sexta-feira, 30 de novembro de 2018

Lido: A Corte do Ar

Há livros que têm tudo para dar certo. Um cenário imaginativo, personagens com potencial, uma história igualmente cheia de potencialidades, por aí fora. Basta arranjar um bom fio condutor, juntar as peças num todo coerente, descobrir a dimensão certa para esse todo melhor fazer sentido (conto? romance? série?) e escrever. Escrever bem.

Há livros que têm tudo para dar certo e dão. Outros, talvez em maior número, têm tudo para dar certo e apesar disso não dão. Há qualquer coisa que falha, por vezes várias qualquer-coisas, e o resultado fica aquém, por vezes muito aquém, das potencialidades que teria à partida. E quando isso acontece, o sabor a potencial desperdíçado que fica ao terminar a leitura é francamente desagradável.

A Corte do Ar (bibliografia) tinha tudo para dar certo. Uma sociedade complexa onde coexistem, com pessoas aparentemente iguais a qualquer de nós, criaturas diversificadas, incluindo uma espécie de caranguejos inteligentes e grandes robôs movidos aparentemente a vapor; vários países, cada um com a sua própria organização política e social, umas mais absurdas que outras, umas mais semelhantes que outras a caricaturas de sistemas políticos vindos direitinhos do mundo real, e dentro deles fações diversas; uma tensão subjacente que vai cresscendo à medida que os interesses e propósitos de um verdadeiro exército de personagens vão chocando, e por aí fora. Em suma, uma ambientação rica e imaginativa.

Este livro de Stephen Hunt tinha tudo para dar certo. A verdade, porém, é que não dá.

Porquê? Por vários motivos, mas sobretudo por questões relacionadas com o enredo e com a escrita propriamente dita.

O enredo tem vários problemas. O principal, a meu ver, é contrastar sobremaneira com o caráter imaginativo da ambientação. Por um lado é, na sua essência, demasiado simples: dois jovens que não se conhecem são perseguidos ao longo de meio mundo por serem especiais, o que vai sendo deixado claro aos poucos. Apesar das peripécias, a história é absolutamente previsível, pois é claro desde o início que os dois vão acabar por se encontrar e vão ser fulcrais para um enfrentamento final mais ou menos apocalíptico. E as peripécias são demasiadas vezes desleixadas, pois Hunt usa e abusa do famigerado deus ex-machina sempre que se mete nalgum assado de que não sabe bem como sair. A impressão geral que fica é de um enredo construído um pouco em cima do joelho, deficientemente pensado e pior planeado.

A escrita tem problemas que a meu ver são piores. Nos diálogos, sobretudo, Hunt usa um tom de tal forma artificial que chega a tornar o texto quase insuportável. As personagens não conversam: discursam. Não dizem coisas: soltam diatribes. É possível que em parte isso seja uma tentativa de tornar o texto mais próximo de um certo tom vitoriano em voga entre uma parte dos escritores que se dedicam ao steampunk, mas a verdade é que não resulta (e a tradução não ajuda): o resultado, longe de ser evocativo, é extraordinariamente maçador o que, num livro com mais de 500 páginas, é fatal.

Tudo somado, este foi um livro custoso de se ler. Como sou teimoso e não gosto de deixar livros a meio (é preciso serem mesmo muito maus) cheguei até ao fim, mas foram várias as ocasiões em que pensei que se calhar me estava a apetecer ler qualquer coisa e, quando olhava para ele, ou desistia ou me punha a ler contos em outros livros. Não o posso considerar mau porque a ambientação é rica o suficiente para lhe dar um certo encanto, mas sem dúvida digo que o achei francamente aborrecido e em parte por isso demorei longos meses a acabá-lo (e também me atrasou outras leituras; foram mais as vezes que perdi as ideias de ler do que aquelas em que me lancei aos contos). A palavra mais correta para o descrever é, suponho, insatisfatório.

Este livro foi comprado.

Lido: O Preço dos Ovos

O Preço dos Ovos é das pouquíssimas histórias incluídas neste livro de Adolfo Coelho que têm todo o ar de caso acontecido, mesmo que possivelmente alterado com o passar dos anos e a sucessão de contadores (quem conta um conto acrescenta-lhe um ponto, e coiso e tal).

Fala de uma dívida, de um credor que se tentou aproveitar da dívida para obter aquilo a que não tinha direito, e da forma astuta como o devedor se livrou da ameaça que sobre ele pairava. Tudo sem magias, intervenções divinas ou coisas do género. Tudo em plano realista. E tudo a ressoar a coisa não só possível, não só acontecida, mas bem conhecida. Afinal, dívidas e credores a tentar aproveitar-se das dívidas para obter aquilo a que não têm direito são o pão-nosso de cada dia na vida das nações.

Esta é, pois, uma história que pese embora a sua ambientação rural e antiga facilmente se adapta aos dias de hoje e que facilmente reconhecemos. Uma história interessante, apesar de eu preferir quando elas trazem consigo algo fora do comezinho quotidiano.

Contos anteriores deste livro:

quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Lido: A Cartola Mágica

A Cartola Mágica é o último dos minicontos que Carina Portugal preferiu aglomerar num conjunto de minificções. E é mais um conto humorístico não particularmente bem sucedido, embora desta vez não seja o título a estragar o conjunto.

O protagonista é um mágico que, como a história é de fantasia, tem mesmo poderes. Mas mesmo assim o truque de magia corre mal (já agora, se o mágico tem mesmo poderes, faz "truques" porquê? Não devia fazer magia propriamente dita?) à conta de um coelho caprichoso e de umas quantas palavras impensadas, proferidas no calor da irritação, mas cheias de consequências. Porque, lá está, o mágico tem poderes.

Percebe-se que a ideia básica desta história é mostrar, de forma divertida, como aquilo que se diz impensadamente tem consequências. Mas o tamanho do conto não se adequa bem à abordagem seguida e ao que se quer com ele dizer. Precisava de mais espaço, no mínimo o dobro, provavelmente mais, para construir alguma tensão e depois rebentá-la com alguma punchline eficaz. Mas não tem nada disso, e portanto fica-se pela ideia e pouco mais. Não é mau, atenção. É... chocho.

Textos anteriores deste livro:

Lido: Pulp Feek, nº 2

Em março deste ano falei (muito atrasado) da opinião com que fiquei após a leitura do número 1 da Pulp Feek, e muito do que aí digo aplica-se também e esta Pulp Feek nº 2. Em particular, o que digo sobre a ideia geral do periódico, sobre a ideia de serializar quase todo o conteúdo e sobre a abordagem pulp. Nesse mesmo post prometo também para o número dois um desenvolvimento maior da ideia da publicação e, como o prometido é devido, aqui está ele.

Quando falei do nº 1 disse que a ideia base desta publicação era, por um lado, abordar as histórias de uma forma pulp e, por outro, publicá-las maioritariamente de forma serializada. Acrescentei que havia ainda um terceiro elemento, pois o comentário ao número 1 não era suficiente para que este elemento se percebesse sem grandes explicações adicionais. Agora, se vos disser que o número 1 contém apenas histórias de fantasia épica e espada e magia, ao passo que este só contém histórias de ficção científica, já se torna simples: cada número é especializado no género que cobre.

E isso tem como consequência que a serialização, que noutra publicação qualquer se faz em números consecutivos, aqui não. Para se ler a sequência da história x é necessário esperar até ao número seguinte dedicado ao género da história x, o que torna a demora muito maior e exacerba todos os defeitos da ideia de serializar ficção. Se a ideia de subdividir uma publicação periódica em edições especializadas não é necessariamente má, a ideia de o fazer numa publicação que coloca um foco grande na serialização da ficção é péssima.

Consequentemente, claro que não vou comentar os dois inícios de contos que aqui se encontram, além de dizer que o primeiro, do Alaor Rocha, é prometedor, pois a qualidade da escrita, pelo menos, parece estar vários degraus acima dos outros textos que li até agora (parcial ou completamente) nesta publicação. Na verdade, os textos de ficção pareceram-me em geral mais interessantes do que os do número 1. Mas lá está: dois deles, sendo apenas inícios, pouco contam para as contas globais. E como em sentido inverso os artigos me pareceram mais fracos do que os do primeiro número, a apreciação geral deste número não é boa. Também não é má, propriamente, mas...

Eis o que achei do único conto completo desta edição:
Esta publicação esteve disponível gratuitamente online, aqui, mas parece já não ser possível encontrá-la.

quarta-feira, 28 de novembro de 2018

Lido: O Robô que Desenha Monstros

E de repente, eis que Luiz Bras se deixa de hibridismos e apresenta um conto (bastante longo para este livro, com as suas três páginas completas) de pura ficção científica. O título, O Robô que Desenha Monstros, já o deixava adivinhar, mas o texto mesmo assim é surpreendente: é que este conto não é apenas FC, é FC hard.

Fala de robôs replicantes e da sua evolução, pois no universo criado neste conto cada geração de robôs constrói a geração seguinte, aperfeiçoando-a. O resultado é ao mesmo tempo surpreendente e absolutamente lógico. Mas, e isto é curioso, não é tão ameaçador do que se poderia supor (e do que é hábito neste tipo de ficções científicas em que a tecnologia foge ao controlo humano). A ameaça existe, mas é razoavelmente benigna, como se, no fundo, os robôs ultrassofisticados das sucessivas gerações desejassem apenas o que qualquer adolescente quer. Expressar-se. Ser relevantes. Os robôs de Bras, no fundo, são filhos da humanidade e é como filhos rebeldes que agem, contestando o status quo mas sem qualquer desejo real de destruir os pais e as obras destes. E é isso o que torna este conto muito curioso. Muito curioso mesmo.

Textos anteriores deste livro:

terça-feira, 27 de novembro de 2018

Lido: O(s) Fantasma(s) de Fernando Pessoa em O Ano da Morte de Ricardo Reis

Parte das minhas leituras, que raramente ou nunca registo ou comento em lado nenhum por achar que me falta capacidade técnica para tal, compõe-se de artigos e teses sobre temas variados que me despertam a curiosidade. Astronomia, planetologia, biologia, literatura, linguística, por aí fora. Normalmente são coisas que encontro enquanto procuro outras coisas na internet (é frequente fazer buscas tanto para obter informação necessária às minhas traduções, quanto para coisas extra-trabalho, como o Bibliowiki ou a minha ficção — essa raridade), me fazem arrebitar as orelhas e guardo para ler mais tarde, e tenho-me farto de aprender coisas assim, mesmo que a maior parte da informação tenha uma certa tendência a passar-me bem alto por cima da cabeça, em especial quando o tema é mais esotérico (a linguística e as várias variantes da astronomia, em especial, são especialistas em fazer-me sentir ignorante).

Mas cheguei há pouco tempo à conclusão de que não preciso de grande capacidade técnica para fazer apreciações superficiais sobre algumas dessas coisas. Não é necessário ter grande capacidade técnica para apresentar a tese x e dizer que ela se debruça sobre a coisa y e me interessou pelos motivos a, b ou c. E não só não é necessário ter grande capacidade técnica para fazer isso, como é inteiramente possível que esse tipo de opinião seja útil a alguém com interesses semelhantes. Talvez seja demasiado estar a fazer isso com artigos, salvo algumas exceções particularmente relevantes ou interessantes, mas coisas maiores? Porque não?

Entram na conversa O(s) Fantasma(s) de Fernando Pessoa em O Ano da Morte de Ricardo Reis. Trata-se de uma tese de mestrado em literatura portuguesa, defendida por Barbara Juršič (ou Barbara Juršič Terseglav), cujo nome aponta para paragens não lusófonas. E aponta bem: é eslovena.

Fala o livro (pois trata-se de um livro, ainda que não muito grosso com as suas 121 páginas), como é hábito neste tipo de trabalhos, cujos títulos são quase sempre descritivos de forma bastante objetiva, dos vários fantasmas e das várias facetas de fantasmagoria que se podem encontrar no romance de Saramago O Ano da Morte de Ricardo Reis. Achei algum interesse nessa discussão, ainda que a minha leitura desse livro esteja demasiado longínqua no tempo (li-o vai para três décadas) para poder realmente aferir se concordo ou discordo do que a autora defende, mas aquilo que mais me interessou nesta leitura não foi isso: foi a discussão (sobretudo prévia) sobre o que é o fantástico literário e de que forma este livro em concreto se enquadra nele. Há aí bastante informação geral e uma perspetiva que achei útil.

Outra coisa que achei bastante curiosa, embora não propriamente informativa, foi o tom do texto. OK, é um texto académico. É um texto, portanto, que se esforça por ser objetivo e distanciado, apresentando as ideias e as conclusões que advêm dessas ideias de uma forma tão rigorosa e alicerçada quanto possível. E no entanto, é um texto carregadinho de amor.

Amor pela literatura, sem dúvida, pela palavra até, mas sobretudo amor pelo livro estudado e provavelmente também pelo autor José Saramago. Algures na trajetória de vida da eslovena Barbara Juršič, ela ter-se-á apaixonado pela prosa de Saramago, ou por aquela prosa de Saramago. É possível que tenha sido isso o que a levou a aprender português e depois a vir fazer um mestrado a Portugal, mas é certo que ela ama o livro que estudou. Transparece nas entrelinhas do texto um carinho que me parece inconfundível. E isso fez-me sorrir.

E isso fez-me compreender que retirei desta leitura mais do que esperava à partida. Às vezes acontece.

Se alguém se interessar, ela está disponível aqui.

Lido: O Polegarzinho

O Polegarzinho, ou O Pequeno Polegar, como estava intitulado no livro em que conheci esta história pela primeira vez, é um dos contos da minha infância. Não nesta versão dos Irmãos Grimm, mas numa versão um pouco diferente, mais longa, ilustrada (não profusamente, como os livros muito infantis costumam ser, mas ilustrada) e destinada ao público infantil. Quando o conheci ainda nem sabia ler — o conto foi-me lido pelos meus pais — mas mais tarde li-o várias vezes, até o saber quase de cor. Com o passar dos anos esqueci-me quase completamente dele, mas ao reencontrá-lo aqui houve coisas que voltaram com grande clareza à memória. E, apesar de me ter parecido desde que comecei a leitura que algo não era exatamente como devia ser (isto é, que havia diferenças entre esta versão e a "minha"), a sensação de familiaridade foi intensa.

O Polegarzinho é um miúdo que nasce a um casal até aí estéril, mas tão pequeno que nunca chega a ultrapassar o tamanho de um polegar. No entanto, apesar do tamanho, é um miúdo extraordinariamente esperto e desembaraçado, e não hesita quando chega a hora de partir à aventura. Nesta versão dos Grimm, é também mais que um pouco vigarista, mas não me lembro dessa faceta na "minha" versão, o que pode significar que não existe ou que existe e eu na época não a captei. Acho que um dia vou ter de reler os meus velhíssimos livros de contos infantis.

Com uma história tão entranhada na substância que me construiu não é fácil fazer uma avaliação de qualidade ou relevância, e nem vou tentar. Não vale a pena. Concluo dizendo apenas que mesmo nesta versão comparativamente abreviada dos Grimm é um conto invulgarmente complexo para o que é costume nas histórias populares, em especial tendo em conta que esta não é daquelas histórias que os Grimm compuseram a partir de duas ou três que acharam complementares.

Contos anteriores deste livro:

Lido: O Retrato da Princesa

Toda a gente sabe que a única qualidade realmente importante nas mulheres, e entre elas especialmente nas princesas, é a beleza, não é? Não é? Que raio estão todas as pessoas sensatas aí ao fundo a dizer que não? Ora esta! Calem-se, sim? Deixem falar a tradição!

E a tradição está bem retratada neste O Retrato da Princesa, mais um dos continhos de duas páginas recolhidos por Adolfo Coelho. Tem por tema um noivado real (naturalmente), que entrou em problemas porque a princesa não correspondia em formosura ao retrato pelo qual o príncipe se apaixonara. Sim, porque a personalidade das princesas se resume a serem bonitas. Evidentemente. Mas no fim tudo se resolve, que a princesa sempre era uma boazona com tudo no lugar, estava era enfeitiçada para parecer feiosa. Com a destruição do feitiço (ou, neste mundo não mágico que é o nosso, com um bom "makeover" e umas plásticas), fica tudo bem e eles vivem felizes para sempre, porque como se sabe a única coisa necessária para um casal ser feliz é a noiva ser boazona.

Ah, patriarcado, patriarcado...

Contos anteriores deste livro:

segunda-feira, 26 de novembro de 2018

Lei(tur)tugas (literatugas?), última(?) iteração

Como seria de esperar, o meu último post sobre este assunto gerou mais uma série de conversas e perguntas, as quais levaram a mais algumas reflexões e estas a novos balizamentos do projeto, e estes levaram a mais este post. Idealmente, o último antes do arranque (que em parte por causa disso já não farei em novembro e sim em dezembro). Retoques que se façam necessários ou aconselháveis poderão ser feitos depois da coisa começar.

Comecemos pelo início, como é de bom tom.

O nome

Chamaram-me a atenção para um facto incómodo na ideia de chamar ao grupo LeiTugas: faz lembrar coisas de leis. É provável que sem aquela maiúscula ali no meio, e/ou sem a divisão entre "lei" e "tugas" no putativo logotipo, essa associação nunca tivesse surgido, mas é das tais coisas que depois de ver se torna impossível desver.

Ou seja: se calhar é melhor arranjar-se outro nome.

Uma ideia possível é esticar o nome original, para LeiturTugas. Tem uma vantagem: é palavra que não existe no google, pelo que seria muito simples encontrar-se as publicações integradas no grupo. Tem uma desvantagem: a ideia de leitugas surgiu por bastar mudar uma letra para se transformar em leituras (e vice-versa), e com leiturtugas essa associação imediata desaparece.

Ela manter-se-ia com LiteraTugas, que mudando uma letra se tranforma em literaturas. Desvantagens: existem alguns resultados no google, ainda que poucos e fáceis de diferenciar de coisas relacionadas com este projeto, e o nome deixa de ficar tão diretamente associado à leitura, passando a ser mais genérico.

Pessoalmente, talvez prefira LeiturTugas. E vocês?

E incluir mainstream e outros géneros?

Bem, a ideia era limitar a coisa à literatura fantástica, e eu prefiro que assim fique. Mas se a malta quiser mesmo incluir uma coisa ou outra de mainstream (ou de policial, literatura histórica e por aí fora) na parte de leituras sem FC, porque não? Suponho que os fãs de outros géneros fantásticos não gostem muito da ideia, mas como é possível que haja alguns leitores que gostem de ler ficção científica mas não sejam muito amigos de ler fantasia, horror ou outras vertentes do fantástico talvez faça sentido abrir-lhes as portas.

E a BD de FC? Está num bom momento...

Pois está. Por isso mesmo, parece-me, não precisa do estímulo de um projeto deste género para a espevitar. Além disso, vejo um obstáculo de monta à entrada da BD numa coisa destas: embora haja algumas pessoas que leem e opinam sobre BD concomitantemente à literatura, a maioria das publicações sobre BD, que eu tenha visto, fazem-se em veículos especializados, onde a literatura simplesmente não entra. Ora, se a ideia é estimular a leitura e comentário de obras literárias de FC portuguesa, permitir que a BD as substitua não me parece boa ideia.

Por outro lado, excluir pura e simplesmente a BD desta iniciativa também é capaz de não o ser. Portanto, proponho um compromisso: BD sim, mas integrada na parte das leituras sem FC, mesmo que a BD seja de FC.

Resumindo

Ou seja: a ideia retocada com os vossos comentários e perguntas será então ler e comentar, no mínimo:

- 6 ou mais obras literárias com FC por ano e
- obras literárias sem FC (com ênfase nos outros géneros especulativos) e/ou de BD em número suficiente para que, somadas às que têm FC, o total seja 12 leituras/comentários por ano.

(sendo que essas obras literárias tanto podem ser romances e outros livros como contos individuais.)

E quem só conseguir ficar-se pela versão light da coisa (leiturtuguinhas?), é igual, só que em vez de 6 são 3 e em vez de 12 são 6.

Estamos de acordo? Avançamos?

sábado, 24 de novembro de 2018

Lido: Laboratório Aleatório

Lembram-se daquela frase célebre que diz que, com tempo suficiente, um chimpanzé a escrever à máquina acabará inevitavelmente por escrever os Lusíadas? Ou coisa que se pareça? Pois este Laboratório Aleatório, mais um continho muito curto de Luiz Bras, é precisamente sobre isso. Ou pelo menos inspirado por isso.

O que o chimpanzé de Luiz Bras escreve, porém, não é os Lusíadas mas sim um aviso. E depois o (micro)conto acaba, espicaçando de forma divertida mas acutilante a conhecida cegueira da espécie humana para tudo o que é realmente importante. Sim, este é mais um daqueles continhos em que Luiz Bras consegue empacotar num invólucro extremamente reduzido uma quantidade notável de informação e ideias. Ou seja: é bastante bom. E ficção científica.

Textos anteriores deste livro:

Lido: Sombra

Em Sombra continuamos em território de minicontos, que Carina Portugal resolveu reunir a algumas vinhetas mais curtas e publicar como uma espécie de compilação dentro da compilação que é este livro. Não sei se gosto da ideia, francamente. Algumas destas histórias ganhariam mais se ladeadas por contos mais extensos do que incluídas num conjunto de histórias muito curtas, parece-me, e esta é uma delas.

É sobre uma sombra, obviamente. Uma sombra sobrenatural, ao que parece, que aparece e desaparece consoante a lua brilha ou é coberta pelas nuvens. Há um certo ambiente de mau agouro ou de perigo. Mas é só. O conto, embora esteja bem escrito, é demasiado curto para ir mais além. É demasiado curto e preocupa-se mais com a beleza da frase do que com o impacto de cada palavra.

Poderia ser um texto interessante intercalado entre dois contos mais longos e mais pesados. Um texto para descomprimir. O contraste ajudá-lo-ia. Assim, metido como está no meio de outros textos semelhantes, pelo menos em extensão, perde-se bastante. Foi conto que li e esqueci quase de imediato, e isso não é bom.

Textos anteriores deste livro:

quarta-feira, 21 de novembro de 2018

Lido: O Viajante

Entre os leitores de ficção científica há um grupo que só está contente com a última ideia inovadora, a ponta da ponta, e elege a novidade como medida absoluta de qualidade. Não pertenço nem nunca pertenci a esse grupo: gosto de uma boa história, gosto de coisas bem escritas e, embora as ideias desafiadoras possam contribuir para a criação (e desfrute) de uma boa história, tenho vastos motivos para crer que é perfeitamente possível criar histórias boas e bem escritas com base em ideias batidas. Ou seja, sim, as ideias novas e desafiadoras podem ser um fator para a criação de boas histórias, se quem as cria as souber usar, e por isso podem ser uma medida de qualidade. Mas não são a única, e muito menos são absoluta.

É por isso que quando deparo com uma história cheia de clichés vou à procura de outras facetas da criação ficcional antes de decidir se a história é boa ou não. Os clichés são usados de forma cliché, empilhando ideias batidas em cima de ideias batidas, ou com alguma novidade? A língua é bem ou maltratada? As personagens têm substância ou mal chegam a ser fantasmas de gente (ou de não-gente)? O ritmo narrativo é adequado ao tom da história ou choca com ele? E por aí fora. E cada resposta a cada uma destas questões contribui para a avaliação final.

O conto O Viajante, de Rafael Marx, é uma dessas histórias cheias de clichés. Num futuro longínquo, com a humanidade tão espalhada pelas estrelas (cliché) que o planeta original da espécie humana está esquecido (cliché, e particularmente tonto), é encontrado no espaço um artefato aparentemente alienígena (cliché), o qual vai ser investigado pelos cientistas do tempo que, curiosamente, parecem estar dotados de pouco mais capacidades tecnocientíficas do que os de hoje (cliché). E o que esse artefato é vai revolucionar a compreensão que a sociedade tem sobre si própria e o seu passado (cliché).

Com tantos clichés, o conto teria de estar muito bem escrito, ou pelo menos de os usar com imaginação e novidade, para poder ser bom. Infelizmente não é o que acontece. O mistério que Marx tenta prolongar até um final que se esforça para tornar surpreendente desaparece antes do conto chegar a meio quando o leitor se lembra de enredos semelhantes (incluindo até um dos filmes do Star Trek) e os liga ao título do conto. E a escrita, embora seja razoavelmente correta, está longe de ser isenta de falhas (inclusive algumas caricatas, em frases como "foi quando se encontrou, em aparente local de destaque, um objeto circular em local de destaque") e muito, muito longe de ser realmente boa. Tudo somado, o resultado é um conto bastante fraco, tanto enquanto FC, quanto no que toca às suas qualidades literárias.

terça-feira, 20 de novembro de 2018

Lido: Rodamoinho, Talvez

E na sequência do que disse sobre o texto anterior, eis mais um conto/poema de Luiz Bras cuja mais fundamental natureza é o hibridismo.

Hibridismo, para começar, devido à sua natureza híbrida entre a prosa e a poesia. Hibridismo, também, por situar-se declaradamente num território entre a fantasia de sabor mágico-realista e a ficção científica. Hibridismo, ainda, por fazer a ponte entre a "literatura" tal como é entendida em certos círculos e o género, ou aquilo a que esses círculos chamam a "paraliteratura". E por fim hibridismo porque Rodamoinho, Talvez, é em si mesmo um texto híbrido, uma vez que não existe (ou existe de forma muito amputada, pelo menos) sem a obra literária a que faz referência direta: Cem Anos de Solidão, de Gabriel Garcia Márquez.

E é isso o que tem de mais interessante, a meu ver: a forma como este conto/poema reinterpreta o grande romance de Garcia Márquez à luz da ficção científica, ou de uma certa abordagem à FC, entre a homenagem ao grande escritor e à sua obra e um erguer de bandeira ativista em prol da ideia de que a ficção científica tudo pode permear. Muito bom.

Textos anteriores deste livro:

segunda-feira, 19 de novembro de 2018

Lido: O Vampiro Pitosga

Mais um continho bastante curto, desta vez uma vinheta, este O Vampiro Pitosga mantém o mesmo clima dos contos anteriores deste livro de Carina Portugal, em que predomina o humor. E este é um bom conto estragado pelo título.

Ignorando o título, o conto é divertido e até está razoavelmente bem construído. Um vampiro prepara-se para se refastelar com uma opípara refeição: duas belas humanas, prontas para levarem uma dentadinha no pescoço cada uma, fornecendo ao vampiro litros e litros de saboroso sanguinho. Mas, como o título revela logo à partida, o vampiro é pitosga. Muito pitosga. E as dentadas não vão ter o efeito desejado.

Sem este título, este conto funcionaria bastante bem. Com o título, porém, depressa se torna demasiado previsível, destruindo a surpresa de que o humor sempre carece. Chega-se a metade do conto e já se sabe como ele vai acabar, de modo que quando o punch-line finalmente chega funciona mais como anticlímax do que como clímax. É pena; teria sido um ajuste tão pequeno e faria tanta diferença.

Textos anteriores deste livro:

Lido: Os Figos Verdes

Desde que comecei a ler este livro de Adolfo Coelho ando numa dúvida constante relativa ao grau de alteração a que o autor da recolha terá sujeitado as histórias recolhidas. Desde o início me parece que será decerto menor que as alterações que os Irmãos Grimm fizeram às deles (chegando estes ao ponto de fundir histórias de proveniências diversas para criarem aquilo que no fundo são histórias novas), mas sempre achei muito duvidoso de que não houvesse nenhumas, ou quase.

Esta história deixa-me convicto de que as alterações terão sido mínimas, resumindo-se a retoques no português e pouco mais. Porquê? Porque esta história é única, pelo menos até agora, pelo surgimento de apartes, claramente marcas da expressão oral da contadora da história, e há uma nota do autor a explicar que se trata de "parenteses dirigidos pela narradora a quem a escutava".

E de que tratam Os Figos Verdes? De um rei com uma filha caprichosa, que meteu na cabeça que haveria de ter figos verdes em janeiro, o que leva, obviamente, o rei a prometer que quem lhos trouxesse casaria com ela ou seria ricamente recompensado. É, como se vê, daqueles contos em que há um teste a ultrapassar em troca de uma valiosa recompensa, os quais têm longos, ilustres e muito pagãos pergaminhos (ouvi falar de Hércules aí ao fundo?), embora neste a Nossa Senhora faça várias aparições. É uma história interessante, comparativamente complexa e, com as suas três páginas, longa para o que é comum nestas histórias. Um daqueles contos tradicionais que dão pano para fartura de mangas.

Contos anteriores deste livro:

sábado, 17 de novembro de 2018

Lido: O Congresso

Quem conhece a ficção de Jorge Luis Borges decerto saberá que duas das suas facetas mais importantes são, por um lado, a aplicação de ideias matemáticas à escrita ficcional (sobretudo a noção de infinito) e, pelo outro, a criação de factoides fictícios com ar de veracidade, de mistificações. E este O Congresso tem ambas.

Fala, naturalmente, de um congresso. Não um congresso real, mas sim um congresso projetado, o Congresso do Mundo, cujo objetivo seria, à revelia dos governos, reunir representantes de todas as facetas da humanidade para em conjunto tomar decisões sobre o seu futuro. É daquelas ideias utópicas que tem tudo para ter realmente passado pela cabeça de alguém na época em que a história se ambienta, inícios do século XX, e é nessa verosimilhança que Borges se apoia para sustentar a história. Esta, em forma de testemunho escrito por um dos organizadores, conta os sucessos e insucessos da ideia e as voltas que ela foi dando ao longo dos anos até dar em coisa nenhuma.

É um conto bastante interessante, através do qual Borges parece querer expressar o seu ceticismo perante ideias utópicas e impraticáveis, apesar de todas as boas vontades (e também porque raramente todas as pessoas envolvidas têm mesmo essa boa vontade). Não sendo dos contos dele que mais me agradaram e/ou impressionaram, a narrativa tem toda a qualidade e segurança que se pode esperar de um autor como Borges.

Contos anteriores deste livro:

quinta-feira, 15 de novembro de 2018

Lido: Crime

Luiz Bras parece gostar particularmente de coisas híbridas. A sua ficção científica raramente é só FC e o que não o é primordialmente muitas vezes inclui elementos de FC. Os textos em prosa vêm frequentemente carregados de poesia, e os textos que visualmente se assemelham a poemas poderiam muitas vezes escrever-se como prosa simples. E etc. Vários eteceteras. E este Crime é mais um desses textos híbridos.

É um poema? Se calhar é, sim. Um poema de versos longos rematado por um parágrafo em prosa, sobre... sobre o quê, ao certo? Sobre a identidade? Sobre a unidade fundamental de todas as coisas, talvez? O pretexto é um crime, mas Luiz Bras serve-se de surrealismo para sugerir, em amplas e vagas pinceladas, que tudo está interconectado de uma forma inextricável. Julgo eu. Parece-me.

E é bom? Parece-me (de novo a palavra) que sim. Está muito bem escrito, para começar e, se a ambiguidade, se uma certa forma impressionista de transmitir a ideia, eram aquilo que ele procurava fazer, fê-lo na perfeição. Mas não é texto que agrade a qualquer leitor, longe disso. É demasiado literário, em tudo o que a palavra implica.

Textos anteriores deste livro:

quarta-feira, 14 de novembro de 2018

Lido: Ketchup

E se o continho anterior foi inteligente e divertido, neste Ketchup Carina Portugal não consegue ser nem uma coisa nem a outra. Mas tenta.

O problema é sobretudo a ideia ser mais que batida. Há anedotas com ela, há piadas com ela em filmes e noutros sítios. Não digo qual é, mas na verdade o título já deixa entrevê-la, e se disser que os protagonistas da história são tomates então...

Este é outro conto muito curto e bastante fraco, reforçando a minha ideia de que, com as exceções da praxe, a autora se sai melhor em extensões maiores.

Textos anteriores deste livro:

segunda-feira, 12 de novembro de 2018

Lido: Os Sete Anéis dos Sete Anões

Ah, um conto sobre a hipocrisia. De repente estamos na Terra Média ou em algum lugar do género, e alguém escreve uma breve carta a um tal Frodo. Só que algo corre mal com a tecnologia, e tudo o que esse alguém (Gandalf? Será?) escreve e rasura fica legível. Ora, o tom da parte não rasurada é um, e o da parte rasurada é outro bem diferente, o que Luiz Bras utiliza para belo efeito cómico. E no meio há Os Sete Anéis dos Sete Anões, que quem escreve a carta não faz ideia do que sejam, provavelmente porque pertencem a outra história. Mas isso também está rasurado.

E está tudo basicamente dito. O conto, de uma página, é uma fantasia cómica epistolar muito engraçada, ao mesmo tempo que também é uma experiência narrativa que não será inteiramente original mas é certamente invulgar. Este conto é mais divertido do que propriamente interessante, parece-me, mas contos assim também fazem falta. Aliás, diria até que nos dias de hoje fazem muita falta.

Textos anteriores deste livro:

domingo, 11 de novembro de 2018

Lido: No Moinho

Uma das coisas que eu mais aprecio na ficção do Eça de Queirós é a forma irónica como ele olha para as coisas e as pessoas, uma corrosiva ironia muito sua, tão, mas tão diferente da forma como a legião de imitadores que veio atrás tentou sem sucesso emulá-la. Essa ironia está bem patente na maior parte dos textos queirosianos que eu conheço... mas não em todos.

Neste No Moinho, por exemplo, ela não se pode dizer que seja inexistente mas é certamente escassa. Trata-se sobretudo de um retrato, mais uma vez. O retrato de uma mulher de província, prisioneira de um casamento sem amor, sem alegria e com doenças, mas contente com a, ou pelo menos resignada à, sua situação. Até ao dia em que um primo do marido, escritor célebre radicado em Lisboa, chega à aldeia em negócios e vem abalar o seu mundinho até às fundações.

Muitíssimo bem escrito, como é praticamente inevitável em Eça, este conto é sobretudo uma história romântica, com a ênfase nos sentimentos que é característica dessas histórias. Mas é uma história romântica à Eça: sem sentimentalismos nem exageros. O que para mim é ótimo, dada a alergia que tenho às histórias românticas com exageros sentimentais. Achei este conto bom, portanto, apesar de não me ter enchido as medidas.

Contos anteriores deste livro:

LeiTugas: vamos a isso?

Desde que lancei a ideia do Grupo LeiTugas, há cerca de um mês, fui tendo várias conversas sobre ela, tanto online como pessoalmente. Essas conversas, e as reflexões que elas me causaram, justificam que antes de pôr o grupo propriamente a funcionar discuta aqui algumas questões. Parte deste post repete perguntas que me fizeram e respostas que dei, com base na suposição de que questões e dúvidas que uma pessoa possa ter poderão ser compartilhadas por outras, e outra parte vem de reflexões que tive posteriormente com base em coisas que me foram dizendo ao longo dessas conversas e na evolução das minhas próprias ideias. A estrutura do post será mais ou menos a de uma FAQ para melhor ficar organizado. Começando pelo princípio.

O nome.

O nome do grupo (e o logotipo que abre este post) foi improvisado praticamente ao correr da pena e por isso está sujeito a alteração. É, como é óbvio, uma contração de "leituras portuguesas". Há conveniência em um grupo deste género ter um nome razoavelmente único, que possa ser usado como hashtag e sirva para fazer pesquisas no Google. Por aí, leitugas até funciona razoavelmente bem: existe uma planta chamada leituga, mas é uma planta pouco comum que não gera muito tráfego nem dá para criar confusões. Mas se alguém tiver ideia melhor, sou todo ouvidos.

Ah, sim, e o logotipo. Se alguém quiser fazer coisa melhor, o que cá para mim seria bastante fácil, faça favor.

Porquê equiparar o número de obras com FC ao de obras sem FC? Não seria melhor distribuir a coisa mais equitativamente pelos vários géneros?

A ideia é promover a leitura e o comentário de ficção científica, precisamente porque já há bastante mais pessoas a ler outros géneros dentro do grande guarda-chuva das literaturas não realistas e a FC tende a ficar para trás. Mas é bom que se compreenda o que eu entendo por "ler FC". Não é "ler apenas romances de FC pura e dura".

Nada impede, por exemplo que um fã de fantasia daqueles mais ferrenhos se delicie num mês com um suculento naco de 700 páginas de fantasia e no seguinte despache um continho de FC de página e meia para cumprir a quota.

E também é bom sublinhar que falar aqui em obras de FC é uma forma de falar em obras com FC. Coisas como o science fantasy (de que a série de Pern da Anne McCaffrey — ou o Star Wars — são bons exemplos) também contam, e há exemplos do género na FC portuguesa. Muitos dos contos da Isabel Cristina Pires ou do Artur Portela são science fantasy, apesar de a parte fantasia ser menos virada à fantasia épica e mais ao fantasismo mais típico do fantástico português. A série da Alex 9 do Bruno Martins Soares também é, e aqui a componente de fantasia é bastante mais épica do que é hábito.

Em geral, pretendo usar aqui o mesmo tipo de definição lata que tenho usado para o Ficção Científica Literária, onde muito do material que aparece está mais próximo de outros géneros mas contém também pitadas de FC. Por conseguinte, alternar uma obra com FC com uma obra sem FC é bastante menos FC-cêntrico do que pode parecer à primeira vista.

E é por isso, de resto, que é aceitável substituir obras sem FC por obras com FC (i.e., em vez de serem no mínimo 6 de cada ao longo de um ano poderem ser 7 ou 8 com FC e 4 ou 5 sem), mas o inverso não é.

E claro que quem quiser restringir a sua FC à FC pura e dura, também é inteiramente bem-vindo.

Mas há pouco material!

A falta de material é mais aparente que real. É verdade que o que se publica por ano é escasso, e que por isso quem quiser cingir-se apenas às últimas novidades poderá ter algumas dificuldades em cumprir (ou não; ver à frente), mas o certo é que já levamos anos suficientes disto para se ter publicado bastantes coisas. Só com os contos que estão online por aí quem quiser participar tem material para muitos anos (um conto de dois em dois meses dá 6 contos por ano; qualquer dos sites que publicou FC em conto, do da Simetria ao Fantasy&Co. tem material que dá para bastante mais que um ano).

Mesmo quem só lê em papel tem disponível material mais que suficiente para participar numa ideia como esta. Tenho vindo a compilar a lista de novidades do ano, à semelhança do que fiz no ano passado, e neste momento ela soma já 31 títulos. E mesmo removendo reedições e ebooks são bem mais que seis (são 21). É pouco, com certeza, mas é mais que suficiente para alimentar uma ideia como esta.

Mas não tenho tempo!

Oh, eu também não.

Mas a verdade é que não preciso de ter mais tempo do que o que tenho porque já faço o que se pretende que este grupo faça. Já leio e comento FC (e não-FC) portuguesa, pelo que não terei dificuldade em cumprir os objetivos que o grupo tem. Preciso apenas de me organizar um pouco melhor, e já agora dou um exemplo de como.

Vou arrancar com isto já este mês. Para novembro já tenho o que comentar; um livro português sobretudo de horror que está quase lido e tem vindo a ser comentado conto a conto nos últimos tempos. Certamente já sabem qual é. Ora, se os contos que falta ler forem como os que já estão lidos, e tudo indica que sim, é um livro sem FC. Ou seja: o próximo será com FC. Mas olhando para os livros que tenho em leitura e na pilha rápida para serem lidos a seguir, não há nenhum livro português de ou com FC. Solução: vou pegar num dos contos em ebook que aqui tenho, ainda não decidi qual, e será essa a minha LeiTuga de dezembro.

(Entretanto, depois de escrever o parágrafo acima mas antes de concluir e publicar este post, apareceu-me um conto de ficção científica nesse livro, o que revoluciona os planos. Mas decidi deixar o parágrafo inalterado como exemplo do que é possível fazer.)

Como eu, há várias pessoas que já fazem isto, embora nem sempre de uma forma particularmente organizada (mas mais sobre isto mais adiante), e que por isso não precisarão de mais tempo livre do que o que já gastam com a leitura e comentário.

Mais: a leitura de contos é inerentemente rápida, e os comentários a contos também o podem ser. Ou seja: quem não tiver muito tempo disponível mas quiser mesmo assim participar pode pelo menos ler e comentar um conto por mês (e volto a remeter para baixo) que não gastará com isso muito tempo. Há por aí contos bastante curtos mas interessantes, e ninguém obriga a só se lerem e comentarem os interessantes; uma das vantagens dos contos é que mesmo quando são chatos nunca o são tanto como certos romances (deixem-me: ontem consegui finalmente acabar de ler um chatíssimo tijolo de 500 páginas e ainda estou sob a influência).

Mas não será demasiado rígido? Uma obra por mês, assim, taxativamente? E se me apetecer saltar um mês?

OK, combinamos o seguinte: quem quiser e puder seguir o esquema rígido, siga-o. Isso fornecerá uma base mínima e regular de opiniões mensais. Quem não puder ou não quiser seguir o esquema rígido, pode orientar-se desta forma: se, no decurso de seis meses, ler e opinar sobre três obras com FC e três obras sem FC, pelo menos, está na mesma a cumprir as regras do grupo.

Mesmo assim não tenho tempo.

Posso sugerir uma versão light da ideia. Um subgrupo "Leituguinhas", para o pessoal que só conseguir fazer isto pela metade. Em vez de 6 obras com FC por ano, e outras tantas sem FC, exigem-se 3+3. Assim já dá?

Nem assim, pá. Nem assim.

Bem, então sugiro outra ideia para quem acha que nem assim consegue cumprir o que se pretende: associe-se a alguém, ou a vários alguéns, e criem um blog coletivo. Ou faça posts de convidados em algum blogue individual. A ideia é que o grupo Leitugas tenha como base as publicações, não as pessoas. Isto é, um blogue em que escrevam 3 ou 4 leitores conta como um, não como 3 ou 4, e por isso tem bastante mais facilidade em cumprir os "mínimos", pois divide as leituras entre esses 3 ou 4 leitores.

Pronto, está bem. E planeias orientar um pouco a escolha, sugerindo títulos específicos, ou pretendes antes dar liberdade a quem aderir, desde que respeite os parâmetros já enunciados?

Sem orientações, a menos que mas peçam explicitamente. A ideia é eu não gastar muito tempo com isto, mas se alguém tiver alguma dúvida sobre se a obra X tem ou não FC, ou não souber onde encontrar contos avulso, e coisas do género, posso responder a essas dúvidas (desde que saiba, naturalmente). Tirando isso, e além do respeito pelas regras de periodicidade, que convém existir para que a coisa resulte, a liberdade é total.

OK, convenceste-me. E agora?

Agora é criar o blogue, se ainda não existir, e começar a ler e a opinar. Quando se reunir um grupo pioneiro convém discutirmos entre nós como se processará a divulgação mútua, mas o melhor, para começar, talvez seja incluir no título ou no texto das publicações relacionadas com isto o nome do grupo, LeiTugas, possivelmente (também) em forma de hashtag, para serem mais fáceis de encontrar. Também convém informarem-me de que estão a participar. Estou a pensar criar uma página aqui na Lâmpada, a acrescentar às três que estão na barrinha ali em cima, onde se poderia fazer a gestão de quem está, de quem não está e de quem está em dia, vai adiantado ou vai atrasado, mas isso provavelmente irá esperar até podermos conversar sobre a parte da divulgação e da gestão do grupo. Penso também fazer alguns convites diretos a malta que faz, ou fez, crítica a coisas portuguesas, mas quem quiser participar não fique à espera do convite: não tenho ainda a certeza de que vou mesmo fazê-los. Eu lançarei a primeira opinião integrada nisto talvez daqui a uma semana ou duas. Ainda este mês, portanto. E quem tiver sugestões a fazer, faça-as.

Vamos a isso?

sábado, 10 de novembro de 2018

Lido: As Larvas da Abóbora

E como poucas coisas são absolutas, eis um conto muito curto de Carina Portugal (autora que eu digo, e repito, que funciona melhor em extensões maiores), um miniconto com menos de uma página, que funciona na perfeição.

Já alguém se interrogou sobre o que aconteceria à abóbora que na história da Cinderela se transforma em carruagem se por acaso estivesse bichada no momento da transformação? Já: a Carina Portugal. E é isso o que conta em As Larvas da Abóbora, um continho divertido e inteligente em que faz uma fusão de duas célebres histórias de encantar: a da Cinderela e a da Branca de Neve. Não contarei como; não é preciso. Basta dizer que sim, este continho é bom.

Textos anteriores deste livro:

sexta-feira, 9 de novembro de 2018

Lido: Máquina Macunaíma

Decididamente, há contos brasileiros que não são para serem lidos por olhos portugueses. Pelo menos sem um glossário.

Este Máquina Macunaíma de Luiz Bras é um desses contos, e confesso não o ter compreendido bem o suficiente para perceber se gostei ou não. Parece ser uma história que vai beber às mitologias indígenas brasileiras, servindo-se de criaturas mitológicas (ou se calhar não tão mitológicas, se calhar simples fauna local com nomes indígenas), mais que provavelmente alteradas, para contar uma história recursiva em que uns pobres curumins (aparentemente "crianças" em tupi) são repetidamente devorados por variados monstros de piroca grossa. Sim.

Tenho praticamente a certeza de que há aqui significados que me escapam, mas apercebo-me de algumas piscadelas de olho à ficção científica (há insetos-robôs, por exemplo) e de que embora o tom da narrativa seja marcadamente infantil, a narrativa propriamente dita está longe de o ser. Mas a verdade é que precisava de tradutor para perceber muito mais do que isto.

Textos anteriores deste livro:

quinta-feira, 8 de novembro de 2018

Lido: Triste e Leda Madrugada

E eis que, de repente, todas as fragilidades na escrita da Carina Portugal ressurgem em força. Acontece sobretudo quando ela se arrisca na prosa poética, e é precisamente isso o que faz neste Triste e Leda Madrugada, um conto bastante curto que, num tom de fantasia mais ou menos mitológica, romanceia a relação entre o dia e a noite. Antropomorfizando-a.

O problema principal, além das fragilidades mencionadas acima, é precisamente esse. A antropomorfização de fenómenos naturais tem velhíssimos antecedentes na mitologia humana, e consequentemente na sua filha primogénita, a literatura. De tal forma velhíssimos são os antecedentes e abundantes as histórias que a ideia se tornou cliché há séculos, pelo que só com uma grande quantidade de inovação, ou com uma enorme qualidade no manejo da língua, é possível escrever sobre o assunto com alguma frescura. E isso não acontece neste conto. É um conto bastante fraco; um ponto baixo no livro.

Textos anteriores deste livro:

quarta-feira, 7 de novembro de 2018

Lido: The Walking Dead

Não, não é o que vocês estão a pensar. Não se trata de nenhum comentário ou sucedâneo da série de TV do mesmo nome, embora tenha como tema o apocalipse zombie. Ou "zumbi", como os brasileiros preferem escrever. Este The Walking Dead de Luiz Bras é mais uma ficção que não aceita constranger-se a géneros, traficando livremente entre o horror, a ficção científica e o fantástico mais tradicional e incluindo também um forte tempero de comentário político, num conto incaracteristicamente longo para este livro: três páginas inteiras.

A história, além disso, é mais uma das várias histórias deste livro que contêm ideias para outro livro do autor que eu li e de que falei aqui há algum tempo: Sozinho no Deserto Extremo. Embora neste livro não haja zombies, há o mesmo ambiente pós-apocalíptico e o tema do (ou da) protagonista solitário num mundo vazio. Pelo menos de gente.

E é um conto muito bom, quer pela qualidade da escrita, quer pela forma como os vários (e abundantes) elementos que o compõem vão sendo revelados ao longo do texto, aos poucos, subtilmente e muitas vezes com a máxima economia de palavras. O elemento FC, por exemplo, surge claro com uma só palavra, quando alguém veste o traje de metamaterial. É o que estas pequeníssimas ficções de Luiz Bras têm de melhor, parece-me: a forma cirúrgica como poucas palavras, por vezes apenas uma, revolucionam o todo.

Textos anteriores deste livro:

terça-feira, 6 de novembro de 2018

Lido: Sementes de Fada

Já aqui escrevi, vendo-me desmentido pouco depois, mas agora reitero: Carina Portugal é melhor em contos mais extensos do que nos mais curtos, mesmo havendo entre estes alguns que se elevam acima dos restantes. E este conto, Sementes de Fada, é dos mais extensos. O que implica desde logo que pode ser também dos melhores.

E é. É uma história oitocentista, ambientada na Serra de Sintra, cenário adequadamente misterioso. O protagonista regressa ao seu velho casarão senhorial, que julga abandonado... mas depressa descobre (dolorosamente) que não o está. Uma rapariga abriga-se lá dentro, uma rapariga imunda e muda. Uma rapariga?...

Pois. Não é uma rapariga. Ou antes, é não sendo. Esta é uma história de fantasia razoavelmente sombria sobre criaturas da floresta e as suas relações contraditórias com os mortais. Faz-me lembrar pela ambiência e abordagem um dos livros que traduzi: A Criança Roubada, do Keith Donohue. Mas o tema principal é diferente. O desta história de Carina Portugal é principalmente o desejo sexual e, de certa forma, o amor, ou pelo menos a lealdade.

Somando-se a isso um texto em que as fragilidades da escrita da autora se fazem sentir pouco, voltamos a ter aqui um dos pontos altos do livro.

Textos anteriores deste livro:

segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Em outubro falou-se de...

Mais um mês, mais uma lista daquilo que foi sendo lido e comentado na internet aberta de língua portuguesa durante o mês anterior, relacionado diretamente ou nem por isso com a ficção científica.

Começo, como sempre, pela conversa habitual, só interessante para recém-chegados, pelo que os leitores habituais destes artigos podem saltar este parágrafo sem qualquer problema. Encontra-se mais informação sobre estes artigos, seus objetivos e suas limitações, no primeiro post da série, eles estão todos acessíveis, tanto este como os anteriores e, no futuro, os posteriores, na tag leituras fc, e os comentários que eu tenho a fazer sobre as listas que se seguem vêm, como sempre acontece, depois dessas mesmas listas, no fim do post.

Despachado o intróito, eis as listas do mês:

Ficção portuguesa:
  1. Uma Terra Prometida, org. ??
  2. A Terra da Naumãn, de H. G. Cancela
  3. O Resto é Paisagem, org. Luís Filipe Silva
  4. Tudo Isto Existe, de João Ventura
Ficção brasileira:
  1. Face a Face, de Luiz Bras (conto)
  2. O Homem que Fotografou Deus, de Maciel Brognoli
  3. A Jornada da Morte, de José M. S. Freire
  4. Tente Outra Vez, de Fabiano Jucá
  5. Trabalho Honesto, de Rodrigo Von Kampen
  6. O Presidente Negro, de Monteiro Lobato
  7. Absolutos, de Rodolfo Salles (2x)
  8. A Lição de Anatomia do Terrível Doutor Louison, de Enéias Tavares
  9. Esquadrão X, de Vivian Villalba
  10. (R)Evolução, de Lu Ain-Zaila
Ficção internacional:
  1. O Restaurante no Fim do Universo, de Douglas Adams
  2. O Poder, de Naomi Alderman (2x)
  3. Opposition, de Jennifer L. Armentrout
  4. Origin, de Jennifer L. Armentrout
  5. Fundação (trilogia), de Isaac Asimov
  6. Órix e Crex, de Margaret Atwood
  7. The Voices of Time, de J. G. Ballard (conto)
  8. Sepulcros de Cowboys, de Roberto Bolaño
  9. A Colônia, de Ezekiel Boone
  10. Fahrenheit 451, de Ray Bradbury
  11. Estrela do Perigo, de Marion Zimmer Bradley
  12. O Sol Vermelho, de Marion Zimmer Bradley
  13. Os Salvadores do Planeta, de Marion Zimmer Bradley
  14. A Menina que Tinha Dons, de M. R. Carey
  15. A Elite, de Kiera Cass
  16. A Seleção, de Kiera Cass
  17. Felizes Para Sempre, de Kiera Cass
  18. Alvo em Movimento, de Cecil Castellucci e Jason Fry
  19. A Vida Compartilhada em uma Admirável Órbita Fechada, de Becky Chambers
  20. Jogador 1, de Ernest Cline
  21. A Quarta Profecia, de Suzanne Collins
  22. Conquista, de Ally Condie
  23. Travessia, de Ally Condie
  24. Jurassic Park, de Michael Crichton
  25. Vox, de Christina Dalcher (2x)
  26. Arena 13, de Joseph Delaney
  27. Espere Agora Pelo Ano Passado, de Philip K. Dick (2x)
  28. O Homem do Castelo Alto, de Philip K. Dick
  29. Sonhos Elétricos, de Philip K. Dick (2x)
  30. Ubik, de Philip K. Dick
  31. Muitas Águas, de Madeleine l'Engle (3x)
  32. Um Planeta em seu Giro Feroz, de Madeleine l'Engle
  33. Uma Coisa Absolutamente Incrível / Uma Coisa Absolutamente Fantástica, de Hank Green (9x)
  34. Revivente, de Ken Grimwood
  35. O Mapa do Tempo, de Heidi Heilig
  36. ... E Ele Construiu uma Casa Torta, de Robert A. Heinlein (conto)
  37. Strange Weather, de Joe Hill
  38. Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley
  39. O Lagarto, de C. J. Cuttcliffe Hynes (conto)
  40. O Portão do Obelisco, de N. K. Jemisin
  41. Flores para Algernon, de Daniel Keyes
  42. A Incendiária, de Stephen King
  43. Celular, de Stephen King (4x)
  44. A Balada do Black Tom, de Victor Lavalle
  45. Justiça Ancilar, de Ann Leckie
  46. O Problema dos Três Corpos, de Cixin Liu (2x)
  47. Mil Mortes e Outras Histórias, de Jack London
  48. O Princípio do Fim, de Manel Loureiro
  49. A Cor que Caiu do Espaço, de H. P. Lovecraft (conto)
  50. Contos, vol. 2, de H. P. Lovecraft
  51. Medo Clássico, vol. 1, de H. P. Lovecraft
  52. Os Contos Mais Arrepiantes de Howard Philips Lovecraft, de H. P. Lovecraft (2x)
  53. Vigilante Noturno, de Marie Lu
  54. O Corpo Dela e Outras Partes, de Carmen Maria Machado
  55. Earth Hour, de Ken MacLeod (conto)
  56. The Finite Canvas, de Brit Mandelo (conto)
  57. A Flor de Vidro, de George R. R. Martin (conto)
  58. Nightflyers, de George R. R. Martin (conto)
  59. Santuário dos Ventos, de George R. R. Martin e Lisa Tuttle
  60. Nada Enfurece Mais uma Mulher, org. George R. R. Martin e Gardner Dozois
  61. A Estrada, de Cormac McCarthy
  62. Um Cântico Para Leibowitz, de Walter M. Miller, Jr.
  63. Os Seis Finalistas, de Alexandra Monir (2x)
  64. A Revolta, de Kass Morgan
  65. Binti, de Nnedi Okorafor
  66. Let me Live in a House, de Chad Oliver (conto)
  67. Evolução, de John Peel
  68. A Terra Longa, de Terry Pratchett e Steven Baxter
  69. Nyxia, de Scott Reintgen
  70. Tormenta de Fogo, de Brandon Sanderson
  71. After the Coup, de John Scalzi (conto)
  72. The President's Brain is Missing, de John Scalzi (conto)
  73. A Nuvem, de Neal Shusterman
  74. Fragmentados, de Neal Shusterman
  75. O Ceifador, de Neal Shusterman (2x)
  76. As Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift
  77. Os Oleiros de Firsk, de Jack Vance (conto)
  78. Steampunk, org. Ann e Jeff VanderMeer
  79. Aniquilação, de Jeff VanderMeer
  80. 20 Mil Léguas Submarinas, de Jules Verne
  81. As Sereias de Titã, de Kurt Vonnegut Jr.
  82. A Ilha do Doutor Moreau, de H. G. Wells
  83. A Máquina do Tempo, de H. G. Wells
  84. Beemote: A Revolução, de Scott Westerfeld
  85. Sector General, de James White (conto)
  86. Meteoro, de John Wyndham (conto)
  87. A Última Estrela, de Rick Yancey
  88. The Guns of Avalon, de Roger Zelazny
Não-ficção internacional:
  1. 21 Lições para o Século 21 ou 21 Lições para o Século XXI, de Yuval Noah Harari (2x)
  2. Universo Alien, de Don Lincoln
  3. Coração Assombrado, de Lisa Rogak
Quanto a comentários, bem, tenho de começar por dizer que volto a estar alguns dias atrasado lá no Ficção Científica Literária, pelo que estas listas não contêm tudo o que foi comentado ao longo do mês de outubro, tendo ficado algumas coisas para as do mês de novembro. Mas mesmo assim...

... mesmo assim o mês correu mal. Os comentários a material português voltaram a cair, tendo sido este mês apenas quatro, e um refere-se a uma antologia que contém apenas um conto que parece roçar ao de leve pela FC mas também pode nada ter a ver com o género. Ou seja: depois de dois meses com uma ligeira animação, voltámos a estar muito mal de comentários portugueses.

Mas não foi só Portugal que se portou mal. A queda na ficção brasileira comentada em setembro acentuou-se em outubro, reduzindo-se a apenas 10 títulos (número que me parece o mínimo aceitável para um ambiente saudável), um dos quais vem aqui da Lâmpada. É possível que isso tenha tido a ver com as eleições e que o número volte a subir em novembro, mas só o saberemos daqui a um mês. Curioso é ver mais uma vez o livro de Rodolfo Salles com mais que um comentário. Pode tratar-se de marketing bem direcionado — e há indícios que me levam a suspeitar disso mesmo — ou de interesse genuíno, mas o facto é que este livro tem sido de longe o livro brasileiro mais comentado este ano.

No campo da ficção traduzida, o número de títulos referenciados voltou a subir, o que comprova que o atraso no trabalho do FCL não é determinante para a escassa quantidade de opiniões a material lusófono. Mas desconfio que sem esse atraso é muito possível que em outubro se tivesse chegado aos 100 títulos. Assim ficou-se pelos 88, dos quais se destaca, e de muito longe, o livro do Hank Green, alvo de 9 opiniões. É o livro mais comentado num só mês desde que comecei a fazer isto. Outros destaques do mês são Philip K. Dick, mais uma vez, com 6 comentários a 4 obras, Stephen King, com 5 comentários a 2 obras, H. P. Lovecraft, com 5 comentários a 4 obras, Madeleine l'Engle, com 4 comentários a 2 obras, Neal Shusterman, com 4 comentários a 3 obras e George R. R. Martin, com 4 comentários a outras tantas obras, incluindo obras de sua autoria e (co-)organizadas por ele. Quase tudo graças aos produtores de conteúdos brasileiros.

Vamos a ver se o mês que começou há dias trará algumas melhorias. Uma ideia que vai ser alvo de um post que estou a preparar poderá vir a contribuir para isso, ainda que ainda não em novembro, provavelmente. Sairá em breve; fiquem atentos. E quanto a estes "falou-se de...", voltamos a encontrar-nos no princípio de dezembro.

domingo, 4 de novembro de 2018

Lido: Alien

Alien é um conto com quatro frases. Curtas. Não é possível falar muito dele, portanto. Basta dizer que é um conto divertido, de ficção científica porque o título o explica — sem o título o miolo seria ambíguo. Luiz Bras, o autor, usa, compactissimamente, a estrutura clássica da anedota, com premissa, desenvolvimento e punch line. E usa-a bem. O continho é divertido. Funciona. E é isto o que sobre ele tenho a dizer, num textinho curto que mesmo assim é muito maior que o conto.

Textos anteriores deste livro:

Lido: Nothing to Fear but Books Themselves

Paul di Filippo teve durante vários anos uma coluna satírica na F&SF intitulada Plumage from Pegasus, na qual publicava textos dificilmente classificáveis, algures entre a ficção e a crónica, ainda que me pareça tenderem mais para o lado da ficção. São historinhas (ou crónicas) curtas, que vieram a ser coligidas em duas coletâneas. O tema é o mundo da ficção científica e fantasia e o mundo literário em geral, e di Filippo serve-se da hipérbole e do exagero para obter efeitos cómicos a partir das idiossincrasias desses mundos e/ou dos seus integrantes.

Aqui, a história intitula-se Nothing to Fear but Books Themselves e, a partir de um trecho de uma crítica publicada na The New York Times Book Review, conta a história de uma crítica profissional que desenvolve medo patológico daquilo que lê. Uma história da qual é impossível falar sem revelar o desfecho, portanto se és alérgico a revelações de enredo vai ler outra coisa qualquer porque a seguir a esta frase há montes de spoilers. Ela, portanto, tem medo. Tudo, conforme explica ao editor que lhe faz uma visita para tentar perceber o que se passa, lhe causa pavor, ao ponto da pobre já nem conseguir pôr o nariz fora de casa. Problema bicudo: se ganha a vida lendo e ler a deixa em pânico, não parece haver solução que não seja ir fazer outra coisa qualquer na vida e não tem ideia nenhuma do quê. Até que o editor descobre a solução: ela vai passar a criticar exclusivamente livros de horror, porque não há nada menos assustador do que um livro de horror.

É uma historinha divertida, vagamente encaixável na literatura fantástica, mas não me parece que passe disso. O que está certíssimo, pois tampouco me parece que Paul di Filippo pretendesse que ela fosse mais que uma historinha divertida. Cumpre o seu propósito e nada mais se lhe pode exigir.

Contos anteriores desta publicação:

sábado, 3 de novembro de 2018

Lido: Põe-te-Mesa, Asno de Ouro e Cacete-Sai-do-Saco

Há uma regra geral com raríssimas exceções que diz que os contos tradicionais, contos de fadas ou como lhes queiramos chamar, são histórias com moral anexada, histórias cautelares, usadas ao longo dos séculos e dos milénios para inculcar nas crianças e no povo em geral certos princípios de sabedoria tradicional e de bom-senso. Muitos desses princípios foram entretanto ultrapassados pela evolução da sociedade e da tecnologia, pois aquilo que é bom-senso numa sociedade rural está muito, muito longe de continuar a sê-lo numa sociedade urbana e multitudinária. Mas há um punhado de histórias que mantém os seus ensinamentos inteiramente válidos, algumas vezes de forma surpreendente.

O conto com o bizarro título de Põe-te-Mesa, Asno de Ouro e Cacete-Sai-do-Saco é um conto razoavelmente extenso que, apesar disso, não parece ter sido grandemente alterado pelos Irmãos Grimm (à parte, talvez, uma solidificação da sua qualidade literária). A história debruça-se sobre um alfaiate, os três filhos do alfaiate e uma cabra que é, realmente, uma cabra pois, apesar dos rapazes serem bons rapazes e cumprirem integralmente as tarefas que lhes são atribuídas, a cabra mente que não e engana assim o pai. E com isso vai dar origem a um sem-número de problemas e mal-entendidos que levam à expulsão dos três rapazes de casa, após o que a história mete ainda ao barulho um estalajadeiro ladrão. Claro que no fim, como sempre acontece em histórias destas, tudo se esclarece, os maus são punidos e os bons recompensados e vivem felizes para sempre, e patati e patata.

Trata-se, como facilmente se percebe, de um conto cujo tema é a mentira, a credulidade, e os desastres que a junção de uma com a outra pode gerar. E nada há de mais atual do que isto, com a epidemia de mentiras e manipulações que assola o globo neste preciso momento, por intermédio (não exclusivo, longe disso) das redes sociais. Se ao menos vivêssemos num conto de fadas e tivéssemos a garantia de que os mentirosos, os ladrões e os manipuladores são derrotados no fim... mas não, o mundo real não é uma história de encantar, e há que manter os olhos bem abertos, usar a cabeça e não nos deixarmos enganar.

Esta história devia ser lida. Abundantemente lida.

Contos anteriores deste livro:

Lido: Compreendam, Imbecis

Compreendam, Imbecis, é mais um daqueles textos de Luiz Bras que se situam algures entre a ficção em prosa e a poesia, e também outro dos muitos textos deste livro que tem elementos de ficção científica, aqui razoavelmente rarefeitos.

O narrador é, assumidamente, um tipo desagradável, que se rebela contra as convenções e o ditado dos "imbecis" que tentam impor-lhe o que ele não quer aceitar. Sim, mais uma vez a misantropia é evidente nas personagens de Bras, aqui em plena rebelião sentimental. É que o protagonista não quer aceitar ser obrigado a amar quem (ou o que) não ama, humano ou androide, quer ser livre para amar quem (ou o que) realmente ama. Podemos censurá-lo? Alguns julgarão que podem, mas não, não podem.

Não sendo na minha opinião dos melhores contos (poemas?) de Bras, não deixa apesar disso de ser bom, até porque mais uma vez consegue alcançar múltiplos níveis de leitura com uma contenção verbal notável. Sim, porque a defesa da liberdade de se ser e se amar quem se é e ama não é a única leitura possível do texto, sendo também possível olhá-lo como um desabafo tecnofóbico, ou como um comentário à condição do escritor obsessivo, aquele que tem de escrever para ter alguma hipótese de ser feliz. E isso é algo que não está ao alcance de todos.

Textos anteriores deste livro:

Lido: Pele de Escrava

Um dos motivos por que não sou grande apreciador de histórias de horror, e pouco importa se são literárias ou não, é parecer-me quase sempre que trazem em si muito de gratuito, que a ideia principal é gerar o choque pelo choque, sem grande substância por trás. Em parte isto deve-se ao meu racionalismo: não acreditando em nada de sobrenatural, e estando a maior parte do horror intimamente ligado a uma ou outra vertente do universo sobrenatural, sou em grande medida imune ao impacto emocional que estas histórias procuram gerar em quem as julga possíveis. Leio com prazer alguns autores e histórias, mas é geralmente uma leitura fria, na qual mais depressa capto os cordelinhos que o autor tece ao tentar manipular emocionalmente quem lê do que sinto alguma espécie de arrepio.

Mas há algumas histórias que, mesmo quando contêm esses mesmos elementos sobrenaturais que geralmente me deixam frio, trazem em si realidade suficiente para criarem impacto. E este Pele de Escrava, de Carina Portugal, é uma dessas histórias.

Julgo que este conto se poderia classificar como horror psicológico com elementos sobrenaturais. Fala de uma escrava, vítima de abusos continuados, sexuais e não só, por parte de um assassino em série, que antes dela já tinha feito numerosas outras vítimas, e tudo isto, toda a descrição dos abusos e da situação seria horror psicológico puro se não fosse um detalhe: as vítimas anteriores têm as almas aprisionadas dentro de um espelho, e vão ser essas almas a dar à protagonista a coragem necessária para se rebelar.

Este é um bom conto. Com os defeitos anteriormente apontados à escrita da autora muito atenuados, sem grandes fragilidades, sem grande coisa de aparentemente gratuito, com um bom ritmo, este Pele de Escrava estará mais ou menos a par de O Cais do Poeta como o melhor naco de prosa incluído neste livro até este ponto: está mais bem escrito mas tem uma história e estruturação um pouco piores.

Textos anteriores deste livro:

quinta-feira, 1 de novembro de 2018

Lido: O Alfaiate no Céu

Embora muitos dos contos tradicionais europeus tenham origens que antecedem em muito o cristianismo, não é raro que tenham incorporado ao longo dos séculos de convivência com a religião dominante elementos da mitologia cristã. De resto, a própria Bíblia incorpora numerosas histórias que a antecedem, por vezes em muitos séculos.

Além disso, a própria recolha e reelaboração feita pelos Irmãos Grimm parece-me ter acentuado tais elementos, pelo menos em algumas histórias. É o que me sugere a comparação que tenho vindo a fazer entre estes seus contos e os que foram recolhidos em Portugal por Adolfo Coelho, autor que alterou muito menos do que os irmãos alemães o material de base.

O Alfaiate no Céu parece ser um caso diferente: um conto desde o início baseado na mitologia cristã, sem elementos exteriores a ela. Pode não o ser, note-se: pode tratar-se de história mais antiga mas tão alterada que os elementos originais se tornam impercetíveis, pelo menos para o leitor não especialista. E também é possível que as alterações feitas pelos Grimm (o conto foi feito por eles a partir de um conto tradicional) tenham contribuído para o despir dos elementos pré-cristãos que pudessem ter havido.

Seja como for, trata-se de um conto moral como é da praxe, ingénuo, sobre um alfaiate que chega ao Céu cristão num dia em que este está praticamente deserto porque o divino manda-chuva resolveu ir dar um passeio. Só São Pedro terá ficado à porta, o que não é grande ideia porque ao que parece São Pedro não é grande inteligência e deixa-se endrominar por um simples alfaiate, apesar de saber que este não é propriamente a pessoa mais honesta que já caminhou pela face da terra. O certo é que o alfaiate consegue entrar e deambular por aí e fazer um disparate. Disparate esse que acaba por ser descoberto, o que torna óbvia a moral da história: Deus tudo vê e não há escapatória à justiça divina.

Sem grandes subtilezas e com menos surpresas ainda, não posso dizer que este conto seja realmente interessante como literatura. O interesse que tem, pelo menos para mim, é sobretudo sociológico.

Contos anteriores deste livro: