sábado, 28 de setembro de 2013

Lido: Sífilis

Sífilis é um poema de Rui Reininho. E esta frase provavelmente basta para toda a gente (bem, toda a gente portuguesa, pelo menos) ficar com uma ideia bastante concreta do que se pode aqui encontrar. Sim, é parecido com as letras que ele faz para os GNR. Tem a mesma bizarra mistura de nonsense com ironia, de lirismo com badalhoquice, a mesma forma desconexa de ligar frases, versos, ideias, num todo que no final se fica sem saber lá muito bem o que quer dizer, ou mesmo se quer dizer alguma coisa. Sífilis, esta sífilis, obviamente, termina em orgasmo, embora em geral seja por aí que começa. Será esse o tema? Não faço ideia.

Interessante, para o leitor de FC que sou, foi encontrar aqui o nome de Asimov (a mostrar o cu no Central Park, coitado), e também o de Hugo Rocha, esse mesmo que também ando a ler, numa sincronicidade engraçada, além de palavras de ordem dignas de manifestações pós-contemporâneas, exigindo a liberdade para os piratas do espaço ou solidariedade para com os presos dos asteróides. Mas não, o poema não é FC, fantástico, nada que se pareça. É só um bom bocado surreal, e apetece-lhe fazer malabarismos com ícones e expressões da cultura popular. Nada mais.

Se gostei? Nem por isso.

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quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Lido: O Cesto

O Cesto é um magnífico continho de Mia Couto, não sobre um cesto, mas sobre uma mulher. Contado na primeira pessoa pela oprimida mulher de um moribundo, traça em poucas e muito poéticas linhas o retrato de uma relação conjugal tradicional e as contradições e rebeldias de um amor que, apesar de tudo, ainda consegue resistir tanto ao abuso como à doença. Muito comovente, em especial para quem conhece bem demais a situação, ainda que as personagens não tenham correspondência imediata com pessoas de carne e osso e afetos.

E esqueci-me de falar do cesto, o que não deixa de ser adequado.

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Lido: Para Tudo se Acabar na Quarta-Feira

Para Tudo se Acabar na Quarta-Feira (bibliografia) é um conto muito brasileiro, ou até muito carioca, de Octávio Aragão, integrado no universo intempoliano que criou. Centrado no ambiente dos bandidos das favelas cariocas e do carnaval, conta uma história tão violenta como movimentada sobre como um determinado grupo de bandidos tem o primeiro contacto com a Intempol e aquilo que ela é capaz de fazer. Para quem já conhece o universo de outras histórias, sejam de Aragão, sejam de outros autores, o conto é muito bom, e o enredo enovelado típico das histórias sobre viagens no tempo, que aqui se interseta com ideias sofisticadas sobre a realidade dos mitos (numa frase: se todos os mundos são possíveis, então os mundos que inventamos são tão possíveis como aquele em que vivemos), está muito bem conseguido, o que é ajudado por uma linguagem adequadamente ágil e... bem, viril. Só não sei bem se o conto resulta junto de quem toma contacto com a Intempol pela primeira vez através dele, em particular se não são brasileiros e portanto não só sofrem algumas hesitações causadas pelas diferenças dialectais, como só possuem uma ideia razoavelmente vaga do ambiente das favelas cariocas. Li algumas opiniões que me levam a crer que não, o que me faz pensar que talvez tivesse sido aconselhável publicar também uma breve introdução ao universo neste livro em contreto. Noutro tipo de publicação, mais especificamente intempoliana, isso não seria necessário. Aqui, talvez fosse.

Seja como for, não há dúvida de que, como sequência de uma série de histórias anteriores, esta história é francamente boa.

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Lido: O Hóspede do Hotel sem Hóspedes

O Hóspede do Hotel sem Hóspedes (bibliografia) é mais um conto de fantasmas de Hugo Rocha. Desta feita, o protagonista e narrador, pois o conto está escrito na primeira pessoa, é um homem de certas posses, hóspede habitual num hotel termal situado algures nas Beiras, e o conto como que descreve a relação entre personagem e hotel (que também acaba por ser, até certo ponto, uma personagem) ao longo de vários anos. Este é descrito como um empreendimento sazonal, cheio de gente na época alta mas fechado na baixa, embora o facto dos donos lá viverem o mantenha com uma ocupação mínima. Entre os hóspedes, é dada particular atenção a um: um homem em que o protagonista vê uma rudeza extrema, de origem francesa, que por lá deambula sem falar com ninguém, nem mesmo quando tentam entabular conversa com ele.

E depois passam-se alguns anos, e o nosso narrador vê-se na contingência de passar uma noite nesse hotel, na época baixa. Depois... bem, depois já se conhece bem a relação que existe entre grandes casarões quase vazios e fantasmagorias, não é verdade?

Gostei deste conto. Embora continue a não ser propriamente original, antes uma adaptação ao cenário português de histórias muito comuns noutras paragens, o conto está bem construído e bem executado. Até o estilo de Rocha me pareceu mais natural, seja porque me esteja a habituar a ele, seja porque, de facto, é neste conto menos sinuoso do que em histórias anteriores.

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Lido: "Slogans" Politicamente Incorrectos

"Slogans" Politicamente Incorrectos é mais um dos pequenos textos de José Alberto Braga que não passam de listas de frases que têm intenção de conter humor. As deste são definições mais ou menos subversivas de coisas políticas. Coisas como "ditadura é uma democracia de um voto só", por exemplo, e se metesse aqui mais nove exemplificaria com todas. Têm algum interesse como pensamentos, como aforismos, mas só algum. Não muito. E quanto a humor, nem um sorrisinho me arrancaram. Talvez seja problema meu.

A verdade é que me descubro a antipatizar crescentemente com estas listas. Em parte porque não as acho particularmente interessantes ou humorísticas, mas principalmente porque me parecem preguiçosas. São assim uma espécie de punch-lines sem preparação. Menos do que poderiam ser.

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terça-feira, 24 de setembro de 2013

Lido: Excertos de "O Guardador de Retretes"

Estes excertos de O Guardador de Retretes são responsáveis pela chegada de mais um livro à minha lista de "livros que devem ser um pratinho e que eu lerei um dia com toda a certeza se para tanto me chegar a vida." Refiro-me, precisamente, a O Guardador de Retretes, magnífica tese retretelógica de Pedro Barbosa, da qual aqui se reimprimem partes dos capítulos zero, dois e sete. De que trata? De retretelogia, evidentemente, erudita disciplina de estudos humanísticos, parte da linguística, da sociologia e da história da literatura, que se dedica a analisar e catalogar a literatura que se pode encontrar nas retretes públicas deste país e de alguns outros culturalmente próximos. Com abundância de exemplos e profundidade de reflexão.

O resultado, em especial o contraste entre a irreverência escatológica dos exemplos e o tom académico da análise, é de rebolar no chão a rir, motivo pelo qual não convirá de modo algum ler seja o livro original, sejam os excertos que dele aqui se republicam, numa retrete pública. Isto é de antologia, o que deverá ser o motivo pelo qual está presente, precisamente, numa antologia.

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Lido: O Homem Cadente

O Homem Cadente é um belo continho fantástico de Mia Couto. Conta uma história que por momentos parece ir enfiar-se num dos mais antigos e frustrantes becos sem saída das histórias fantásticas, a daquela especial espécie de onirismo que depois de nos fazer acreditar na história durante uma série de páginas nos revela, na última ou penúltima, que afinal tudo não passou de um sonho. Mas Mia Couto é suficientemente hábil para brincar com o cliché e com o leitor, trocar-lhe as voltas, virar as expectativas do avesso. E para tornar o sonho-realidade do seu homem cadente, que na verdade é mais pairante do que propriamente cadente (um homem que é um belo dia descoberto a pairar no céu e aí vai ficando, horas consecutivas, causando em terra a turbulência que é fácil imaginar), numa pequena delícia, graças em boa medida à sua bela forma de destrinçar novos significados na plasticidade das palavras desta nossa língua portuguesa.

Conto anterior deste livro:

Lido: Fome de Pássaro

Fome de Pássaro (bibliografia) é um conto fantástico de Yves Robert, algures entre o realismo mágico e a fantasia urbana, com umas pitadinhas de horror para apimentar, sobre um homem que vê uma cena insólita e decide investigá-la: uma nuvem de pássaros, de espécie indeterminada, que parecem evoluir no céu sob o comando de uma pessoa. O conto segue o protagonista enquanto investiga, enquanto vai ficando cada vez mais embrenhado no fenómeno e naqueles que o rodeiam, tanto intelectual como emocionalmente. E o que acaba por descobrir é muito mais do que estava à espera. É uma história doce, bem escrita e bem construída, mesmo tendo um ou outro ponto de alguma fragilidade tanto na escrita como na construção. Por vezes, dá a ideia de que vai seguir caminhos muito semelhantes ao de Os Pássaros, de Hitchcock, e há mesmo cenas que fazem referência direta a esse filme, mas Robert é suficientemente hábil para fazer a sua homenagem e depois levar a história que está a contar por outros caminhos, ou seja, para usar a referência para incrementar o interesse no conto em vez de a deixar funcionar em seu detrimento.

Contos anteriores deste livro:

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Lido: Os Anos de Ouro da Pulp Fiction Portuguesa

Os Anos de Ouro da Pulp Fiction Portuguesa (bibliografia), antologia organizada por Luís Filipe Silva e por Luís Corte Real, é um livro de história alternativa, mesmo sem que nenhum dos contos que o compõe o seja.

É um livro de história alternativa porque reinventa a história da ficção popular em Portugal. Esta, que existiu mesmo (e estão aí os textos do Repórter X, entre outros, que não me deixam mentir), nada tem a ver com as histórias que aqui se reúnem, e nunca foi, nem de perto, nem de longe, tão pujante e influente como se descreve nas páginas deste livro. Aqui encontra-se, não a ficção popular portuguesa tal qual foi, mas a ficção popular tal qual poderia (deveria?) ter sido, se as coisas se tivessem passado de forma diferente e o "pulp" português acompanhasse o americano em complexidade e dinamismo.

E é um bom livro de história alternativa. Um livro de HA sem um ponto de divergência claro (embora seja evidente que ele teria ocorrido algures nos anos 30 do século XX) mas que a partir daí desenvolve uma ucronia literária quase sempre credível, para o que as histórias propriamente ditas são muito ajudadas por magníficas introduções pseudofactuais de Luís Filipe Silva (que constituem contos por direito próprio) e por um design invulgarmente cuidado, que apresenta os contos como fac-símiles de publicações da época. Ou como fac-símiles de obras nunca editadas, em manuscritos batidos à máquina e cortados pela censura.

A ilusão só é estragada por duas coisas. Uma é detalhe que provavelmente passará despercebido a muitos leitores. A outra não.

Esta outra é a última história, uma novela de João Barreiros que destoa fortemente do conjunto formado pelas demais ficções. Luís Filipe Silva bem tenta integrá-la, criando para ela uma complexa história que explique a sua modernidade, mas com um sucesso muito parcial. Quem conheça um mínimo de ficção científica portuguesa não só sabe quem é João Barreiros como facilmente lhe reconhece estilo e temas e tem plena consciência de que não se trata de autor que tenha andado envolvido em pulps, por mais tardios que estes possam ser. Como consequência, Mais do Mesmo! pode ser uma das melhores histórias deste livro, mas, paradoxalmente, ele ficaria melhor sem ela.

Quanto ao detalhe, é ortográfico. É provável que muitos leitores, convencidos de que a ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990 era coisa mais ou menos eterna e imutável, nem se deem conta disso, mas a ortografia usada ao longo deste livro não bate certo com a ilusão de estarmos perante fac-símiles de histórias antigas. É que em 1971 no Brasil e em 1973 em Portugal houve alterações ortográficas que tiveram algum impacto sobre a forma de escrever as palavras. Quem pegar em publicações anteriores, irá encontrar, por exemplo, acentos graves em advérbios, que a partir dos anos 70 deixaram de se usar. Coisas como "amàvelmente", por exemplo. E, em verdadeiros fac-símiles esses acentos apareceriam. Ora, aqui não se encontra nem um. Pior: há "fac-símiles" anteriores ao acordo ortográfico de 1945, que Portugal aplicou (o Brasil não) e que teve também o seu impacto. Ou seja: entre histórias fac-similadas de originais anteriores aos anos 40, outras (a maioria), fac-similadas de originais publicados entre os anos 40 e os 70 e a última, que seria fac-símile de uma edição dos anos 90, deveriam encontrar-se aqui três ortografias diferentes. Mas só se encontra uma, aquela que o AO90 veio substituir.

Dir-me-ão, oh, mas o livro é história alternativa, portanto nenhuma dessas alterações ortográficas aconteceu mesmo na linha temporal alternativa a que diz respeito, e a nossa ortografia anterior ao AO90 foi aí instituída logo nos anos 20, ou assim. Bem, é uma possibilidade. Mas a verdade é que o design, a paginação, os tipos utilizados nos "fac-símiles" remetem todos para épocas (e publicações) bem precisas na nossa linha temporal, e teria sido enriquecedor, teria beneficiado a ilusão que o livro procura criar, se tivesse havido o mesmo cuidado com a ortografia que houve com o design.

À parte estes dois reparos, tenho de dizer que a edição está excelente. Se há livros que são menos que as partes que os compõem, este é muito mais. É quase uma edição de luxo (e não deve ter saído barata à editora), cheia de pormenores deliciosos, na qual até se replicam as irregularidades características das velhas máquinas de escrever ou as falhas que por vezes aconteciam com a impressão com tipos metálicos nas tipografias. Mais: num momento em que a edição tradicional, em papel, sofre o desgaste da revolução digital, edições deste género podem ser um caminho possível de resistência.

E quanto aos contos? Que achei eu dos contos? Não gostei muito deles, a verdade é essa. Mas que importa, se cumprem quase sempre muito bem o seu papel? Seja como for, aqui está o que achei dos contos.
Este livro foi comprado.

domingo, 22 de setembro de 2013

Lido: A Esfera de Cristal

A Esfera de Cristal (bibliografia) é mais um conto fantasmagórico de Hugo Rocha que funciona de certo modo como contraponto a O Retrato do «Quimbanda». Desta feita, o protagonista da história é um abastado colecionador de arte, tão abastado, na verdade, que não precisa de trabalhar, passando a vida em busca de novos tesouros para enriquecer a sua coleção/museu particular. Um dia, em viagem pela Índia, decide num impulso comprar uma esfera de cristal, daquelas que são costumeiramente usadas como adereços nas artes divinatórias, permitindo a quem as manuseia ver locais distantes no tempo ou no espaço. Cético, mas interessado, o protagonista leva a esfera para o seu palacete, põe-na em exibição junto dos outros objetos que fora recolhendo e basicamente esquece-a.

Até uma noite de tempestade, em que, entre trovões e relâmpagos, vê imagens dentro da esfera.

Em que faz isto o contraponto à outra história a que me refiro acima? É que este conto foi inspirado pelo violentíssimo massacre da UPA no norte de Angola em março de 1961, que para os portugueses marca o início da guerra colonial (escrevo "para os portugueses" porque antes desse ataque houve outros incidentes, alguns reprimidos de forma quase igualmente bárbara pelas tropas coloniais, e é um deles que os angolanos encaram como início da sua guerra de independência). E Rocha descreve o ataque, ainda que brevemente, não poupando na selvajaria. Não existe aqui nenhuma da dignidade de que o quimbanda dá mostras no outro conto; existe apenas o frenesi da violência sem limites. Que existiu mesmo.

Os dois contos em conjunto dão bem conta da perspetiva portuguesa contemporânea sobre o conflito em África, uma perspetiva parcial e contraditória que, se por um lado compreende a revolta perante as injustiças da opressão colonial (das quais, diga-se de passagem, só tem uma pálida consciência), por outro não aceita a brutalidade da violência que é usada contra elas.

Não esperava encontrar isto neste livro. É um ponto a seu favor.

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sábado, 21 de setembro de 2013

Lido: A Feitiçaria, Chamada Medicina

A Feitiçaria, Chamada Medicina é um texto de José Alberto Braga onde se faz uma peculiar história da medicina, desde o tempo das cavernas até aos nossos dias, passando por Hipócrates, por exorcistas medievais, por Freud e por outros feiticeiros. A ideia é, claramente, exibir um ceticismo iconoclasta e bem-humorado perante os poderes curativos das ciências médicas. E até consegue, em parte, embora eu tenha de confessar que só raramente me conseguiu arrancar um sorriso. Sim, não gostei lá muito. Achei este texto, sobretudo, muito olvidável. Não mau, propriamente, mas olvidável.

Textos anteriores deste livro:

Lido: Mais do Mesmo!

Mais do Mesmo! (bibliografia), longa novela de João Barreiros é... bem... mais do mesmo.

É mais do mesmo porque é um conto tipicamente barreiriano (e tomem lá palavrão novo), que se conjuga tão bem com o resto do livro como cabra em manifestação de carrapatos. É mais do mesmo porque, à típica moda barreiriana, dialoga ironicamente com os clichés da ficção de género ou, de uma forma mais geral, da dita cultura popular. Neste caso, são os heróis e respetivos sidekicks (que Barreiros batiza de "fiéis companheiros"), tão prevalentes na banda desenhada e em alguma literatura pulp, mas podia perfeitamente ser o pai natal ou os zombies, e quem conhece a obra de Barreiros sabe do que estou a falar. É mais do mesmo porque é ficção científica tingida de horror, como tantos outros contos e novelas de Barreiros. É mais do mesmo porque é autorreferencial até ao âmago.

Mas não é pulp fiction, nem em formato original, nem em pastiche como os demais contos do livro. É uma reimaginação pós-moderna da pulp fiction, à semelhança do filme de Tarantino, entre a homenagem e o gozo a uma certa forma de fazer as coisas. Com esta história, Barreiros está a dizer, julgo que conscientemente, que não se volta atrás. Mas independentemente do valor que ela possa ter, da qualidade intrínseca que apresente, a verdade é que não respeita a proposta do livro, obrigando o organizador a congeminar uma atribulada história de rejeições e reescritas para tentar levá-la a integrar-se. Com sucesso muito parcial pois, se é certo que Luís Filipe Silva conseguiu arranjar uma história razoavelmente credível para esta novela, não é menos certo que, mesmo assim, ela destrói a ilusão que o resto do livro procura criar, quase sempre com pleno sucesso.

Quanto à novela em si, é boa, mas longa demais, e inclui uns disparatezinhos científicos que só passam se forem postos na conta da ironia pulp, pois é bem sabido que na ideologia pulp há que nunca permitir que a realidade se ponha no caminho de uma boa história. Ou pelo menos de um bom enredo. Ou pelo menos de um enredo movimentado.

Fala de um fiel companheiro, cadete espacial, cidadão de uma estrutura política estabelecida na órbita de Júpiter, farto de ser sodomizado pelo seu viril herói, mas que o é iterativamente, vezes sem conta. E também várias vezes morto, entre peripécias dignas de super-heroísmo, pois ele é apenas um de entre uma multidão de clones, capazes de transferir a consciência entre si, ou de a sincronizar. O resultado é confuso, tanto para personagem, como para leitor, e essa confusão só se dissipa (parcialmente) através do recurso a infodumps.

Não é a melhor história de Barreiros, embora também não seja a pior. Mas é uma das duas ou três histórias deste livro que realmente valem a pena ser lidas, mesmo fora do enquadramento desta edição.

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quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Lido: Breve Introdução a uma Teoria dos $ímbolo$ da Riqueza

Breve Introdução a uma Teoria dos $ímbolo$ da Riqueza é mais um divertido texto de José Sesinando, embora este seja menos divertido do que os anteriores. Nele fala-se, como o título indica, dos símbolos de riqueza, mas o tom é menos delirante do que noutros textos sesinandos, mais concreto, menos absurdo, mais realista. Não que não seja absurdo, atenção, não que seja realista! Este texto é tudo aquilo que os outros também são e não é o que não são. Há uma coerência. Só que é menos o que é e deixa de ser menos o que não é, se me faço entender. Portanto é menos divertido. Há menos conexões inesperadas a apanhar-nos de surpresa e a arrancar uma gargalhada subreptícia. Aliás, quase não há risos a saltar daqui, embora continuem a haver sorrisos com bastança. E boa literatura.

Textos anteriores deste livro:

Lido: As Três Irmãs

As Três Irmãs é um continho de Mia Couto sobre, por incrível que pareça, três irmãs. Uma, é rimeira. Outra, receitista. A terceira, bordadeira. Todas solteiras. Todas filhas de seu pai, viúvo, que as estremece. Até um dia que um jovem aparece e espaventa os corações naquela casa. E o resultado não é o que tem de ser, ou talvez seja. Mas esperado não é.

Isso, essa surpresa final, que tomba sobre leitor e personagens, todos eles, é o que tem de melhor este conto contado numa toada algo aparentada à dos contos populares. Isso, essa surpresa final, e a deliciosa prosa de Mia Couto, obviamente, cheia de tesouros semiocultos e de uma poesia muito própria. Vão ouvir falar mais dela: este é só o primeiro de muitos contos.

Lido: Oberon

Oberon (bibliografia), de Wolmyr Alcantara, é uma noveleta de horror bastante bem construída, que faz uma mistura muito interessante de elementos díspares, provenientes das mitologias greco-romana e cristã, com pitadas de folclore e com a ideia, bastante usada no horror, de que as imagens são portais para outros mundos distintos do nosso. Tantos elementos provenientes de origens tão diversas poderiam resultar numa salada disforme. Mas Alcantara consegue integrá-los muito bem, num todo harmonioso e original, com um texto que, pesem embora algumas fragilidades aqui e ali, é em geral bom.

A história centra-se numa família de mãe e filha, esta última uma criança algo estranha. Após um divórcio, as duas mudam-se para uma nova cidade onde a mãe pretende reconstruir a vida, e a história começa quando arrendam um apartamento num prédio aparentemente normal. Aos poucos, porém, a pequena — que fica sozinha em casa enquanto a mãe trabalha, ou então ao cuidado de uma vizinha (invulgarmente?) solícita — vai descobrindo que algo no prédio não pertence propriamente à vida quotidiana de todos nós, mas fá-lo mais com curiosidade do que medo. Depara, no entanto, com o ceticismo da mãe. Que, como é de resto habitual em histórias deste género, acaba por se extinguir ao ser confrontado com o irrefutável, que neste caso surge sob a forma de um vizinho, velho habitante do terceiro andar, que se acaba por descobrir ser uma manifestação de um mal antigo.

Conto anterior deste livro:

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Vamos então falar de Portimão

Nos últimos meses, os cidadãos de Portimão viram-se confrontados com a presença contínua da sua cidade nas notícias, o que nunca acontece por bons motivos. A lógica mediática que destaca sempre o que é mau, sensacional ou polémico em detrimento de tudo o resto basta para fazer com que se uma terra não sai das parangonas algo de particularmente mau se passa por lá. E as notícias concretas confirmam esta lógica: a um endividamento monstruoso da câmara municipal, que afeta também outras autarquias, veio somar-se a prisão de elementos destacados do executivo autárquico e do PS local, com episódios rocambolescos de fitofagia à mistura, acusados de corrupção num processo que parece envolver o maior sorvedouro de dinheiro que esta cidade já conheceu (uma empresa municipal chamada Portimão Urbis) e um mirabolante projeto de instalar por cá uma delegação de Bollywood.

É tudo demasiado triste. Demasiado deprimente. Mas a verdade é que nada aqui é realmente novo.

É que embora nunca nada se tenha provado, os boatos de corrupção envolvendo os autarcas do PS têm décadas nesta cidade. Foi em boa medida por causa deles, embora a sua legendária ausência de um mínimo de sensibilidade urbanística tenha também dado uma boa ajuda, que Martim Gracias quase perdeu a câmara da última vez que se candidatou (ganhou por 47 votos apenas). Martim Gracias, o arquitonto que dizia que se as pessoas queriam espaços verdes que pintassem as casas de verde (e aqui não há "alegadamentes": o homem disse mesmo esta bojarda), era conhecido na cidade como o "senhor último andar," porque (alegadamente, aqui sim) se deixava alegremente corromper, permitindo aos empreiteiros ultrapassarem em muito os limites de altura dos prédios fixados nos regulamentos em troca dos andares de cobertura. Além de falcatruas sortidas envolvendo terrenos, Portimonense, e etc.

Nas eleições seguintes, o PS, sensatamente, pôs a família Gracias na prateleira e candidatou Nuno Mergulhão, um homem com imagem de honestidade e que, de facto, marcou uma diferença importante na forma de gerir a cidade. Em parte, por ser de outra geração. Em parte, provavelmente, por ser mesmo um homem honesto. Em parte, talvez, por ter morrido num acidente de viação a meio do mandato, nunca chegando verdadeiramente a instalar-se.

Foi substituído por Manuel da Luz, o seu vice. Que, nas eleições seguintes, venceu confortavelmente. E durante algum tempo as coisas pareceram correr bem. A cidade foi revitalizada, apesar das obras e dos projetos que eram sucessivamente anunciados com grandes parangonas mas nunca chegavam a sair do papel (só três exemplos de miragens aparentemente eternas: uma escola de medicina, um complexo desportivo, uma gare de camionagem), e a gestão autárquica pareceu razoavelmente mais limpa, embora nunca tenham deixado de haver histórias sobre terrenos valorizados artificialmente com este anúncio ou aquele, vendas a preços de favor ou de desfavor, adjudicações combinadas, etc. É provável que parte destas histórias seja falsa, pois nunca faltou às pessoas imaginação para ver sombras onde elas não existem, e a verdade é que a maior parte dos cidadãos sempre as considerou falsas, e a câmara bem gerida, tanto assim que continuaram a dar a vitória ao PS. Com a ajuda das festarolas, claro.

Mas agora já não é possível. Agora, depois de toda a festa ter desabado em cima da autarquia com a crise financeira internacional a fazer disparar a dívida para valores impagáveis, muito ajudada pelo regabofe que tem sido a criação e gestão das empresas municipais, com grande destaque para a Portimão Urbis, depois da prisão de Luís Carito, o número 2 da autarquia (de quem se dizia, aliás, que era a verdadeira eminência parda a manusear os cordelinhos que faziam mexer Manuel da Luz, em especial neste último mandato), chefe do PS local e deglutidor de papelinhos comprometedores, e da prisão de outro vereador, tudo o que ficou para trás tem de ser revisto. As histórias, que eram postas de lado como invenções de inimigos políticos, se calhar até tinham base na realidade. Se calhar até havia fogo por baixo de todo aquele fumo. E se calhar é sensato desconfiar de todos os executivos das últimas décadas.

Este ano, o PS candidata Isilda Gomes. Não é uma novata nestas coisas, bem pelo contrário. Vereadora a tempo inteiro durante vários anos, só abandonou a autarquia quando o PS de Sócrates lhe acenou com cargos maiores a nível algarvio. Não há muito tempo, andava aí pelos palcos, lado a lado com Carito, a preparar a sua candidatura. É altamente duvidoso que não soubesse de nada. É altamente duvidoso que a sua lista não esteja contaminada com o polvo corruptor de Portimão. E é altamente duvidoso que represente alguma espécie de rotura com o passado recente, por mais que alegue agora querer "novos rumos". Quem está tão profundamente enredada nos velhos rumos e nas redes de cumplicidade, favores, compadrios, desastre financeiro e, provavelmente, corrupção que esses velhos rumos implicam, não se desenreda assim tão facilmente. Mesmo que queira.

Não, nesta terra o PS não merece o voto de ninguém.

Há mais quatro candidaturas. O CDS disfarça-se de candidatura abrangente, numa coligação com dois micropartidos cuja expressão em Portimão é praticamente igual a zero. Só não esconde a sigla e o símbolo porque a lei não lho permite; caso contrário, tudo o indica, esconderia. Da candidatura do PSD, o cor de laranja desapareceu como que por milagre, substituído por uma mancha verde que quase esconde o símbolo do partido num cantinho.

E compreende-se. É, só pode ser, com embaraço que se defende as cores desses partidos.

Mas, desculpem que vos diga, esse embaraço é mais aparente do que verdadeiro. Alguém imagina que quem aceita candidatar-se por estes partidos, neste momento, num momento em que quer PSD, quer CDS, estão reduzidos a pouco mais que bandos mafiosos determinados a esbulhar o cidadão em prol dos grandes interesses económicos, não concorda com o que tem sido feito? Alguém imagina que o seu objetivo caso sejam eleitos não seja, também aqui, assaltar o que é público para transferir recursos para o que é privado? Alguém julga que não é possível fazer também a nível local o mesmo tipo de roubo? Alguém pensará realmente que não há num município possibilidade de desviar fundos como o governo central tem feito com os milhares de milhões que todos nós temos entregado de mão beijada à banca, ou a esta ou aquela empresa parasítica através das famigeradas parcerias publico-privadas, ou a colégios privados por via do inacreditavelmente estúpido cheque-ensino, que tem prejudicado o sistema educativo de todos os países em que tem sido posto em prática? Alguém?

Alguém é assim tão anjinho?

Não, nesta terra, e em todas as outras, PSD e CDS também não merecem o voto de ninguém.

Em Portimão, restam duas candidaturas, a do PCP e a do BE. São essas as que merecem os vossos votos. Escolham a que preferirem.

(E sim, restam duas candidaturas. Votar branco, votar nulo ou não votar de todo não serve para mudar absolutamente nada. Quem está insatisfeito, quem quer mudança, vota na mudança.)

Cá eu, prefiro a do Bloco. Por vários motivos, mas bastaria a atitude do PCP para com a lei de limitação de mandatos para preferir logo a do Bloco. Sou daqueles patetas que não gostam de caciques, nada a fazer. Dos que acham que a eternização no poder cria condições para gerar estruturas de interesse e dependência que destroem a democracia. E que a lei de limitação de mandatos, que uma lei de limitação de mandatos decente, é um passo para impedir que essas estruturas ganhem raízes demasiado profundas. Não o suficiente, provavelmente, mas um passo. E é também por isso que vou votar BE daqui a semana e meia.

terça-feira, 17 de setembro de 2013

Lido: A Vingança do Ciclista

A Vingança do Ciclista (bibliografia) é, parece-me, um dos mais interessantes destes contos fantasmagóricos de Hugo Rocha. Passado na contemporaniedade do autor, conta a história de um caixeiro-viajante que tem sob sua responsabilidade todo o sul do país, motivo pelo qual passa boa parte do seu ano de trabalho em viagem pelo Alentejo e Algarve. Até uma certa noite em que, viajando de Beja para Évora, o carro que conduz tem um acidente com um ciclista, acabando por matá-lo. Como já sabemos que estas histórias são fantasmagóricas e que esta trata de vingança, não exigirá grande inteligência deduzir que o que se segue é a vingança, não do ciclista, propriamente, mas do seu fantasma.

A história está bem construída e bem contada, e até tem alguma originalidade, fazendo lembrar mais as histórias de King do que as velhas histórias de fantasmas vitorianas em que Rocha costuma inspirar-se... o que mais relevante se torna quando nos lembramos de que King escreveu a vasta maioria das suas histórias e todas as mais relevantes depois de Hugo Rocha passar esta a livro.

Contos anteriores deste livro:

sábado, 14 de setembro de 2013

Lido: Contos Humorísticos

Contos Humorísticos, mais uma das pequenas antologias temáticas que a Rosto preparou para o DN e o JN é, entre as que li até agora, aquela que tem o título mais enganador. É que há alguma diferença entre obras que são humorísticas, isto é, aquelas que têm no humor uma das suas peças primordiais, e aquelas que se limitam a ter humor entre os ingredientes secundários, que é o que mais se encontra aqui. Isso e uma certa confusão entre humor e melancolia, entre o gozo e os retratos contristados de algumas misérias humanas.

E isso resulta num paradoxo. Numa antologia que se pode considerar má, embora nenhum dos contos que contém o seja, simplesmente porque não cumpre aquilo a que se propõe. Se por vezes o todo é mais do que as partes, também lhe acontece ser menos. Quando o todo que as partes formam não é o que quer ser, por exemplo.

Mas apesar do escrito acima reluto em considerar esta antologia verdadeiramente má, pois os contos não o merecem. Certo: também não merecem vir taxados de humorísticos quando antes de o serem são muitas outras coisas. E também é verdade que nenhum deles me deixou realmente rendido. Mas nenhum dos quatro é mau.

Eis o que achei deles:
Este livro foi comprado.

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Lido: Aforismos Reinventados

Aforismos Reinventados é mais um texto de José Alberto Braga que não só é tão curto que quase mereceria a designação de textículo, como tem pouco interesse. Trata-se daquilo que o título indica: a reinvenção de um conjunto de dez frases feitas, com o objetivo de fazer rir. Não faz. E mesmo sorrir, só faz a custo. Uma boa parte destes aforismos "reaforismados" são muito mais amargos do que divertidos, e outros partem de trocadilhos algo banais para compor frases igualmente banais. A impressão que me ficou foi que estas coisas provavelmente resultariam bem se integradas num texto, mas assim, isoladamente, não resultam.

Textos anteriores deste livro:

Lido: Com a Cabeça na Lua

Com a Cabeça na Lua (bibliografia) é uma antologia organizada por João Seixas com o objetivo de comemorar o 40º aniversário da chegada do homem à Lua, através de obras de ficção científica que teriam previsto essa chegada ou de alguma forma estado associadas a essa previsão. Logo nesta premissa a antologia se delimita e limita, pois ela implica incluir apenas obras com mais de quarenta anos de idade, o que é muito tempo, em especial na ficção científica. O resultado é um livro que, embora tenha inegável interesse histórico para fãs do género, dificilmente atrairá quem não o é ainda. Pelo contrário, provavelmente.

Por outro lado, quase se poderia falar aqui de uma coletânea de histórias de Heinlein com algumas histórias de outros autores a servir de acompanhamento, de tal forma dominado este livro é por esse escritor americano. De facto, são quase 200 páginas de Heinlein num total de 412, total esse que inclui, além das histórias propriamente ditas e respetivas introduções, um prefácio e dois interessantes anexos contendo listas de obras literárias e cinematográficas nas quais a presença humana na Lua tem relevo. Há mais Heinlein, portanto, que todos os outros somados. Para quem gosta desse autor, provavelmente tratar-se-á de um pratinho cheio. Para quem não gosta, pelo contrário, é um problema sério. Eu incluo-me decididamente neste último grupo.

Então é má, a antologia?

Não, não é má. Já disse várias vezes e repito-o agora que, para mim, uma antologia vale a pena desde que inclua pelo menos um conto de primeira água ou vários contos bons. E o certo é que esta, embora também inclua dois contos francamente maus (e não, nenhum dos dois é de Heinlein), contém também três contos belíssimos, dois dos quais estavam, tanto quanto sei, inéditos em português até à sua publicação aqui. E isso, desde logo, justifica-a plenamente.

O que Com a Cabeça na Lua é é uma das antologias mais desequilibradas que eu já li. Mesmo com a consistência de Heinlein a servir-lhe de esteio, mesmo com a consistência temporal e temática a aumentar-lhe, em teoria, a solidez, a oscilação de qualidade entre o pior conto (Passeio Lunar, de H. B. Fyfe) e o melhor (Poeira Lunar, Aroma de Feno e Materialismo Dialéctico, de Thomas M. Disch, que ainda por cima vem logo a seguir) é quase brutal. E isso faz com que a antologia também não seja boa.

É uma antologia razoável, que vale a leitura pelos melhores dos contos que contém, e que tem inegável interesse histórico para quem gosta de ficção científica e pretende conhecer o género e/ou para quem se interessa pela história da ciência, pois encontram-se aqui, expressas ou nas entrelinhas, bastantes das ideias mais ou menos comuns sobre a natureza do ambiente lunar antes das sondas e naves tripuladas irem lá estudá-lo in loco. Mas não é, decididamente, uma edição para o grande público, e nem sequer me parece que seja edição para aquele público que tem algum interesse pela ficção científica mas não se considera propriamente fã do género. Para estes, teria sido bem melhor uma escolha mais abrangente de histórias, que misturasse contos e novelas mais recentes ao punhado das melhores histórias que aqui estão contidas. Foram publicados, nos últimos 40 anos, contos magníficos passados na Lua ou nos quais o nosso satélite tem importância fulcral, e que, pela qualidade e pela maior diversidade de temas e abordagens que têm apresentado, são capazes de representar bastante melhor o que a ficção científica pode trazer de bom à literatura. Aqui, temo bem, só uma mancheia de histórias consegue algo de semelhante. E isso deixa-me na boca um certo travo a oportunidade perdida.

Eis o que achei de cada uma das histórias:
Este livro foi comprado.

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Baú

Como ainda tinha poucas coisas para fazer e montes de tempo disponível para as fazer, meti-me em mais uma alhada. E nem fui convidado para ela nem nada: fui eu mesmo a ter a ideia e, como é minha mania e, digamos, postura, tratei logo de a pôr em prática.

Não sabem de que estou a falar? A imagem junta serve de pista. O título dado ao post também, embora seja algo redundante face à imagem. O baú é, julgo, facilmente reconhecível (e façam favor dizer que sim senhor, porque fui eu mesmo a desarrincar o boneco assim mais ou menos apressadamente). De dentro, espreita um par de olhos amarelos, vagamente felinos, mas decerto sugestivos (ver o parêntesis mais acima, ó se faz favor). Pronto, eu escrevo a coisa por extenso. É o Baú da FC, um blogue nascido há quatro dias, que se propõe recuperar e redivulgar textos sobre obras da ficção científica e do fantástico lusófonos, produzidos há tempo suficiente para terem sido guardados no baú e deixados lá à espera de um ataque de nostalgia, que é o que geralmente acontece às coisas que vão parar aos baús.

No nosso caso, não se trata bem de nostalgia, mas da ideia de que só conhecendo o que ficou para trás se pode avaliar capazmente o que há agora, de que uma continuidade na produção dentro dos géneros fantásticos em português não se pode alcançar sem uma continuidade também na sua leitura, e se quiserem saber mais pois façam favor de ler a página de introdução à coisa, que está lá tudo bem explicadinho. Espera-se.

Em quatro dias, soma quatro textos. Provavelmente não será sempre tão vivo, porque apesar do blogue ser coletivo, e pretender vir a sê-lo mais (há uns convites à espera de resposta, e haverá mais), somos todos gente ocupada, mas contamos encontrar-vos por lá com alguma regularidade. E se o que tirarmos do baú vos chamar a atenção para as obras de que falarmos, então ouro sobre azul. É mesmo essa a ideia. Contrariar um pouco o frenesi da novidade que tão prevalente se tem tornado nas blogosferas portuguesa e brasileira.

Lido: A Moda e a Sociedade

A Moda e a Sociedade é mais um delirante texto de José Sesinando, repleto de trocadilhos e de nonsense em estado puro. Desta feita o tema é, está bem de ver, a moda e a sociedade, e o texto está escrito em modo erudito, de novo carregadinho de notas de rodapé e de referências a sumidades estrangeiras, reais ou imaginárias (estou aqui capaz de apostar que John Dos Paços d'Arcos nunca existiu, por exemplo) das quais Sesinando extrai todo o sumo que consegue à sua peculiar maneira. Da estatística ao bikini, dos pares de França aos bordados da Madeira, tudo parece servir de matéria prima para a monumental salada que Sesinando aqui faz. E tia. E sobrinha. E até, a espaços, cunhada. O resultado não só está bem escrito como resulta num hilariante gozo ao academicismo mais bacoco, como é hilariante, tout court.

E sim, é óbvio que tinha de acabar esta opinião com uma expressão francesa e presunçosa. Até a acabaria com uma nota de rodapé, se tal coisa fosse viável num blogue.

Textos anteriores deste livro:

terça-feira, 10 de setembro de 2013

Sim, votar nulo ou votar branco é o mesmo que deitar o voto para o lixo

Anda por aí a ser divulgada uma conversa muito estúpida sobre os votos nulos (ou às vezes os votos brancos também, depende das versões) servirem para alterar a representação nos órgãos autárquicos, diminuindo o número de "tachos", ou poderem anular as eleições, e patati e patata.

Confesso que este tipo de boato imbecil me enfurece. E enfurece, principalmente, porque toda a informação necessária para o revelar inteiramente falso está na internet, e é facílima de encontrar.

Basta ir ao site da Comissão Nacional de Eleições. Mais simples ainda: basta procurar no Google por "lei eleitoral autárquica", que rapidamente se vai dar à página onde toda a legislação relevante está disponível a toda a gente. Aí, logo em primeiro lugar, encontra-se um link a dizer LEOAL - Lei Eleitoral dos Órgãos das Autarquias Locais. Este link abre um documento PDF, e toda a informação sobre como a coisa se processa está lá. Mas para quem é demasiado preguiçoso para ir ver por si próprio, eis a papinha toda feita. Eis como se transformam votos em mandatos. Também isto é fácil de encontrar: está na 4ª página de um documento com 54 páginas. Mas pronto: se vocês não sabem fazer buscas simples na internet, tomem lá.

Então, como se diz, é assim:

O método utilizado para apurar mandatos é, como em todas as outras eleições em que existem mandatos a apurar (ou seja: todas menos as do Presidente da República), o de Hondt. E para isso há 4 regras. Ei-las:

a) Apura-se, em separado, o número de votos recebidos por cada lista no círculo eleitoral respetivo;
b) O número de votos apurados por cada lista é dividido, sucessivamente, por 1, 2, 3, 4, 5, etc., sendo os quocientes alinhados pela ordem decrescente da sua grandeza numa série de tantos termos quantos os mandatos que estiverem em causa;
c) Os mandatos pertencem às listas a que correspondem os termos da série estabelecida pela regra anterior, recebendo cada uma das listas tantos mandatos quantos os seus termos na série;
d) No caso de restar um só mandato para distribuir e de os termos seguintes da série serem iguais e de listas diferentes, o mandato cabe à lista que tiver obtido o menor número de votos.

Repararam nos negritos? Ah, pois. O que eles querem dizer é que só os votos expressos em listas contam para alguma coisa. É preciso que eu repita? OK, eu repito: só os votos expressos em listas contam para alguma coisa. Ainda não perceberam? Eu repito de outra forma: votos que não sejam dados a listas, ou seja, os votos brancos e os nulos, não servem rigorosamente para nada. Ri-go-ro-sa-men-te para nada, agora em negrito E em itálico para ver se a coisa finalmente entra.

Eh pá, e divulguem isto, em vez de boatos estúpidos. Aumentem a inteligência e sabedoria do povo, não as diminuam. Parem de espalhar lixo como se fosse informação. Já basta o que basta.

Lido: Resíduos Sólidos Urbanos

Resíduos Sólidos Urbanos (bibliografia) é um conto de ficção científica do João Ventura ao qual se pode com toda a propriedade chamar um termo muito na moda ultimamente: distopia. Mas uma distopia irónica, como aliás é comum nas ficções de Ventura. Esta decorre em ambiente laboral. O protagonista é um técnico superior de uma central de tratamento de resíduos sólidos urbanos (e acabaram de perceber o título) que é surpreendido por um subordinado que o chama para o informar de que foi encontrado um avô entre os resíduos. Não um avô em mau estado, como é habitual, normal e expectável, mas um avô em perfeito estado que, em princípio não deveria ali estar. Dado o pontapé de saída, o conto vai por aí fora, movido a investigação sobre o que teria levado o avô a aparecer ali, e a decisões sobre o que fazer ao velhote, desvendando uma sociedade cheia de gente descartável, substituível (com vantagem) por robôs, e de empresas cuja única preocupação é maximizar a capacidade de gerar lucros para os acionistas.

Pura ficção científica, portanto. Nem nunca se viu nada assim.

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Lido: Três Horas Entre Dois Aviões

Três Horas Entre Dois Aviões é um pequeno conto de F. Scott Fitzgerald sobre as partidas que a memória às vezes prega às pessoas. A história é singela. Um homem bem-sucedido, a meio de uma viagem de avião pelos Estados Unidos, tem uma escala de três horas na sua terra natal e, para não desperdiçar essas três horas no aeroporto, decide ir à procura de velhos conhecidos. Ou melhor: de uma velha conhecida em especial, uma antiga paixão dos tempos de rapaz, que o rejeitara. A ideia não é inteiramente benévola — afinal, ele depois de ser rejeitado e de sair da cidadezinha encontrara o sucesso, e ela limitara-se a ficar ali, mergulhada em mediocridade. Seja como for, procura-a. E encontra-a. E ela acolhe-o com uma vivacidade que ele não esperava. Aliás, nada corre bem como nenhum deles esperava.

No fim, há mal-entendidos, há embaraço, há ilusões e desilusões, há montes de coisas. Humor é que não me parece que haja muito. Este conto, francamente bom, até por conseguir conter tanto em tão poucas páginas, parece-me ser muito mais melancólico do que humorístico, mesmo com mal-entendidos e tudo. As situações são muito mais patéticas que patetas, e as duas personagens, enredadas em idealizações e memórias imperfeitas, vão magoar-se mutuamente quase sem dar por isso. Ao lê-lo, não sorri sequer uma vez.

Mas gostei do conto. Terá sido muito mal escolhido para uma antologia de contos humorísticos, mas é um bom conto.

Contos anteriores deste livro:

terça-feira, 3 de setembro de 2013

Lido: O Cão da Quinta do Diabo

O Cão da Quinta do Diabo (bibliografia) é, como já terão reparado pelo boneco que acompanha este texto, mais uma das histórias fantasmagóricas de Hugo Rocha. E é um conto curioso, escrito com eficácia, menos do enrodilhamento que costumo achar em Rocha e uma dose bastante interessante de humor. De vez em quando, como neste conto, nota-se que Rocha não se leva lá muito a sério, o que não deixa de ser salutar.

A história, não sendo propriamente inesperada, não deixa de ser invulgar. Tudo se passa numa quinta, de onde o quinteiro repara que alguém anda a rapinar galinhas. Mas fá-lo com tal eficácia que não só consegue passar pelos vários cães de guarda que na quinta habitam, como nem sequer deixa vestígios. Mistério. Que só se amplifica quando vem a descobrir que não é questão de alguém mas de algo, e que algo. E a partir daí, o conto torna-se muito previsível até ao final. Basta ter alguma familiaridade com as técnicas das histórias de terror para o deixar previsível.

Mas nem seria necessário, na verdade. É que o conto começa por uma espécie de introdução de uma página, na qual Rocha desvenda quase tudo o que vai apresentar a seguir, o que constitui um tremendo tiro no pé, retirando ao conto quase toda a tensão. Como consequência, este, que podia ser um dos melhores contos do livro, não o é. É um conto curioso, sim, mas disso não passa.

Que pena.

Contos anteriores deste livro: