quinta-feira, 29 de março de 2012

Lido: Brinca Comigo!

Brinca Comigo! (bib.) é um conto de ficção científica de João Barreiros sobre uma horda de brinquedos mais ou menos inteligentes (ou não) que, numa Lisboa pós-apocalíptica, vai lentamente avançando na direção de um alvo. Sequela do infinitamente superior O Caçador de Brinquedos, este conto é bastante fraco. Para começar, quase não existe história. A horda arrasta-se, sempre à beira de deixar de funcionar, e o autor descreve e volta a descrever e volta a descrever e volta a descrever que se a horda chegar a ultrapassar os 500 membros é mau, muito mau. Mas os leitores perceberam à primeira, era escusada tanta repetição. Especialmente quando se gasta mais latim a descrever isso do que a viagem propriamente dita. Depois, o final não faz qualquer sentido se tivermos em conta que o problema para a horda é ultrapassar um n de elementos, não um x de capacidade de processamento.

E depois há o fatídico capítulo 6, onde os disparates se sucedem em catadupa. Ele é uma inversão magnética dos pólos que pelos vistos foi súbita (mas as verdadeiras não são, levam anos e anos), ele é o destrambelhamento dos sistemas GPS por essa inversão magnética (pena que o GPS não tenha rigorosamente nada a ver com o sítio onde os pólos estão) ele é uma ponte suspensa a cair devagarinho, aos bocados, a oscilar violentamente propelida por ventos ciclónicos (esta é a menos má, a asneira não é total, mas as pontes suspensas dependem de um equilíbrio de forças que as distribui por todos os seus elementos. Cada elemento que falha aumenta a pressão sobre os que restam, aumentando também a probabilidade de algum dos outros falhar. A consequência é que, à parte os pilares, se algo corre mal com alguma parte, tudo vem abaixo muito depressa e em conjunto). Convenhamos, para um autor que tem sido visto a estraçalhar obras alheias por este tipo de pormenores, é mau, muito mau.

Eu até fecharia os olhos àquele lamentável capítulo 6 se o resto do conto fosse realmente bom. Mas não é. Tem a prosa colorida habitual no Barreiros e muito pouco mais. É demasiado comprido, perde-se demasiado em ninharias e repetições e o final incoerente deixa na boca um gosto amargo a aldrabice.

Brinca Comigo! é, de caras e de longe, o pior conto de João Barreiros que eu li até hoje.

sábado, 24 de março de 2012

Lido: Cenário de Guerra

Cenário de Guerra (bib.) é um conto de horror de J. F. Tavares, contado na primeira pessoa por um arqueólogo que busca algo nas ruínas de um velho castelo medieval. Se descontarmos uma certa propensão para exagerar nos adjetivos (influências de Lovecraft, talvez?) não está mal escrito, mas também não me parece que funcione muito bem como conto. O ambiente está bastante bem retratado; do comboio fantasma que o leva ao castelo à própria fortaleza, tudo tem um tom suturno que joga bem com a temática sobrenatural. Mas não se percebe o que move o protagonista. Trechos como "eu queria explorar a câmara dos horrores e descobrir nela sensações" não me dizem nada. Sensações? A sério? É para "descobrir sensações" que uma pessoa embarca numa viagem rumo a territórios dominados por demónios?

Não sei, talvez funcione com alguns leitores. Comigo, este tipo de explicações que nada explicam não funciona de todo. Apesar disso, não achei o conto mau, só insatisfatório. O ambiente, como disse, está bastante bem conseguido, e também gostei da reviravolta final. E, apesar de tudo, o conto manteve-me curioso até ao fim, à espera de descobrir nele algo que fizesse com que o que faz mover o protagonista fizesse sentido. É qualquer coisa, suponho.

Contos anteriores desta publicação:

Lido: Os Poetas Menores de San Miguel County

Os Poetas Menores de San Miguel County (bib.) é um conto de Bruce Holland Rogers que descreve a visita de um velho professor reformado de literatura a uma vilória perdida nas zonas rurais do Colorado a fim de dar uma palestra sobre o poeta alemão Rilke. Delicodoce, é basicamente um conto sobre o evelhecimento, sobre aquilo que a vida faz aos sonhos e aspirações de quem a vive. E também sobre o ambiente que rodeia cada um de nós, e como este determina, ou não, aquilo que a vida nos traz. Sim, tem as suas subtilezas, como é norma do autor. Mas pareceu-me que lhe falta qualquer coisa, não sei bem o quê. Não me deixou tão plenamente satisfeito como alguns dos contos anteriores.

Lido: A Noite de Walpurgis

A Noite de Walpurgis (bib.) é um conto fantástico de Hugo Rocha, assumidamente inspirado pelo Fausto de Goethe. Contado na primeira pessoa, é um daqueles contos "de ouvir contar" em que o protagonista-narrador revela aos seus leitores uma história que lhe terá sido contada por uma terceira pessoa. Aqui, a terceira pessoa é uma velhota beirã, bem camponesa, que o protagonista encontra num passeio pela serra, e que lhe relata uma história que por sua vez lhe teria sido contada pela avó. Esta, segundo reza a história, ao andar um belo dia pelas serranias, teria deparado com uma cena inesperada: uma assembleia de bruxos e bruxas, alguns dos quais seus conhecidos, que prestavam culto a alguém que a velhota (à época ainda nada velhota) deduz tratar-se de Satanás. Segue-se uma descrição da cerimónia, e o desfecho milagroso.

É um conto interessante, por estar bem escrito mas especialmente por uma certa ironia que o autor entrelaça na história, alguns apartes sobre as reais motivações e moralidade da avó da camponesa, fundamentalmente. O deus ex machina que aparece no final poderá fazer torcer narizes, mas não me pareceu desadequado no contexto deste conto em concreto. Trata-se, claro, de conto contado, não mostrado. Os contos deste tipo são-no quase sempre; é essa a sua natureza. Por conseguinte, leitores que odeiem histórias contadas devem fugir dele como diabo da cruz, mas quem não for fundamentalista talvez goste. Eu gostei. Não muito, não foi coisa que me enchesse as medidas, mas gostei.

Lido: El Mundo se Detuvo

El Mundo se Detuvo, pequeno conto do chileno Christian Lisboa, é uma mescla de fantástico inspirado na tradição católica com ficção científica, na qual esta ocupa um lugar muito secundário. Num tom poético, conta na primeira pessoa a morte de um homem e a sua tranformação, que já vimos tantas vezes em tantas outras histórias, numa entidade incorpórea, um espectro, uma alma, algo assim. E segue-se a também muito típica avaliação do desempenho terrestre do recém-falecido, embora com algumas peculiaridades.

Não achei grande coisa. São tão numerosas as histórias deste tipo que é muito difícil fugir ao cliché absoluto quando se escreve mais uma e, embora Lisboa tenha tentado, não me parece que tenha conseguido. Se preferem avaliá-lo pessoalmente, basta darem um saltinho até aqui e lerem a terceira história.

domingo, 18 de março de 2012

Lido: Valaquenta

A Valaquenta é outro mito de criação concebido por J. R. R. Tolkien. Descreve a criação dos deuses, ou "senhores de Arda", um por um e em detalhe, o que faz com que seja mais longo do que o primeiro texto do livro, e também leitura menos desenvolta. Mas não chega a ser chato, não tem dimensão suficiente para tanto. Apesar de ter gostado menos deste conto do que de Ainulindalë, digo sobre ele basicamente o mesmo que já disse sobre o primeiro texto.

Conto anterior desta publicação:

sábado, 17 de março de 2012

Lido: Consequências

Consequências (bib.), mais um dos continhos de Bruce Holland Rogers, é um monumento de subtileza. A cena seria inteiramente banal não fosse um pequeno pormenor. Uma cena doméstica, um marido e uma mulher que conversam à volta da mesa depois de um dia de trabalho, entre o ramerrame e a crueldade mesquinha de todos os dias. Mas o homem lê o jornal, e duas palavras põem no conto uma nota de inquietação e mau agouro que sem elas estaria longe de ter, uma sensação de que algo de terrível está na iminência de acontecer. "Mortalidade aumenta", intitula o jornal na primeira página. Porque aumenta a mortalidade? Não se sabe, nem é preciso que se saiba. Guerra, epidemia, seja o que for. Irrelevante. O que importa é que a mortalidade aumenta. E que isso explica e justifica (justificará?) tudo. Muito bom.

Lido: Ritos Legais

Ritos Legais (bib.) é uma divertida noveleta de Isaac Asimov e James MacCreach (este não é mais que Frederik Pohl), dois conhecidos escritores de FC, que aqui apresentam uma história de fantasmas que de terror não tem rigorosamente nada. A noveleta inicia-se com a chegada de um homem a uma propriedade de um tio excêntrico e meio eremita, recentemente falecido, que lha deixara por herança. Para sua surpresa, depara com mais do que estava à espera: um fantasma gotejante, que corre consigo do terreno e que ele vai de seguida tentar esconjurar. Até aqui ainda estamos em terreno razoavelmente banal, e a noveleta parece uma história de fantasmas semelhante a tantas outras. Mas o que acontece em seguida transforma-a num belo exemplo de humor fantástico: o fantasma põe o herdeiro em tribunal.

O leitor é de seguida servido com uma típica história de tribunal, onde quem conheça razoavelmente bem Asimov não pode deixar de detetar os sinais do seu racionalismo implacavelmente lógico. Mas sem nunca perder de vista a ironia da premissa: o tom é declaradamente humorístico. E o final, então, é divertidíssimo. Mas repito: esta história, apesar de, em Portugal, estar incluída em duas antologias de terror, de terror nada tem.

Contos anteriores desta publicação:

Lido: O Rei Duende

O Rei Duende (bib.), de Bruce Holland Rogers, é um conto sobre a infância. O narrador recorda velhas idas para a cama, durante as quais o pai teimava em recitar-lhe um poema sobre o Rei Duende, afirmando que se tratava do poema preferido do filho. O narrador nega e, após reproduzir o tal poema, passa a descrever o que aconteceu uma bela noite em que faltou a luz na zona da sua casa e o pai, apesar disso, o levou para a cama à hora do costume. E recitou de memória o poema do costume.

E mais não digo. Repito apenas que O Rei Duende é um conto sobre a infância. E acrescento que também é um conto de terror. E bom.

Lido: O Mistério da Estrada de Sintra

O Mistério da Estrada de Sintra, segundo se diz na contracapa desta edição, pode considerar-se o primeiro romance policial português. Mas quem julgue que isso implica que nesta história de Eça de Queirós e Ramalho Ortigão se encontra um detetive a exercitar os seus poderes dedutivos, desengane-se.

Sim, de certa forma, esta história, escrita por dois grandes da literatura portuguesa do século XIX (e um deles é o maior de todos) mesmo que ambos tenham nesta a primeira obra de fôlego, tem qualquer coisa de policial. Afinal, arranca com um rapto na estrada de Sintra, e prossegue misteriosamente com um enredo adequadamente convoluto, que até mete um cadáver e tudo. Tudo num estilo epistolar, sob a forma de cartas que os protagonistas da história vão fazendo chegar à redação do Diário de Notícias, jornal onde ela foi primeiro publicada sob a forma de folhetim.

Mas a páginas tantas o rumo do enredo sofre uma reviravolta, os acontecimentos deslocam-se da zona de Lisboa para o Mediterrâneo, e o romance toma o caráter de literatura romântica, repleta de sentimentos vulcânicos e trágicos desenvolvimentos, um verdadeiro drama de faca e alguidar. A trama policial basicamente desaparece, dilui-se quase por completo nos encontros e desencontros amorosos de um pequeno grupo internacional de privilegiados em viagem até à ilha de Malta, à época colónia britânica. E não volta à superfície senão no final, e, aparentemente, a contragosto. É que se é certo que tudo no mistério acaba compreendido, se é verdade que a morte e o rapto se veem desvendados, não o é menos que o principal motivo que percorre o fim do romance é o aviso. Não sei se por casualidade ou desígnio, se estava planeado ou não, mas os autores acabam por transformar o romance numa história exemplar, numa história que acautela as donzelas e as jovens mulheres casadas contra os arrebatos do coração.

Ora, como já disse aqui por várias vezes, estes exageros do romantismo têm o condão de me encher de tédio, se bem que tenha bastante mais tolerância para eles quando as obras foram executadas na época em que era esse o estilo e a abordagem aceites nos meios literários. Ou seja, se este livro tivesse sido escrito hoje, teria poucas dúvidas em considerá-lo bastante fraco. Em 1870, contudo, ainda é época de romantismo, embora o movimento esteja já nos seus estertores finais em Portugal (onde chegou tardiamente, e onde terminou tardiamente, como é de tradição), portanto não será por aí que lhe pego. Não me agrada, mas não vou condenar o livro por isso.

Onde me parece que o livro peca mesmo é numa certa falta de solidez de abordagem. Dá ideia que os autores foram rumando um pouco ao sabor dos comentários que foram recebendo à medida que os capítulos iam sendo publicados no jornal e que a páginas tantas se deram conta de que o seu público seria maioritariamente feminino e decidiram escrever umas coisas primeiro para contentar as senhoras, depois para as avisar. Especulo. Não sei se assim foi ou não. Mas foi essa a ideia com que fiquei.

Daí que, embora não tenha desgostado da leitura, tampouco posso dizer que gostei. O português sai da experiência tão bem tratado como seria de esperar, mas o livro aborreceu-me bastante em vários trechos, em especial durante o longo interlúdio maltês. Não me encheu as medidas, longe disso. E diverte-me a popularidade de que continua a gozar ainda hoje. Não me surpreende, mas diverte-me bastante.

quarta-feira, 14 de março de 2012

Lido: O Anjo

O Anjo (bib.) é um conto fantástico de Branquinho da Fonseca sobre um homem que uma bela noite tem um anjo a bater-lhe à porta. Segue-se um diálogo muito emocional entre o homem e o anjo, que eventualmente será o seu anjo da guarda, e de repente, sem que nada o faça prever, aparece na história uma bizarra trama policial com uns polícias muito brutos que o interrogam, tentando arrancar-lhe informações que ele desconhece. A que propósito? A nenhum, que eu tivesse discernido. E depois soltam-no sem propriamente o libertarem. A que propósito? Fiquei na mesma.

Tudo no conto me pareceu gratuito, colado com cuspo, francamente tosco. Nem a utilização da língua, muitas vezes o ponto forte deste tipo de contos sem enredo que se veja, é particularmente inspirada. Sim, entendo, as coisas acontecem-nos, a nossa vida está sujeita a forças que nos transcendem, muito bem. Mas já li histórias magníficas com base nessa premissa, histórias com pés e cabeça, com sumo e miolo. Aquilo que Branquinho da Fonseca faz neste conto fica muito, muito, muito longe dessas histórias. Muito longe.

É para mim completo mistério o motivo por que um conto como este é considerado um ponto alto do fantástico português.

Maçonarices, provavelmente.

Lido: En el Sexto Planeta

En el Sexto Planeta, do argentino Carlos Chiarelli, é um curioso conto que mistura ficção científica e terror, sobre a morte de um astronauta enquanto explora Saturno. Uma morte que não é bem morte, e a maior parte do conto corresponde a uma descrição do que é, ao certo, que acontece ao astronauta, e do que é, ao certo, que existe em Saturno para que algo assim possa acontecer ao astronauta. Não vos vou dizer de que se trata: boa parte do interesse do conto reside na revelação da ideia que ele tem por trás e das suas consequências. Não me parece que seja uma grande ideia, encontro-lhe alguns problemas no que toca à ciência propriamente dita, mas achei-a interessante mesmo assim. E pareceu-me bem executada. Se querem avaliar pessoalmente, basta irem até aqui e lerem o segundo conto.

Lido: Vaporpunk

Vaporpunk (bib.), como certamente já saberão os que seguem habitualmente este blogue, é uma antologia brasileira de contos steampunk que contém um conto meu. Ou uma novela, mais precisamente. Organizada por Gerson Lodi-Ribeiro e Luís Filipe Silva, saiu em setembro de 2010 mas só agora a li. E digo-vos que fiquei muito satisfeito com o que li, e mais ainda por marcar presença neste livro.

É que na maior parte das antologias que li há, quanto muito, dois ou três contos especialmente fortes, que me agradam mesmo, e depois uma série de outros contos menos bons, quando não são decididamente maus. É a natureza da coisa, e eu sou suficientemente tolerante para achar que já valeu a pena a publicação do livro se ele contiver nem que seja um conto realmente bom. Mesmo que todos os outros estejam abaixo do mínimo desejável. E é muito raro que não haja pelo menos um ou dois que me parecem não passar de enchimento. É a tal questão de mais valer a oportunidade de tomar contacto com os contos bons, mesmo que no processo acabe por ler também coisas fracas, do que ficar à espera do ótimo e acabar sem nada, nem o mau, nem o bom.

Para além disso, confesso, não sou grande fã da maior parte das abordagens ao steampunk. A ideia retrofuturista em si mesma agrada-me bastante, mas parece-me ser demasiado frequente as obras steampunk prenderem-se demasiado ao ambiente vitoriano, a uma certa idealização da Inglaterra de uma determinada época a fazer lembrar a idealização do período medieval que torna tanta fantasia comercial tão desinteressante para mim, a um folclore visual feito de couro e latão, e aprofundarem pouco aquilo que realmente me chama a atenção: a tensão entre a tecnologia e uma sociedade pouco preparada para a industrialização, entre as ideias que o desenvolvimento técnico-científico alimenta e as velhas ideias e preconceitos herdados do passado, etc. Ou seja: aquilo que me parece relevante também para os dias que correm.

Por tudo isso, foi com alguma surpresa que dei por mim a gostar de todas as histórias deste livro. De umas mais, de outras menos, mas acabei por gostar de todas. Mesmo daquelas que abordam o steampunk por caminhos de que não gosto particularmente.

Já tinha, obviamente, lido as críticas, esmagadoramente positivas mas, como já não seria a primeira vez que livros muito aclamados por quase toda a gente me sabem a pouco, parti para a leitura apenas curioso. E acabei-a convencido de que tinha acabado de ler uma das melhores antologias de literatura fantástica que me passaram pelas mãos.

Eis o que achei de cada uma das histórias. Sobre a minha, Unidade em Chamas, já falei aqui.

Recebi este livro gratuitamente por ser um dos seus autores.

Lido: Ainulindalë

Ainulindalë, de J. R. R. Tolkien, é um conto de fantasia que mimetiza um mito de criação do mundo que mais tarde se irá transformar na Terra Média que conhecemos da obra do autor e, estranhamente para mim, que nem sou fã da trilogia do Senhor dos Anéis, achei-o particularmente interessante enquanto peça literária. Talvez porque o maniqueísmo que me aborrece em obras de ficção mais "concretas", digamos, me parece natural quando incluído num mito de criação, visto que os mitos (todos eles, mas muito em especial os de criação) são explicações simplificadas e simbólicas do mundo e o maniqueísmo é inerente a tais explicações. E também porque o achei realmente bem escrito, com o tom certo e a extensão correta. E provavelmente também porque a ideia de residir na música a origem de tudo, não sendo original (há culturas reais que a usam nos seus mitos de criação), é apelativa, julgo, para qualquer pessoa para quem a música seja uma parte importante da vida. Gostei bastante.

domingo, 4 de março de 2012

Lido: Hipótese Para um Fim Feliz

Hipótese Para um Fim Feliz (bib.) é um conto de João de Melo, bastante católico na mitologia que apresenta, mas também bastante iconoclasta, muito bem escrito e cheio de humor. Vem incluído numa antologia de contos de terror, é verdade, mas não descortinei nele o que fosse de terror. Há morte, é certo, mas esta é suave, simpática, sem nada de definitivo, quase feliz, o tal fim feliz do título. O conto, na verdade, pareceu-me ter mais de FC do que de terror, porque o protagonista é morto por um indivíduo que o trata por "meu camelo", e cujos atos estão respaldados num Decreto legal emanado da ONU, o qual determina a legalidade do assassínio. Este, porém, é depois avaliado pelo Pai (Deus? Tudo indica que sim, embora também possa ser um ET qualquer), que verifica se se trata, ou não, de morte vã e age em conformidade.

O conto descreve, pois, a morte do protagonista e aquilo que a rodeia. Coisa terrorífica? Nada. Trata-se, no fundamental, de um conto fantástico bem humorado. De um bom conto fantástico bem humorado.

Contos anteriores desta publicação:

sábado, 3 de março de 2012

Transignorâncias 4: Alfa, Beta, Et Cetera

E no princípio era o verbo. E do verbo se fez símbolo e do símbolo se fez letra, e desta palavra, e desta fez-se frase, e todos formaram um espelho onde o verbo se reviu. E nunca mais, desde então, andou o verbo sozinho no mundo, passando a trazer sempre consigo o seu reflexo.

Se alguma cultura humana tivesse um mito da criação da linguagem escrita, poderia ser algo assim. Ou se a linguagem escrita tivesse um mito de criação de si própria, o que literariamente seria bem mais interessante.

Mas os mitos de criação são sempre versões idealizadas e simplificadas, mesmo quando ultrapassam a simples invenção e refletem fenómenos reais. Na realidade, as coisas foram bastante mais complicadas do que o mito pode levar a crer.

Nós somos criaturas inerentemente simbólicas. A linguagem (isto é, a linguagem verdadeira, oral) é, em si mesma, uma grande construção simbólica, na qual os sons são símbolos de coisas que os transcendem. Apesar de ser possível que tenham tido origem em representações de sons existentes no ambiente, os sons da linguagem humana há muito se tornaram quase inteiramente abstratos. A exceção são as onomatopeias. Para além delas, a abstração é total. Nada existe na palavra árvore que faça lembrar uma árvore, a não ser o significado que milénios de evolução linguística acabaram por lhe atribuir. Ou seja: a única coisa que liga a palavra ao objeto são umas quantas ligações sinápticas nos cérebros de quem usa essa palavra específica para designar o objeto. Ligações essas que, ainda por cima, não ligam a palavra ao objeto propriamente dito, mas sim à ideia que dele fazemos.

Com a outra grande forma de comunicação humana, a linguagem corporal, as coisas funcionam de forma semelhante, ainda que esta seja mais instintiva e tenha raízes bem mais longínquas na evolução da bicharada que veio desembocar em nós (a língua gestual dos surdos, já agora, sendo como é uma fusão dos mecanismos da linguagem oral com os da corporal, está algures a meio). Mas seja qual for a linguagem de que estivermos a falar, a nossa compreensão do outro passa sempre por uma associação dos símbolos que ele nos envia à ideia que dele fazemos.

Estão a seguir-me? Ainda não foram fazer outra coisa mais interessante? Fico contente. Isto torna-se mais claro a partir daqui, julgo eu.

Pois aconteceu que, a páginas tantas, as criaturas inerentemente simbólicas que somos sentiram a necessidade de fazer registos. Mapas que identificassem onde ficavam certos locais particularmente interessantes para o seu modo de vida, maneiras de contactar os deuses e pedir-lhes sorte na caça, chuva ou aquelas outras coisas necessárias à sobrevivência de grupos de caçadores-recoletores ou dos primeiros agricultores, registos que indicassem quantos objetos do tipo x tinham sido produzidos, apanhados ou transacionados, etc. Nesses primeiros registos havia muita bonecada, mas também já iam aparecendo símbolos mais abstratos, que foram ganhando preponderância, umas vezes por evolução dos bonecos, outras através de invenção pura e simples, até desembocarem nos sistemas de escrita modernos.

Nós, lusófonos, mergulhados como estamos numa cultura cujo sistema de escrita é alfabético, e rodeados e influenciados por outras culturas com sistemas de escrita idênticos ou semelhantes, tendemos a esquecer-nos (ou a nunca termos aprendido) que nem todos os sistemas de escrita o são. Um exemplo: há pouco tempo tive uma discussão sobre o acordo ortográfico no twitter (péssimo sítio para se ter discussões complexas, diga-se de passagem), durante a qual o meu interlocutor me veio com uma pergunta que me deixou abananado pela confusão que revelava quanto à natureza das relações entre língua e escrita na China. Fui levado a regressar a estes temas em boa parte por essa conversa. E também por ter deparado com um graçamoura com demasiado tempo nas mãos, que desperdiça a escrever longos testamentos nos quais revela toda a sua imensa ignorância (nem sequer sabe o que é uma palavra, e não estou a exagerar: o tipo afirma, a pés juntos e sem se rir, que palavras usadas por todo o lado e até dicionarizadas não são palavras. Sim, leram bem. Há quem seja ignorante a este ponto). E por todo o sururu gerado pela nomeação do graçamoura original para o CCB. Mas adiante. Estava eu a dizer que…

A verdade é que há várias formas de se escrever as línguas. Essas formas podem dividir-se, grosso modo, em dois grandes tipos: os sistemas de escrita morfémicos e os sistemas de escrita fonémicos.

Dito assim, na base do palavrão, parece complicado. E é, mas não muito. Eu explico.

Os sistemas de escrita morfémicos são aqueles que se baseiam nos morfemas. Morfemas são uma espécie de átomos do discurso: as mais pequenas partes com significado em que ele se divide. Muitos morfemas são palavras; outros são partes de palavras (os prefixos e sufixos, por exemplo, são morfemas; a palavra prefixo tem dois morfemas: pre e fixo). Ou seja, os morfémicos são sistemas de escrita que refletem não a expressão concreta da língua, mas a sua ideia. Também têm o nome de logográficos e estão, de certa forma, mais próximos de sistemas simbólicos como os sinais de trânsito do que propriamente dos alfabetos. Os caracteres chineses constituem um sistema de escrita logográfico, ainda que não puro. Os hieróglifos egípcios também. Há, ou houve, outros.

A natureza destes sistemas implica duas coisas. Por um lado, que para expressar adequadamente uma língua num desses sistemas são necessários tantos caracteres quantas as unidades de significado que essa língua contém. Ou seja: muitos. Por outro lado, línguas diferentes mas pertencentes à mesma família podem ser escritas da mesma forma, permitindo criar-se, por escrito, um espaço de compreensão mútua que não existe oralmente. Pensem nas línguas latinas, e em especial nas ibéricas, e facilmente compreenderão como a sua lógica interna, as ideias que presidem ao ordenamento das palavras nas frases, e até a constituição das próprias palavras, são praticamente idênticas. Poder-se-ia criar um sistema de escrita logográfico para os filhos do latim que os unisse como se de uma só língua se tratasse… embora isso não os transformasse em tal coisa.

É basicamente o que acontece com o chinês escrito, que unifica sob esta espécie de guarda-chuva logográfico uma série de línguas diferentes mas aparentadas, que coexistem com a língua dominante no país, o mandarim.

Depois, temos os sistemas de escrita fonémicos. Já estão a ver, não estão? O morfema fone é boa pista. Trata-se de sistemas de escrita baseados nos sons produzidos para falar uma determinada língua. Os fonemas. Estes, levando um pouco mais longe a analogia física com que chamei aos morfemas átomos do discurso, são assim como as partículas subatómicas do discurso, os seus protões, neutrões e eletrões, os seus quarks. São sistemas de escrita nos quais os caracteres refletem (embora por vezes de forma algo indireta) os sons que são produzidos para falar uma dada língua. Alfabetos, portanto? Não é assim tão simples.

É que alguns sistemas fonémicos não se baseiam diretamente nos fonemas individuais, mas nas sílabas que eles formam. São os silabários, entre os quais os mais importantes e conhecidos talvez sejam os kana japoneses (hiragana e katakana).

Outros são mistos: existe um carácter por sílaba, mas estes agrupam-se em famílias dominadas pela consoante que domina a sílaba. Exemplificando: se o português fosse escrito com um sistema destes, as palavras sílaba e salada seriam escritas com três caracteres cada, uma vez que cada uma tem três sílabas, mas, em vez de começarem com o mesmo carácter, começariam com caracteres diferentes, mas semelhantes, representando, respetivamente, as sílabas si e sa. Estes sistemas designam-se por alfasilabários, ou abugidas, e os exemplos mais conhecidos deverão ser os alfasilabários brâmicos, com os quais se escrevem muitas das línguas indianas.

Depois ainda há os abjades, sistemas fonémicos nos quais só se escrevem as consoantes, ficando as vogais subentendidas. Os exemplos mais conhecidos deste tipo de sistema são os alfabetos árabe e hebraico, mas há mais, e houve ainda mais em tempos idos.

Por fim, há os alfabetos propriamente ditos, entre os quais este que vocês estão agora a ler é, de longe, o mais comum. Filho do alfabeto grego (tal como o cirílico, o segundo mais usado), espalhado primeiro pela Europa pelo imperialismo romano e depois pelo mundo pelos colonialismos europeus, o alfabeto latino, com as suas muitas variantes, é hoje o mais utilizado sistema de escrita do mundo, quer em número de utilizadores, quer em número de línguas que dele se servem. A nossa é uma delas. Uma das mais importantes, mas só uma.

Mas o facto do nosso sistema de escrita ser o mais comum não quer dizer que não haja outros, alguns regidos por filosofias bem distintas. Os sistemas de escrita não são todos iguais. E, embora certas línguas se adeqúem particularmente bem a certas formas de escrita e outras a outras, é possível a uma língua trocar inteiramente de sistema de escrita sem ser afetada por isso. Há numerosos exemplos espalhados pela história. Nações eslavas (e não só) que adotaram o alfabeto latino depois de serem inicialmente utilizadoras do cirílico; línguas da Ásia ocidental e central que abandonaram o alfabeto árabe em prol do cirílico ou do latino; o dialeto do romeno que conhecemos como moldavo e que, apenas no século XX, mudou primeiro do alfabeto latino para o cirílico e depois regressou ao latino, os vietnamitas, que abandonaram no século XIX os caracteres chineses e adaptaram o alfabeto latino às necessidades da sua língua, etc., etc. Até os nossos antepassados o fizeram, de certa forma. Durante a dominação árabe, a língua predominante nas terras que hoje são Portugal era, não o português, obviamente, mas o moçárabe, também ele filho do latim, uma das línguas ibéricas ocidentais, mais próxima daquela que falamos hoje do que, por exemplo, o catalão. E chegaram-nos textos moçárabes escritos em três alfabetos diferentes: o latino, o hebraico e o árabe.

A mesma língua, três alfabetos.

É bom ter estas coisas presentes quando se discutem detalhes ortográficos, sabem? De que valem uns cc a mais ou a menos quando comparados com sistemas de escrita inteiramente distintos? Que importância podem ter esses cc e pp se comparados com a mudança de um abjade para um alfabeto, ou até de um sistema logográfico para um fonémico? Nenhuma. Rigorosamente nenhuma.

E há mais um detalhe a ter em consideração.

A ideia que preside à criação de alfabetos é precisamente fazer corresponder determinados sons a determinadas letras. A sua lógica é representar a fonética por escrito. Portanto, de uma forma bem concreta, as línguas que se deixam ficar presas à etimologia das palavras estão a subverter a própria lógica do sistema alfabético que usam. Aproximar a grafia à fonética não é simples capricho de linguistas sem nada de mais interessante com que ocupar o tempo, mas respeitar a natureza do sistema de escrita que os nossos longínquos antepassados decidiram adotar para a língua de que a nossa evoluiu.

E nenhuma das línguas que usam alfabetos pode não o fazer para sempre. Todas acabam por ser obrigadas a fazer ajustes, mais tarde ou mais cedo, porque todas mudam com o tempo, todas evoluem, todas se alteram. Se mantiverem a grafia das palavras fixa no tempo, inalterável, chega um ponto em ela passa a refletir mais a ideia das palavras do que os fonemas que as constituem. Chega um ponto, portanto, em que a escrita se transforma, na prática, num conjunto de ideogramas que por acaso calham ter a mesma forma das letras.

Nem o mais radical dos etimófilos defende isto, suponho. Pelo que tenho visto, os que são realmente radicais sonham com uma língua estática e parada no tempo, que não mude. Dizem coisas como “andaram os nossos antepassados milhares de anos a construir a língua portuguesa para nós agora lhe fazermos isto,” afirmações que levam a crer que encaram a língua como coisa feita e acabada, como livro que chegou ao fim. Não percebem que língua que não mude e evolua não é língua, é fóssil. A sombra de uma coisa morta, não a luz de algo vivo.

Portanto a verdadeira questão está na frequência com que se deve fazer a atualização da ortografia, não se esta deve ser feita de todo. Entre os (poucos) que realmente pensaram tudo isto até ao fim, há quem ache que é preferível manter a ortografia estável durante longos períodos e depois fazer grandes reformas espaçadas no tempo, ao passo que outros consideram mais desejável ir-se fazendo com frequência pequenos ajustes. Eu prefiro a segunda alternativa. Acho que a ortografia do português deve ser revista com regularidade, a cada duas, três, quatro décadas, para atualizações e resolução de problemas que tenham surgido ou sido revelados desde a revisão anterior. E mantendo a grafia próxima da fonética, tanto quanto possível dados os condicionalismos a que está sujeita uma língua como a nossa, global, planetária. Respeitando o máximo possível a própria filosofia de base inerente a usar-se um alfabeto para se representar a língua.

E por hoje era isto que vos queria dizer. Foram só duas mil palavras e picos. Não está mal.

Transignorâncias anteriores:

sexta-feira, 2 de março de 2012

Lido: O Burlington Northern no Sentido Norte-Sul

O Burlington Northern no Sentido Norte-Sul (bib.) é mais um continho de Bruce Holland Rogers cheio de humanidade e de poesia do quotidiano. O protagonista é um tímido, com uma paixão platónica por uma inacessível Christine, à qual tenta chegar por intermédio de um poema. Em tempos há muito idos, essa abordagem talvez tivesse resultado, mas hoje? Ná. E piores ficam as coisas quando o poema compara a mulher amada ao Burlington Northern, um comboio. Que mulher tem a sensibilidade para compreender porquê? Nenhuma, certamente. Sim, há uma deliciosa ironia nesta vinheta que talvez compreendam se a encontrarem no que aqui escrevi.

Lido: O Sol é que Alegra o Dia...

O Sol é que Alegra o Dia... (bib.) é uma noveleta de João Ventura que ficciona a vida e a obra de uma personagem real, o Padre Himalaya, sacerdote católico e inventor português da transição entre os séculos XIX e XX. Na vida real, Himalaya foi pioneiro no aproveitamento da energia solar e inovou no campo dos explosivos, mas as suas invenções não foram aproveitadas. A história de Ventura altera apenas este último (mas fundamental) detalhe, descrevendo o que poderia ter sucedido caso Himalaya tivesse encontrado um ambiente mais recetivo, e tivesse podido desenvolver as suas ideias mais aprofundadamente. Trata-se, portanto, de uma história alternativa com uma abordagem bastante semelhante à que eu próprio segui em Unidade em Chamas, a novela que publiquei na mesma antologia, diferenciando-se apenas no protagonista (no meu caso Bartolomeu de Gusmão) e no grau de proximidade com o ponto de divergência. Ventura começa a sua história ainda antes do ponto de divergência, com Himalaya ainda no seminário, e vai acompanhando a par e passo os desenvolvimentos tecnológicos que dele resultam, ao passo que a minha história se desenrola décadas depois do ponto de divergência que escolhi, já com a tecnologia plenamente desenvolvida.

É escusado dizer, portanto, que esta abordagem à história alternativa e ao retrofuturismo me agrada bastante, especialmente quando bem executada. E Ventura executa-a bem, conseguindo um bom equilíbrio entre o desenvolvimento da história e as informações técnicas sobre os inventos de Himalaya que vai espalhando pelo texto, conseguindo ser até didático sem no entanto se deixar cair em infodumps excessivos e escusados... quase nunca. A única parte que me pareceu excessiva e que eu teria abreviado, ou até retirado, talvez, é o discurso final do protagonista. Fora isso, a noveleta pareceu-me muito bem conseguida, mesmo muito bem conseguida. Nada mais a di...

Bem, há mais uma coisinha a dizer. Nada tem a ver com a qualidade do conto de João Ventura, em nada a belisca. Mas não consegui perceber o que teria esta história de steampunk. Se por um lado ainda bem que ela foi publicada, porque o merece plenamente, por outro, no livro em que veio a público, é um pouco um corpo estranho. E isso pode não ser bom para a avaliação que alguns leitores farão da história.

Mas este leitor ficou bastante satisfeito com ela. E isso é tudo o que (me) importa.