texto. Não terei compreendido por completo o conteúdo, mas gostei da literatura.

Contos anteriores desta publicação:

Lido: Draconian Solution

Draconian Solution é um pequeno poema de PMF Johnson que solicita que o leitor imagine uma cena típica de uma história de fantasia. E depois dá-lhe a volta. Não me disse muito, francamente, o que, de resto, é habitual acontecer com os poemas publicados na Asimov's.

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segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Lido: Um Deus Passeando Pela Brisa da Tarde

Um Deus Passeando Pela Brisa da Tarde é um romance de Mário de Carvalho que o autor afirma não ser histórico. E não o é, no sentido de se passar numa cidade da Lusitânia romana que nunca existiu, Tarcisis, e não descrever nem ter como pano de fundo acontecimentos historicamente comprovados. Ou seja: em sentido estrito, não se trata, de facto de um romance histórico.

O que aqui temos é, basicamente, uma história sobre o poder e aquilo de que ele depende, e, nisso, trata-se de uma obra intemporal. Decorre nos tempos romanos, mas poderia igualmente decorrer ontem, alterando-se nela apenas uns pormenores de ambientação e de circunstância institucional. A Tarcisis romana de Mário de Carvalho podia ser Portugal, como podia ser um partido político, um clube de futebol, uma sociedade recreativa, um simples grupo de amigos e conhecidos.

Só que os pormenores são abundantes e detalhados. Nota-se, em especial no início do romance, um profundo trabalho de pesquisa sobre os usos e costumes dos cidadãos de Roma — a sua cultura, afinal — a arquitetura e organização urbana de uma Urbe do Império, e os tempos conturbados em que uma certa seita oriental nascida entre os judeus se ia espalhando pelo Império. E isso faz com que eu, que nunca fui grande fã de sentidos estritos, veja este livro como um romance histórico em sentido lato. Se é certo que não obedece à realidade histórica nas minúcias de que esta se compõe, obedece-lhe nos traços largos que a caracterizam. Se altera detalhes é para melhor apresentar a imagem completa.

Contraditório?

Não propriamente. É raro que uma obra literária — ou qualquer outra, na verdade — seja apenas uma coisa, em especial quando se trata de algo tão complexo como um romance. E este livro, sendo um romance sobre o poder e a política, como já se disse, é também sobre a história de Portugal anterior a haver Portugal, é sobre a religião ou sobre até que ponto se torna impossível dialogar com o fanatismo (e talvez mesmo sobre o fascínio que este exerce), e também sobre o amor ou algo que se lhe pareça, além de muitas outras coisas.

A história nem parece lá muito complexa à primeira vista, mas essa complexidade surge assim que se cava um bocadinho. O protagonista e narrador é um tal Lúcio, destacado cidadão romano, que, na sua villa, escreve as memórias da sua ascensão e queda na liderança de Tarcisis, num período particularmente conturbado em que os demais cidadãos de qualidade se alheiam da coisa pública e Lúcio se vê forçado a lidar praticamente sozinho com um ataque de mouros (não os mouros islâmicos, entenda-se; os habitantes da Mauritânia dos tempos romanos, que corresponde grosso modo ao atual Magrebe) e com as perturbações internas causadas por um bando de fanáticos cristãos e pela reação dos cidadãos não-cristãos contra eles, habilmente manipulada por um taberneiro que ambiciona ascender à liderança da cidade. Para piorar as coisas, Lúcio apaixona-se pela mais fanática de todos os cristãos, Iunia Cantaber, uma mulher relativamente jovem, filha de um seu amigo, que o desafia abertamente. E para piorar ainda mais as coisas, Lúcio é um desastre como político.

Mário de Carvalho joga bastante bem com tudo isto. O romance é bastante bom, ainda que me pareça que a relação de Lúcio com Iunia ocupa nele demasiado espaço. Por um lado percebe-se: quando um homem está apaixonado, o alvo dessa paixão ocupa-lhe com persistência os pensamentos, e o romance é contado na primeira pessoa. Se Lúcio não falasse de Iunia como fala, não estaria apaixonado. Mas, por outro lado, essas divagações sentimentais, sempre plenas de dúvidas, hesitações e irritações, fazem com que o fim do livro perca um pouco o ritmo, submergem um pouco em demasia tudo o resto.

Mas isso foi o que me pareceu menos bem conseguido. Tudo o resto é muito bom.

Só uma nota final, pondo agora por um momento o capacete espacial do leitor — e escritor ocasional — de ficção científica. Uma das coisas em que pensei várias vezes no decorrer do romance foi no quanto esta sociedade que Mário de Carvalho aqui descreve, uma sociedade antepassada direta da nossa, vivida por antepassados nossos, nos é tão mais alienígena do que tantas das sociedades pretensamente alienígenas que nos têm sido dadas pela FC anglo-americana. Este foi, para mim, um dos fascínios deste livro.

Este livro veio da biblioteca do meu pai; suponho que tenha sido comprado.

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Lido: Contos Encantados

Contos Encantados é uma espécie de yin-e-yang em forma de livro, ainda que resvale mais para o yin do que para o yang. A ideia parece ter sido juntar contos que partissem das velhas histórias de encantar que todos conhecemos da infância e as desenvolvessem ou subvertessem, de alguma forma. Mas é neste "alguma forma" que reside o problema. É que os dois contos deste livro utilizam de formas tão díspares o material de base, que o resultado é um livro completamente desequilibrado, sem a mínima harmonia. Um utiliza-o para, sem perder o maravilhoso característico de tais histórias, as aprofundar, conferindo-lhes uma dimensão política que geralmente não possuem. O outro comete a proeza de as tornar ainda mais superficiais e patetas do que já eram, enquanto lhes rouba toda a imaginação.

Se a ideia era mostrar que os autores podem levar o mesmo material de base em direções diametralmente opostas, pois muito bem, parabéns, conseguiram. Mas se a ideia foi essa, ela é muito mazinha para publicação tão pequena. Numa publicação maior, essa variedade poderia resultar numa espécie diferente de unidade, e os contos maus que aparecessem poderiam diluir-se no conjunto; aqui, nada disso aconteceu, os contos não "falam" um com o outro, estão de costas voltadas, nem sequer se suportam. E o resultado é uma má antologia. Já seria fraca mesmo se ambos os contos fossem bons, mas incluindo um conto tão mau como o de Vicki Baum é muito menos que fraca.

Eis o que achei dos dois contos:
Este livro foi comprado.

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Lido: O Elephans-Pinguim

O Elephans-Pinguim (bib.) é um conto curto de Maria Alberta Menéres sobre... bem... sobre nada, na verdade. Não há neste texto história, nem personagens, há apenas imagens, e uma vontade imensa de reduzir o mundo à volúpia da palavra. É todo forma, quase sem qualquer conteúdo. É prosa, mas podia perfeitamente não ser. É uma prosa entrecortada, uma espécie de versos que em vez de serem escritos uns por baixo dos outros, como nos poemas, são escritos uns a seguir aos outros, com duplos espaçamentos a separar o que é sequência de versos do que o é de palavras. É um exercício puramente literário. Ou melhor, é um exercício puramente textual.

Quem gosta de exercícios puramente textuais provavelmente gostará deste texto. Quem procura história, personagens, essas coisas de que também é feita a literatura pode (deve?) passar adiante. Eu achei-o um grande bocejo. Houvesse nele algo mais que o exercício textual, algo mais que a simples manipulação das palavras, algum conteúdo, talvez me tivesse interessado. Mas não há. Ou há de uma forma tão subalternizada que se afoga no resto. Portanto não, não gostei. Para mim, este é dos piores textos do livro.

Lido: Exercícios de Vocabulário

Exercícios de Vocabulário (bib.) é um muito divertido conto curto de Bruce Holland Rogers. Ou, por outra, é um conjunto de quatro exercícios de vocabulário, em cada um dos quais é sugerida ao leitor uma frase com uma palavra em falta, acompanhada de quatro possibilidades de resposta, quatro palavras. Umas tornam a frase insólita, outras nem por isso. Após a resposta múltipla, segue-se uma historinha. A palavra deverá ser escolhida por forma a que a frase se relacione com a história, bem entendido. E no fim de cada história, é-nos dita qual a resposta certa.

Com humor e ironia a rodos, Rogers procura, e geralmente consegue, trocar as voltas a quem o lê, fazendo com que as respostas escolhidas à partida nunca sejam aquelas que de facto são corretas, recorrendo para isso a uma série de truques. Escrever tem, muitas vezes, tudo a ver com a prestidigitação, e é precisamente isso que Rogers faz neste texto: prestidigitação literária, truques de pena e cognição. E fá-los muitíssimo bem.

Lido: Desvio Inesperado

Desvio Inesperado é um conto da escritora austríaca Vicki Baum que vai buscar aos contos de fadas exclusivamente aquilo que eles têm de pior. Passado nos Estados Unidos, aparentemente em meados do século XX, os protagonistas do conto são um escritor de auto-ajuda, cuja fama benigna não corresponde à verdadeira personalidade, mesquinha e caprichosa, e a sua eficiente secretária/assistente/motorista/faz-tudo. Em viagem de carro pelo Oeste dos EUA, a caminho de uma palestra em Los Angeles, os dois são obrigados a desviar-se do caminho por uma tempestade e pela ameaça de rotura de uma barragem, acabando por ficar presos numa cidadezinha rural. Aí, em menos de um dia, tudo nas suas vidas vai virar-se de pantanas. E quem não quiser spoilers é bom parar de ler agora mesmo.

O conto até podia ter algum interesse se não fosse tão estúpido. Mas a autora foi buscar aos contos de fadas o simplismo moralista das personalidades e das relações humanas e o "e viveram felizes para sempre", deitando fora tudo o resto. A secretária começa o conto solteirona e acaba-o noiva de um homem que conheceu horas antes e, claro, sem emprego. Afinal, mulher casada não trabalha. E, pelos vistos, noiva também não. O escritor, esse, sofre uma epifania qualquer, vê o erro do seu caráter mesquinho, e altera-o de um dia para o outro, acabando também ele noivo duma mulher que tinha acabado de conhecer. E coraçõezinhos cor-de-rosa esvoaçam por todo o lado por entre os chilreios dos passarinhos. Mas não, não esvoaçam, que o conto é deprimentemente realista, se desconsiderarmos o irrealismo de toda a premissa, personagens e situação. Não há nele magia. Mas há muita parvoíce. Muito conservadorismo bacoco. Muito romantismo de pacotilha.

Não sei se se nota que detestei esta coisa. Foi o primeiro texto que li de Vicki Baum. E vai ser, com toda a certeza, o último.

Conto anterior desta publicação:

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Lido: Manuscrito Encontrado Numa Máquina do Tempo Abandonada

Manuscrito Encontrado Numa Máquina do Tempo Abandonada (bib.) é um conto particularmente bizarro de Robert Silverberg. Um pouco à semelhança de O Templo da Ficção Científica, é um conto nada tradicional. Fragmentário e fragmentado, sem história mas cheio de história e também de História, fala sobre viagens no tempo, sobre as suas consequências e problemas, mas sobretudo fala do presente do particular momento histórico em que foi escrito (1973, para quem tiver preguiça de seguir o link ali em cima) e do país em que foi escrito. Um momento turbulento na história americana, com a Guerra do Vietname ainda a decorrer mas já a ser ganha pelo Vietcong, marcado por uma violenta colisão entre visões do mundo diametralmente opostas, no qual uma significativa corrente, constatando o ponto miserável a que as velhas formas de agir tinham levado os EUA e o mundo, procurava alternativas. Neste conto, Silverberg fala de alterar a História, mas na verdade é da História que fala, e do que fez com que ela fosse o que foi, mas sobretudo fala dessa busca por alternativas. Não é conto para qualquer pessoa, mas quem o souber enquadrar no tempo e no espaço provavelmente gostará.

Contos anteriores desta publicação:

Harrison

E lá se foi o Harry Harrison, mais um velhinho da ficção científica. Aos 87 anos. Nestas idades, a morte não é nem chocante nem inesperada, bem pelo contrário, e o género, que, apesar de haver quem o queira restringir ao tempo e ao estilo de Campbell, já é mais que centenário, já perdeu e irá continuar a perder os seus praticantes mais idosos com toda a naturalidade. Harrison era um deles e chegou a sua hora. Ad astra.

Quem quer saber o que ele foi, para a FC e não só, leia este artigo do Carlos Orsi. Está lá tudo. Escuso de reinventar a roda. Mas quero manifestar aqui algo que já manifestei no twitter.

Cada um gosta do que gosta. Ponto. É assim que as coisas são, e ainda bem que assim são. Mas entristece-me que haja tanta gente a gostar de merdas descartáveis, fúteis e estúpidas, enquanto bons autores como o Harrison acabam a vida esquecidos por quase todos. Entristece-me ver os Harrisons deste mundo sumir-se na obscuridade, enquanto as Meyers e as EL James e tantas outras escritoras e escritores de treta ficam milionários. Entristece-me ver que foi preciso morrer para o Harry Harrison encontrar um cantinho na lista de autores mencionados ao longo dos últimos meses por quem fala de ficção científica literária na internet em português. Nisso, também eu sou culpado: apesar de ter lido vários dos seus livros, já se passaram muitos anos desde que li o último. Tantos anos, na verdade, que nunca cheguei a falar de nenhum deles, seja aqui na Lâmpada, seja no E-nigma.

Harrison está razoavelmente bem publicado em Portugal. Tem livros publicados pelos Livros do Brasil (na Argonauta, claro), pela Caminho e pela Gradiva. Mas há já um par de décadas que ninguém publica nada dele, e é pena. Porque foi um bom autor de FC, por vezes um autor muito bom, outras vezes um autor hilariante. Dos livros que li, aquele de que gostei mais foi À Beira do Fim, um soberbo romance sobre a sobrepovoação e os perigos que ela acarreta. Datado? Sim, um pouco. Mas mesmo datado é um romance que devia ser obrigatório para ver se as pessoas percebem melhor certos fenómenos bem presentes no nosso presente. Não é literatura da treta. É literatura relevante. Ou que o devia ser, pelo menos.

Talvez a morte do homem sirva para que haja quem redescubra o autor ou o descubra pela primeira vez. É um fenómeno comum, que costuma repugnar-me. Mas neste caso parece-me que seria bom.

terça-feira, 14 de agosto de 2012

Lido: Only Partly Here

Only Partly Here é uma noveleta de Lucius Shepard sobre o 11 de Setembro. Ou melhor: sobre aquilo que os novaiorquinos e os americanos em geral sentiam nos meses que se seguiram aos atentados. Apesar da publicação em que vem inserida ser uma revista de FC, esta história nada tem de FC (embora seja uma história fantástica). É uma história muito concreta sobre pessoas muito concretas, afetadas até ao âmago por um acontecimento que lhes caiu em cima com o peso de uma montanha.

O protagonista é um dos trabalhadores que passaram meses na zona de impacto a remover o entulho e os bocados de corpos em que as Torres Gémeas se transformaram, e a história passa-se quase toda num bar, onde este vai passar alguns momentos de descontração com os colegas, depois do trabalho, e onde conhece uma mulher misteriosa com quem vai encetar uma relação. Shepard usa este cenário para criar um retrato de dinâmica disfuncional nas relações entre pessoas profundamente traumatizadas, numa espécie de exorcismo dos fantasmas deixados pelos atentados. E fá-lo com uma prosa elegante e rica, na qual mistura muito bem o oralismo dos diálogos. O resultado é um conto francamente bom.

Outra questão é se terá sido publicado na publicação mais adequada para ele. Afinal de contas, na Asimov's os leitores esperam encontrar FC, não contos basicamente mainstream com um pé no realismo mágico. Pode ter alienado alguns leitores mais puristas no que toca ao género, e certamente perdeu muitos outros que desdenham a FC. Mas no fundo, o que conta é a obra. E essa é boa.

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Lido: A Noite e o Sobressalto

A Noite e o Sobressalto é o livro de estreia de Pedro Medina Ribeiro. Trata-se de uma coletânea de contos de horror, fortemente inspirada pela obra de Poe e de outros autores fantásticos do século XIX. Não só os temas e ambientes são quase invariavelmente novecentistas, como o próprio estilo que o autor emprega também o é. Os contos leem-se como se tivessem sido escritos há cem anos ou mais. Talvez por uma necessidade de emular os mestres, talvez por decisão consciente de fazer um pastiche, o que é certo é que ao acabar a leitura a sensação que fica é de não se saber onde está Pedro Medina Ribeiro. É que nestas páginas ele escasseia.

Os contos, em si, não são maus. Vários até estão bem concebidos, com reviravoltas de enredo interessantes e uma escrita que, não sendo perfeita, mostrando aqui e ali sinais de alguma inexperiência ou de insuficiente revisão, é contudo competente. Simples, mas quase sempre eficaz. Mas a verdade é que aquilo que Ribeiro aqui fez já tinha sido feito, e melhor, pelos precisos mestres que ele procura emular. Há cem anos ou mais. E, entre eles e nós, há milhões de páginas de literatura que Ribeiro pura e simplesmente decidiu ignorar. É uma opção, suponho. Mas é uma opção criticável e que a mim, pessoalmente, desagrada.

Mas o pior é mesmo a ausência do autor nestas páginas. Sim, é verdade que ao escrever se começa sempre pela cópia, mas tem de chegar um momento em que se arranja uma voz própria, caso contrário a coisa não funciona a contento. De preferência antes de publicar um livro. Ora, essa voz, aqui, só com dificuldade se vislumbra nos interstícios da cópia/pastiche/seja o que for. E isso faz com que o livro, que até tem qualidades suficientes para não ser um livro mau, também não seja bom. É mediano.

Pedro Medina Ribeiro, parece-me, tem talento. Não sei se muito, se pouco, mas ele parece-me estar lá. Mas se a melhor coisa que se pode dizer do que alguém escreve é que "lembra Fulano", há algo que não está a fazer bem. Portanto, só se Ribeiro se libertar das influências para ser ele próprio poderá ser mais do que alguém com algum talento que escreve umas coisas parecidas com as de outros. Só assim poderá ser realmente Pedro Medina Ribeiro, alguém que escreve coisas suas.

Vamos ter de esperar pelas próximas obras para ver se chega lá. Nesta não chegou. E eu não terei desgostado dela, propriamente, mas também não gostei.

Eis o que achei de cada um dos contos:
Este livro foi comprado.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Lido: Liscon 2060

Liscon 2060 (bib.), conto curto de ficção científica de João Barreiros, é uma espécie de avô de Fantascom. Mas um avô muito melhor que o neto. Trata-se também de uma sátira centrada na relação entre a literatura de que Barreiros gosta e aquela de que não gosta, e também de novo visa em especial uma pessoa que quem esteja atento ao fandom português de FC&F depressa reconhece. Este é, aliás, um conto particularmente polémico: o visado ofendeu-se e as ondas de choque desse ataque e consequente ofensa fazem-se sentir até hoje, mais que uma década depois da sua publicação original. Mas pondo isso de parte, lendo este conto percebe-se bem o quão medíocre é Fantascom. Porque Liscon 2060 é um Fantascom em estado concentrado, eficaz, com tudo no sítio certo, no qual a escrita nervosa de Barreiros é congruente com a história nervosa que conta, sem nada daquela história empastelada que não avança por páginas e páginas, a história de um autor de FC que tem de fazer uma perigosíssima viagem do Porto a Lisboa para apresentar uma sua obra a um congresso literário, num Portugal futuro em que as Beiras foram invadidas e dominadas por uma biosfera alienígena hiperpredatória mas os preconceitos literários estão tão vivos como hoje em dia. Ou talvez mais ainda.

Ataques pessoais à parte, este é um dos bons contos da FC portuguesa.

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quarta-feira, 8 de agosto de 2012

E ele cresce...

Parece que foi ontem que falei pela última vez do Infinitamente Improvável aqui na Lâmpada, mas a verdade é que não foi. Se fosse ontem, o mais certo seria o site estar precisamente na mesma; como não foi, não está. Na verdade, duplicou de tamanho desde então. Em vez dos cinco contos que tinha naquela altura, tem agora dez.

Começou por crescer com um continho meu, Testemunhas, sobre umas ovelhinhas que me vieram bater à porta enquanto eu estava a almoçar. É uma coisa que me chateia, que ovelhas me venham bater à porta enquanto eu estou a almoçar, de modo que escrevi o conto. Depois, mantendo-se em volta das refeições (o que já é uma forma de diálogo, suponho), cresceu com um continho do Tiago Martins Gama, adequadamente intitulado O Jantar, sobre um momento de perplexidade familiar. Seguiu-se O Gafanhoto, um conto um pouco mais extenso, de Álvaro de Sousa Holstein, no qual Zeus, ou algo por ele, resolve proteger a bicharada rastejante da forma mais radical possível. O conto seguinte veio do Brasil, o que fica claro logo no título: O Pacto Macabro da Velha Antonha. Ôxente! Parece que vem lá coisa braba, visse? E veio mesmo, que o Afonso Luiz Pereira faz um belo tratamento do dialeto nordestino que forçou aqui o pobre editor a matutar sobre como fazer com que algo de semelhante a notas de rodapé funcionasse em hipertexto. Acho que não me saí mal da empreitada, mas o importante é mesmo o conto. E por falar em conto, já só falta falar aqui do décimo, A Rapariga de Areia, de G. B. Nunes. É um conto que se vai inspirar no realismo mágico e, provavelmente, na época estival que atravessamos.

São todos contos que se enquadram na proposta do zine: escrever sobre o infinitamente improvável. Mas confesso que, tomados em conjunto, não estão a corresponder inteiramente ao que eu tinha em mente para o zine. Ainda não decidi se acho isso bom ou não. Seja como for, não vou recusar bons contos que respeitam a proposta só porque não a respeitam exatamente como eu estava à espera. O máximo que farei, se o chegar a fazer, será publicar contos meus que se aproximem mais do que queria, para ver se inspiram a malta.

E, por falar nisso, continua sem haver o tal diálogo. Tirando a coincidência de terem sido publicados consecutivamente dois contos com ambientes domésticos e centrados em refeições (e não passa de coincidência; o conto do Tiago já estava escrito antes do meu ser publicado), não me chegou ainda nenhum inspirado noutro dos contos II. Os motivos? Vocês saberão quais são. Mas o que eu quero mesmo saber é: quem será o primeiro a atrever-se? Hm? Quem será o destemido?

Não me obriguem a ser eu, vá lá.

terça-feira, 7 de agosto de 2012

Lido: Teorema

Teorema (bib.), de Herberto Helder, é um estranho, mas eficaz, conto curto que joga com o tempo e com as noções de crueldade, de bem e de mal. Na aparência mais superficial, trata-se de um conto de tribunal, embora este seja um tribunal medieval presidido por D. Pedro I, de cognome O Cruel, e o conto seja narrado por um acusado que, nas suas próprias palavras, "gosta bastante deste rei". Ou seja: vê-o como uma espécie de irmão espiritual; revê-se na sua crueldade. Mas o conto está repleto de anacronismos, que julgo serem uma forma do autor dizer que o que então se terá passado e ali relata passou-se igualmente em todas as épocas, das mais remotas às mais modernas. E termina em pleno horror, bastante sangrento por sinal. O mal, talvez seja esse o teorema que Helder se propõe provar, é omnipresente e eterno, e acomete igualmente pessoas de baixa extração social e os ricos e poderosos que as desprezam.

Não sendo daqueles contos que me enchem as medidas, este Teorema pareceu-me francamente bom, com muita leitura para tão curta prosa.

Lido: Mistério

Mistério (bib.) é uma vinheta de Bruce Holland Rogers que começa logo por dizer ao que vem. "Este é um mistério policial", diz, logo a abrir. Mas depois prossegue, fazendo fintas ao leitor, enquanto descreve a cena. Sempre que julgamos já ter percebido o que se passa, de que tipo de mistério ali se fala, não é bem isso, é outra coisa. E depois, esta história que não tem muito de fantástica deixa um sorriso no rosto mas apesar disso não julgo que seja das melhores de Rogers. Ah, sim, e há qualquer coisa a respeito de cores.

domingo, 5 de agosto de 2012

Lido: A Herança

A Herança é uma noveleta de Pedro Medina Ribeiro que me deixou particularmente ambivalente. De novo em toada novecentista, mesmo vitoriana, tanto no tema como no próprio estilo literário que o autor emprega, conta uma história centrada na comunidade de armadores navais londrinos, dominada por um deles, indivíduo particularmente intratável que a todos odeia e que todos odeiam, e uma herança que deixa aos demais após morrer em circunstâncias misteriosas: detalhadas miniaturas dos barcos que os outros possuem, daquelas que se costumam ver dentro de garrafas.

Apesar de a princípio parecer excessivamente previsível, porque se torna demasiado fácil adivinhar o motivo por que o tal armador terá deixado aos demais as miniaturas, a história acaba por ter interesse pois, embora a princípio pareça, esse motivo não é o centro da trama, ou pelo menos não o é da forma que o leitor está à espera. Por aí, portanto, muito bem. O problema é que esta história foi aquela que me pareceu menos bem escrita, ou talvez menos bem revista. Há gralhas ou pequenas falhas de português aqui e ali, há uma personagem que "está remetida ao seu proverbial silêncio" logo depois de largar uma tirada em latim, há coisas assim, que não permitem a devida fruição da história.

E há aquele estilo em pastiche/homenagem dos escritores fantásticos do século XIX. É uma opção, talvez, e se o for até está bem conseguida. Mas decididamente não me agrada.

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sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Lido: Os Sonhos do Jovem Rei

Os Sonhos do Jovem Rei é um conto de Oscar Wilde, em toada de conto de fadas, que no entanto tem um substrato político muito forte. Um príncipe, em vésperas de ser coroado rei, é apresentado como um esteta, desligado do mundo, absorvido apenas com a busca da beleza nas coisas que o rodeiam. Mas eis que a dada altura algo lhe acontece: começa a visitar em sonhos as vidas de alguns dos seus súbditos que contribuem com trabalho, suor e cansaço para o fausto e o luxo de que desfruta, fabricando e recolhendo os apetrechos do poder. E, tomando consciência do privilégio em que vive e da dureza das vidas de quem para si trabalha, fica chocado e decide renunciar a tudo, o que vai ter consequências que não esperava. No fim, são os mais pobres dos pobres que o fazem mudar de ideias e regressar ao fausto.

A mensagem é altamente conservadora: sim, há desigualdade e injustiça, sim, há dor e sofrimento entre os desfavorecidos e luxo e divertimento entre os favorecidos, sim, tudo isso é verdade, mas as coisas são como são porque assim têm de ser, porque alguém tem de governar, porque alguém tem de viver bem para que os outros tenham algumas migalhas de que viver. É um conto de um privilegiado a afagar as consciências, a sua e as dos outros privilegiados, seus leitores, como quem diz: "é horrível, bem sei, coitados dos pobrezinhos, mas sem nós eles morreriam à fome portanto ainda bem que existimos e temos tudo". Ajuizando por esta história, se fosse vivo e português, hoje, Wilde votaria no CDS.

Mas é um bom conto. Detesto a mensagem, não gosto das divagações estéticas do dândi, mas o conto é bom.

Lido: O Templo da Ficção Científica

O Templo da Ficção Científica (bib.), conto de FC de Robert Silverberg, é uma magnífica homenagem irónica à ficção científica, e acima de tudo à ficção científica da idade de ouro, e também uma reflexão bastante profunda sobre a psicologia do fã de FC. Estruturalmente, o conto é sofisticado, entrecortando a história principal (ou a não-história, visto que esta consiste basicamente em reflexões e reminiscências do protagonista) com fragmentos de histórias de FC, ou até mini-contos completos, as quais fazem uso abundante dos mais usuais clichés do género. Assim, Silverberg consegue pintar um retrato do género, ainda que algo caricatural, ao mesmo tempo que põe o protagonista a contar a vivência de um fã de FC americano dos anos 60/70 do século passado e a analisar o que tanto o atrai nessas histórias. O resultado é uma espécie de declaração de amor crítico em que julgo que qualquer verdadeiro fã de FC se conseguirá rever. É, claramente, um conto de um fã para fãs, pejado de referências que quem está de fora dificilmente compreenderá, ainda que não me pareça que seja difícil compreender o protagonista propriamente dito. Muito bom.

Conto anterior desta publicação: