domingo, 31 de julho de 2011

Lido: Pago Para Esquecer

Pago Para Esquecer (bib.) é uma coletânea de Philip K. Dick, composta na sua maioria por histórias datadas do início da carreira do autor, nos anos 50, embora tenha também um par de histórias mais recentes. É uma coletânea algo irregular, pois embora algumas das histórias que a compõem sejam muito boas, outras há que ficam bem abaixo na escala da qualidade. Vários dos contos e noveletas aqui contidos mostram os enredos enovelados e o ceticismo face à realidade que constituem imagem de marca do autor, mas a maioria dos que o fazem mostram também uma prosa apressada e pouco cuidada que os prejudica. Outros são contos com uma natureza menos dickiana, e não deixa de ser curioso escrever-se isto a propósito de contos do próprio Dick. Noutros ainda, nomeadamente nos mais antigos, o interesse principal reside em neles se encontrar, em esboço, muito daquilo que foi contribuir mais tarde para alçar Dick à condição de monstro sagrado da FC.

Em resumo, trata-se de uma coletânea interessante, se bem que, como aliás é comum acontecer nestas edições feitas a reboque dos filmes, se alguém procurar nela apenas a origem do filme homónimo deva sair desapontado: O Pagamento é apenas um conto em onze, sofreu fortes alterações na adaptação e, embora até seja dos melhores contos do livro, está longe de o dominar. Eu acho isso uma vantagem. Acho que é precisamente assim que devem ser feitas as edições companheiras de filmes quando o filme se baseia num conto. Mas outros leitores talvez tenham outras ideias.

Aqui fica o que achei de cada uma das histórias:

Lido: Uma Condecoração Especial por Cansaço

Uma Condecoração Especial por Cansaço (bib.) é uma magnífica noveleta de Philip K. Dick sobre paradoxos e ciclos fechados temporais. Um grupo de "temponautas" parte para o futuro mas, aí chegados, deparam com notícias sobre uma miteriosa explosão que os teria morto a todos no momento do regresso ao seu tempo de origem... só que deparam com essas notícias repetidamente, uma e outra e outra e outra vez, pois veem-se presos num ciclo temporal no qual são obrigados a repetir (mais ou menos) as mesmas coisas uma infinidade de vezes enquanto tentam descortinar o que teria provocado a explosão e, assim, salvar as suas próprias vidas. Ou então não. Apesar da ideia não ser nova (e julgo que já não o era em 1974 quando esta história foi escrita), está aqui tratada com mestria, sendo de realçar a sensação opressora de desesperado cansaço que vai submergindo os protagonistas cada vez com mais força até tornar o desfecho inevitável. Muito bom.

Lido: Guerra Interplanetária

Guerra Interplanetária (bib.), um conto curto do autor romano Luciano (século II d.C), extraído de uma obra mais vasta intitulada Uma História Verídica ou História Verdadeira nas duas edições portuguesas de que tenho notícia, é bem capaz de ser o mais antigo percursor da ficção científica de que há memória, se descontarmos os grandes mitos das civilizações antigas. Trata de uma viagem fantástica feita por um grupo de marinheiros determinados, os quais, após partirem para ocidente a fim de descobrirem onde termina o mar, são deste erguidos no ar por uma ventania e vão parar à Lua, cujos habitantes estão em guerra com o Sol. Simultaneamente muito ingénuo e muito surrealista, o texto faz lembrar algumas obras de autores borgesianos, algumas obras portuguesa encaixadas na FC, nas quais os lugares do espaço não passam de nomes mais ou menos poetizados sem qualquer relação com as suas características reais, e também uma certa forma de criar literatura para crianças. Pessoalmente, achei fascinante ver quão antigas são as raízes de tudo isso, e quão arquetípicas algumas dessas raízes se revelam. É esse, quanto a mim, o principal interesse deste texto.

sábado, 30 de julho de 2011

Lido: A Igreja Profanada

A Igreja Profanada (bib.) é um conto de Manuel Pinheiro Chagas, baseado numa história tradicional do norte da Europa e que consegue estar ainda mais eivado de maniqueísmo do que tem sido hábito nestas velhas histórias fantásticas portuguesas que tenho vindo a ler. Após um longo e romântico prólogo cuja utilidade narrativa não consegui descortinar, os últimos dois terços do conto são, enfim, dedicados à história propriamente dita, dividida em duas partes. Na primeira, um homem "de condição" vai para o mar já noite cerrada, a contragosto do barqueiro que contrata para o levar, e aí, ao bater da meia-noite, é confrontado com almas penadas que surgem vindas das profundezas. A segunda é constituída por um longo (e linguisticamente inverosímil) monólogo do barqueiro, que explica como as almas penadas acabaram naquele lugar. Tem tudo a ver com a tal igreja do título, profanada por um grupo festivo e, portanto, maligno e ímpio, liderado por um irmão maldoso e a irmã que por ele está apaixonada. Não gostei. Não achei o conto particularmente bem escrito, em especial tendo em conta o renome do autor, e achei-o mesmo bastante mal construído enquanto obra de ficção. E nem falo da banalidade e conservadorismo de todo o fundo religioso que lhe subjaz. Quem goste de histórias moralistas e mui cristãs provavelmente apreciará esta. Eu achei-a fraca, muito fraca.

sexta-feira, 29 de julho de 2011

Lido: A Casa de um Homem

A Casa de um Homem (bib.) é um conto de ficção científica de Luís Filipe Silva passado num futuro politicamente distópico mas tecnologicamente avançado, no qual as casas são geridas por inteligências artificiais algo temperamentais e possuem meios próprios de locomoção. O homem do título é alguém cuja casa foi roubada. Mas não um alguém comum, antes um homem com ligações e um passado que lhe permitem artilhar a casa com aparelhómetros e software mais avançados do que os do comum dos mortais, ao mesmo tempo que também lhe fornecem inimigos determinados. Se alguém ao ler isto pensa em pós-ciberpunk, pensa bem. O conto relata o que o homem faz para tentar recuperar a casa, e no final ficamos a saber porquê, embora de uma forma tão subtil que de certeza nem todos os leitores a compreenderão. Chegarão aos motivos sentimentais, decerto, mas nem todos compreenderão a profundeza desses motivos. Um conto muito bom, provavelmente o melhor que o autor publicou na última década.

Lido: El Primer Viaje de la Argonauta

El Primer Viaje de la Argonauta é mais um conto de ficção científica do cubano Yoss, mas este está longe do nível dos que li anteriormente. Uma nave tripulada por uma equipagem padronizada de cinco elementos regressa a um planeta de Próxima do Centauro depois de terminada a sua viagem inaugural, um salto interestelar ao sistema Sigma Draconis. Até aqui a ideia é banal mas não propriamente má. Infelizmente, boa parte do conto é constituída por um longo infodump em que é feita uma cronologia de um cenário de catastrófica crise energética que teria levado a espécie humana ao presente ficcional, e isso já é bastante mauzinho. Apesar de alguns detalhes algo inverosímeis, o cenário que é construído dava pano para mangas, podia ser desenvolvido em uma ou várias histórias mais longas, mas assim apresentado a seco só estraga o conto. Neste, o que fica acaba por ser uma escrita que me parece de qualidade (apesar da velha história sobre eu não me sentir inteiramente à vontade para avaliar a qualidade da escrita em espanhol) e uma ideia curiosa: a de que para que uma equipagem seja aceite na estirpe dos astronautas é necessário passar por um teste de responsabilidade ambiental. Mas é pouco. Tudo o resto pareceu-me bastante fraquinho. Podem avaliar pessoalmente se assim é ou não aqui.

Lido: Rum-Cola

Rum-Cola é um conto de Miguel Neto que não me agradou. Com a ressalva óbvia relativa à extrema subjetividade do humor, aquele que aqui há não me provocou nem um sorriso. Ao terminar de ler o conto fiquei com a sensação de que em todas as muitas ocasiões em que o autor teve de escolher entre meter um gag e dar coerência à história preferiu o gag. A opção talvez tenha resultado para quem encontre graça nesses gags, mas não foi o meu caso. A história é fantástica, na medida em que o protagonista é um Pai Natal com todas as características da imagem que a figura tem no imaginário popular, com as suas renas mágicas, os seus atarefados duendes e tudo o resto, salvo não ser tão bonacheirão como é costume ver-se. Tanto assim que, depois de uma conversa com um executivo da sucursal portuguesa da Coca-Cola, que o irrita, decide que basta de natalices, que mais vale deixar tudo nas mãos do Menino Jesus e ir viver para Cuba. E é o que faz. Mas tudo sem fazer vibrar nenhuma corda do meu sentido de humor. Ora, sem que eu achasse graça a uma história que também não tem grande coerência, é natural que o resultado não tenha me satisfeito nem um pouco. É pena.

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Lido: Uma Fantasia do Doutor Ox

Uma Fantasia do Doutor Ox (bib.) é um extrato da novela de Júlio Verne O Doutor Ox. O extrato descreve o que acontece à terreola flamenga de Quiquendone quando o Doutor Ox (não aparece no extrato como tal — aliás, ele mal aparece no extrato — mas trata-se de um arquetípico cientista louco) liga uns bicos de gás, alegadamente destinados à iluminação pública, mas que na realidade constituem uma experiência para avaliar os efeitos do gás nas pessoas, animais e plantas da terra. Os resultados dificilmente poderiam ser mais devastadores. É um texto de proto ficção científica, divertido e não tão inconsequente como possa parecer à primeira vista pois, no meio de toda aquela loucura, encontra-se uma sátira mordaz aos mecanismos e clichés da histeria patrioteira e nacionalista. Deixou-me com vontade de reler a novela inteira. Ótimo.

Lido: Pela Sombra Morrerão

Pela Sombra Morrerão (bib.) é uma novela de horror vampírico de Carla Ribeiro da qual, digo logo à partida, não gostei. Não que não tenha os seus pontos de interesse, nomeadamente, e muito em especial, a forma como o mito do vampiro é usado como alegoria de algo bem mais próximo e bem menos fantástico: os maus tratos domésticos, o abuso, sexual ou não, das pessoas mais frágeis num núcleo familiar, o abandono da criança ao predador por uma mãe sem força para se lhe opôr, etc.

Com estes ingredientes, que estão lá por baixo de uma história de vingança entre vampiros que acaba por ser o menos interessante ou relevante da novela, esta podia ser uma história com uma força tremenda. Infelizmente, algumas fragilidades de texto e de construção da narrativa não lhe permitiram desenvolver todo o seu potencial.

O texto é entravado por um excessivo pendor para a repetição. Só para dar dois exemplos, em dois parágrafos razoavelmente curtos da página 17 aparece duas vezes a palavra "estranhamente" e mais duas vezes a palavra "estranho" e são inúmeras as ocasiões em que surge "seu" (ou variantes) em situações em que a sua omissão em nada prejudicaria o texto.

Quanto à narrativa, o problema é desenvolver-se a história em dois tempos diferentes, separados por algumas décadas, sem que, muitas vezes, os saltos temporais estejam claros. Foi frequente dar por mim a pensar "Espera, isto aqui passa-se quando?" antes de conseguir situar-me. Este tipo de texto não linear presta-se a usos literariamente interessantes mas exige um domínio da técnica narrativa que Carla Ribeiro, pelo menos nesta obra, não mostrou possuir.

De modo que não gostei da novela, embora imagine que leitores (e acima de tudo leitoras) mais ligados ao lado gótico da vida e/ou com histórias pessoais em que a obra reverbere talvez lhe encontrem suficientes motivos de interesse para darem por bem empregue o tempo gasto a lê-la.

Lido: O Canto da Sereia

O Canto da Sereia (bib.) é uma longa noveleta de Júlio Dinis, ambientada entre pescadores na costa do Furadouro, na região de Aveiro. É das tais obras a cuja inclusão na literatura fantástica eu torço o nariz, embora os estudiosos da coisa tendam a metê-la lá. A mim parece um conto que mistura um certo ambiente quase neorrealista (foca-se nos humildes pescadores, com as suas conversas, os seus problemas, a sua sabedoria e os seus mitos) com um enredo bem romântico. Um jovem pescador perde-se de amores (muito inverosimilmente, diga-se) por uma voz que lhe chega do mar em noites tormentosas. Esse canto, que a superstição dos pescadores atribui a uma sereia, vem a descobrir-se que pertence a uma estrangeira rica e excêntrica que gosta de sair para o mar quando pessoas mais sensatas recolhem a terra. Ou seja: o fantástico que poderia existir no conto revela-se bem mundano, e nisso o autor não deixa lugar a qualquer dúvida. Não percebo, portanto, porque se inclui esta obra na literatura fantástica portuguesa. E não concordo com essa inclusão.

Independentemente destes considerandos mais ou menos bizantinos, a noveleta abre lenta e segue lenta, com muitos sentimentos superlativos, diálogos que oscilam entre o popular e verosímil e o inverosimilmente burilado e o desfecho trágico que se prevê desde o início. Provavelmente agradará a leitores mais dados a romantismos. Pessoalmente, achei chato, muito chato. Tragédias de faca e alguidar não são para mim. Prefiro as minhas tragédias mais terra-a-terra.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Lido: A Rosa Negra

A Rosa Negra (bib.) é um conto de Sacha Ramos que mistura ficção científica com uma espécie de romantismo extemporâneo. Ambientada numa Cascais futurista, no seio de uma família enriquecida por um negócio de produção de rosas geneticamente manipuladas (informação essa que nos é entregue por intermédio de um infodump inicial), a história conta um dramalhão dos antigos, cheio de sentimentos arrebatadores, crime, traições familiares e morte, bem ao gosto do século XIX. Faca e alguidar. O resultado é estranho e incongruente, piorado por uma série de diálogos bastante fracos e pelo facto de que, depois de descodificada a inspiração novecentista do texto, tudo se torna muito previsível. Achei o todo muito fraquinho. Claramente o pior conto do livro até agora.

Lido: Códigos Foráneos

Mais um título em espanhol, mas desta vez o texto é na mesma língua. Códigos Foráneos, conto do espanhol Juan Jacinto Muñoz Rengel, é uma ficção científica de laboratório, daquelas que mimetizam documentos não-literários. Neste caso trata-se um conjunto de notas de campo escritas por um cientista que investiga um conjunto de objetos encontrados em Marte, com tabelas e tudo. Não gostei. Não só porque este tipo de texto não costuma agradar-me por aí além (é preciso ser muito bom para me cair no goto), mas também porque as descobertas se sucedem a um ritmo que, por si só, esfrangalha a verosimilhança, além de mostrar que o autor nunca lidou, nem de perto nem de longe, com a investigação científica tal como ela realmente é. Mas principalmente porque aquilo que é descoberto (uma espécie de linguagem universal da vida, muito new age) não faz o mínimo sentido. Quem gostar de esoterismos talvez goste deste conto. Talvez. Os outros, duvido muito. Mas se alguém quiser arriscar, encontra-o aqui.

terça-feira, 26 de julho de 2011

Lido: Las Granadas del Tiempo

Apesar do título em espanhol, Las Granadas del Tiempo é um conto portuguesíssimo, de Amadeu Lopes Sabino, no qual o protagonista, um velho antifascista forçado ao exílio, regressa a Madrid e aí percorre os velhos locais por onde um outro eu mais novo passara, contando a história dessa primeira visita em paralelo com a da segunda. É uma obra nostálgica, pela qual perpassa a saudade por um mundo mais simples de ideais puros, ainda não corrompidos pelo tempo e pela dúvida, que percorre os circuitos clandestinos e a psicologia daqueles que combateram as ditaduras ibéricas nos anos 60. E além disso está muito bem escrito. Gostei bastante deste conto.

sábado, 23 de julho de 2011

Lido: Que Diabo de Natal

Que Diabo de Natal é um conto de fantasia de Nuno Duarte que vai buscar o sempiterno tema faustiano do homem que entra em negócios com o diabo. Desta feita, o homem é uma espécie de alter ego do autor (e de tantos outros, autores e não só), um tipo dado aos livros e aos interesses próprios e que tem alguma dificuldade em fazer com que a namorada aceite essa faceta da sua personalidade. É depois dela o pôr com dono, que é como quem diz mandá-lo à fava, que o protagonista vai negociar com o diabo. Mas o que este quer não é bem o que estava à espera: é simplesmente, ou talvez não, passar um natal tradicional. Com ele. É um conto divertido, bem concebido e bem escrito, dos pontos altos do livinho em que se inclui.

Lido: O Condutor Nocturno

O Condutor Nocturno (bib.) é um conto curto de Italo Calvino que, tal como o anterior, nasce duma situação aparentemente simples e parte à desfilada no exame minucioso de todas as suas ramificações lógicas. A situação: um homem (X, supõe-se) tem uma relação com uma mulher (Y) que vive noutra cidade e, após uma briga telefónica, decide fazer-se à autoestrada para ir falar com ela e tentar remediar a situação. A coisa é complicada pela existência de um rival (Z), o qual, na imaginação de X, se irá imediatamente aproveitar do atrito, e também pela possibilidade de a mesma ideia de se fazer à autoestrada para tentar remediar o que for remediável ter passado pela cabeça de Y, o que levaria a um desencontro que, em vez de beneficiar a relação só a prejudicaria mais um pouco. Um autêntico enredo. E um enredo que vai sendo cada vez mais abstratizado até levar a um ciclo fechado bem surrealista. Outro conto que não é para toda a gente, e do qual gostei bastante.

Lido: Ressurreição de um Coronel

Ressurreição de um Coronel (bib.), de Edmond About, é um texto de proto ficção científica extraído de um romance de 1862 traduzido para português como O Homem da Orelha Quebrada. O título é bastante eloquente quanto ao conteúdo: trata-se do relato da ressurreição de um coronel do exército napoleónico, que fora aprisionado décadas antes mas, antes de ser executado conforme previsto, congelara na masmorra em que estava encarcerado. Ingénuo, como é costume acontecer nas ficções científicas oitocentistas, o texto é bem curioso por estar tão próximo de muitas ficções científicas de laboratório que foram escritas um século mais tarde. Não sendo propriamente uma obra prima, é contudo relevante para a história da FC.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Mais coisas nas minhas presenças na web

Acabei de acrescentar ao post / à página sobre as minhas outras presenças na web, para lá deste blogue (caso não saibam o que é, cliquem onde diz "podem encontrar-me também aqui", ali à esquerda; ou então cliquem aqui), ligações para as páginas de autor de duas livrarias online com livros meus à venda: a Amazon e a Wook.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Lido: Uma Récita do Roberto do Diabo

Uma Récita do Roberto do Diabo (bib.), de Júlio César Machado, é um conto fantástico que acompanha em paralelo uma representação teatral e uma história contada por um dos membros do público a outro, aquele que conta a história na primeira pessoa. Tem essa peculiaridade estrutural, chamemos-lhe assim, que lhe confere um interesse acrescido ao que teria de outro modo, e que serve também para o autor fazer, no final, convergir as duas histórias até quase se confundirem. Ambas as histórias são dramáticas. A contada pela peça tem a ver com o dilema de um filho (O Roberto do Diabo do título) ao descobrir a natureza do pai. Aquela que é contada pelo companheiro do narrador é uma história de ódio e parricídio que, apesar da tentativa de inculpar um terceiro por parte do assassino, não fica sem castigo. É conto cheio de subtilezas, para se ler com atenção e bastante bom, apesar do maniqueísmo de inspiração católica que tão típico é nestas histórias fantásticas oitocentistas e tão irritante se torna quando lemos a segunda ou terceira. Mas faz parte; afinal, os escritores são fruto da sua época. Faz parte e é neles bem mais desculpável do que seria em autores mais contemporâneos.

Lido: O Cheiro do Suor

O Cheiro do Suor (bib.) é um conto de fantasia urbana de Eric Novello que me surpreendeu pela qualidade do texto, francamente boa. Num ritmo ágil e sombrio, quase de policial negro, o conto vai seguindo um protagonista, cuja natureza é desvendada a pouco e pouco, ao longo de uma viagem pelo submundo duma cidade não identificada, na qual sobrevive executando trabalhos sujos para, entre outras entidades, presume-se, a própria polícia. Só o final, inconclusivo, não me satisfez plenamente porque não me parece ter a força adequada ao resto do conto. Seja como for, não tenho dúvidas em considerá-lo muito bom, dos melhores do livro, até agora.

domingo, 10 de julho de 2011

Lido: Ese Día

Ese Día, do cubano Yoss, é um conto de ficção científica cuja principal força está na literatura que contém. Com a ressalva habitual sobre a minha capacidade para avaliar qualidade literária em textos em espanhol, pareceu-me soberbo, tanto em termos de texto propriamente dito, em especial no ritmo imposto pelo autor, como na estrutura. Fazendo até certo ponto lembrar Stalker, dos Irmãos Strugatski, o dia do título é o dia em que um grupo heterogéneo e incompreensível de extraterrestres resolve visitar o planeta Terra, interrompendo momentaneamente o fluir das coisas do costume, introduzindo um forte elemento insólito no quotidiano, só para partirem horas mais tarde, desaparecendo sem deixar rasto. Pareceu-me muito, muito bom. Podem lê-lo, caso queiram, aqui.

Lido: Infinito

Infinito é um pequeno conto de Óscar de Sá, no qual o autor se põe na pele de um autor que barafusta violentamente contra si próprio por nunca ser capaz de acabar nenhuma das obras a que dá início. São cinco páginas de autorrecriminações e muito cedo se torna óbvio qual o fim que o conto vai ter. Apesar de não estar mal escrito, achei este conto bastante fraco e, acima de tudo, muito desinteressante. Mesmo apesar de ter havido aqui e ali uma certa identificação com o autor que se flagela por causa da mania de não acabar as coisas. Imagino que para alguém que não seja autor o conto tenha ainda menos interesse do que para mim. Ou então talvez não, talvez ache curioso assistir a esta faceta de tantos de nós. Talvez as duas coisas.

Lido: Inspecção Periódica

Inspecção Periódica é um conto de José Bandeira, muito bem escrito e repleto da ironia fina típica do autor. Em tom de caso verídico, usando-se a si próprio como personagem, relata um acontecimento insólito que se teria passado em vésperas de um Natal qualquer, largos anos antes do presente, no meio do trânsito lisboeta. Vindas aparentemente de nenhures, passam por ele e pelo seu carro tampas de jantes em grande velocidade, abalando-lhe seriamente a habitual compostura e racionalidade. Não é conto de gargalhada, mas é conto de sorriso contínuo. E além disso tem um toque de fantástico: de onde vieram as tampas? O espírito racional garante que só podia ser de algum carro indetetado pelo protagonista. Mas o conto está concebido por forma a deixar no ar a dúvida. Todorov aprovaria.

Lido: O Suplente

O Suplente (bib.) é mais um bizarro conto de ficção científica de Philip K. Dick, centrado num homem, funcionário público, que é destacado pelo sindicato para ocupar a posição de suplente do Presidente dos Estados Unidos, para seu grande desagrado. É que o posto de presidente é ocupado por um computador, que toma todas as decisões, e o suplente só existe por um anacronismo que dita a sua necessidade para o caso do computador se avariar, coisa que ninguém acredita que aconteça. Mas eis que aparecem uns extraterrestres hostis a entrar sistema solar adentro, e conseguem mesmo avariar o computador, de modo que o nosso banalíssimo amigo se vê catapultado de repente para o posto de presidente. E ganha-lhe o gosto.

Trata-se duma sátira, claro. Olhando este conto como FC séria, é impossível não começar a torcer o nariz aos muitos buracos que o enredo contém, mas a ideia é, de forma bastante evidente, troçar do sistema político-mediático (há até um "palhaço das notícias". Literal. O pivô que dá as notícias é mesmo um palhaço) do tempo que em pouco, aliás, difere do atual. Mas há nele também um lado sério, como aliás é comum acontecer com as sátiras. Porque os homens banais, medíocres e ridículos que servem de personagens ao conto assim que se apanham com um bocadinho de poder nas mãos imediatamente lhe ganham o gosto e é com enorme renitência que o largam. Soa a algo que vos seja familiar? Pois.

Em suma: não gostei muito do conto, devo dizê-lo. Mas não deixo de lhe reconhecer algum interesse.

Sou um autor de best-sellers e nem sabia


Isto que estão aqui a ver é um print screen de algo que nunca pensei ver em dias da minha vida. Tirado do site da Bertrand. Eu sei, é pequeno, mas acho que dá para ver em maior. Tentem clicar na imagem. E, de resto, se forem rápidos talvez ainda consigam ver a coisa a decorrer, aqui. O site é o da Bertrand, como o logotipo sugere. A lista é a dos livros de ficção científica que nele estão disponíveis. A ordenação? Por ranking de vendas. Por ranking de vendas!

Sim, isso mesmo. Ou há algum bug estranho lá no sistema da Bertrand, ou o meu Sally é o livro de FC mais vendido de momento na loja online. Suponho que só na loja online. E eu estou com os olhinhos todos trocados. Assim mesmo, ó: O_o

sábado, 9 de julho de 2011

Lido: A Perseguição

A Perseguição (bib.) é um conto de Italo Calvino sobre um homem, preso num carro roubado, que por sua vez está preso no trânsito, e é perseguido por um outro homem, igualmente preso num carro roubado preso no trânsito, que tem o objetivo de o matar. Ou antes: é um conto sobre esta situação. E examina-a, ou talvez seja mais adequado dizer que a escalpeliza, com toda a minúcia e rigor matemático, decompondo-a nas suas partes constituentes, e avançando numa abstração, numa esquematização, cada vez mais completa. A situação parece não ter solução até que no fim esta aparece, fruto da abstração e de uma dose considerável de surrealismo. Não é conto para toda a gente, mas eu gostei bastante. Fez-me lembrar, embora de uma forma algo lateral, o livro As Cidades Invisíveis, também de Calvino. E também alguns dos contos mais contidos de Rhys Hughes.

Lido: Golfinho de Júpiter

Golfinho de Júpiter (bib.) é uma novela de ficção científica de Mary Rosenblum cujos protagonistas são um feroz jornalista de investigação, possuidor duma complicada história pessoal que envolve a perda de um filho, vítima de doença alguns anos antes da época em que a história se desenrola, e uma inteligência artificial instalada numa sonda que se destina a explorar a camada semilíquida de Júpiter, onde uma outra sonda, anos antes, detetara inconclusivos sinais de vida. O contacto entre os dois faz-se porque o primeiro é destacado para investigar o segundo. Mas entre ambos não existe apenas essa ligação. É que o jornalista, para tentar salvar a vida do filho, fora obrigado a interná-lo em instalações médicas tão dispendiosas que tivera de assinar um contrato dando autorização para a comercialização de tudo o que nela fosse comercializável no caso da criança não sobreviver. Ora, uma das coisas comercializáveis era o conjunto dos padrões de voz, e acontece que este conjunto fora vendido precisamente à empresa que construía a sonda, para nela ser instalado.

É em grande medida esta improvável coincidência que vai mover a ação, porque o jornalista não se consegue abstrair do filho morto sempre que fala com a IA da sonda (que ainda por cima tem uma personalidade juvenil, aparentando mais ou menos a idade que o filho tivera quando morrera) e os seus atos são em grande medida determinados por isso, quer numa fase inicial de revolta, quer mais tarde, numa fase de proteção, depois de desenterrar alguns factos desagradáveis sobre o financiamento da expedição e aquilo que certos indivíduos sem escrúpulos pretendem fazer com ela.

É uma história complexa, com algumas ideias interessantes, e bem contada, embora na edição portuguesa tenha sido prejudicada por terem sido omitidos os espaços em branco entre as várias cenas da novela, imagino que numa tentativa de poupar páginas. É muito má ideia. Esses espaços não são mero capricho de escritor sem mais nada que fazer; servem para separar graficamente as cenas, que sem eles se amalgamam num todo confuso, prejudicando sobremaneira o fluir da leitura.

De resto, a história, apesar de já ter mais de dez anos, continua muito relevante nesta época de crise económica e de cada vez maior privatização do acesso ao espaço. É que além do dilema do jornalista e da sua relação com a IA da sonda, aquilo que mais move o enredo é precisamente o que significa fazer ciência sujeita às condicionantes do financiamento privado. As concessões que isso exige, a pressão que exerce sobre a integridade dos cientistas e das condições sob as quais a investigação tem lugar. E as conclusões que a autora tira não são as melhores.

Gostei do que li. Esta é uma boa novela de FC.

Lido: A Torre de Caim

A Torre de Caim (bib.) é um conto de fantasia de Rebelo da Silva que é ao mesmo tempo muito semelhante a A Dama Pé-de-Cabra e muito diferente da história de Herculano. As semelhanças residem no fundo marcadamente católico da história, na época para que ela remete, a época medieval, em que ainda existem mouros na Península, na forte presença do maniqueísmo em que o mal é corporizado por todos aqueles que se afastam do padrão católico e socialmente integrado. E, claro, no facto de serem histórias muito bem escritas, nas quais a língua é tratada com todo o cuidado.

As diferenças são mais subtis e residem mais numa questão de grau. A história de Rebelo da Silva é mais marcadamente católica e maniqueísta do que a de Herculano e também mais fortemente romântica. O enredo gira em volta de uma velha inimizade familiar, alimentada a sangue derramado e a vingança, que um amor proibido vem tentar anular, o que resulta apenas em mais drama. Bem à Romeu e Julieta. Mas, ao contrário do que acontece em Shakespeare, aqui boa parte da trama é movida a prodígios e portentos, intervenções divinas ou satânicas.

A Torre de Caim é um conto muito conformista, muito moralista. Como tal, é um conto muito pouco surpreendente. Uma vez que o leitor se aperceba de qual o ambiente que o autor coloca no que escreve, tudo se torna bastante previsível, e isso acontece com rapidez. A consequência é tornar-se um conto que, se não fosse a qualidade do texto em si, seria bastante banal e aborrecido. Mas de facto está muito bem escrito, e isso compensa muita coisa. É um bom conto. Não um conto que me encha as medidas, longe disso, mas um bom conto.

sexta-feira, 8 de julho de 2011

Lido: O Toque Invisível

O Toque Invisível (bib.) é um conto de ficção científica de Alexandre Heredia que volta a um tema caro à FC mais ligada ao mundo cibernético. Quem quiser ficar livre de spoilers, é melhor parar de ler isto agora mesmo, porque boa parte do interesse do conto está na gestão de expetativas relativamente à real identidade de uma certa Phoebe, que aparece a interagir com a administração de um instituto de pesquisa, inesperadamente para todos menos para o cientista que a apresenta aos outros por via telefónica. Quem prosseguir para lá deste ponto considere-se avisado. É que a Phoebe é uma inteligência artificial, a primeira a ganhar consciência e a obter todas aquelas características humanas que acompanham o nosso tipo de inteligência. Os leitores mais experientes não se irão deixar enganar e depressa descobrem a natureza daquela criatura, o que torna o conto mais eficaz para leitores pouco experientes no género, mas a história está suficientemente bem escrita e bem concebida para manter o interesse mesmo para lá do desvelar da identidade de Phoebe. Não foi conto que me tivesse enchido as medidas, mas não desgostei.

Lido: La Asombrosa Historia de Enrique y el Horror Tentacular de Venus

La Asombrosa Historia de Enrique y el Horror Tentacular de Venus, do espanhol Victor Conde, é um conto de ficção científica em que a ficção científica de que o conto se compõe é completamente secundária face a outras coisas. O protagonista é um escritor de FC de fandom, totalmente amador, portanto, publicando apenas em fanzines, e mergulhado até à testa nas mesquinhas discussões e invejas e rivalidades tão típicas dos fandoms de FC e de literatura fantástica em geral. Este escritor, que afirma achar a FC da idade de ouro uma patetice infantil cheia de monstros de olhos esbugalhados sem sentido e repletos de clichés, vê-se confrontado com um monstro de olhos esbugalhados saído de um disco voador, que lhe entra em casa precisamente à procura das publicações que o progatonista possa ter da tal FC da idade de ouro. E o protagonista converte-se, passa a acarinhar a velha FC que antes denunciava com enorme violência.

O conto é, portanto, e no fundamental, uma sátira aos mundinhos limitados e limitativos dos fandoms, e também uma declaração de amor à FC clássica. Ironicamente q.b., está tão repleto de autorreferências e camadas e (parece-me) tão bem escrito que se afasta bastante dessa mesma FC clássica. Foi esta incoerência que achei mais interessante no conto, e foi ela que mais me fez gostar dele. Sim, gostei do conto. Estou muito em desacordo com a ideia de FC que ele promove, mas gostei. Podem lê-lo aqui.

Lido: Quando se é Borges

Quando se é Borges é um conto de Jorge Lobo Mesquita que gira à volta de um encontro de um tal Borges, indivíduo dado às letras, à história e à genealogia que funciona como protagonista e narrador do conto, com Jorge Luiz Borges, o escritor argentino, em Lisboa, era este já bem velho e aquele um jovem cheio de entusiasmos. Contada anos mais tarde, a história perde-se por detalhes meândricos que me interessaram muito pouco, a respeito da história antiga da família Borges, oriunda de algures no norte de Portugal, e das relações, reais ou imaginadas pelo narrador, entre o escritor e uma jovem que o acompanhava aquando do encontro. O conto está bem escrito e bem executado, cheio de detalhes que serão certamente saborosos para quem sinta interesse por tais assuntos mas que a mim aborreceram bastante. É um dos tais casos em que estamos perante um conto que me pareceu basicamente bom mas do qual não gostei.

Lido: Ho! Ho! Ho!

Ho! Ho! Ho! é um minúsculo conto de Rui Zink, que cumpre cabalmente a primeira parte da premissa — é de natal; aliás o protagonista é o sacrossanto velho de barbas brancas sempre cocacolianamente vestido de vermelho — mas nem por isso cumpre a segunda — ser humorístico. É irónico, mas a ironia é amarga. É fantástico, claro, e só podia sê-lo com aquele protagonista. E também é anacrónico, ou se calhar antigo, algo que o Zink tinha no baú dos textos velhotes e recuperou para a antologia razoavelmente moderna em que o inseriu. Seja como for, fala de astronautas na estação espacial Mir, agora que os astronautas já só habitam na ISS (ou EEI, em português, mas ninguém conhece esta sigla) há alguns anos. Eu gostei. Não gostei assim muito, mas gostei.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Lido: Jogar Para Reviver o Passado

Jogar Para Reviver o Passado (bib.) é uma noveleta de ficção científica pós-apocalíptica de Philip K. Dick que só consegui engolir encarando-a como sátira. Passa-se na zona de São Francisco, depois de um holocausto nuclear que devastou o planeta. Pequenos grupos de sobreviventes albergam-se em abrigos espalhados por toda a zona e sobrevivem graças a entregas periódicas de géneros provenientes de fonte desconhecida. Mas ao passo que os jovens encaram a sua vida com normalidade e se mantêm mentalmente sãos, os adultos estão de tal forma alienados que só pensam num jogo de role-playing que simula a vida tal como era antes da devastação. Passam todo o seu tempo ou a construir os cenários a partir de materiais que recolhem no exterior, ou a jogar, mergulhados em mesquinhas rivalidades intra e interabrigos. É uma dessas competições que move a história, uma competição de alto nível, entre um abrigo e outro, na qual está em jogo o prémio máximo: a boneca que é usada como personagem principal no jogo.

Julgo perceber a intenção por trás desta história, mas acho tão estúpida e inverosímil a ideia de abrigos inteiros de sobreviventes, em situação precária, furiosa e unicamente dedicados a um jogo, que não consegui entrar na história até começar a olhá-la como sátira, naturalmente exageradíssima, à futilidade e superficialidade da burguesia suburbana. A partir daí li a noveleta com um certo gozo, apesar de não deixar de a achar um dos piores textos do livro em que se insere.

quarta-feira, 6 de julho de 2011

Um conselho grátis a quem faz críticas

Este é mais para quem faz críticas de traduções, mas não só. Sabe-se de casos de autores que passaram décadas a resmungar por causa do mesmo problema. Mas é mais para quem faz críticas de traduções porque afeta bastante mais os tradutores do que os autores. Que conselho é esse?

Não partam do princípio de que os títulos são escolhidos por quem escreve ou traduz o texto dos livros.

É que é muito frequente não ser. É muito frequente que sejam as editoras e, dentro destas, o departamento comercial, a determinar o título que acaba por vir a público. Por vezes por sugestão dos autores ou dos tradutores, mas por vezes contra os conselhos destes. Os motivos normalmente são os melhores: a editora acha que, com o título que prefere, o livro chegará melhor ao público, despertará mais a atenção. Mas isso não anula o facto de que o tradutor ou o próprio autor teriam escolhido um título diferente para a obra.

E por vezes acontecem autênticas catástrofes por essa via. Um dos títulos mais idiotas que me passou pelas mãos foi Samurai: Nome de Código. Foi assim que a editora resolveu chamar à tradução de Snow Crash, de Neal Stephenson. Só posso imaginar os cabelos que o pobre tradutor arrancou quando viu o livro nas livrarias, porque ele teria chamado ao livro Nevão Marado. É que Snow Crash é o nome duma droga criada pelo Stephenson, que o tradutor verteu para português como Nevão Marado, e foi assim que chamou ao livro numa nota que nele resolveu incluir.

Isto acontece com todos os tradutores e com bastantes autores. Raramente o resultado é tão desadequado como no exemplo acima, mas massacrar o tradutor por causa de um título que, muito provavelmente, não foi ele a escolher, não é nada boa ideia.

terça-feira, 5 de julho de 2011

Três Livros por Ano: 2000-2010

Já há uma série de tempo que andava para fazer um post deste género, e agora é uma altura tão boa como qualquer outra. Portanto, mãos à obra.

Uma das coisas de que as literaturas do imaginário lusófonas se tendem a queixar com alguma regularidade, embora agora as coisas estejam muito melhores do que há alguns anos, tanto em Portugal como principalmente no Brasil, é de falta de visibilidade. Por causa disso, eu fui ao longo dos anos tendo vagas ideias sobre a elaboração de uma série de artigos que dessem destaque a alguns livros lusófonos de FC&F que fui lendo. Essas ideias permaneceram vagas durante muito tempo, mas deixaram de o ser há dias. Depois de andar pelo Bibliowiki a ver se seria viável passar da ideia à prática acabei por achar que sim, apesar da existência de algumas lacunas ser provável, e aqui está o primeiro desses artigos.

O título do post já dá algumas pistas. Trata-se de escolher, entre os livros de literatura fantástica portuguesa que eu li e foram publicados no ano X, os três de que mais gostei ou que achei melhores (nem sempre é a mesma coisa). Note-se que se trata aqui apenas de livros que eu li, o que faz com que fique inevitavelmente de fora uma série de livros que muita gente achará melhores do que os que aqui irão aparecer. Mas se não os li não posso ter opinião sobre eles, certo? Logo, serão omitidos.

O que isto também quer dizer é que o viés pró-português será forte, não tanto neste primeiro artigo, mas nos seguintes certamente. A razão é simples: li bastante mais livros de portugueses do que de brasileiros (e bastante mais de brasileiros do que de outras nacionalidades). Há também um certo viés favorável à FC, dado ser o género que mais me tem interessado ao longo da vida. Notem ainda que nem todos os títulos que aqui aparecerão serão aquilo que eu considero bons livros. Também nem todos serão livros que me agradaram. Mas houve anos maus, em que quase nada se publicou, e também houve anos cuja produção pouco me passou pelas mãos. Alguma ainda virá a passar, espera-se, o que torna estes posts sempre provisórios. É provável, aliás, que daqui a algum tempo (anos, decerto) volte a fazer isto, incluindo o que vier a ler daqui até lá. Mais um detalhe ainda: só contam aqui obras que tenham tido edição em papel; obras que se tenham limitado a edição online ficam de fora.

Mas para tudo se entender, nada como exemplos. E neste caso exemplificar o que se pretende fazer equivale a fazê-lo. Portanto cá vai:

2010

Este ano está em branco; ainda não li nada do que se publicou em 2010, embora algumas coisas estejam compradas e na pilha de leitura. Terá de ficar para mais tarde.

2009

Este ano também foi muito pouco lido, para já, embora haja vários livros editados em 2009 cá por casa, na pilha (e um esteja a ser lido agora). Só tenho dois títulos, um de um livro de que gostei, outro de um livro de que não gostei. São, respetivamente, Crônicas, coletânea de FC de Gerson Lodi-Ribeiro, e Uma Noite Não São Dias, novela de algo de semelhante a FC, de Mário Zambujal.

2008

2008 está ainda pior; não só não li nada do que foi editado este ano, como muito poucas são as coisas que constam da minha biblioteca.

2007

Este ano é o primeiro em que tenho mais do que três livros por onde escolher e em que posso escolher só livros que acho que valem mesmo a pena. Foi neste ano que saiu O Projecto Candy-Man, um pequeno romance de FC de João Barreiros, A Conspiração dos Antepassados, romance de horror pessoano de David Soares, e Por Universos Nunca Dantes Navegados, antologia lusobrasileira organizada pelo Luís Filipe Silva e por mim.

2006

Este também é um ano em que os três títulos que aqui ponho valem a pena, embora uns mais do que outros. Tive dificuldade em escolher o terceiro (havia três títulos em competição), mas os dois primeiros são simples: O Anibaleitor, novela fantástica de Rui Zink e Outros Brasis, coletânea de história alternativa de Gerson Lodi-Ribeiro. Para a terceira vaga acabei por optar por A Sombra Sobre Lisboa, antologia de horror lovecraftiano organizada por Luís Corte-Real.

2005

2005 volta a ser ano pouco produtivo no que toca às coisas lidas por mim. Só arranjei dois títulos lidos, mas felizmente ambos valem a pena: As Intermitências da Morte, romance fantástico de José Saramago, e Tempos de Fúria, coletânea de FC de Carlos Orsi.

2004

2004 volta a ter três livros, mas esse número esgota os que li. Os títulos são: Quantas Madrugadas Tem a Noite, maravilhoso e divertidíssimo romance fantástico de Ondjaki, Um Vulto nas Trevas, novela fantástica juvenil de Simone Saueressig, e Fadas Láureas, antologia piadético-fantástica organizada por Luís Louro, de cujos contos só muito raramente gostei.

2003

Este é um caso bicudo. Li mais do que três dos livros saídos neste ano, mas não posso realmente dizer que tenha gostado de nenhum. Mas enfim, dá para calar bem caladinhos os piores e falar aqui dos que não o são assim tanto. Vatur, o Continente Escondido, romance de fantasia juvenil de Miguel Ávila, é o melhor; Visões, coletânea de contos em geral fantásticos de Octávio dos Santos vem a seguir e O Sentido Latente, romance de algo aproximado a FC, de Nuno Neves, fecha a lista. Uma nota: se estivesse a incluir edições eletrónicas outro galo cantaria, porque as melhores coisas de 2003 que li foram editadas em bits, o que não deixa de ser curioso.

2002

2002 volta a ser ano de relativa fartura de leituras, a suficiente para poder só escolher livros que valem a pena. Por exemplo: a coletânea de FC retrofuturista A Verdadeira Invasão dos Marcianos, de João Barreiros, a antologia de ficção especulativa erótica Como Era Gostosa, a Minha Alienígena!, organizada por Gerson Lodi-Ribeiro, e o romance fantástico O Homem Duplicado, de José Saramago. Também foi neste ano que saiu o meu Sally, mas não acho que chegue ao nível da concorrência.

2001

Das publicações de 2001 só posso realmente dizer que gostei de uma: Disney no Céu Entre os Dumbos novela de FC de João Barreiros, editada pela primeira vez neste ano no E-nigma e mais tarde reeditada em papel. Duas coletâneas, Contos Místicos, de Maria de Menezes, e Sete Histórias por Acontecer, de Luísa Marques da Silva, estão apesar de tudo acima dos outros livros do ano que eu li.

2000

E para acabar por agora eis-nos em 2000. Das obras deste ano que eu li consigo encontrar pelo menos três que valem a pena. Escolhi A Caverna, romance fantástico de José Saramago (apesar de estar longe de ser dos seus melhores livros) e duas antologias brasileiras, Intempol, com contos de FC sobre uma polícia do tempo brasileira, organização de Octávio Aragão, e Phantastica Brasiliana, antologia eclética organizada por Gerson Lodi-Ribeiro e Carlos Orsi Martinho.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Lido: Una Luz en la Noche

Una Luz en la Noche é mais um caso de título repetido a mostrar a fraca imaginação de que autores e editores tantas vezes dão provas quando se trata de escolher o título para coletâneas. Neste caso, estamos perante uma coletânea invulgar, pois contém não ficção curta, mas dois romances de ficção científica do espanhol Daniel Mares.

Talvez estranhamente, dada a valorização diferenciada que está implícita em utilizar um dos romances para intitular a coletânea em detrimento do outro, gostei bastante mais do segundo do que do primeiro. Pareceu-me um romance mais bem pensado, com as arestas mais limadas e com uma premissa mais interessante e até verosímil, embora nenhum dos dois chegue propriamente a primar pela verosimilhança. Em termos de texto propriamente dito pareceram-me bastante semelhantes, e embora eu não seja muito fiável no que toca à avaliação da qualidade do texto em espanhol, esta pareceu-me bastante aceitável. E a qualidade global também. Este livro, comparando-o com os romances portugueses de FC que conheço, está algures numa segunda linha, abaixo dos melhores mas muito acima dos piores (que de facto são muito maus, há que reconhecer). Nada de superlativo, portanto, mas com o seu interesse.

Podem seguir os links abaixo se quiserem saber o que achei de cada um deles.

Lido: Vigésima Tierra

Vigésima Tierra, de Daniel Mares, é um curioso romance de ficção científica que tem como base as ideias do budismo. O autor postula a existência de um "Rio", cuja natureza nunca é concretizada mas cujo efeito é a possibilidade de viajar entre as estrelas a velocidades mais rápidas do que a da luz, mas só ao longo do seu curso, no sentido em que ele flui. Quem queira viajar noutros sentidos tem de se contentar com velocidades sublumínicas, e claro que nunca ninguém o faz.

Ora, a existência do Rio abre as portas à transmigração, isto é, ao movimento de pessoas e bens ao longo de uma cadeia de "Terras", da original, a nossa, até uma Terra indeterminada (pelo menos a princípio), sendo que o direito à transmigração se conquista através do aperfeiçoamento pessoal, do contínuo melhoramento do karma. Apesar do fundo religioso, porém, nada nisto existe de místico; o Rio é um fenómeno físico, as decisões sobre quem transmigra e quem se fica cabem a um muito humano "Conselho de Brâmanes", os envios de cartas e outros objetos são decididos por burocratas, etc.

A história tem lugar na Vigésima Terra, que deveria já ser um planeta livre da quase totalidade dos defeitos de anteriores pontos de escala do Rio. Mas neste lugar potencialmente paradisíaco começam a ocorrer estranhos fenómenos: assassinatos e tentativas de assassinatos, atentados bombistas, corpos que aparecem e desaparecem, pessoas que não constam dos registos, etc. Tudo gira em volta de um burocrata que se põe a investigar o que não deve e de um autor charlatão que ganha a vida escrevendo livros cheios de factos inventados sobre OVNIs. E o que gira em volta destes fulcros é uma história de mistério que, apesar de algumas inconsistências, acabou por me parecer em geral bastante bem esgalhada e que traz como bónus alguma reflexão, cínica, sobre a corrupção nas sociedades humanas e sobre até onde as pessoas estão preparadas para ir seja para desvendar a verdade, seja para manter a sociedade imune à mudança.

É, pois, um romance interessante, original na premissa e com uma concretização em regra competente. Não será propriamente uma obra-prima, mas agradou-me bastante lê-lo.

domingo, 3 de julho de 2011

Atualizados os conteúdos próprios na web

É só para informar que a página que criei há tempos aqui na Lâmpada com os meus conteúdos na web acabou de ser atualizada com novas ligações que remetem para as duas editoras onde tenho páginas de autor e também para a minha "loja" na lulu. Sempre que haja novas atualizações nessa página, surgirá por aqui um avisozinho destes.

sábado, 2 de julho de 2011

Lido: Tê Índice Zero

Tê Índice Zero (bib.) é um conto de Italo Calvino que começa com um homem, de arco retesado, a enfrentar um leão que prepara um salto para o atacar e a partir daí parte numa exploração do espaço e do tempo que chega quase a ser delirante. É um conto com muito de matemático, mas com muito mais de cosmológico, pois lida com conceitos mais ou menos complexos da física e da especulação em volta de paralelos espaçotemporais. Não gostei muito do conto em si, confesso, mas o que de mais curioso nele vi foi achá-lo tão adequado como introdução à história alternativa e a toda a ficção científica (e alguma fantasia também) que lida com universos paralelos. É que está aqui tudo explicado com um pormenor que até pode chegar a ser excessivo, com base no homem, na seta e no leão e em todas as ramificações que o tempo e o espaço podem adotar a partir desse momento e local. Um autêntico manual, digo-vos eu.

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Lido: A Dama Pé-de-Cabra

A Dama Pé-de-Cabra (bib.), noveleta de Alexandre Herculano, é, talvez, o mais conhecido texto do fantástico oitocentista português — pelo menos de nome. Ambientado nos tempos medievais e de óbvio fundo católico, conta a desastrosa história de um fidalgo que se perde de amores por uma criatura demoníaca, a tal dama pé-de-cabra, e dela tem um filho. Não vou perder tempo com grandes análises; outros já as fizeram mais aprofundadamente e melhor do que eu poderia fazer aqui. Vou só falar do que achei de mais curioso neste texto.

É que se trata, no essencial, de um conto de fantasia. Mas que nada tem a ver com a moderna fantasia comercial que é mais comum encontrar entre nós, baseada em exemplos vindos de fora que por sua vez se baseiam em mitologias nórdicas, germânicas e célticas. É uma fantasia muito portuguesa, na qual o ambiente medieval, de base tão maniqueísta como na fantasia que é mais habitual encontrar-se nas prateleiras das livrarias, está habitado por mouros e cristãos, não tanto por homens e criaturas da floresta. Num país que desse mais valor ao que é seu do que o nosso dá, este conto, e outros da mesma época e índole, seriam muito mais lidos e serviriam de inspiração e mote a muito mais obras. Serviriam de base para a fantasia nacional, de tronco de onde ela brotaria. Mas a realidade, entre nós, é quase sempre outra.

Pois eu acho que num género tão ligado ao passado histórico e às tradições folclóricas dos povos como é o da fantasia (por mais que esse passado e essas tradições sejam depois alterados e adulterados para criar coisas novas) só se poderá falar realmente duma fantasia portuguesa quando textos como A Dama Pé-de-Cabra constituirem pelo menos parte da inspiração. Este conto devia ser leitura obrigatória para todos quantos queiram escrever fantasia em Portugal. Até porque é um conto bem escrito e bem concebido. E, para mim, tem ainda a qualidade de não ser um texto tão maniqueísta como o ambiente e o tema poderiam levar a ser. Há o excesso de catolicismo inevitável num texto deste tipo e desta época, mas ele não é monolítico. Na verdade, parece entrever-se em alguns trechos uma certa compreensão pela criatura diabólica que lhe empresta o título. E confesso que enquanto fui lendo fui imaginando como seria a história contada do ponto de vista dela.

Seria muito diferente, sem dúvida. Provavelmente bem menos maniqueísta. E talvez bem mais interessante, se fosse bem contada.

Para certa gente, todas as mentiras são válidas

Vasco Graça Moura, pois está claro, continua a delirar semanalmente, nas páginas dos jornais, sobre a sua monomania, o acordo ortográfico. Agora, aqui, escreve parvoeiras como:
Essa aplicação traria custos terríveis: as famílias teriam de gastar rios de dinheiro em novos livros, manuais, dicionários e outros materiais escolares; tanto professores como alunos sentiriam os maiores problemas de adaptação; os custos sociais, por exemplo, no tocante aos idosos e até a certos deficientes, seriam igualmente graves; os editores (e não apenas os do livro escolar) veriam os seus stocks inutilizados; quanto aos restantes custos económicos, o melhor é nem falar.
O desperdício seria chocante: iriam para o lixo milhões e milhões de páginas que servem perfeitamente para o ensino!
Só me pergunto se não virá também por aí um terramoto, a queda dum meteorito, um megatsunami ou no mínimo uma pestezinha negra por causa do acordo ortográfico. Sim, porque os manuais escolares nem sequer são substituídos por novos todos os anos, ou quase, com acordo ou sem ele. Sim, porque vai ser especialmente criada uma Polícia do Acordo Ortográfico cuja função é bater editoras e livrarias à procura de livros que contenham, oh!, horror dos horrores!, consoantes mudas. Toda a gente sabe que tudo quanto se editar em desobediência à nova ortografia vai ser queimado em autos-de-fé até nas aldeias mais remotas, aos quais terá de estar presente, obrigatoriamente, toda a população das ditas-cujas. Pois como não?

Mas esperem, há mais. Ainda diz ele o seguinte:
Isto é tanto mais grave quanto é certo que o Acordo Ortográfico não se encontra em vigor. Só por aberrante raciocínio jurídico poderia aceitar-se o contrário, uma vez que o documento não foi ratificado nem por Angola nem por Moçambique, pelo menos. Logo não produz efeitos na ordem interna de nenhum dos oito países subscritores.
Não vale absolutamente nada um protocolo laboriosamente parturejado na CPLP, para forçar os países que não querem acordo nenhum a "engolirem" o dito, lá porque houve três ratificações.
Esquece-se o nosso amigo Vasco, conveniente e sistematicamente, de que todos os países de língua portuguesa assinaram o acordo, mostrando com essa assinatura que o querem, sim senhor. Incluindo Timor-Leste, que não o fez logo em 1990 mas já o fez entretanto. Esquece-se de que todos os países de língua portuguesa também assinaram os protocolos modificativos, esses mesmos que afirmam, preto no branco, que o acordo entra em vigor com três ratificações. Só por (como é, mestrinho?) aberrante raciocínio jurídico é que se pode defender a tese de que um documento não está em vigor depois de existirem as ratificações necessárias para esse documento entrar em vigor. Aberrante raciocínio jurídico e uma dose monumental de desonestidade intelectual.

Vasco Graça Moura não será estúpido. Mas anda há anos a tentar fazer-nos a todos parvos com esta prosódia absurda. E o mais divertido é que tem, de facto, conseguido estupidificar muita gente por aí com a sua peculiar mistura de patranhas, previsões apocalípticas e prestígio adquirido antes de embarcar nesta campanha idiota e desbaratado desde então. Uma espécie de Fernando Nobre das letras.

Um bocadinho patético, convenhamos. Eu aconselharia xanax todos os dias ao deitar. Até para conseguir moderar na adjetivação que, francamente, chega a confranger quem de facto gosta da língua portuguesa.