quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Lido: The Difference Between Fiction and Life

Também não incluído em nenhuma das edições em português de Bruce Holland Rogers, este The Difference Between Fiction and Life é um conto que nada tem de fantástico cujo fulcro se encontra na frase que o encerra. Trata de uma historinha de predação no reino animal, centrada numa infeliz mariposa que primeiro é apanhada pela teia de uma aranha ausente e aí fica a debater-se futilmente, o que acaba por atrair a atenção de uma vespa, com consequências que... bem... vem na última linha. Esta é aquilo que transforma um mero e breve relato sobre a vida e a morte entre a fauna na reflexão bastante profunda e igualmente irónica sobre a natureza da literatura que o título logo sugere. Outro bom conto.

Outras histórias divulgadas na newsletter de Bruce Holland Rogers:

Lido: O Astronauta

Há muito quem pense que a ficção científica se dedica a tentar prever o futuro. Escreveram-se e continuam a escrever-se rios de artigos a falar das "previsões acertadas" ou dos "erros" que a FC supostamente teria cometido ao longo da sua história, e as tecnologias avançadas são quase inevitavelmente descritas como "de ficção científica" ou vêm acompanhadas de frases como "não é ficção científica, mas realidade". Mas isto, lamento dizer, vem de gente que das coisas só percebe a superfície.

Porque se rasparmos a camada superficial, a FC não é isso e nunca o foi. A FC é, e sempre foi, sobre o presente de quando é escrita, embora o seja de várias formas, por vezes sobre os temas relevantes apenas no presente e por isso passageiros, por vezes sobre temas mais perenes como a condição humana, usando o futuro ou os planetas distantes como uma espécie de ambientes experimentais onde esses temas podem ser explorados de uma forma mais pura, sem o ruído inerente à complexidade do planeta em que vivemos, ou mais extrema, por conseguinte de uma forma que os realça.

O Astronauta (bibliografia), mais um bom conto de Ray Bradbury, é um destes últimos. Situado em ambiente doméstico e familiar, contado sob o ponto de vista de um filho de astronauta que sonha com as estrelas e com um dos periódicos regressos do pai, é um conto que tem como tema não o futuro ou a tecnologia, mas a dinâmica disfuncional da família de um herói, regularmente abandonada, e o coração dilacerado deste, dividido entre a vontade de ficar com os seus e a paixão pelas estrelas, que o leva a não poder deixar de voltar a partir.

Podia não ser um conto de FC. E na verdade, parte do seu impacto (e parte do motivo por que se mantém relevante apesar do que descreve já ter deixado de ser ficção científica há décadas) deve-se precisamente a isso. A situação não depende de o homem ser astronauta, mesmo que o fascínio pelo espaço a ajude e esse facto tenha impacto em alguns pormenores da narrativa: famílias abandonadas por homens demasiado absorvidos pela profissão são coisa de séculos, especialmente em sociedades patriarcais, nas quais às mulheres está reservada a família e aos homens a saída para o mundo. O espaço podia ter sido substituído pela guerra (e é provável que fosse essa a inspiração principal: o conto é de 1951) ou por muitas outras situações. É por isso que é tão fácil reconhecer a situação e o dilema e é em parte por isso que a história resulta tão bem.

A outra parte, claro, cabe à mestria de Bradbury, ao ponto de vista que escolhe, à forma como constrói a narrativa, à poesia das suas palavras. Mas nem tudo são rosas: Bradbury era um conservador e por isso não se vislumbra aqui sinal de contestação aos tradicionais papéis atribuídos aos sexos, bem mais vivos nos anos 50 do que hoje. Este conto não é misógino, como outras obras de FC da época são (há na mulher uma enorme dignidade), mas é certamente machista. A verdade, contudo, é que não há muitas neste período que não o sejam.

Contos anteriores deste livro:

terça-feira, 28 de novembro de 2017

Lido: Antologia do Conto Português Contemporâneo

No já longínquo ano de 1984, Álvaro Salema recebeu a incumbência de organizar uma Antologia do Conto Português Contemporâneo, a ser publicada institucionalmente pelo Instituto de Cultura e Língua Portuguesa. O objetivo não era tanto vendê-la ao público, mas apoiar a ação pedagógica no campo do ensino de português como língua estrangeira e divulgar a literatura portuguesa no estrangeiro, nomeadamente servindo de base para a tradução para outras línguas, e eventual publicação, das obras reunidas. Para tal, Salema reuniu um conjunto de 30 contos de outros tantos autores, abrangendo um período — e os respetivos estilos e correntes — que vai de 1926 a 1982.

A qualidade no manejo da língua é, nestes contos, tão elevada como seria de esperar numa publicação deste género. E a qualidade literária mais genérica, que inclui não só este manejo mas outras facetas da criação literária, é também bastante elevada, pesem embora as oscilações naturais num conjunto heterogéneo de contos e a presença de um conto muito mau, perfeito erro de casting... ou talvez não, talvez a sua inclusão tenha sido apenas fruto de o compilador sentir a necessidade de não ignorar a abordagem literária que esse conto corporiza: há vários contos excelentes, os muito bons são mais e a grande maioria é de bom para cima, sendo poucos os apenas razoáveis.

Algo surpreendente para mim foi a quantidade de histórias fantásticas que esta antologia contém. Como disse numa das opiniões individualizadas aos contos, já contava com a presença de algum fantástico, por já conhecer alguns dos contos de publicações como a Antologia do Conto Fantástico Português, entre outras. Mas não o esperava em tão grande profusão. Julguei que talvez houvesse aqui uns 5 ou 6 contos fantásticos, no máximo. Nunca imaginei que eles fossem 13; mais de um terço do total.

Em geral, portanto, esta foi uma boa leitura. Mais: foi uma leitura surpreendentemente relevante para o principal motivo que me levou a fazê-la — alimentar o Bibliowiki. E sim, creio que se trata mesmo de um apanhado muito interessante da produção contística portuguesa daqueles cinquenta anos e picos; interessante o suficiente para extravasar o mero âmbito pedagógico que esteve na sua génese. Quem quiser ler bons contos portugueses, tem-nos aqui com fartura.

Quanto a mim, eis o que achei de cada um deles:
Este livro foi obtido na internet, numa versão em PDF disponibilizada gratuita e legalmente pelo Instituto Camões.

segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Lido: Perro de Luz

Um problema grave de que esta antologia em PDF sofre é ter tantos erros de paginação que alguns contos, que até talvez tivessem algum interesse se bem editados, se tornam praticamente ilegíveis. Perro de Luz é um desses contos. Gerardo Sifuentes cria nele uma história com muito de ciberpunk, a qual parece ser ambientada num futuro longínquo em que a cidade — seja ela qual for... talvez uma cidade global — se transformou num labirinto cavernícola semiarruinado, subdividido em níveis não se percebe bem se provenientes de um crescimento para cima ou para baixo, para o subsolo. Mas tudo é vago, apesar de todo o tecnobabble de FC, muitíssimo piorado pelos tais erros de edição (e são-no certamente, porque não é este o único conto que atacaram, apesar de não terem atacado todos) que transformam o conto em meia dúzia de muito confusos blocos de texto sólido, os quais incluem diálogos e conjuntos de espaços que se sucedem alguns pontos finais e muito provavelmente deveriam ter sido fins ou inícios de parágrafos.

No entanto, creio, e só creio porque a paginação torna a leitura tão penosa que é difícil ter certezas, creio, dizia, que não é só isso a causar problemas no conto. Ele também parece sofrer de um outro problema que tende a acometer os escritos de futuro mais ou menos longínquo feitos por autores demasiado inábeis para tornar compreensível a extravagância inerente ao que está muito afastado da experiência humana contemporânea. Um bom escritor torna compreensíveis e agradáveis de ler até histórias sobre a morte térmica do Universo. Um mau por vezes tenta, por vezes nem isso. E Sifuentes parece que nem isso.

Mas, repito, isto é o que me parece depois de me faltar a paciência para analisar detidamente a parede de texto em que este conto foi transformado. Li tudo mas confesso que li pela rama. Se tivesse tido essa paciência, a vontade para abrir caminho à catanada por esta impenetrável selva de palavras, é possível que a opinião final fosse diferente. Não creio que seja provável, mas possível certamente é.

Contos anteriores deste livro:

terça-feira, 14 de novembro de 2017

Lido: Silverfish, o Último Inquilino

Silverfish, o Último Inquilino, de Manuel Mendonça, provavelmente o mais curto dos contos desta antologia, é um conto muito vagamente de ficção científica — passa-se num futuro em que os ebooks terão substituído por completo os livros físicos; não que isso tenha algum verdadeiro impacto na história — sobre uma entidade que parece incorporar as características principais dos peixinhos-de-prata. A narrativa é desconexa e apressada, o que talvez não seja sempre defeito mas pelo menos exige que o autor mostre que sabe o que está a fazer, o que Mendonça está muito longe de alcançar. Pelo contrário; a própria prosa é frágil, o final talvez estivesse claro na mente do autor mas para a do leitor mais parece uma frase vagamente mística (refere-se a um obscuro texto tibetano), atirada para ali sem grande propósito, e tudo termina deixando muitíssimo a desejar. O texto mais fraco da antologia até ao momento, e a grande distância do segundo pior.

Contos anteriores deste livro:

sábado, 11 de novembro de 2017

Lido: O Destruidor de Mundos

Quem junta as qualidades de ser leitor habitual de ficção científica e conhecedor das ciências biológicas conhece bem a frustração que a primeira atividade costuma causar quando é posta em confronto com a segunda. Sabe bem que a ficção científica, genericamente, apesar de muitas vezes mostrar um cuidado quase obsessivo (pelo menos na vertente hard) com o rigor científico na parte físico-matemática da extrapolação, trata quase sempre a biologia com displicência, quando não com ignorância aberta e despreocupada.

Pois esta novela, O Destruidor de Mundos (bibliografia), é um belo exemplo do que acima fica dito. Charles Sheffield era físico e matemático, além de escritor de FC, o que explica que a biologia não fosse seu forte. Mas não ponhamos o carro à frente dos bois. Voltemos ao início.

Sheffield cria nesta novela uma história de mistério, centrada no desaparecimento de um homem. A princípio parece uma simples história de detetives, pois a mulher contrata uma detetive privada, a qual se põe a investigar as poucas pistas de que dispõe. Depressa aparece um novo elemento na história, a filatelia, explorado com algum detalhe e que vai abrir à heroína novas vias de investigação e lhe vai trazer um muito útil coadjuvante. Mas é por intermédio dos selos que tudo começa a ganhar contornos cada vez mais estranhos, aparecendo na história uma organização secreta que usa certos selos (que não são propriamente selos) como discreto método de identificação e comunicação e, seguindo a pista a essa organização, detetive e coadjuvante acabam por viajar até às Montanhas Rochosas, onde acham que talvez consigam encontrar o desaparecido.

E encontram. Mas também encontram aquilo que faz desta história ficção científica. E a razão da conversa inicial sobre a biologia e a FC. E se acham que isto até aqui já tem muito spoiler, deixem já de ler porque daqui para diante vai ter muitos mais.

O que encontram são instalações secretas de pesquisa, desenvolvidas pela tal sociedade secreta dos selos, nas quais se está a desenvolver um projeto de investigação inspirado por aqueles globos fechados que se vendem por aí, chamados ecosferas, nos quais um minúsculo ecossistema aquático autossustentável sobrevive sem qualquer contacto com o exterior. A ideia é desenvolver algo de semelhante em escala maior, capaz de sustentar pessoas, com vista à sua utilização na colonização do espaço. Mas tudo é feito num sistema de tentativa e erro, e os erros são numerosos; as primeiras ecosferas falharam e foram destruídas, as experiências em curso são pouco animadoras. Mas há uma exceção: uma das ecosferas mostra grande potencial e vai-se desenvolvendo com pujança. E é aqui que Sheffield põe a pata na poça biológica.

É que para que a sua história resulte, Sheffield tem de postular o impossível: uma evolução ultrarrápida de todo um ecossistema, capaz de, em meras horas, mudar radicalmente de estado — e nem se trata de resultado de contaminação alienígena, como em vários contos do João Barreiros; tudo resulta de manipulação da biologia local. Já vimos isto em vários sítios (o exemplo mais conhecido talvez seja o filme Evolution, que tem pelo menos a atenuante de ser uma comédia... e de ser contaminação alienígena), e é sempre disparatado, não sendo esta novela exceção.

Tirando isso, a história até resulta. É eficazmente movida pelo mistério do desaparecimento do homem, que se mantém até perto do fim, momento em que já outro motor tomou o controlo da narrativa: o mistério da investigação que se está a fazer nas instalações onde os protagonistas acabam e a ameaça que aparece quando é ventilada a ideia de organismos ultra agressivos arranjarem maneira de sair do ecossistema fechado em que se desenvolveram e entrar em contacto (e em confronto) com aquele que sustenta a vida humana. A prosa, não sendo nada de especial, é eficaz. Tudo somado, quem não seja particularmente sensível a pontapés grosseiros no rigor biológico terá provavelmente motivos para achar esta novela boa. Eu achei-a razoável, não mais que isso.

Contos anteriores desta publicação: