quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Lido: Um Homem e o seu Gato

Um Homem e o seu Gato ou O Céu dos Gatos é o Inferno dos Pardais (bib.) é uma novela de ficção científica de João Barreiros, mais uma das suas histórias ambientadas na Fortaleza Europa, na qual hordas de esfomeados vindos de África procuram por todos os meios entrar no distópico paraíso europeu, onde ainda há gente, vejam só o luxo, que tem gatos de estimação. Mas o gato do protagonista da novela não é um gato qualquer. Trata-se de um bioconstructo obtido ilegalmente, uma arma de destruição em massa capaz de produzir um alérgeno letal e de comunicar telepaticamente com o dono. E que, como se não bastasse, tem inteligência própria e, bem, e um enorme mau feitio... ou não fosse um gato.

É uma boa história, apesar de se manter quase previsível do início ao fim, com reviravoltas de enredo e tudo. Quase previsível: há uns detalhes bem apanhados que não deixam que esse quase desapareça. Mas como é óbvio, corre tudo mal. Afinal, trata-se de uma história do Barreiros. Surpreendente e imprevisível seria se alguma coisa corresse bem numa história do Barreiros.

Não falarei do enredo, pois, à falta de outras surpresas, a descoberta dos detalhes da catástrofe é o motor principal da história e aquilo que a mantém interessante. Digo só que o leitor é brindado com um dos protagonistas habituais das histórias do Barreiros: um homem que se julga no domínio da situação, ainda que num domínio periclitante, sempre à beira do precipício, mas depressa se vê ultrapassado por ela, e que tem direito ainda a toques de história de corrupção empresarial, de história de espionagem, de conto-catástrofe e de detalhes de uma FC razoavelmente hard. Não é a melhor história do Barreiros, mas também está longe de ser a pior.

Não sei bem é se os amantes de gatos que pululam por essa internet fora gostariam de a ler.

Contos anteriores desta publicação:

Lido: À Tua Saúde

À Tua Saúde (bib.) é mais um conto de Steve Bauer, desta vez adaptando uma história de James D. Bissel. E é um dos melhores do livro em que está incluído. Nele, regressamos aos tempos da Grande Depressão, nos Estados Unidos, tempo de desemprego galopante e desespero (onde é que eu já vi isto?), e vamos encontrar um grupo de homens desesperados que, ao ouvirem contar a história de um homem que arranjou maneira de morrer num acidente para que a família obtivesse os meios de sobrevivência que ele já não era capaz de lhes providenciar, através do seu seguro de vida, puseram (com dificuldade) as consciências de parte e divisaram um plano para fazer o mesmo. Para isso, dispuseram-se a sacrificar um dos amigos, bêbado inveterado, e portanto já a meio caminho da cova... depois de fazerem um seguro de vida em nome dele, bem entendido. Só que o amigo não há meio de morrer. Façam eles o que fizerem.

É um conto bem construído, e até relevante para os tempos que estamos a atravessar, com algo de horror sobrenatural, algo de humor. Interessante, portanto. Pena não estar particularmente bem escrito. E, claro, a tradução.

Contos anteriores deste livro:

O dedo na ferida

Façam um grande favor a vós próprios, ó punhado de fiéis leitores que por aí andam, e leiam, leiam pela vossa saudinha, este magnífico artigo do Daniel Oliveira. Mas se não quiserem lê-lo todo, no que incorrem em tremendo erro, permitam-me que destaque aqui um par de passagens que põem o dedo bem dentro da ferida:
[...] a democracia não é um centro comercial, onde se escolhe, à última da hora, o produto que se quer comprar. Aqui o cliente não tem sempre razão. Porque o cidadão não é cliente e as escolhas políticas não são produtos. A democracia é dos cidadãos e é feita pelos cidadãos. Se funciona mal a culpa é nossa. Um povo que realmente se revolta e quer ser consequente com a sua revolta luta por alternativas. O discurso populista contra os "políticos" (como se não fossem eleitos por nós) e o voto inconsequente de mero protesto - como se o protesto pudesse ser resolvido em cinco minutos, numa mesa de voto - resulta de uma infantilização dos cidadãos. Que os próprios cidadãos alimentam para se desresponsabilizarem pelas suas escolhas.

Em vez de se comportarem como donos da sua vida e responsáveis pelas suas escolhas, os italianos fizeram uma birra. Julgará, quem assim se comporta, que assusta o "sistema", o "regime" e os "políticos". Não assusta ninguém. A inconsequência do protesto é a coisa mais fácil de assimilar. Beppe Grillo é um episódio. Daqui a poucos anos, depois da dura passagem pela política lhe retirar a graça e o brilho, será mais uma estória na história política italiana, sempre tão recheada de peripécias. Nem a banca, nem os burocratas, nem a Mafia, nem Bruxelas, nem Berlim, nem os "políticos do sistema" estão preocupados. Não muda nada. E é isso mesmo que o voto de um quarto dos italianos nos diz: estão zangados mas não querem correr o risco de mudar nada. Porque a mudança dá muito mais trabalho e menos vontade de rir do que o voto irrefletido num comediante. Exige ativismo, pensamento, confronto, risco.
Será que desta feita perceberam?

domingo, 24 de fevereiro de 2013

Lido: O Ano do Apocalipse

O Ano do Apocalipse (bib.), de Brian Aldiss, é um título particularmente desastrado para um romance de ficção científica pós-apocalíptica, que no original se intitula apenas Greybeard (alcunha do protagonista), e cuja ação decorre quase toda muitas décadas depois de uma experiência nuclear mal sucedida ter resultado na esterilização da espécie humana, bem como da maior parte dos mamíferos de grande porte. O apocalipse a que o título se refere sucedeu na infância do protagonista, e o presente ficcional (entrecortado por algumas analepses que recuam até diferentes períodos da sua vida) vai encontrá-lo já cinquentão e envelhecido, rodeado pelos últimos restos semi-loucos de uma civilização e de uma espécie moribundas.

No início do romance, encontramos Greybeard numa pequena comunidade rural autossuficiente nas margens de um Tamisa regressado a um estado pouco menos que virgem, com a mulher e um punhado de outros velhos, muitos deles mais que um pouco senis. À volta da comunidade, a população humana brutalmente reduzida devolve à natureza (ainda que profundamente alterada) a primazia. E depressa acontece algo que o leva a partir de barco Tamisa abaixo, com a mulher e um grupo de amigos, num misto de fuga e de aventura.

É esta viagem que serve de pretexto para Aldiss nos mostrar um mundo em declínio e sem esperança porque esvaziado e totalmente despido de juventude. As pessoas quase se limitam a esperar a morte, plenamente conscientes de que esta chegará sem que exista alguém capaz de pegar na sua herança e continuá-la. O tom é soturno, sombrio, melancólico. Faz com frequência lembrar as cidades abandonadas de Ballard, mas de uma forma diferente; em Ballard as personagens perdidas no vazio humano são muitas vezes pessoas na flor da vida, ainda que solitárias. Pessoas capazes de fazer coisas. Aqui não. Aqui, o declínio da civilização é acompanhado a par e passo pelo declínio dos últimos seres humanos no planeta (ou pelo menos na Inglaterra, se bem que esta seja usada como microcosmo do mundo inteiro).

O enredo, na verdade, pouco importa. O Ano do Apocalipse é um romance de viagem em que a viagem e as suas peripécias são secundárias relativamente ao pano de fundo. O importante aqui é precisamente esse pano de fundo. O pano de fundo psicológico, o pano de fundo social, em certa medida (mas bastante menor) o pano de fundo científico. Os momentos de paragem, os períodos passados nas localidades ainda habitadas nas margens do Tamisa, a interação com as pessoas que o grupo vai encontrando pelo caminho, pouca importância têm, além de fornecerem outros tantos pretextos para que Aldiss nos desvende um pouco mais da ideia-base do livro.

E fá-lo bastante bem. O livro é bom, embora o final me tenha parecido um pouco forçado. É um livro sombrio com razão para o ser. Uma distopia com uma premissa e um desenvolvimento inteligentes, em especial tendo em conta os conhecimentos da época em que foi escrita (meados dos anos 60). Uma história exemplar, que acautela para os perigos inerentes a fazer experiências com forças que se conhecem mal, como quem diz "isto é o que pode acontecer se não tivermos cuidado e não refrearmos esta loucura." E numa época em que o mercado está saturado com a moda das distopias protagonizadas por jovens enérgicos e heroicos, ler um livro em que a juventude está ausente é, por paradoxal que pareça, uma lufada de ar fresco.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Lido: Excerto de O Libertino Passeia por Braga

O Libertino Passeia por Braga é uma história de Luiz Pacheco, bastante típica da sua ficção (ou autoficção?), na qual ele, Pacheco, ou ele, personagem de que se mascara, anda por Braga no engate. No engate de gajas, no engate de gajos, não interessa, tudo o que à rede vem, peixe é. O excerto de quatro páginas que li descreve um engate que nunca chega a levar a sexo, e a primeira frase deixa logo claro o que se segue: "Faço o meu primeiro engate de magala, na rua." E está muito bem escrito, como aliás é típico do Pacheco, que misturava de uma forma única tudo o que de mais abjeto há na vivência humana com uma qualidade fora do comum no manuseio da língua portuguesa. Só que...

Só que está incluído numa antologia de humor. E este texto, pese embora o seu caráter mal-comportado, não tem humor nenhum. É um texto bastante melancólico, até, com algo de trágico e algo de patético, um texto que acompanha um homem infeliz, escravo de apetites que não consegue satisfazer. Independentemente da qualidade, que a tem, não creio que tenha sido bem escolhido para o livro de que faz parte. Mas a leitura vale a pena. E pode até ser feita na internet, nomeadamente, aqui (a ligação é para a 3ª página, que inclui o excerto em questão).

Textos anteriores deste livro:

Lido: O Plano Maior que Ofusca o Céu e a Terra

O Plano Maior que Ofusca o Céu e a Terra (bib.) é uma noveleta de Bruce Holland Rogers que talvez seja mais adequado apelidar de compilação ou coletânea, visto que junta 11 pequenas histórias com tamanhos entre a vinheta e o conto curto. Desta vez sem grande coisa de fantástico, são historinhas que giram muito em torno do ecossistema escolar, ou pelo menos do ensino e aprendizagem, e de uma certa rebeldia suave, de um certo "não estou para respeitar estas regras, mas não me vou chatear por isso". Plenas de sensibilidade, com uma dose não irrelevante de nostalgia, nunca se chega a perceber bem de quê (talvez de uma infância perdida há muito?), e tão bem escritas como é costume no autor, são boas histórias, que acabam por compor um todo maior que as partes. Apesar disso, não foi este o texto de que mais gostei. Falta-lhe qualquer coisa para me cair no goto, um qualquer voo de imaginação que o arranque ao comezinho (o que, aliás, tem em comum com as duas histórias anteriores, globalmente intituladas "Simetrinas"). Não que as histórias sejam banais; as situações que lhes servem de base é que o são. Se fosse eu, teria encerrado o livro de outra forma, teria posto estas simetrinas noutra posição. São bons textos, mas julgo que há no livro outras histórias com bastante mais força, daquelas capazes de fazer com que um leitor feche o livro e murmure com os seus botões: "uau!"

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Lido: Always

Always, de Karen Joy Fowler, é um conto vencedor do Nebula de 2009 por motivos que eu, depois de o ler, fiquei sem perceber lá muito bem. É uma história sobre uma seita religiosa, instalada algures numa comunidade fechada no Oeste americano, cujo líder afirma ter descoberto o segredo da imortalidade, imortalidade essa que confere aos fiéis mediante o pagamento de um montante avultado para poderem aderir à seita. Há no conto algo de fantástico todoroviano, uma vez que nunca chega a ficar inteiramente claro se existe mesmo na seita alguma imortalidade real ou não... embora alguns acontecimentos sugiram que não. Mas, tirando isso, não encontrei no conto fantasia ou ficção científica alguma. Há seitas daquelas às dezenas, nos EUA e não só, lideradas por loucos ou vigaristas carismáticos que conseguem reunir à sua volta entre dezenas e centenas de seguidores. O que torna esta história bastante realista.

Além disso, está bastante bem escrita mas não de uma forma que se conforme aos ditames que geralmente são brandidos nos meios ligados ao género. Há aqui muito pouco que seja mostrado, e muito, muito de contado — a história é contada em jeito de confissão, na primeira pessoa, por uma mulher que adere à seita na juventude e nela vive a vida inteira. Para mim, a coisa até funciona, mas surpreende-me que, com um público tão conservador no que toca às questões mais literárias das literaturas de género, esta história tenha conseguido alguma projeção. É certo que o Nébula é um prémio decidido por júri, mas mesmo assim...

O melhor que esta história tem é, além da literatura propriamente dita, funcionar bem como uma reflexão sobre a mortalidade... mesmo que não haja aqui imortalidade nenhuma. Não que nisso seja original. Mas parece-me que o faz bem. Que resulta. Não posso dizer que tenha gostado muito dela, mas até gostei até certo ponto.

Contos anteriores deste livro:
 

Explicando redistribuição e transferências sociais às criancinhas

O nosso inteligentíssimo primeiro-ministro, coadjuvado pelos seus inteligentíssimos ajudantes, deputados e demais alaranjados parasitas, anda numa furiosa campanha para tentar acabar com tudo o que cheire vagamente a solidariedade social neste país. Porque não percebe como a coisa funciona, portanto deve ser má. Afinal, ele é inteligentíssimo. E se um crânio como sua alteza não percebe a coisa, só pode ser algo vindo direitinho das garras do Demo. T'arrenego!

O último exemplo do que digo vem de umas afirmações que passo a citar:
“A taxa de pobreza é inferior à média europeia”, antes de se considerar as prestações sociais, diz ele. E acrescenta: “Mas depois das transferências sociais, a taxa cai menos do que noutros países, de tal forma que se torna superior à média europeia. O que devemos concluir? O nosso Estado social não é suficientemente eficaz. Não faz o que deveria fazer.”
O ponto de partida para tal teoria são dados do CIES, segundo os quais, em 2010, a taxa de risco de pobreza em Portugal era, antes de transferências sociais, de 25,4% e, na UE a 27, de 26,1%, para passar depois de transferências sociais a ser de 18,0% em Portugal e 16,9% na UE-27.

Como acho que até as criancinhas devem saber alguma coisa de economia, eis-me aqui, quixotescamente (até porque não sou economista... mas tenho cérebro, o que só me dá problemas), a tentar explicar a coisa de uma forma que até as criancinhas a entendam.

Imaginem um país imaginário (ah pois) chamado Coelhistão. O Coelhistão tem 100 habitantes, nem mais, nem menos. Dos 100, 25 correm risco de pobreza antes das transferências sociais. Agora imaginem que, pelas transferências sociais, cada lingote de prata permite tirar 5 desses habitantes da pobreza e o governo coelhistanês gasta um. Quantos ficam em risco de pobreza após transferências sociais? Muito bem: 20.

Agora imaginem que o Coelhistão tem como vizinho outro país imaginário, o Lebristão. É quase igualzinho: tem 100 habitantes, 25 correm risco de pobreza antes das transferências sociais, e estas arrancam 5 a esse risco por cada lingote de prata gasto. O governo do Lebristão, no entanto, tem mais olho que o do Coelhistão e gasta dois lingotes em vez de um. Quantos habitantes ficam em risco de pobreza depois de transferências sociais? Isso mesmo: 15.

Conclusão estúpida: as transferências do Lebristão são mais eficientes do que as do Coelhistão. E a conclusão é estúpida porque a diferença está no dinheiro gasto, não na eficiência. Quem tira tais conclusões está a cometer asneira da grossa? Aldrabice? Incompetência? Cretinice? Podem escolher a explicação que mais vos agrade.

Mas esperem, eu ajudo a perceberem ainda melhor. Imaginem que o Lebristão é tal como descrito acima, mas no Coelhistão um lingote de prata tira 6 habitantes da pobreza em vez de 5. Imaginem que o Coelhistão gasta um lingote e o Lebristão gasta dois, como acima. Quantos ficam em risco de pobreza? Pois. 19 no Coelhistão, 15 no Lebristão.

Conclusão MUITO estúpida: as transferências no Lebristão são mais eficientes do que as do Coelhistão. Na verdade, as transferências no Coelhistão são mais eficientes (retiram 6 habitantes da pobreza contra 5 pelo mesmo preço), mas de novo a quantidade gasta é menor, logo a quantidade de gente resgatada também é menor. Este exemplo dá cabo das explicações mais benévolas para quem afirma coisas destas, não é? Só restam mesmo as fortes.

Ainda pensei escrever que achava que assim qualquer idiota perceberia isto, mas estaria a ser demasiado otimista. O Passos, por exemplo, nem assim lá chegaria.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Lido: O Pai Natal de 85

O Pai Natal de 85 (bib.) é mais um dos contos em que Steven Bauer adapta para literatura histórias que outros escreveram para televisão. Desta feita temos direito a mais um dos muitos contos já escritos em volta da figura do Pai Natal. Tem alguma piada, o conto, ainda que não seja nada de grandemente inovador. O Pai Natal, em pleno exercício das suas funções, é apanhado no meio da descrença generalizada e a coisa dá uma confusão dos diabos, acabando por meter polícia, prisão, o diabo a quatro. Ninguém acredita que ele é quem diz ser... à parte um miúdo (claro!), e até aos acontecimentos do desfecho do conto. O conto não me pareceu ser mau, mas tampouco me pareceu ser bom. E o que venho dizendo sobre a tradução do livro continua a aplicar-se nesta história.

Contos anteriores deste livro:

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Lido: Uma Noite na Periferia do Império

Uma Noite na Periferia do Império (bib.) é, provavelmente, o mais divertido de todos os contos de João Barreiros. Ficção científica com um toque de horror existencial avícola, passa-se num Portugal futuro, numa Terra posterior ao Contacto, o que é o mesmo que dizer na Terra que já descobriu que o Universo está dominado por espécies inteligentes emplumadas, não mamíferas, e que os análogos ETs aos primatas não passam de animaizinhos de estimação dotados de apêndices preênseis. E num Portugal que nutre um ressentimento surdo contra os Croap'tic, um ressentimento passivo, feito de má vontade e hostilidade resmungada. Biologicamente, há aqui ideias perfeitamente disparatadas (uma espécie incapaz de pegar no que quer que seja nunca seria capaz de criar uma civilização tecnológica), mas a história de como um embaixador alienígena chega incógnito a Lisboa e, por entre indignidades várias, vai de mal-entendido em mal-entendido até ao desastre final é realmente divertida e está muito bem apanhada. Um bom conto.

Contos anteriores desta publicação:

domingo, 17 de fevereiro de 2013

Primeiros milhares

Hoje, no Ficção Científica Literária, foi um dia especial. A etiqueta "Brasil" atingiu as 1000 entradas e pouco depois o mesmo aconteceu à etiqueta "Portugal". Isto não quer dizer que haja duas mil entradas no agregador, visto que há um número não despiciendo que inclui ambas as etiquetas (sempre que um brasileiro fala de uma obra portuguesa e vice-versa, sempre que uma publicação inclui obras de ambos os países, etc.), mas é um número redondo e é muito curioso que, depois de desde o início haver mais coisas etiquetadas como "Brasil" do que como "Portugal", numa proporção que chegou a ser de mais de 2:1, elas tenham chegado ao primeiro milhar quase ao mesmo tempo.

E eu achei que era uma boa altura para voltar a dar uma vista de olhos aos autores referenciados mais de 10 vezes. São necessariamente mais do que da primeira vez que o fiz, mas é interessante comparar as posições relativas. Cá vai a lista, com a anterior posição entre parêntesis:
  1. Ray Bradbury tem 71 referências (1).
  2. Philip K. Dick tem 39 referências (5).
  3. Suzanne Collins tem 34 referências (2).
  4. George R. R. Martin tem 32 referências (4).
  5. João Barreiros tem 26 referências (7).
  6. Scott Westerfeld tem 26 referências (12).
  7. Isaac Asimov tem 25 referências (3).
  8. Veronica Roth tem 20 referências (13).
  9. Douglas Adams tem 19 referências (6).
  10. Frank Herbert tem 18 referências (11).
  11. Júlio Verne tem 18 referências (9).
  12. Tahereh Mafi tem 17 referências (-).
  13. William Gibson tem 17 referências (7).
  14. Harry Harrison tem 16 referências (-).
  15. Robert Silverberg tem 16 referências (-).
  16. Arthur C. Clarke tem 14 referências (-).
  17. Gerson Lodi-Ribeiro tem 14 referências (-).
  18. James Dashner tem 14 referências (10).
  19. H. G. Wells tem 13 referências (-).
  20. Ursula K. LeGuin tem 13 referências (-).
  21. David Mitchell tem 12 referências (-).
  22. Octavio Aragão tem 11 referências (-).
  23. Orson Scott Card tem 11 referências (-).
  24. Robert A. Heinlein tem 11 referências (-).
  25. Stephen King tem 11 referências (-).
  26. Edgar Rice Burroughs tem 10 referências (-).
  27. George Orwell tem 10 referências (-).
Algumas subidas têm a ver com a leitura e comentário de contos (Barreiros, Harrison, Silverberg), outras com lançamentos recentes (King, Dick, Martin, vários juvenis), mas a maior parte dos novos nomes que aparecem na lista são mostros sagrados da FC, que continuam a ser lidos e comentados mesmo que não haja novos livros deles no mercado nem reedições dos antigos.

Continua é a não aparecer nesta lista nem um nome ligado à ficção científica madura contemporânea. O que mais se aproxima disso é o Gibson. Sintoma claro de desfasamento? É capaz de ser cedo para o afirmar taxativamente, mas...

sábado, 16 de fevereiro de 2013

Notas finais à análise do Vocabulário da Mudança

E pronto. Foi isto. Não estou a ver bem que dados se possam tirar mais do Vocabulário da Mudança (mas se tiverem alguma ideia, continuo recetivo, se bem que não garanta que a ponha em prática... é que isto, parecendo que não, ainda deu uma trabalheira), mas já aqui ficam bastantes. Mais que suficientes para tornar cristalino até que ponto é treta o que certos "estudiosos" andam a dizer sobre a nova ortografia originar divergência em vez de convergência. É preciso uma grande vesguice de análise ou uma grande dose de má-fé para afirmar uma coisa dessas. Sim, há casos de divergência, mas há muitas vezes mais casos de convergência, o que faz com que, no global, a ortografia convirja. Como é óbvio. E quem vos disser o contrário, estará a tentar aldrabar-vos. Não deem ouvidos a aldrabões.

Notem que esta minha análise, porque parte do mesmo ponto de partida daquele lamentável simulacro de estudo da Maria Regina Rocha, incide só e apenas sobre o Vocabulário da Mudança. E o VdM não é exaustivo. Há bastantes palavras que ficaram de fora, não só as formas verbais de que já tinha falado num dos primeiros posts da análise, mas outras também. Na verdade, e apesar de muitas vezes tentarem sê-lo, nenhum vocabulário de uma língua viva é exaustivo, precisamente porque a língua é viva. Uma língua viva está constantemente a mudar, há constantemente palavras novas a serem criadas ou importadas de outras línguas, palavras a cair na obsolescência, palavras a ser resgatadas dessa obsolescência, etc. Porque todas as línguas vivas têm os seus utilizadores criativos — e ainda bem que assim é; que seria da literatura sem eles? — e esses não se contentam com o que há e inovam... e também porque todas as línguas vivas têm os seus utilizadores ignorantes — e tantos que eles são, até muitos que julgam não o ser — e esses não sabem bem o que há e deturpam. Uns e outros são os agentes da mudança, e a mudança é constante e imparável. E isso implica que o momento em que um putativo vocabulário ficasse completo seria o exato momento em que se tornaria obsoleto.

Portanto, o Vocabulário da Mudança não é, nem nunca seria, algo de completo. No entanto, nada indica que não se trate de uma amostragem fiel do que muda e como. Uma amostragem que permite ter uma ideia bastante aproximada (sujeita a erro, como todas as amostragens, mas com um erro bastante pequeno) das tendências globais da mudança ortográfica e do que lhes está subjacente. Os números totais de cada categoria em que o fui subdividindo ao longo da análise seriam certamente diferentes com um eventual vocabulário completo, mas as proporções entre uns números e outros deviam ser muito idênticas. E as tendências gerais também.

E pronto, fico-me por aqui. Foi uma trabalheira. Mas também foi divertido, e foi, com toda a certeza, bastante instrutivo.

Uma nota final: caso não tenham reparado, criei uma tag própria para a análise: "

O resto

E chegados a este ponto, restam 31 palavras no Vocabulário da Mudança que não sofreram alterações devido a nenhum dos casos de que falei antes. A grande maioria destas palavras sofrem alterações devido à supressão da acentuação diferencial em paroxítonas. Trata-se do que aconteceu ao antigo "pára" e derivados ("pára-brisas", por exemplo), ao antigo "pêlo", ao antigo "pêro", etc. Passaram a "para", "para-brisas", "pelo" e "pero", e fizeram-no em todo o espaço lusófono. Isto corresponde a 27 dessas 31 palavras, e em todos os casos menos um trata-se de grafias únicas que mudaram mas se mantiveram grafias únicas. A única exceção é a palavra "pólo", que tinha, no Brasil, dupla grafia, "pólo" e "pôlo". Com a supressão dos acentos essa dupla grafia desaparece e a grafia converge para "polo".

Restam apenas 4 palavras. Em todas havia divergência de grafia nas ortografias pré-AO, e todas a nova ortografia transforma em duplas grafias. "Forma" e "fôrma", "judo" e "judô", "húmido" e "úmido" e "lambugem" e "lambujem". Ou seja, na prática, estas 4 palavras continuam a escrever-se como dantes.

Em resumo, nestas últimas palavras do Vocabulário da Mudança encontram-se:
  • 4 casos de grafias divergentes que passam a duplas.
  • 26 casos de grafia única que se transformam noutras grafias únicas.
  • 1 caso de convergência para uma forma nova.
E para acabar isto resta-me só escrever umas notas finais. Noutro post.

Novos hífenes

As novas regras da hifenação tiveram como resultado o desaparecimento de centenas de hífenes da língua portuguesa, e desde logo o mais absurdo de todos: o hífen em "há-de" (por que raio se há de hifenar "há de" se não se hifeniza "terá de"?!). Mas também criaram alguns novos.

Assim, há, no Vocabulário da Mudança, 25 casos de palavras que não eram hifenadas e passaram a sê-lo. Tal como acontece com os hífenes preexistentes, também aqui a mudança é feita em conjunto e com uma uniformidade que só não é total porque algumas palavras incluem também alterações que têm a ver com outras regras. Os números são:
  • São 2 os casos de grafias divergentes que passam a grafias múltiplas.
  • São 21 os casos de grafia única que continua a ser única.
  • Não há casos de divergência.
  • São 2 os casos de convergência, um para a forma anteriormente usada no Brasil, o outro para uma forma nova.
E não há mais nada a dizer sobre os números deste caso. São baixos, mais também são bastante claros.

O hífen antigo

E eis-nos no último grande grupo de palavras que consta do Vocabulário da Mudança: as hifenadas. Aqui, embora houvesse alguma divergência ortográfica entre as regras brasieiras e as dos demais países, o grosso da evolução é feita em conjunto, com regras novas para todos e uma unidade generalizada na forma de usar o hífen. Dividi a análise em dois grupos: o das palavras que já continham hífen antes do AO90, quer em toda a lusofonia, quer só em parte dela, e o das palavras que não eram hifenadas e passaram a sê-lo. Aqui falo apenas do primeiro desses grupos.

Entre as palavras presentes no Vocabulário da Mudança, as que tinham hífen nas antigas ortografias eram bastante numerosas: 1060. Cerca de um sexto do total. Mas uma parte destas palavras estão no vocabulário devido a mudanças noutras questões, não no hífen. Aquelas em que existe mudanças no hífen são só 902. Subdividem-se da seguinte forma:
  • Existem 14 casos de ortografias anteriormente divergentes e que, apesar das mudanças na hifenação, passaram a duplas ou múltiplas grafias. Em todos esses casos a multiplicidade gráfica deve-se a outros fatores, não ao hífen.
  • Os casos de mudanças em toda a lusofonia, ou seja, os casos em que uma grafia comum passa a outra grafia comum, são de longe os mais numerosos: 821.
  • Existem 64 casos de convergência.
  • Há apenas 3 casos de divergência, todos devidos a alterações que não têm a ver com o uso do hífen.
  • Entre os casos de convergência, 17 fazem-se para a forma que anteriormente era a portuguesa.
  • São 31 os que se fazem para a anterior forma brasileira.
  • São 16 os que se fazem para uma forma nova.
No que toca ao hífen, portanto, e por confusas que as regras possam ser (e eu acho que algumas são, embora também ache que o problema está longe de ter solução simples), a unidade ortográfica é total. A divergência que existia antes do AO90, que já era reduzida para começar, deixou de existir.

E neste momento falta-me falar-vos de pouco mais de 50 palavras. Mais três posts e isto acaba. Ufa!

Outros ditongos e vogais duplas

Além dos dois casos anteriores, razoavelmente numerosos, há mais alguns casos de mudanças na acentuação de vogais duplas e ditongos, embora todos eles sejam bastante raros. São os seguintes:

O ditongo OI nem sempre era acentuado no O. Também havia, na anterior grafia brasileira, casos de acentuação no I, como em "maoísta". Este acento também desaparece, e portanto todas as palavras que, no Vocabulário da Mudança, mostravam esse ditongo passaram a escrever-se sem acento. São apenas 4, e todas convergem para a anterior forma portuguesa.

Algo mais numeroso é o caso do ditongo IU em que, na anterior grafia brasileira, se acentuava o U. O exemplo mais comum é o da palavra "feiúra". Este acento também desaparece, e são mais 11 palavras do Vocabulário da Mudança cuja grafia converge para a anterior forma portuguesa.

Quando a vogal se repete, como na palavra "voo", a anterior grafia brasileira acentuava o primeiro O com um acento circunflexo. É mais um acento que o AO90 faz desaparecer, e é, portanto, mais um caso de convergência total para as antigas formas portuguesas. O Vocabulário de Mudança inclui 10 palavras destas. De notar que a mesma regra serve para o desaparecimento do acento circunflexo em certas formas verbais, como "lêem". Mas como se trata de formas verbais e no VdM os verbos só surgem no infinitivo, essas palavras não aparecem nas listas.

Ao todo, portanto, são apenas pouco mais de duas dezenas de palavras a sofrer este tipo de alterações, mas em todas elas o processo é o mesmo: grafias que antes do AO90 eram diferentes passam a ser iguais à forma que anteriormente era a usada em toda a lusofonia à exceção do Brasil.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Ei!

Ainda na acentuação de ditongos em palavras paroxítonas, temos agora um caso completamente diferente, embora o princípio que leva à mudança ortográfica seja o mesmo do post anterior: o do ditongo EI. Aqui, o uso anterior à nova ortografia era com frequência diferente no Brasil, onde o E era muitas vezes acentuado, e nos restantes países lusófonos, onde não era. Um exemplo: "europeia", que no Brasil se escrevia "européia".

Pois as palavras do Vocabulário da Mudança que incluem esse ditongo são 267 e, como o acento é suprimido, todas elas sofrem alterações. E aqui, a convergência é esmagadora. Temos que:
  • Não há um único caso de grafias divergentes nas antigas ortografias que se mantenham na nova como duplas grafias.
  • Existem 2 casos de uma grafia idêntica que é alterada para outra grafia idêntica.
  • 265 casos de convergência. Todos para as anteriores formas portuguesas.
  • Não existe uma única divergência.
De novo, os números falam por si e dispensam comentários. Resta-me apenas sublinhar que basta esta alteração introduzida pelo AO90 para fazer convergir mais vocábulos do que os que divergem somando todas as mudanças. Isso, confesso, diverte-me bastante quando penso no que se afirmava no artigo que me levou a fazer esta análise.

Oi?

Deixando para trás as consoantes mudas, voltamos aos acentos. Aqui falarei da acentuação do O nas palavras paroxítonas que incluem o ditongo OI. Essa acentuação, na nova ortografia, cai. Um exemplo: "heróico", que se escrevia assim em toda a lusofonia e passa, com o acordo ortográfico, a escrever-se "heroico".

E é isso o que acontece na vasta maioria dos casos: aqui, a mudança dá-se em uníssono, passando-se quase sempre de uma ortografia única antes do AO90 para outra ortografia única depois ao AO90. Quase sempre.

São, no Vocabulário da Mudança, 535 palavras que continham o ditongo OI acentuado, e em todas essas 535 palavras o ditongo perde o acento. O que acontece depois é o seguinte:
  • Há apenas 3 casos de grafias divergentes, devido a outros fatores, que passam a duplas grafias.
  • O número de palavras em que uma grafia idêntica é transformada noutra grafia idêntica é de 529. Quase a totalidade deste grupo de palavras.
  • Existem 3 casos de convergência.
  • Não há nem um único caso de divergência.
  • Entre as convergências, 2 fazem-se para a antiga forma portuguesa e 1 para uma forma nova.
E não há grandes comentários adicionais a fazer. Trata-se de uma mudança simples, que afeta por igual todos os utilizadores da língua.

Outros casos de emudecimento de consoantes

Além do P e do C, que emudecem em toda a lusofonia, embora em graus algo diferentes, há alguns casos de emudecimento de consoantes que só ocorrem nos dialetos brasileiros e que, portanto, só afetaram a anterior grafia brasileira. São invariavelmente casos em que o acordo ortográfico não teve qualquer impacto prático: embora as grafias anteriormente divergentes tenham passado a duplas, as palavras continuam após a adoção da nova ortografia a escrever-se tal e qual se escreviam antes: os brasileiros de uma forma, os outros de outra. E além disso a proporção dessas palavras é bastante baixa. Mas, por uma questão de completude desta análise, aqui ficam.

Na fonética brasileira, a sequência GD sofre ocasionalmente e num conjunto bastante restrito de palavras o emudecimento do G. Por conseguinte, na ortografia brasileira palavras como "amígdala" passam por vezes a "amídala". O número destes casos é bastante baixo: são apenas 16 as palavras do VdM que incluem essa sequência, e só 15 estão no vocabulário por causa do emudecimento do G. Todas elas tinham grafia divergente e passaram a ter dupla.

Também a sequência MN sofre em alguns casos, no Brasil, o emudecimento do M, e palavras como "amnistia" escrevem-se do outro lado do Atlântico sem M: "anistia". No Vocabulário da Mudança encontram-se 46 vocábulos que incluem essa sequência, mas só existe emudecimento do M em 31 deles. De novo, todas essas palavras tinham grafia divergente e passaram a tê-la dupla.

Na sequência NN não se pode falar propriamente de emudecimento, mas havia, e continua a haver, uma divergência no uso brasileiro e dos demais países. A palavra é "connosco", que do outro lado do Atlântico se escreve só com um N: "conosco". Mais uma grafia divergente que passa a dupla.

A sequência BD também sofre no Brasil, em casos muito raros, o emudecimento do B. O caso mais conhecido é a palavra "súbdito", que do outro lado do mar se escreve "súdito". No Vocabulário da Mudança encontram-se 21 vocábulos que incluem essa sequência, mas só 2 deles lá estão devido ao emudecimento do B. Em ambos, a grafia divergente passa a dupla.

Por fim, e ainda no Brasil, também na sequência BT se assiste por vezes ao emudecimento do B. O caso mais conhecido, "subtil", tinha antes do acordo ortográfico grafia dupla no Brasil, aceitando-se as formas "subtil" e "sutil". Há no VdM um total de 12 palavras a incluir essa sequência, embora só metade lá estejam por causa dela. Em todos esses 6 casos, as grafias divergentes passam a duplas.

Ao todo, são 55 vocábulos em mais de 6500. Muito pouca coisa.

O P como consoante muda: finalmente alguma divergência

É quando a consoante que tende ao emudecimento é o P que finalmente se encontra alguma divergência na nova ortografia. Tal como acontece com o C, há três casos distintos, um dos quais é bastante mais frequente do que os outros dois: O PT, o PC e o PÇ.

O caso mais abundante é, claro, o das palavras que incluem a sequência PT. São, no Vocabulário da Murança, em número de 300, embora em três dezenas delas haja alterações por outros motivos, não pelo emudecimento do P. Isto acontece apenas com 269 dessas palavras. E entre esses 269 vocábulos encontramos o seguinte:
  • São 151 os casos de grafias anteriormente divergentes que, na nova ortografia, passam a duplas. Bastante mais de metade.
  • Uma vez mais, não existem casos em que uma grafia anteriormente única continue a sê-lo.
  • Há apenas 15 casos de convergência, todos para a anterior forma brasileira.
  • Os casos de divergência são 103.
Aqui, como se vê, a divergência domina esmagadoramente, numa razão de quase 7:1. E domina ainda mais nas outras duas sequências consonantais cuja consoante muda tende a ser o P, apesar dos números absolutos serem muito menores.

A sequência PC conta 24 vocábulos no VdM, e todos lá se encontram devido precisamente ao emudecimento do P.
  • O número de casos de grafias anteriormente divergentes que passam a duplas é, aqui, de 6.
  • Não há nem qualquer caso de grafia anteriormente única que continue a sê-lo, nem nenhum caso de convergência.
  • Os casos de divergência são, portanto, 18.
Quanto à sequência PÇ, conta 22 vocábulos no VdM, também todos lá presentes devido ao emudecimento do P. Subdividem-se da seguinte forma:
  • São também 6 os casos de grafias anteriormente diferentes que continuam a sê-lo.
  • Volta a não haver nenhum caso de grafias iguais que continuem iguais.
  • 1 caso de convergência. Para a anterior forma brasileira.
  • Os casos de divergência são 15.
Tudo somado, estamos perante menos de 400 palavras, num universo de mais de 6500, entre as quais, realmente, a divergência é muito superior à convergência, apesar da maioria continuar a pertencer às palavras que tinham grafias divergentes antes do acordo ortográfico e passam agora a tê-la dupla. Todas as convergências se fazem para as anteriores formas brasileiras, como seria de esperar uma vez que só em Portugal permaneciam as consoantes mudas de origem etimológica.

Mas ainda há mais consoantes mudas. Esperem pelo próximo post.

Outras sequências consonantais com C

Além da sequência, CT, o Vocabulário da Mudança inclui palavras com outras duas sequências consonantais (ou só uma dependendo do ponto de vista) que incluem a letra C com tendência de emudecimento: a sequência CC e a sequência CÇ. A frequência de ambas é, no entanto, muito inferior à da sequência CT.

A primeira conta 146 palavras, no VdM, quase todas envolvidas na mudança. Aquelas em que o emudecimento do primeiro C leva a alterações ortográficas são 143. Entre estas, temos que:
  • Contam-se 58 casos de grafias anteriormente divergentes que hoje são duplas.
  • Não há nenhum caso de grafias anteriormente idênticas e que hoje continuem a sê-lo.
  • Existem 76 casos de convergência ortográfica.
  • 9 casos de divergência.
  • A convergência faz-se quase toda para as antigas formas brasileiras: são 74 palavras aquelas em que isto acontece.
  • De novo não há convergências para antigas formas portuguesas, mas há 2 para formas novas.
A novidade neste grupo de palavras é a convergência ser o subgrupo mais importante, ultrapassando até a situação que costuma ser mais comum: a de grafias divergentes antes do AO90 continuarem a sê-lo depois dele ou pelo menos admitirem grafias múltiplas. A razão convergência/divergência é, aqui, de mais de 8:1.

A outra, que inclui o C cedilhado, mostra números bastante semelhantes, embora algo inferiores. Num total de 125 palavras, das quais 124 estão envolvidas na mudança por causa do emudecimento do C, há:
  • 50 casos de grafias anteriormente divergentes que hoje são duplas.
  • De novo, não há nenhum caso de grafias anteriormente idênticas que continuem a sê-lo.
  • Os casos de convergência são 65.
  • Os casos de divergência são de novo 9.
  • As convergências são, na sua esmagadora maioria, para a anterior forma brasileira. São 62 os casos desses.
  • Uma vez mais, não há qualquer convergência para as antigas formas portuguesas, mas há 3 para formas novas.
E o comentário que se pode fazer a este grupo é em tudo idêntico ao anterior. Exceto a razão convergência/divergência, que é um pouco mais baixa. Só um pouco mais de 7:1.

E quanto ao C mudo estamos conversados. A convergência é esmagadora, embora, somando todos, continuem a predominar os casos em que a divergência prévia permanece, e ela faz-se esmagadoramente para anteriores formas brasileiras. Segue-se o P mudo. Noutro post.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

A sequência consonantal CT

E eis-nos no centro da polémica (em Portugal): a sequência consonantal CT, que tantas vezes tende para o emudecimento do C. Trata-se da mais abundante das sequências consonantais afetadas pelas mudanças na ortografia, e o Vocabulário da Mudança inclui um total de 1574 vocábulos que contém essa partícula. Nem todos, porém, sofrem alterações. Há uma parte desses vocábulos em que o C se articula sempre, logo se mudanças há na sua grafia elas devem-se a outros fatores. Neste último grupo contam-se pouco mais de 100 vocábulos; aqueles em que o emudecimento do C leva a alterações ortográficas somam 1470.

É uma fatia considerável do VdM, a segunda maior, logo atrás da acentuação da sílaba tónica. E o que acontece a essas palavras com a mudança ortográfica é o seguinte:
  • Contam-se 983 casos de grafias anteriormente divergentes que hoje são duplas, por vezes (quando ao emudecimento do C se somam outras alterações) triplas e num punhado de casos chegam a ser quádruplas.
  • O número de casos de grafias anteriormente idênticas e que continuam a ser idênticas é muito baixo: apenas 5.
  • 416 casos de convergência.
  • Os casos de divergência são 66.
  • Entre as convergências, a esmagadora maioria faz-se para a anterior forma brasileira: 409.
  • Não existe qualquer convergência para anteriores formas portuguesas. Mas há 7 para formas novas.
Esta sequência consonantal, sozinha, é responsável por cerca de 2/3 das convergências para a antiga grafia brasileira, e é por isso que os caturras (e principalmente os que ultrapassam a simples caturrice e entram de cabeça xenofobia dentro) tanto gostam de falar dela. Ao se "esquecerem" de todas as outras mudanças podem apontar para estes números e rasgar as camisas de indignação. O azar deles é que as outras mudanças também existem. E também contam.

Mas mesmo só olhando para aqui, falar-se em divergência ortográfica é completo disparate: a vantagem da convergência sobre a divergência é de mais de 6:1.

É também aqui que aparece a maior parte dos casos de que falo neste post.

Os números do trema

O trema é, de todas as alterações introduzidas na nova ortografia, aquela que oferece uma análise mais simples. Desaparece, pura e simplesmente, portanto todas as divergências ortográficas causadas pela sua existência também desaparecem. E em todos os casos, a convergência faz-se para a forma anteriormente usada em Portugal.

Simples, não?

Bem, quase.

É que há algumas palavras que, além do trema, sofrem também outras alterações, portanto nem todas as palavras de onde o trema desaparece passam a integrar o grupo das grafias unificadas. Os números são os seguintes:
  • No Vocabulário da mudança contam-se 321 palavras alteradas pelo desaparecimento do trema.
  • Entre estas, 313 convergem, todas para a anterior grafia portuguesa.
  • 8 destas palavras, apesar do desaparecimento do trema, mantém dupla grafia devido a outros fatores.
Uma curiosidade neste pequeno grupo de 8 palavras: Segundo o Vocabulário da Mudança, 5 destas palavras tinham anteriormente, no Brasil, não grafia dupla, mas quádrupla. Na nova ortografia passa a ser apenas dupla.

Outra curiosidade é estas 313 convergências para a anterior ortografia portuguesa corresponderem a exata metade de todas as convergências do mesmo género.

Também não deixa de ser interessante constatar que só as convergências causadas pelo trema já são em número muito maior que todas as divergências.

Os números da ortografia - Recapitulando

Com o aparecimento de alguns erros no tratamento da tabela do Vocabulário da Mudança, resolvi ir rever tudo o que ficou para trás. O resultado foi a descoberta de mais um erro, desta vez numa fórmula: quando calculei quantas das palavras convergentes convergiram para a anterior norma portuguesa e quantas convergiram para a anterior norma brasileira esqueci-me da possibilidade de haver convergências para uma ortografia nova, não utilizada até agora por ninguém. E de facto há algumas. Mais precisamente 20.

Por outro lado, nos verbos nenhuma mudança existe.

Ou seja, recapitulando, os números após correção dos erros são os seguintes:

  • O Vocabulário da Mudança contém um total de 6573 vocábulos
  • Entre esses, contam-se 3703 casos de grafias anteriormente divergentes que hoje são duplas (ou, em raríssimos casos, triplas). Na sua grande maioria são casos em que a prática anterior não muda.
  • Contam-se 1400 casos de grafias anteriormente idênticas que continuam hoje a ser idênticas (mas diferentes das anteriores).
  • Contam-se 1249 casos de convergência, grafias anteriormente diferentes que passaram a ser iguais.
  • Contam-se 221 casos de divergência, palavras que anteriormente se escreviam de forma igual mas passaram a aceitar dupla grafia.
  • Entre os casos de convergência, são 616 os que se fazem para a antiga norma portuguesa.
  • Entre os casos de convergência, são 613 os que se fazem para a antiga norma brasileira.
  • 20 casos de convergência para uma ortografia inexistente antes do AO90.
Em suma: há pequenas alterações nos valores, mas as tendências gerais não sofrem qualquer alteração.

O passo seguinte (que já está meio posto em prática) é analisar as mudanças caso a caso. Isso deve levar algum tempo, até porque tem uma componente manual relevante pois, se é fácil isolar automaticamente as palavras que incluem sequências consonantais, hífenes, tremas ou quaisquer dos outros detalhes que sofreram alterações com a nova ortografia, separar aquelas que as incluíam e continuam a incluir das que incluíam mas deixaram, total ou parcialmente, de incluir não é factível sem ir verificar os casos um a um. Ou pelo menos não o é sempre.

Trocando por miúdos, isto vai ainda durar vários dias.

O erro afinal era maior

Isto de ir fazer uma análise mais fina é engraçado. Descobri uma gralha no Vocabulário da Mudança que implica mais uma convergência (um uso antigo e brasileiro de "éi" que não estava acentuado). E acabei também de descobrir que os casos que levaram a este erro são mais que 16. As estações do ano incluem também a palavra "estio", e há mais três palavras que perdem a inicial maiúscula: "fulano", "beltrano" e "sicrano". Não me lembrava desta última alteração.

Tudo somado, portanto, são 21 palavras que estavam na coluna das grafias idênticas e passam para a das convergências. Pouca coisa, mas alguma coisa.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Ah, espera lá. Há aqui um erro

E eis que detetei um erro na análise que tenho vindo a fazer ao Vocabulário da Mudança. As fórmulas que fazem a comparação entre as várias ortografias não são sensíveis à capitalização. Olham para "Abril", depois olham para "abril", e dizem que as palavras são iguais. Mas não são, não exatamente.

O que isto significa é que há mais 16 palavras que se escreviam diferentemente com as ortografias antigas e que passam a escrever-se de igual forma na nova: os nomes dos 12 meses e os das 4 estações do ano.

Ou seja: a convergência é um puco maior do que afirmo aqui.

Verbos na nova ortografia

Os verbos são um tipo de palavra muito particular, na medida em que tipicamente se expandem num conjunto de algumas dezenas de formas vocabulares diferentes consoante os seus vários tempos e pessoas. Assim, achei que seria interessante isolá-los do resto do Vocabulário da Mudança, para ver se as tendências que se encontram na "população geral" (chamemos-lhe assim) de palavras aí existentes também se verificam entre os verbos.

Para tal, identifiquei automaticamente, na minha folha de excel com as minhas formulazinhas, um conjunto de palavras com probabilidade de serem verbos, ou seja, as que terminam em -ar, -er ou -ir. São ao todo 232. Entre estas, fui de seguida isolar os verbos. Isto fiz à mão, e é a única coisa feita à mão de toda esta análise; ou seja, se houver algum erro será decerto neste passo. Assumindo que não há, que nem deixei nenhum verbo de fora nem chamei verbo a nada que o não seja, o total de verbos no Vocabulário de Mudança é de apenas 178. O que, já agora, é uma boa indicação de quão limitadas são as mudanças introduzidas pela nova ortografia: há larguíssimos milhares de verbos na língua portuguesa.

Mas adiante.

Fiz, para os verbos, uma análise idêntica à que fiz para todo o vocabulário e que apresentei neste post. Como a análise é semelhante, apresento os resultados também de forma semelhante. Ei-los:
  • O Vocabulário da Mudança contém um total de 178 verbos
  • Entre esses, contam-se 70 casos de grafias anteriormente divergentes que hoje são duplas.
  • Contam-se 36 casos de grafias anteriormente idênticas que continuam hoje a ser idênticas (mas diferentes das anteriores).
  • Contam-se 60 casos de convergência, grafias anteriormente diferentes que passaram a ser iguais.
  • Contam-se 12 casos de divergência, verbos que anteriormente se escreviam de forma igual mas passaram a aceitar dupla grafia.
Ou seja, e de novo, a convergência bate a divergência por larga margem, ainda que um pouco inferior à da população geral. São "só" 5 vezes mais casos de convergência do que de divergência. Mais curioso, a meu ver, é que enquanto a razão entre grafias divergentes/duplas e idênticas/idênticas é semelhante ao que acontece na população geral (3703 para 1421 na população geral, ou seja, 2,6 para 1; 70 para 36 nos verbos, ou seja, 1,9 para 1), a proporção de casos tanto de divergência como, sobretudo, de convergência é muito maior. O motivo para isto é simples: os verbos são sobretudo afetados pelas mudanças na grafia das consoantes mudas, tendo as outras mudanças instituídas pela nova ortografia muito pouco efeito sobre eles, ou mesmo nenhum. E o que isso quer dizer é que mesmo nas tão mal-afamadas supressões de consoantes mudas, por critérios fonéticos, o efeito genérico é sobretudo de convergência ortográfica, ao contrário do que tão propalado tem sido por aí.

Era gajo para jurar que isto é mais um pequeno prego no caixão de certas ideias. Que vos parece?

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

E qual o efeito da acentuação da sílaba tónica?

E qual o efeito da acentuação diferenciada da sílaba tónica, alguém sabe? Sabem de que palavras falo? Falo daqueles casos de dupla grafia gerados por a sílaba tónica aparecer acentuada com acento circunflexo no Brasil e agudo na restante lusofonia. Casos como Antônio/António, tônico/tónico, abstêmio/abstémio, etc.

Pois bem: eu, graças à tal tabelinha excel, sei.

São ao todo 2426. Isto corresponde a uma fração significativa de todo o Vocabulário da Mudança (36,9%) e é aqui que se concentra a vasta maioria das diferenças ortográficas que o AO90 não resolveu. Estas 2426 palavras são 61,8% de todas as 3924 duplas grafias que o VdM diz permanecerem na nova ortografia. Ou seja: é este o principal problema que ficou por resolver, e o mais certo será acabar por ser resolvido através da supressão pura e simples desses acentos, conforme era advogado no acordo de 1986, que, apesar de não ter sido posto em prática, constituiu a base do de 1990.

Até sei quantas palavras têm diferença na vogal O e quantas a têm na vogal E, vejam bem. As que diferem por um ô/ó são 1665; as que diferem por um ê/é são 761.

Note-se que, na esmagadora maioria destes casos, não há qualquer diferença entre o modo de escrever com a nova ortografia e com as antigas. Apesar de aparecerem estas duplas grafias nas listas, na prática tudo fica como estava.

Para memória futura

Para memória futura, a Lâmpada Mágica, antes de me ver obrigado a alterar-lhe o template, era assim:


E foi mais ou menos assim durante quase 10 anos.

E era o único blogue em toda a blogosfera que era assim.

(sigh)

Sobre múltiplas grafias

Uma das grandes diferenças entre as grafias anteriores ao acordo ortográfico no Brasil e nos demais países é a prevalência de múltiplas grafias entre este conjunto de palavras cuja grafia sofre mudanças e que consta do Vocabulário da Mudança. Recorrendo à tal folha excel é fácil contá-las, e os números dificilmente podiam ser mais díspares. Na grafia portuguesa pré-AO só se contam 4, o que corresponde a uns muito insignificantes 0,06% do total. Na grafia brasileira pré-AO, no entanto, são 1334, 20,3% do total.

A explicação para isto não é tão evidente como pode parecer à primeira vista. Dir-se-ia que a manutenção das consoantes mudas na ortografia portuguesa permitia disfarçar até que ponto a pronúncia dessas consoantes varia entre os falantes da língua, variabilidade essa que é natural e inevitável quando a língua está em transição, como é o caso — o processo de perda das sequências consonantais na língua portuguesa é uma das mais persistentes tendências da língua, e está bem estudado.

As opiniões sobre se esse disfarce é bom ou mau divergem, e todas são, em princípio, legítimas, mas a verdade é que ele não explica tudo. Por exemplo: a numerosa família de palavras em que se inclui elétrico e eletricidade (são quase 200!) tinha, no Brasil, dupla grafia, elétrico e eléctrico, eletricidade e electricidade. Tinha no Brasil, e agora continua a ter em toda a lusofonia. Mas não me é claro porquê. Todos os brasileiros com quem falei me dizem que no Brasil só se usam as versões sem c, que as versões com c já nem sequer se ensinam na escola. Alguns manifestam completa estupefação quando são informados de que "electricidade" é uma grafia que as regras em vigor no seu país aceitam. Uma pesquisa no Google restrita aos sites dos domínios ".br" devolve 5 540 000 resultados para "eletricidade" e apenas 226 000 para "electricidade" (96,1% contra 3,9%, respetivamente). Para "elétrico" os resultados são 43 000 000, ao passo que para "eléctrico" não passam de 1 080 000 (97,5% contra 2,5%). E não se apressem a dizer que isto prova que os brasileiros também usam as grafias com c, ainda que muito minoritariamente; não se esqueçam de que essas eram as grafias oficiais nos demais países de língua portuguesa até à entrada em vigor da nova ortografia, de que há textos portugueses e de outros países lusófonos publicados em sites, blogues e fora brasileiros, e de que essa foi também a ortografia brasileira durante muitos anos. Antes da internet, é certo, mas a internet tende a conservar todas as variantes ortográficas devido à transcrição de documentos antigos. Experimentem procurar qualquer ortografia anterior a 1911 que certamente a encontrarão, algures, nesta grande biblioteca digital a que chamamos net. A menos que escolham alguma palavra particularmente obscura, presumo.

Ou seja, não compreendo por que motivo os brasileiros mantém "eléctrico" como variante legítima. Parece não ser usada por ninguém lá por aquelas bandas, nem em texto escrito, nem na oralidade. E como essas quase 200 palavras "elétricas", várias outras há, a aumentar de uma forma que à primeira vista me parece desnecessária o número de duplas grafias existentes na antiga ortografia brasileira. E, por extensão, na nova ortografia comum.

Será, talvez, um aspeto a rever?

Mudanças na Lâmpada

Durante os próximos dias vão encontrar mudanças aqui na Lâmpada Mágica e, mais que provavelmente, alguma instabilidade na aparência do blogue. O motivo é simples: quando o Blogger instituiu os seus novos templates baseados em widgets este blogue já tinha suficiente customização para não ser de ânimo leve que eu encararia a mudança para um template inteiramente novo, com todo o trabalho que isso implicaria. E além do mais, tudo funcionava, com mais truque ou menos truque, portanto deixei-o como estava.

Mas agora deixou de funcionar. Ou por outra, agora reparei que algures no passado houve uma coisa importante que deixou de funcionar: o acesso às páginas etiquetadas com uma determinada etiqueta. Dantes, embora clicando numa destas etiquetas que estão por baixo dos posts se fosse parar a uma página com um número limitado de posts (25, creio), podia-se clicar ali ao lado, na lista de etiquetas, e saltar-se-ia para uma página longa, com até 400 posts etiquetados da mesma forma. Mas agora já não. O Blogger, não sei quando, fez uma alteração qualquer que fez com que esse truque deixasse de funcionar, o que tem como consequência prática que todas as páginas mais antigas, etiquetadas com etiquetas muito usadas, ficaram inacessíveis por essa via. Continuam acessíveis via arquivos gerais, mas é só. E ter acesso a elas através das etiquetas é-me muito útil, por vários motivos.

Portanto vou ter de mudar para um template novo. Com pena de perder as minhas velhas caixinhas azuis, que há tanto tempo me acompanham, e acima de tudo irritado porque o Blogger conseguiu transformar um sistema simples, com o qual bastava saber HTML e algum CSS para criar um template personalizado com bom aspeto e funcional, numa imensa confusão de widgets e códigos estapafúrdios, com muito poucos pés e cabeça que se vejam, e uma interface incompleta e ineficiente que só dá para mudar algumas coisas. Porra para o Blogger.

Mas lá terá que ser. As mudanças, por aqui, começam ainda hoje.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Ah, e depois há as gralhas

Ainda sobre o acordo ortográfico, para terminar bem o dia, e porque vi alguém referir-se a uma compilação que um caturra qualquer fez sobre usos incorretos da nova ortografia que terá ido apanhando por aí, incluindo o uso de "fato" em vez de "facto" em documentos portugueses, eis uma referenciazinha a certo tipo particularmente elucidativo de lixo.

Há que admirar, diga-se, a desfaçatez destas criaturas. Começam por intoxicar a opinião pública, espalhando um monumental chorrilho de aldrabices sobre a nova ortografia, disseminando coisas como esta imbecilidade de imagem que aqui vos mostro e a que apus o carimbo de LIXO para evitar que a reutilizem...


(Quando a verdadeira "Versão Acordo Ortográfico" é, obviamente, "O cágado está de facto na praia")

... e depois de fazerem todos os possíveis por lançar a confusão no máximo possível de cabeças vêm culpar o acordo ortográfico por a confusão estar lançada.

É impressionante.

Mas é um bom retrato do nível rasteiro a que esta cambada tem descido. Quem precise de ser elucidado quanto ao tipo de gentinha que se tem agregado no bando dos caturras, tem aqui uma magnífica ilustração.

Palavras para quê? São artistas portugueses e não faço ideia que pasta medicinal usam nem se usam alguma.

Aaaaiiiii! É uma cedência ao Brasiiiilll!

Já os ouviram ou leram, não é verdade? Gente a rasgar as camisas, clamando que "Aaaaiiii! O AO é uma cedência ao Brasiiiiilllll! Querem-nos pôr a escrever brasileeeeirooooo! Às armaaaaas!" Conhecem o estilo, não é?

Pois. O giro de ter uma folhinha excel com todo o Vocabulário da Mudança é poder ir ver qual das grafias anteriores tem mais presença na nova. E eu, depois de ter publicado o post aqui em baixo (a ligação é só para quem veio ter a este sem passar pela casa de partida), de ter jantado e de me ter sentado outra vez ao computador a fazer coisas, achei engraçado ir ver isso mesmo.

Para tal, peguei nos tais 1228 casos de convergência e fui verificar em quantos a ortografia convergiu para a que se usava antes em Portugal e em quantos o fez para a que dantes se usava no Brasil. E quando vi os resultados soltei uma gargalhada.

É que são 615 casos em que a grafia unificada é a que anteriormente era portuguesa, e são 613 em que a unificada é a que anteriormente era brasileira. 615-613. Ganhamos nós.

Não é de ir às lágrimas de riso?

Os números verdadeiros sobre a mudança ortográfica

A regra mais básica para quem quer discutir as coisas com um mínimo de seriedade é não falsificar dados. Logo a seguir na escala das regras indispensáveis vem esta: não selecionar os dados que convém, fingindo que os outros não existem. Vem isto a propósito de uma senhora de nome Maria Regina Rocha, que parece que é (ainda será?) consultora do Ciberdúvidas e que terá feito um "estudo", muito publicitado pelos opositores à modernização ortográfica (ver aqui), onde pretensamente "prova" que a tal unificação ortográfica, longe de unificar a ortografia, aumenta a divergência.

Segundo ela própria afirma, chegou a tal fantástico resultado pegando nas tabelas do Vocabulário da Mudança e contando, manualmente, os casos em que a grafia converge ou diverge. Não todos, note-se. Só aqueles que, segundo ela, não são em número "residual" ou não afetam principalmente a grafia brasileira. E os caturras entraram em euforia, julgando que lhes foi dado de bandeja um bom argumento.

Acontece que, como afirmei aqui, a unificação ortográfica de que se fala e se pretende é passar a haver um único documento a definir a ortografia do português, no lugar dos dois atualmente existentes, não passarem todas as palavras a escrever-se da mesma forma em todo o espaço lusófono. É isto que é claramente afirmado no anexo publicado em conjunto com o Acordo Ortográfico de 90 no Diário da República portuguesa. Ver aqui.

Mas mesmo assim, eu sabia que os números da senhora eram aldrabados. Sabia que, ao contrário do que ela afirma, existe, de facto, uma convergência ortográfica e que não é pequena. Calculava que ela estaria algures nos tais casos "residuais" que ela ignorou, mas a verdade é que não tinha dados concretos.

Portanto fiz o que qualquer pessoa com um mínimo de boa fé faria: fui eu próprio tratar os dados.

Como não sou um completo nabo, não fiz as contas à mão. Saquei as tabelas do Vocabulário da Mudança e importei-as para uma folha excel. Depois, recorrendo a umas quantas fórmulas muito simples, comparei a ortografia portuguesa pré-AO (a que o Vocabulário chama "Ortografia Antiga (1945)"), a brasileira pré-AO (ou "Ortografia Antiga (1943)") e a moderna. Soube assim quais as palavras que tinham ortografia divergente, quais as que a tinham igual, e quais as que hoje têm grafias múltiplas. As palavras que tinham ortografia divergente incluem tanto a ortografia totalmente divergente (casos em que só se usava uma forma em Portugal e outra diferente no Brasil), como aqueles que eram parcialmente divergentes (casos em que a antiga ortografia brasileira tinha dupla grafia). De seguida verifiquei quais os casos de convergência (isto é, quais as palavras cujas grafias eram divergentes e que passaram a grafar-se da mesma forma), quais os casos em que grafias antigas divergentes são hoje grafias múltiplas, e quais os casos de divergência (ou seja, em que grafias anteriormente idênticas passaram a duplas grafias).

Gastei nisto cerca de duas horas.

E os resultados, sem nenhuma surpresa, são completamente contrários às conclusões da Maria Regina Rocha.

Ei-los:
  • O Vocabulário da Mudança contém um total de 6573 vocábulos
  • Entre esses, contam-se 3703 casos de grafias anteriormente divergentes que hoje são duplas (ou, em raríssimos casos, triplas). Na sua grande maioria são casos em que a prática anterior não muda.
  • Contam-se 1421 casos de grafias anteriormente idênticas que continuam hoje a ser idênticas (mas diferentes das anteriores).
  • Contam-se 1228 casos de convergência, grafias anteriormente diferentes que passaram a ser iguais.
  • Contam-se 221 casos de divergência, palavras que anteriormente se escreviam de forma igual mas passaram a aceitar dupla grafia.
Exato. Leram bem. A convergência bate a divergência com uma vantagem de mais de cinco para um.

Portanto, o "estudo" da sra. Maria Regina Rocha não passa de uma fraude. Uma fraude que pretende apoiar a oposição à nova ortografia com base em números inventados e em disparates.

Ou seja: nada de novo no reino dos caturras.

PS - posso fornecer a folha excel a quem a pedir, bastando para tal que me indiquem um endereço válido de email.

PPS - este estudo pode ser refinado com um tratamento mais sofisticado da tabela. Tenciono levá-lo a cabo, na medida do tempo que tiver disponível. Se tiverem sugestões sobre dados interessantes, sou todo ouvidos.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Cenas da escrita

Quando a vida me deixa algum tempo livre e me aparece uma dessas coisas à frente, gosto de ler com um sorrisinho irónico ao canto dos olhos aqueles conselhos muito sisudos (ou às vezes, nos melhores dos casos, nem tanto) que escritores de que muitas vezes nunca ouvi falar dão a escritores ainda mais obscuros do que eles, ou àquela massa que se limita a ter ambições.

(Emparentesando, eis outra coisa que me dá vontade de rir, isto das ambições literárias. Mas adiante. Desemparentesemos.)

Importância, não lhes ligo nenhuma. O único conselho realmente válido que se pode dar a alguém que escreve ou queira escrever é este: nunca dês importância a conselhos de escrita. Porque as pessoas são todas diferentes, os escritores são todos pessoas, logo os escritores são todos diferentes. O que resulta para um não resulta para o do lado e vice-versa. Cada qual tem de descobrir o seu próprio caminho. Aliás, escrever é isso mesmo: descobrir um caminho. E quem acha que o achou está acabado como escritor. Muitas vezes antes mesmo de começar.

Não, importância não lhes ligo nenhuma. Mas acho-lhes piada. Porquê? Por causa daquilo que revelam acerca da personalidade de cada um desses conselheiros.

Normalmente, a primeira coisa que tais listas de conselhos me dizem é que quem as faz se acha muito mais importante do que na realidade é. Mas não é isso que mais me interessa — até porque aí há tão pouca variedade que o interesse sofre logo. O que mais me interessa são as motivações, que quando não vêm claramente expressas vêm sempre nas entrelinhas, que levam cada um a passar longas horas em frente de um papel, real ou virtual, e aí empilhar palavras.

São milhentas.

Há quem retire do manuseio da língua um prazer de malabarista.

Há quem seja apenas ego e só procure admiração.

Há quem — no estrangeiro, quase só no estrangeiro, em especial na América; a maior parte dos portugueses têm alguma consciência das realidades do seu país — queira enriquecer, sonhe com contratos cinematográficos e listas de best-sellers.

Há os mesquinhos, que procuram pequenas vinganças, arrasar os desafetos.

Há quem se esconda atrás da escrita como de máscaras.

Há quem se transborde na escrita, revelando até o que não sabia conter.

Há quem procure escrevendo entender o mundo.

Há quem procure escrevendo entender-se a si próprio.

Há...

Pronto, basta. Vocês já entenderam. Todos os escritores são diferentes. E não são só os seus caminhos que são diferentes; o ponto em que começam também.

E há alguns que são mais ou menos como eu. Eu escrevo porque tenho a cabeça cheia de histórias, que em geral não me largam até que as passe a escrita. Não importa se as ideias são boas, se são más, se são assim-assim: ou as escrevo, ou me levam a azucrinar o juízo anos a fio. Tenho histórias na cabeça há décadas. Normalmente as mais complexas, as mais difíceis, as que exigem mais trabalho, disponibilidade e atenção. Porque as mais simples, as mais rápidas, aquelas que se baseiam em ideias que até nem são grande coisa ou que provavelmente alguém já teve antes, algures, essas escrevo depressa, vejo-me livre delas, liberto-me. É muito por isso que tenho tantos contos escritos e só um romance, e que mesmo este é bastante curto. É por isso que muitas das minhas histórias são coisinhas pequenas e despretensiosas, provavelmente insignificantes. E é também por isso que além das cerca de quarenta histórias que tenho ido publicando, há por aqui outras tantas que nunca viram a luz do dia. Porque publicar não é o mais importante. Na verdade, nem necessário é. O motor de tudo é a necessidade de libertação.

Sim, há alguns escritores que são mais ou menos assim. Mas, ou os que o são não têm por hábito andar por aí a dar conselhos aos outros, ou então são uma pequena minoria entre os colecionadores de palavras. E isso nem é bom nem mau, apenas é.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Lido: Resposta Universal

Resposta Universal, que é capaz de ter como subtítulo Pode Tomar-se Como Universo Uma Só Pessoa, é mais um poema de Alexandre O'Neil que arranca logo em modo choque, a falar de contadores de orgasmos. Eh lá, pensa o animado leitor, querem ver que temos piada javardolas à moda de Cesariny? Mas logo no verso seguinte o poema começa a falar de uma tal Micas, e o leitor depressa compreende, com a crista cada vez mais murcha, que se trata, não de um texto humorístico, propriamente, mas de um poema amargo sobre o fim insatisfeito e indiferente de uma relação insatisfatória e indiferente. Curiosamente, a mim, enquanto leitor, o poema deixou-me insatisfeito e indiferente.

Há umas coincidências do caraças, não há?

Textos anteriores deste livro:

domingo, 3 de fevereiro de 2013

Lido: Dieselpunk

Dieselpunk (bib.), o segundo volume da "trilogia punk" da Draco é uma antologia que, à semelhança do terceiro, foi organizada por Gerson Lodi-Ribeiro. A ideia das três trilogias, para quem não sabe, é juntar as técnicas literárias retrofuturistas (ou simplesmente futuristas, no caso do terceiro volume), juntar-lhes as culturas lusófonas e escrever histórias baseadas no sistema energético que corresponde a cada uma: o vapor, o diesel ou a solar. Não de forma rígida, porém; nesta antologia o foco está nos motores de combustão interna, não especificamente no diesel, que é só um de vários tipos. De igual forma, na Solarpunk o foco está nas energias limpas, não exclusivamente na solar. E na Vaporpunk há um conto cujo enredo gira em volta de desenvolvimentos no aproveitamento da energia... solar, precisamente. Mas em termos gerais é isso.

Em termos pessoais, tenho uma novela na Vaporpunk e uma noveleta nesta Dieselpunk, ambas parte do mesmo universo ficcional. E, tanto num caso como no outro, é com orgulho que as vejo lá.

Sim, porque, embora tenha gostado menos desta antologia do que da Vaporpunk, considero-a também uma boa antologia. Há aqui várias boas histórias, há uma que me pareceu mesmo muito boa, e boa parte do motivo por que prefiro a Vaporpunk tem mais a ver com aquilo de que eu gosto mais ou menos na ficção do que com as qualidades intrínsecas das histórias. Tem a ver com haver, nesta Dieselpunk, uma pegada pulp bastante mais expressiva do que na Vaporpunk, por exemplo. E eu, como já disse várias vezes, não morro propriamente de amores pelo pulp. Tem a ver com algumas destas noveletas terem como base ou cenário detalhes da história do Brasil que me passam grandemente ao lado, dificultando-me ou impossibilitando-me o completo desfrute das suas subtilezas. Um pouco como consequência disso, também me faltou mais Portugal; o único conto português aqui presente é o meu... e nem o meu se passa em Portugal. Não propriamente, pelo menos.

Por outro lado, isso é só a parte principal do motivo por que prefiro a Vaporpunk, não o motivo completo. Parece-me, por exemplo, que se juntarmos todas as histórias das duas antologias, aquela que tem mais fragilidades, inclusivamente no tratamento literário da própria língua, encontra-se aqui. Já o nível das melhores histórias é, julgo, muito semelhante. E bastante elevado em ambas.

Daí o orgulho.

Para saberem o que penso das histórias individualmente consideradas, basta seguir os links:
Este livro foi-me enviado pela editora por constar nele uma história minha.