sábado, 30 de setembro de 2017

Lido: O Tomo de M

Uma das formas clássicas de fazer a fusão entre a forma de contar histórias típica da fantasia e a ficção científica é ambientá-las num futuro distante, no qual um apocalipse qualquer fez regredir a tecnologia e a sociedade a formas de organização medievais ou ainda mais antigas, estando os elementos mágicos da história a cargo de velhos artefactos tecnológicos que, apesar de ainda se encontrarem mais ou menos funcionais, funcionam segundo princípios que as personagens deixaram por completo de conhecer.

Foi isso mesmo o que Ricardo Dias fez com o seu O Tomo de M, um continho interessante no qual um tal Krumm, o Magnífico, invade um templo dos bruxos de antigamente só para roubar um livro que, segundo as histórias, continha toda a sabedoria dos antigos. Não estando particularmente bem escrito, este conto, a escorrer ironia por vários poros, é no entanto francamente engraçado e tem o seu ponto alto no final, quando o leitor percebe o que realmente significa aquele M.

Contos anteriores deste livro:

Lido: As Energias do Amor

Há um tipo de história que, suspeito, os escritores gostam muito mais de escrever do que os seus leitores de ler: histórias sobre escritores, as suas crises existenciais, as suas dúvidas e inseguranças, as suas relações com outros escritores. São quase sempre histórias com uma percentagem de umbigo razoavelmente elevada, isto é, histórias em que a personagem-escritor é um alter-ego pouco disfarçado do escritor-escritor. E deixem-me sublinhar que não estou a falar no ar: eu próprio sou culpado de ter cometido uma história destas, portanto sei o que leva alguém que escreve a fazê-lo: O Deus das Gaivotas. Essa história, escrita em parceria com o meu pai, tem uma personagem rebelde em luta com o escritor que a escreve, e se a personagem rebelde é quase toda do meu velhote, o escritor é quase todo meu.

Serve isto principalmente para explicar que não sou imune à atração que o tema exerce e por isso talvez não seja o mais comum dos leitores quando chega a hora de pensar sobre uma história desse género. Pois é precisamente o que As Energias do Amor (bibliografia) é.

Mas embora o tema seja comum, as roupagens de que se reveste são as mais variadas. O conto das duas gerações de Candeias é uma espécie de exercício fantástico metaliterário. Já Kathe Koja, por seu lado, fez ficção científica. O seu protagonista é um escritor (naturalmente) frustrado (e há tantos neste tipo de história), que está obcecado com uma obra inacabada de um outro escritor, já falecido, ao ponto de se ter decidido a acabá-la, para o que se depara com um problema bicudo: não a compreende bem.

Mas estamos no futuro, e há solução: basta-lhe contactar o falecido, pois neste futuro que Koja nos apresenta existe a possibilidade de criar, antes da morte, uma cópia fiel da personalidade do futuro morto, armazenando-a em computador para poder interagir com os fãs. É um processo caro e raro, e por isso o falecido não está integralmente acessível a toda a gente, o que cria mais uma dificuldade ao nosso protagonista. Escritores, especialmente os frustrados, não costumam ser lá muito abonados. É principalmente isso o que faz mover a primeira parte da história: as iniciativas que o protagonista desenvolve para obter um contacto o mais completo possível com o seu ídolo. A segunda parte é principalmente sobre literatura, especificamente sobre o conteúdo que ela pode ter, e também sobre os limites da existência.

Nunca tinha ouvido falar de Kathe Koja, tendo só depois de ler esta história ficado a saber que é escritora com mais de duas décadas de carreira sólida, mas gostei do que li. É um conto inteligente e bem escrito, embora julgue que se prolonga um tudo-nada em demasia, o que fez com que não me tenha enchido propriamente as medidas. Mas sim, por aqui está aprovada.

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segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Lido: Ana

Uma olhadela ao boneco que aqui está ao lado e o grupinho que está aí e vai acompanhando o que vai sendo publicado neste blogue já sabe duas coisas: que vamos a mais um conto da Alexandra Pereira e que ele vem antecedido de mais uma dedicatória. Desta vez o contemplado chama-se João Botelho, que a malta conhece do cinema e até pode eventualmente ter lido o continho a ele dedicado, e este, o conto, é fantástico.

Ana, assim se intitula ele, com três letrinhas apenas, é um conto sobre um rapaz ou jovem que chega a casa de uma mulher, descrita longa e poeticamente, em busca de uma outra pessoa com a qual teria trocado correspondência durante algum tempo. Segue-se um diálogo repleto de frases arroubadas, discursivas e, francamente, ridículas como "Desta sorte lhe peço que guarde essa carta com desvelo e não a dê a ninguém, nem mesmo a mim que a escrevi, pois é da Ana e uma afeição recíproca pode ela manter pelos meus escritos, a qual a senhora desconheça" durante o qual vimos a descobrir que a tal Ana que o rapaz diz que ama é filha da mulher com quem dialoga e desapareceu enquanto criatura humana, metamorfoseando-se noutra coisa, o que é, se excetuarmos alguns sinais discretos e ambíguos logo no início do conto, aquilo que o afasta da literatura realista.

Não é conto que faça grande sentido, é um conto com alguns erros que uma revisão eficaz devia ter apanhado (as velas não se "enfonam"; enfunam-se) mas o pior, o que realmente o estraga, são mesmo os diálogos. Depois deste conto e de um par de outros que ficaram para trás, solidificou-se em mim uma certeza: Alexandra Pereira devia ser proibida de escrever diálogos porque quando os escreve a qualidade dos seus contos despenca. Há uma linha fina entre a prosa poética e a prosa ridiculamente empolada (os ingleses chamam-lhe "purple prose"), que os bons escritores não ultrapassam e os maus sim. Alexandra Pereira não costuma ultrapassá-la... mas quando se põe a escrever diálogos ultrapassa-a sempre, porque aparentemente não sabe (ou não quer saber, o que talvez seja pior) que em diálogo escrito em discurso direto essa linha é bastante mais recuada do que no texto descritivo, narrativo ou até em diálogos expressos em discurso indireto.

Consequência: este conto é mau.

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domingo, 24 de setembro de 2017

Lido: Ghost Writer

Há já um ror de anos, Bruce Holland Rogers usou um sistema de newsletter (para quem é novinho e/ou só conhece o facebook, é um sistema que envia com maior ou menor regularidade um email aos seus assinantes) para enviar pequenos contos aos fãs. Não sei ao certo quantos foram, pois julgo que não apanhei a coisa desde o início, mas sei que recebi nove. A alguns li na altura; outros não cheguei a ler, por falta de tempo e por não gostar de ler no écran do computador (e ainda não gosto; mas agora há tablets, e é diferente), mas juntei todos num pdf, e deixei-os à espera. Alguns vieram a ser traduzidos mais tarde e publicados em Portugal. Ghost Writer não foi um deles.

Trata-se de uma vinheta de horror que brinca com os dois significados da expressão ghost writer, a literal, de um escritor fantasma, e a mais comum, que designa aquelas pessoas discretamente contratadas para escrever os livros pretensamente escritos por figuras públicas ou por alguns autores particularmente populares e prolíficos.

E o horror está precisamente aí, pois ao protagonista desta história aplicam-se os dois significados da expressão, depois de o homem que o contratou para escrever a sua autobiografia, um falso xamã que entretanto parece ter aprendido umas coisinhas, o ter assassinado e anos mais tarde invocado do mundo dos mortos. Uma bela historinha, que tem um problema: é complicada de traduzir por depender tanto da ambiguidade da expressão inglesa que a titula.

sexta-feira, 22 de setembro de 2017

Lido: O Fim do Começo

Há muito em comum entre F de Foguete e este O Fim do Começo (bibliografia). Para começar, e acima de tudo, o maravilhamento com o espaço e o futuro, com as grandes coisas que a humanidade quase se diria estar destinada a fazer no seu trajeto para fora do útero terrestre. Também o ponto de vista que, embora não seja idêntico, é semelhante; quando em F de Foguete o ponto de vista é o de um jovem que anseia por partir para o espaço até que parte, neste conto é o da família que fica para trás, o pai e a mãe (Desse mesmo jovem? De algum outro? Pouco importa, no fundo), entre o entusiasmado e o preocupado, mas a certamente a rebentar de orgulho. E a identificação de vários começos. O começo da vida adulta dos jovens astronautas é, em ambos os contos, clara parábola para o começo da vida adulta da nossa espécie, corporizado pelo início da sua expansão para fora do planeta-natal.

Porque é isso o que Ray Bradbury realmente faz com estes dois contos. A partida para o espaço é como a primeira aventura fora da casa paterna, os foguetões que desaparecem no azul do céu são como a partida dos filhos do seio familiar, rumo à independência e ao que o futuro lhes trouxer. Em ambos, esta ideia vive bem forte. Mas a forma diferente como é concretizada realça não só as semelhanças mas também as diferenças. Este conto não é tão bom como o primeiro, em parte por ser menos subtil, mais claro na sua premissa, digamos, ideológica, em parte por afastar a atenção do verdadeiro protagonista: o jovem que se vai embora rumo ao espaço. Aqui, acompanhamos a espera dos pais pelo momento da descolagem do foguete que levará o filho a uma estação espacial cuja descrição faz lembrar a que vimos no filme 2001, uma Odisseia no Espaço. Trepidante? Sim. Mas é uma trepidação interna às personagens, e não se comparará, sem dúvida, com a trepidação do próprio jovem.

Apesar disso, o conto é bom. E, lá está, dele se pode também dizer o que eu disse do outro. A FC precisa de mais histórias assim, a escorrer esperança de todas as linhas. O mundo precisa de mais histórias assim.

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quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Lido: Adeus, Portugal!

O grande problema da sátira é só funcionar quando quem a faz traz algo de novo e não se limita a repetir o que outros já antes disseram, e o enorme problema das sátiras que têm como alvo Portugal e as supostas características do país e do povo até tem nome e tudo: Eça. É que contam-se pelos dedos de uma mão os que tentam satirizar Portugal enquanto país habitado por gente bizarra, cheia de esquisitas características só suas, e não acabam por parecer uns imitadores de terceira categoria porque Eça de Queiroz já o fez há mais de cem anos e já disse tudo e muito melhor do que quase todos. Paula de Lemos tentou juntar-se a esse ultra seleto grupo. Ficou bem longe. Bem longe.

Adeus, Portugal! é uma sátira, escrita em jeito de alegoria, sem personagens propriamente ditas mas povoada por "portuguesíssimos" tipos humanos (ou melhor: caricaturas de), mesmo chamando-se um deles Vladimir e outra Quixota. Uma novela fantástica que tem como alvo principal a burocracia e os burocratas, ou melhor, esse núcleo de todos os males da nação que é o funcionário público. Sim, porque toda a gente sabe que isto sem funcionários públicos, sem instituições, era o paraíso.

O resultado, apesar de haver quem goste (o júri do Prémio Manuel Teixeira Gomes de 2002, por exemplo, que lhe deu o primeiro prémio) é perfeitamente lamentável. As piadinhas sem graça arrastam-se ao longo das 76 páginas da novela, repetitivas, cansativas, acabando por se tornar insuportáveis muito antes do fim. A ideia básica percebe-se à terceira página, até porque em nada se distingue daquelas conversas de café ou de facebook prenhas de niilismo e ignorância que todos estamos fartos de conhecer, servindo as 70 e tantas que se seguem de pouco mais que reforço para os duros de entendimento que não perceberam logo às primeiras. Sim, porque o enredo, que até existe, é totalmente secundário no meio de tudo isto.

A melhor coisa que posso dizer deste livro é que a língua portuguesa não sai dele maltratada. Para mim é pouco, pouquíssimo. Mas há aqueles para quem basta. E há também gente com um sentido de humor diametralmente oposto ao meu, malta que acha graça aos Donos Disto Tudo, que a mim só raramente conseguem despertar um ténue sorriso (ou conseguiam, quando ainda perdia tempo a tentar ver o programa). É possível que essa malta ache este livro hilariante, o mais gargalhante regabofe desde os trocadilhos dos Malucos do Riso. Provavelmente haverá por aí pessoas em quem o humor (consegui resistir a pôr aspas, sou o maior) de Paula de Lemos ressoa.

Em mim é que não ressoa, de todo. Ler este livro foi um penoso exercício de paciência e teimosia. Felizmente é curto. Há que agradecer as pequenas benesses.

terça-feira, 19 de setembro de 2017

Lido: Y3K

Há um tipo de texto que me desagrada sobre todos os outros. Aqueles textos pretensiosos, carregadinhos de vontade de ser o que não são, armados em carapaus de corrida. Na literatura aparecem muito pelas mãos de autores medíocres, que dominam mal a sua arte e não sabem dela o suficiente para realmente conseguirem alcançar os efeitos que pretendem alcançar. E se falo aqui de literatura, como é óbvio, falo de toda, sem excluir aquele seu ramo chamado ficção científica.

Nos anos 80 e 90 do século passado (e ainda hoje, a bem dizer), o ciberpunk deu origem a muitos textos desse género, porque a fusão de drogas com realidades virtuais que tão típicas são (umas e outras) do subgénero cria as condições ideais para esse tipo de escritor tentar criar textos alucinatórios, cheios de experimentalismo. Alguns desses textos, muito poucos, até acabaram por resultar bem. Os outros...

Os outros são como este. Escrito em segunda pessoa por nenhum motivo discernível (além da tentativa de ser inovador, claro), é um texto de FC que não é ciberpunk mas é claríssimo ter sido fortemente influenciado pelo subgénero, tendo como protagonista um viciado numa droga camada Zombie que aparentemente faz uma viagem no tempo. Mas como o texto está escrito em segunda pessoa, é como se fosse o leitor o viciado em Zombie, o leitor o viajante no tempo, e logo até ao longínquo ano 3000, (não é spoiler; já está no título de Y3K) apesar de encontrar lá tecnologia perfeitamente reconhecível para um leitor do final dos anos 90, e gente a falar uma língua absolutamente percetível, absurdo que só não são maiores porque fica a pairar no ar a hipótese, bastante mais provável, de tudo não passar de efeitos da tal droga. Tudo numa prosa que está sempre mais preocupada em arredondar frases e criar atmosferas (que até cria, mas basta-lhe uma página para isso) do que em criar um enredo com pés e cabeça. Não é bom quando isso acontece.

Ou seja e resumindo, Jesús de León Serratos, apesar de nem escrever mal, tentou na minha opinião dar um passo maior do que a perna. E estatelou-se. Acho este conto bastante fraco.

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Lido: Portas do Conhecimento

Este Portas do Conhecimento é outro conto curioso e, embora pareça, não se baseia, uma vez mais, no velho cliché dos livros enquanto portais entre mundos. Não. Há uma pequena variante ao cliché, que não revelarei aqui porque não vale a pena e pode considerar-se spoiler. Uma pequena variante que também não é propriamente original mas em todo o caso evita que este conto de um Luís Corujo de quem eu nunca tinha lido nada siga um caminho demasiado previsível.

O conto leva-nos à Torre do Tombo, que o protagonista assalta de uma forma demasiado rápida e eficaz para ser realmente credível mas que a brevidade do conto (a qual fazia parte da proposta; não é por acaso que todos os contos desta antologia ocupam meras duas ou três páginas) torna inevitável. A ideia é encontrar qualquer coisa muito antiga de que anda à procura há muito tempo. Não ficamos a saber o quê nem propriamente o que acontece; o final do conto é aberto, apesar de conter uma sugestão de desfecho. Fica uma certa sensação de sabor a pouco, uma certa ânsia por informação adicional, mas este não é dos finais em aberto que o parecem ser por se ter esgotado ao autor o que dizer.  E como o resto do conto também está bem estruturado e razoavelmente bem escrito, a opinião final é positiva. Não é obra-prima nenhuma mas é um conto com interesse.

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segunda-feira, 18 de setembro de 2017

Lido: Renascimento

Renascimento (bibliografia), de Nancy Kress, não é propriamente um conto sobre renascimento. É um conto profundamente literário, mais um, muito bem escrito de uma forma sinuosa que vai entregando ao leitor a informação necessária para compreender a história sem lha enfiar à pressão goela abaixo com os famigerados infodumps de demasiada FC (e não só), mostrando que Kress tem um domínio invulgar do ritmo e da construção narrativa.

E sim, trata-se de ficção científica, ainda que durante boa parte do conto nem pareça muito. Há referências oníricas a criaturas mitológicas, nomeadamente grifos, há questões financeiras e guerras familiares causadas em parte por essas questões, há uma gravidez atípica, pois o bebé é um ser único, humano mas alterado por engenharia genética como nenhum outro. No fim, há um pouco de terror anunciado. Não há é personagens simpáticas. Pelo contrário, é cada uma mais antipática que as outras, dos pais da criança que parecem muito mais interessados em dinheiro e na fama que advém da originalidade do rebento do que no futuro deste, à protagonista-narradora, mãe e sogra daqueles, uma insuportável dondoca de sociedade, cínica, sarcástica e hipercrítica com tudo e todos, e que importa que seja frequente ter razão na crítica? Quem goste de se identificar com personagens é capaz de passar aqui um mau bocado, pelo menos se tiver boa opinião de si.

Como não é propriamente identificação o que eu procuro na literatura, essa parte pouco me afetou. O conto é realmente bom, complexo, bastante bem escrito e melhor concebido, uma crítica à forma superficial e egocêntrica com que tantas vezes se decide trazer crianças ao mundo. E um aviso contra a tentação de aplicar de forma irresponsável as potencialidades das ciências da vida. Aprovado.

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Lido: A Respiração

É isso mesmo, caríssimos. Voltámos à Alexandra Pereira e às dedicatórias. E desta vez, para variar, não é uma mas logo duas para que não nos queixemos de escassez. Uma a um famoso, o Doutor (assim mesmo, por extenso) Miguel Lobo Antunes, e outra a um desfamoso, um tal "Miguel em Coimbra".

E o conto da vez, A Respiração, é sobre um refugiado alemão da II Guerra Mundial. Trata-se praticamente de um estudo de personagem, quase sem enredo e com o final em aberto (de novo excessivamente, a meu ver), escrito numa prosa se não poética pelo menos poetizada, com alguns achados linguísticos bastante interessantes mas também com aquele ar de coisa que se autocompraz no malabarismo das palavras que tantos textos deste género parecem mostrar. E que tão pouco me agrada.

E além disso...

Antigamente, a literatura estava cheia de histórias que se pretendiam contos de sucedidos verdadeiros, relatados por forma a proteger a identidade dos protagonistas, para o que os escritores se socorriam de uma série de técnicas das quais a mais óbvia era substituir nomes por iniciais. O século XX desembaraçou-se dessa espécie de engano, dessa maneira de tentar fazer o que é falso parecer mais verdadeiro por via de uma ocultação desnecessária de identidades. Porquê? Porque essa técnica para promover a suspensão da descrença é, convenhamos, bastante tosca e há formas melhores, mais sofisticadas, até mais eficazes, de alcançar esse objetivo. Mas a verdade é que ainda vão aparecendo aqui e ali umas histórias anacrónicas que se valem do mesmo truque, por ultrapassado que ele esteja. Esta é uma dessas histórias. E também isso me desagrada.

Tudo somado, esta é na minha opinião mais uma história que não ultrapassa o razoável.

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domingo, 17 de setembro de 2017

Lido: F de Foguete

Ler hoje este conto escrito há longuíssimos 74 anos chega a ser deprimente. Porque Ray Bradbury sempre foi melhor quando escrevia histórias repletas de sentido de maravilha, e esta é uma dessas histórias. Mas é uma história cheia de um sentido de maravilha que hoje amargou de tal forma que lê-se este F de Foguete (bibliografia), lê-se o que se sonhava há três quartos de século, e não é possível evitar pensar-se no tanto que ficou pelo caminho e no tanto de sonho que não se cumpriu.

Bradbury põe-nos a assistir às vidas e conversas de adolescentes (dois em especial) repletos de sonhos, com a imaginação cheia de espaço e foguetões, ansiosos por ser escolhidos entre a multidão para também eles subirem para fora do planeta, onde a humanidade (ou só os EUA, não fica claro; Bradbury tendia a misturar as duas coisas... como tantos outros escritores americanos, de resto) desbrava ativa e energicamente novas fronteiras, sabendo que isso só acontece aos melhores, sabendo que as probabilidades não são muitas, mas cheios de sonhos na mesma. E depois um deles é escolhido. E depois o outro.

E lendo isto hoje, comparando este futuro de Bradbury com o nosso presente que com toda a certeza está muito mais adiantado no tempo do que o futuro que ele imaginou, comparando o programa de recrutamento maciço e uma geração inteira de olhos postos nas estrelas com o minúsculo punhado de astronautas que a nossa realidade engloba e a indiferença, quando não é hostilidade aberta, com que fatias assustadoramente grandes da sociedade encaram a exploração espacial e os esforços para fazer o Homem aprender pelo menos a viver no espaço circunterrestre, é quase inevitável que se instale o desânimo e uma certa saudade por um futuro que nunca existiu.

O maravilhamento que a ficção científica pode trazer faz uma falta imensa à nossa sociedade. Mas ela recusa-o. Uma imensa maioria ignora e rejeita a FC e entre aqueles que não o fazem as preferências atuais recaem claramente sobre a que é sombria, distópica, sem esperança. Falta-nos a luz do maravilhamento com as possibilidades que o futuro pode abrir. Seria uma luz que nos poderia guiar. É uma luz que este conto tem com abundância. E é uma luz que está quase extinta.

Recomendo a leitura deste conto. É antigo, e não o esconde. Mas mantém-se relevante. E está escrito com a habitual qualidade de Bradbury.

sábado, 16 de setembro de 2017

Lido: Ficções, nº 7

Na história das revistas literárias mundiais devem contar-se pelos dedos de muito poucas mãos (talvez só de uma, até) as que publicaram, no mesmo número, dois contos com o mesmo título e o mesmo autor. Pois esta Ficções nº 7 engloba-se nesse seleto grupo graças a decisão editorial, a Guy de Maupassant, ao medo e aos anos de 1882 e 1884.

À parte isso, trata-se de um número morno da revista, sem nenhum conto realmente extraordinário mas também sem nenhum conto realmente mau, sem nenhum conto que tenha ressoado realmente no meu gosto de leitor mas também sem nenhum que o tenha repugnado. Curiosamente, é um número com uma maioria de contos fantásticos: os dois de Maupassant são-no, e também o são A Viagem de Inverno, de George Perec (que considero o melhor conto desta revista), e Pequenos Terremotos, de André Ricardo Aguiar, quatro em sete. Não é habitual; embora o fantástico esteja quase sempre presente nas revistas Ficções, é quase sempre em minoria que o está.

Tudo somado, é uma publicação que gostei de ler, mas não muito.

E eis o que achei de cada conto:
Esta revista foi comprada.

Lido: Como Criar um Humano

Não deixa de ser curiosa a insistência de autores e publicações em publicar poemas de ficção especulativa, quando consideramos o desagrado, quando não é mesmo repulsa, que uma apreciável maioria dos fãs do género expressa pelas artes poéticas.

Lawrence Schimel é um desses autores. Em Como Criar um Humano (bibliografia) pega numa série de criaturas mitológicas, todas híbridas entre os homens e diversos animais, e faz um exercício poético curioso que, infelizmente, é completamente estragado por um final meia-bola-e-força, despido do menor vestígio de subtileza, e que ainda por cima é quase desnecessário porque a ideia já fica plenamente clara nas estrofes anteriores. Ignoro como é o original, o que em poesia traduzida é sempre algo a ter em conta (são as traduções mais complicadas que existem — palavra de tradutor), se tem restrições de métrica ou rima ou é verso livre como surge na tradução, mas esta até me pareceu boa. O poema é que nem por isso.

Contos desta publicação:

Lido: Padre Chip

Jorge Cubría foi de uma forma muito clara influenciado pelas ficções robóticas de Asimov. Não que neste seu Padre Chip haja cérebros positrónicos ou Três Leis, mas toda a atmosfera, parte do enredo e até o estilo literário desta história tem fios de influência claríssimos que a ligam a histórias escritas décadas antes pelo "bom doutor". E essa é uma das suas fragilidades.

O conto divide-se em duas partes. A primeira, em diálogo quase puro, é uma discussão filosófico-teológica sobre a possibilidade ou impossibilidade de um robô se tornar padre, espelho quase direto de discussões semelhantes que vão decorrendo há muitas décadas sobre a ordenação de mulheres, por exemplo. Não há nesta troca de argumentos, portanto, nada de particularmente novo, nem mesmo quando se analisa diretamente a questão da capacidade de máquinas pensantes para desempenharem funções que geralmente julgamos reservadas a seres humanos; o próprio Asimov, afinal, ajudado ou não por Silverberg, debate profundamente tais questões em livros como O Homem Positrónico.

E a segunda parte parece decalcada, com pequenas variações, do enredo das histórias centradas em R. Daneel Olivaw, o arco narrativo que Asimov criou para ligar as histórias de futuro relativamente próximo que escreveu sobre robôs às de futuro distante da série Fundação.

O resultado é uma história derivativa e antiquada (já o era em finais dos anos 90, mais o é hoje), escrita num estilo literariamente pobre, que traz muito poucos motivos de interesse para quem esteja familiarizado com a obra de Asimov. Poderá interessar aos outros, eventualmente mas, se me permitem um conselho, na escolha entre este conto e os do americano deem prioridade a Asimov. Ficam melhor servidos.

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sexta-feira, 15 de setembro de 2017

Lido: Libris in Ténebris

Contos sobre livros, curiosamente, tendem a invocar mais nos autores a ideia de biblioteca do que a de livraria ou de qualquer outro local onde eles se reúnam em quantidades apreciáveis. É a conclusão que se pode tirar do facto de várias das histórias do início desta antologia se ambientarem em bibliotecas. E este Libris in Ténebris é mais uma dessas histórias.

E é um bom conto, julgo que mais fantástico do que de horror, muito embora Diana Sousa tenha sido bastante mais eficaz em imbuir o seu texto de uma tensão inquietante (que desfaz ao rematar o conto, num efeito bastante curioso) do que a autora do conto que o antecede e que tenta ser horror. Um bom conto, com ritmo, com um bom tratamento da língua, sobre livros que ganham vida longe dos olhares indiscretos, ideia que apesar de estar muito longe de ser original está aqui bem aplicada.

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quinta-feira, 14 de setembro de 2017

Lido: Aos Olhos de um Alienígena

Por vezes surge em alguns textos a fantasia de que as revistas mais importantes do género estão imunes à publicação de histórias fracas e são impenetráveis para estreantes. Comprovando que não é bem assim, este Aos Olhos de um Alienígena (bibliografia), publicado originalmente na Asimov's, como julgo que aconteceu com todos os contos não brasileiros que saíram na Isaac Asimov Magazine, é a primeira história de FC da autora, Hilary Rettig. Mais do que isso, até: é a única história de FC que a autora escreveu. Ou pelo menos a única que conseguiu publicar.

E é uma história perfeitamente dispensável. Passado na Lua, o conto centra-se no dilema sentimental de uma adolescente que se recusa a aceitar que a irmã mais velha está perdida para a família depois de ter decidido viver na superfície e sofrer as profundas alterações fisiológicas e psicológicas que tal decisão acarreta. E aqui chegado, o leitor com alguns conhecimentos biológicos coça a cabeça, perplexo, faz muita força para conseguir manter a suspensão da descrença, mas acaba por desistir, impotente. A ideia é tola. E o que Rettig faz com ela é irrelevante. Não seria necessário subir até à Lua e criar um ambiente alienígena (muito pouco sólido, diga-se) para apresentar uma historinha cheia de angst adolescente sobre o afastamento fraternal.

Ao menos Heinlein, quando escreveu o seu Estranho Numa Terra Estranha, que serviu claramente de inspiração para a parte de alteração humana desta história, pôs o Valentine Smith a nascer em Marte e a ser criado por marcianos, logo a ser influenciado pelo ambiente local desde a mais tenra infância. Não a metamorfosear-se por completo em quatro ou cinco anos, já depois da puberdade. E já para não falar de usar esse seu humano alienígena para uma série de provocações e críticas que têm como alvo a sociedade terrestre do seu tempo, em muito em particular as religiões (ou as seitas se preferirem) que tendem a brotar como cogumelos sempre que o terreno se deixa fertilizar um pouco. Rettig não faz nada disto, não vai ao fundo de nada, limita-se a produzir uma historieta superficial sem nada que a torne memorável. Uma história muito pior do que as que a antecederam.

Uma história fraquinha, muito fraquinha.

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Lido: A Groselha que Pariu um Rato Ou O Violãotista Mimado

Sim, sim, sim, não muda nada: Alexandra Pereira lá aparece com mais um conto antecedido de dedicatória a alguém famoso, desta vez alguém que até pode ser que a leia um dia: o Ondjaki. Ainda que, incongruentemente, o Ondjaki seja angolano e o conto seja caboverdiano até à medula. Coisas.

E além de caboverdiano é realista, pesem embora algumas piscadelas de olho ao realismo mágico, que no entanto caem mais na conta da poetização da prosa do que na da entrada do fantástico enredo dentro. O final em aberto deixou-me insatisfeito (algumas histórias percebe-se bem por que motivo são deixadas em aberto; outras, porém, mais parece terem ficado assim por se ter esgotado aos autores o que dizer, e é o caso desta), mas o conto não é mau. Descreve as vivências de um tal Mané, tocador de violão e bon-vivant, desde a infância pobre em Cabo Verde até à descoberta do mundo e à chegada a porto seguro em Portugal. E fá-lo com uma prosa de boa qualidade, aqui e ali com uns achados muito bem conseguidos, entre a poesia e a ironia, ou não se camasse a obra A Groselha que Pariu um Rato Ou O Violãotista Mimado. Mas, em parte devido àquele final inconclusivo, acabei a leitura com aquela sensação de "OK, e daí?" que faz com que também não possa achar este conto bom. Pariu um rato, realmente. É, assumo, questão de gosto pessoal. O conto até tem conteúdo, não é daquelas histórias que se esgotam na forma... mas a verdade é que esta predomina demasiado para o meu palato literário.

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quarta-feira, 13 de setembro de 2017

Lido: A Abóbada Energética

A ficção científica pulp mundial tem alguns marcos que costumam receber o qualificativo de incontornáveis (embora tudo, no fundo, seja contornável); aquelas obras, séries ou autores que se revestiram ou revestem de especial importância para o género como um todo ou para uma certa época. A esmagadora maioria desses marcos são americanos ou em muito menor escala britânicos, mas há exceções.

Uma dessas exceções, talvez a principal, é a série alemã cujo herói recebeu o nome de Perry Rhodan. Para começar, por ser a mais longa de todas, com um número de publicações que já ultrapassa largamente as três mil, o que, mesmo tendo em conta que está em publicação ininterrupta desde 8 de setembro de 1961 (há quase precisamente 56 anos, portanto), é um número impressionante. Ainda por cima não se trata propriamente de contos; a grande maioria das publicações é constituída por obras com o tamanho de novela e também existem obras mais extensas. Mesmo que elas fossem todas péssimas, portanto, a relevância desta série seria inegável e é curioso (ou nem tanto) que ela nunca tenha conseguido captar as atenções do público português. Houve uma tentativa de publicação há algumas décadas, mas aparentemente não terá pegado, visto que a coleção depressa chegou ao fim.

No Brasil, pelo contrário, a série foi alvo de publicação regular durante bastantes anos e, embora esteja hoje relegada para publicação exclusivamente eletrónica e amadora, continua ainda a existir um conjunto de fãs bastante ativo.

Ora eu, como digo sempre que tenho oportunidade, estou bem longe de ser o maior dos apreciadores de literatura pulp, seja ela de ficção científica ou de outro género qualquer. Mas como esta série é relevante, quando tive a oportunidade de agarrar umas quantas edições brasileiras não a perdi. Esta A Abóbada Energética, de K. H. Scheer (um dos dois criadores do conceito), foi a minha primeira leitura, deliberadamente fora de ordem pois também queria avaliar quão legíveis são as histórias se lidas independentemente umas das outras, e as expetativas eram, confesso, as piores.

E não é que isto não é tão mau como isso?

Trata-se, obviamente, de ficção simples e aventuresca, juvenil, com um herói claro (mas mais ambíguo do que eu esperava). Mas também é um livrinho bem estruturado, que não cai na tentação de se resumir a cenas de pancadaria e muito pouco mais, tão comum nas obras pulp originárias dos EUA, e até com um fundo político razoavelmente interessante. O enredo conta-se em dois tempos. Perry Rhodan, o herói, terá em episódios anteriores tomado posse de uma nave alienígena que estaria estacionada na Lua e regressa à Terra, pousando sem autorização no deserto de Gobi, desencadeando com isso uma violenta tempestade diplomático-militar, não só entre as desavindas potências terrestres, como entre a Humanidade e os alienígenas que tinham construído a nave e não estão propriamente impressionados com o bom do Homo sapiens. Na verdade, estão tão mal impressionados que paira no ar a ameaça de extermínio. E quanto ao lado de cá, é o costume: perante uma coisa nova e assustadoramente poderosa, a resposta imediata é a ameaça de violência.

Só que a essa violência contrapõe o herói a abóbada energética do título, um escudo de energia praticamente impenetrável (pelo menos enquanto o gerador aguentar), e alguma habilidade estratégica que o leva a resolver pacificamente a questão. E não, não estou a fazer um grande spoiler: isto é pulp. Resolverem-se as coisas no final faz parte da receita básica.

O resultado é uma história de leitura rápida e agradável de que eu, para minha surpresa, gostei. Não muito, mas sim, gostei de ler este livrinho, que acho significativamente melhor do que muitos livros muito gabados de autores anglo-saxónicos como E. E. "Doc" Smith, Edmond Hamilton e outros. Isto não quer dizer que todas as obras da série o sejam, claro. Mas este livro em concreto surpreendeu-me pela positiva.

No que toca à outra parte do teste é que a porca torce o rabo. É que embora o livro se deixe ler de forma isolada, há demasiadas pontas que ficam soltas por faltar a leitura dos dois livros anteriores. Não sei se é sempre assim, pois a série subdivide-se em subséries (chamadas "ciclos") e pode ser que estas sejam razoavelmente independentes umas das outras, mas dentro de cada um dos ciclos os livros parecem formar uma sequência que se não exige pelo menos aconselha leitura contínua. Portanto, o próximo livro de Perry Rhodan que eu ler será o primeiro.

terça-feira, 12 de setembro de 2017

Lido: No Labirinto

Não é novidade para ninguém que a ficção científica portuguesa é território rarefeito, com publicações esporádicas, poucos autores (e poucos leitores) e uma variedade de temas e abordagens que deixa muitíssimo a desejar, até porque vários dos autores que vão conseguindo ganhar alguma projeção mostram uma certa aversão ao risco de experimentarem registos diferentes daqueles em que se sentem mais confortáveis. Neste contexto, não é de surpreender que subgéneros inteiros estejam imensamente subrepresentados, quando o estão de todo. O ciberpunk é um desses géneros, pois talvez se consigam contar pelos dedos das mãos as obras ciberpunk que foram produzidas por autores portugueses dos anos 80 a esta parte. E quando falo em obras incluo contos, não me refiro só a livros.

No Labirinto (bibliografia), de Ricardo Loureiro, é uma dessas obras.

E é bastante típica, acompanhando as desventuras de um hacker (de quem mais?), variedade crawler, prestes a ver a sua atividade ultrapassada por programas de inteligência artificial de última geração, ou pelo menos assim o dizem os boatos, enquanto se vai vendo submerso num dilúvio de problemas provocados pela infeção por um vírus. Dos informáticos, não dos biológicos, embora tenha os seus efeitos visíveis no corpo do protagonista. E claro que as coisas não correm bem; o ciberpunk e a distopia são gémeos de pais diferentes.

O conto não é mau, mas também não é bom. Loureiro perdeu uma boa oportunidade de criar uma história relevante quando aflorou o tema da substituição de profissionais por IAs sem realmente o aprofundar, limitando-se a escrever uma muito mais batida aventura de sobrevivência (ou pelo menos tentativa de) sob o ataque de uma doença. Talvez piores são as fragilidades que mostra no domínio da língua, com frases como "a comichão tornou-o a incomodar" e outras do mesmo género. Particularmente irritante para mim, embora isso seja assumidamente questão de gosto e eu perceba o que lhe está na origem, é a autêntica floresta de anglicismos que o conto contém, muitos dos quais me parecem muitíssimo desnecessários (account? jobs? countermeasures? C'mon!).

E mesmo assim, tão escassa é a produção que este conto é talvez o melhor conto ciberpunk português que eu li e provavelmente será dos melhores que se escreveram. Mesmo não passando, como não passa, do razoável.

Conto anterior desta publicação:

sábado, 9 de setembro de 2017

Lido: Se Ha Perdido una Niña

A principal utilidade de termos genéricos como "ficção especulativa" reside em enquadrar facilmente obras que de outra forma seria muito difícil de classificar. Se Ha Perdido una Niña, conto multipremiado de Alberto Chimal, é uma dessas obras.

Fala-nos de uma tal Ilse e da forma como ela se perdeu para a família, tudo visto através dos olhos do tio, que também foi responsável por colocá-la no caminho da perdição, por assim dizer. Porquê? Porque num belo dia se esqueceu do aniversário da jovem sobrinha, e portanto de lhe comprar um presente, tendo de improvisar qualquer coisa à última hora. Por ironia do destino, a improvisação consistiu num livro com o título do conto, escrito por uma escritora russa, Galina Demikina, e publicado em espanhol em 1982 pela Editorial Progresso, da URSS.

Cabe aqui um aparte para esclarecer que sim, o livro (uma fantasia infantil) e a autora existem mesmo e que a Editorial Progresso era uma das várias editoras soviéticas (também havia a Ráduga e a Mir, pelo menos) cuja atividade editorial consistia em parte em traduzir e publicar livros soviéticos em outras línguas, não só para consumo dos estudantes nacionais dessas línguas mas também para venda no estrangeiro.

Ora o que faz Chimal com este livro? Pois deixa a sua protagonista fascinada ao ponto de querer escrever à autora, o que vai ter um tal impacto na sua vida e crescimento que acabará, anos depois, por a levar a viajar para uma espécie de universo alternativo, no qual a URSS (e o seu regime político, naturalmente) nunca deixou de existir.

E consegue escrever um conto excelente, muito bem escrito, muito bem concebido, metaliterário, pois o enredo da sua história mimetiza em grande medida o enredo do livro de Demikina (este é sobre uma menina que viaja para um mundo fantástico ignorado de, e aparentemente fechado a, todos os demais, o que é mais ou menos o que Ilse acaba por fazer), e situado algures entre a fantasia e a ficção científica. A homenagem ao livro original e à sua autora é clara, a ironia é forte logo desde o primeiro parágrafo, onde o narrador nos diz que como fez um semestre de letras muita gente julga que gosta de ler, e o comentário ou reflexão política também não está ausente.

O início desta antologia é realmente bom.

Contos anteriores deste livro:

Lido: A Passagem Secreta

Sara Farinha apresenta uma história que, apesar de envolver a criação (frustrada) de um portal entre o nosso mundo e uma qualquer dimensão aparentemente demoníaca, A Passagem Secreta (bibliografia) do título, é mais fantasia urbana do que propriamente horror porque a autora não conseguiu conferir-lhe emoção. Ambientada em contexto de praxe académica, esta é a primeira das histórias deste livro de que não gostei mesmo. Em parte por pouco haver nela de novo, pouco passando de uma reutilização pouco imaginativa de velhos clichés. Em parte porque a história está mal construída para um conto tão pequeno, perdendo-se em descrições que não estariam deslocadas numa história mais longa mas aqui estão, e depois parecendo não ter espaço para desenvolver a história propriamente dita de forma a dar alguma potência ao desfecho. E numa terceira parte porque o próprio português é fraco. Exemplificando. «Observei-o enquanto o livro ocupou novamente o seu espaço» é mau português; em vez de ocupou devia estar ocupava. «E sem querer deixei-o escorregar das minhas mãos» também não é grande coisa; aquele minhas é desnecessário porque quando deixamos escorregar algo das mãos subentende-se que é das nossas, o que é comummente ignorado por autores com carência de leitura de boas obras escritas em bom português e com excesso de consumo de material em inglês, língua que, ao contrário da nossa, exige esse tipo de construção. E como há mais coisas destas espalhadas por todo o texto, o resultado final não me pareceu satisfatório.

Contos anteriores deste livro:

quarta-feira, 6 de setembro de 2017

Lido: Dori Bangs

Se Estados do Vácuo é um exemplo de uma obra de ficção científica que é incontestavelmente parte da vasta (bem mais vasta do que alguns gostariam) família da literatura, Dori Bangs (bibliografia), uma história completamente diferente dessa, é, não obstante, outro.

Começa este conto de Bruce Sterling como um relato factual, quase histórico, sobre duas personalidades da cultura americana que na vida real morreram cedo. Lester Bangs foi um crítico musical, morto de overdose acidental de remédios para a tosse aos 33 anos; Dori Seda foi uma cartunista, pintora, ceramista e autora de BD, morta de complicações de uma gripe aos 37 anos. Na vida real, os dois nunca se conheceram, mas o que Sterling aqui faz é imaginar o que poderia ter acontecido caso um e outro tivessem escapado às respetivas mortes prematuras e continuado a viver. No linguajar da ficção especulativa, Sterling cria e explora parcialmente uma linha temporal alternativa, com base em dois pontos de divergência relacionados com a saúde dos protagonistas.

Com isso constrói uma história-homenagem mais que um pouco sombria, dedicada especialmente a Dori. Na linha temporal criada, Lester e Dori encontram-se, têm uma relação tumultuosa, casam (daí o Dori Bangs do título), têm um casamento igualmente tumultuoso e, entre sucessos e falhanços, vão vivendo até acabarem por conhecer o destino de toda a gente, já em pleno futuro, século XXI adiante. Tudo isto servido com a prosa enérgica de Sterling, bem conhecida por qualquer leitor familiarizado, ainda que vagamente, com o ciberpunk, pois Sterling foi determinante na definição do estilo típico do movimento e influenciou fortemente um par de gerações de autores. E tudo servido, também, por personagens fortes e tridimensionais, repletas de qualidades e defeitos.

E também servido pela quebra de um dos paradigmas mais constantes das obras de ficção: a ficção, também ela, de que o que está escrito corresponde de alguma forma a um acontecido. Não existe aqui necessidade de suspender a descrença, pois Sterling avisa logo a abrir que o que escreve nunca aconteceu, e volta a fazê-lo no fim. É uma fantasia, escreve-nos ele, sublinhando um facto que todos conhecemos quando lemos ficção mas raras vezes nos é assim explicitamente afirmado por quem a escreve. E isto, meus caros, faz também com que este conto seja indubitavelmente literário e de ficção científica. Só para tirar de vez as dúvidas que pudessem ter persistido após o de Landis.

Se o conto no fim de contas é bom, perguntam? É sim senhor.

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Lido: Yakutuba

Se têm estado atentos, ao ver esta capa verde aqui ao lado já sabem: é mais um conto de Alexandra Pereira e vem antecedido de uma dedicatória a algum ilustre que provavelmente nunca lerá nem conto nem dedicatória.

No caso deste, no entanto, até é possível que leia, pois o alvo da dedicatória reúne duas características que abrem essa possibilidade: é português e está vivo. Chama-se Janita Salomé, e se não sabem de quem se trata não têm grande salvação.

Não descortino é o porquê da dedicatória. Yakutuba, a história, que vem com o subtítulo de A Mulher-Serpente das Duas Vozes, é uma história fantástica, mais ou menos aparentada com o horror mas fundamentalmente mágico-realista, sobre alguns acontecidos razoavelmente trágicos envolvendo uma brasileira, Yakutuba, a personagem. Esta é madame de um prostíbulo de luxo situado num castelo austríaco erguido perto da fronteira italiana, e a história descreve-a, à sua profissão, às suas instalações e a um conjunto de prodígios que um belo dia nestas aconteceram, tudo numa prosa carregada de poesia. Que tem isto a ver com o bom do Janita? Alexandra Pereira lá saberá.

Este é outro conto interessante, a atirar para o bom, pelo menos se lido isoladamente dos demais. É que acontece com este livro algo que por vezes sucede com livros de contos, mas disso falarei quando chegar o momento de falar do livro como um todo. Ainda deve demorar.

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terça-feira, 5 de setembro de 2017

Lido: Arvies

Quando a ficção científica se interseta diretamente com discussões em curso nas sociedades que dão origem a essa ficção científica não é raro que o resultado seja o mais relevante possível. Também não é raro que seja francamente bizarro, e note-se que estas duas coisas não são mutuamente exclusivas. Arvies (bibliografia), palavra inventada que provém da pronúncia inglesa das iniciais RV, nunca explicadas embora haja no conto elementos suficientes para levar à conclusão que devem significar "recreational vehicle" (e são um trocadilho evidente com VR, "virtual reality"), nasce do debate nos EUA sobre a despenalização do aborto, e atira o leitor para um futuro distante em que os vivos são fetos superinteligentes e alterados geneticamente, cujos corpos se mantêm no útero durante séculos enquanto as mentes vão vivendo as mais variadas vidas por interposto corpo. Ou melhor: corpos

Interpostos corpos esses que são os mortos, isto é, os arvies, ou seja, os veículos recreativos.

Confusos?

É mesmo essa a intenção. E para aumentar a confusão moral de tudo isto, Adam-Troy Castro ainda resolve acrescentar à receita um feto particularmente perverso, que decide usar uma arvie, uma tal Molly June, que está viva e por conseguinte, naturalmente, está morta, para fazer algo impensável e, francamente, porco: não só ficar grávida, o que é razoavelmente comum, mas levar a gravidez até ao seu primitivo fim, dando à luz.

Sim, tudo é tão bizarro como aparenta, tudo é tão imaginativo como parece ser. No original, não tenho dúvidas de que o conto é bom, embora não seja daqueles contos que realmente me enchem as medidas e esteja bastante distante da minha opinião sobre o tema. Nesta edição portuguesa é que a porca torce um bocado o rabo; é que tem demasiados erros, demasiadas gralhas, para a leitura fluir como seria desejável. Ora é um cordão umbilical que transmite os componentes necessários á manutenção de qualquer coisa, ora é um tom de vos que aumenta, ora é algo que ninguém quer experiênciar, ora é uma mão biológica que vai a caminho da fornaça, ora é uma porção de calinadas deste género.

Desagradável. Especialmente porque quem sofre com isso é o conto.

Lido: Visión de los Vencidos

Acontece com todas as grandes obras da literatura (e não só) servirem de inspiração direta a sucedâneos e adaptações, e a ficção científica não é imune a essa tendência. A título de exemplo, ainda há poucos meses se falou aqui na Lâmpada de O Verdadeiro Dr. Fausto, de Michael Swanwick, romance assumidamente inspirado pelas lendas faustianas e em particular, muito provavelmente, pelo poema de Goethe. Mas nem só de obras antigas se faz esse caldo cultural, como se viu há dias quando falámos do conto Dilema, de Connie Willis. E se Asimov ainda é relativamente raro como inspirador de obras de outros autores, o mesmo não se pode dizer de H. G. Wells e da sua Guerra dos Mundos.

Uma das tendências mais comuns no que toca a adaptações, reimaginações e sucedâneos dessa obra de Wells é arrancá-la da Iglaterra em que o autor a situa e colocar a invasão marciana em outras geografias. Os antecedentes de tal abordagem dificilmente seriam mais ilustres; afinal foi isso mesmo que fez Orson Welles ao transplantar a sua adaptação para os EUA. Já Gabriel Benítez teve uma ideia um pouco diferente e atrevo-me a dizer que mais original: transplantou-a para o seu México natal, é verdade, mas não no início do século XX. O que Benítez faz em Visión de los Vencidos é imaginar uma invasão anterior, igualmente catastrófica, que teria tido lugar imediatamente antes da chegada de Hernán Cortés ao que viria a ser o México.

E fá-lo muito bem, sob a forma de uma espécie de investigação levada a cabo por um franciscano quinhentista sobre o que teria acontecido alguns anos antes, cheia de citações de documentos e transcrições de testemunhos, adequadamente escritos no espanhol da época, e servindo-se de lendas e tradições indígenas verdadeiras como combustível para o enredo (que na verdade, para lá da diferença na forma e em alguns detalhes, pouco se diferencia do enredo de Wells: marcianos chegam, destroem e matam, conquistam e acabam misteriosamente mortos, libertando do terror os traumatizados terráqueos), explicando dessa forma, com uma invasão marciana anterior e consequente queda do império Mexica, a facilidade da conquista espanhola.

Visión de los Vencidos é boa literatura de ficção científica.

Conto anterior deste livro:

domingo, 3 de setembro de 2017

Lido: Livro do Tempo

O que fariam vocês se tivessem um livro no qual pudessem escrever sabendo que o que lá escrevessem se concretizaria pouco depois? Não é bem isso o que Carlos Coelho de Faria, autor que nunca tinha lido, nos apresenta neste Livro do Tempo, mas a verdade é que a ideia base desta história dá pano para imensas mangas. Nesta história, assistimos apenas a um cheirinho, um caso de polícia envolvendo o livro, quem o tem e quem pretende ficar com ele. Mas o que sobressai é sem dúvida a ideia em si. Trata-se de uma bela ideia que, bem explorada, daria histórias muito interessantes. Não sei bem é se Carlos Coelho de Faria já tem o que é preciso para a explorar bem, pois o texto propriamente dito, a espaços algo hesitante, pareceu-me a parte mais fraca deste conto, sugerindo um autor inexperiente ainda a dar os primeiros passos. Mas com potencial.

Contos anteriores deste livro:

Lido: Estados do Vácuo

"Ah, e tal," diz-se, "a ficção científica é subliteratura, paraliteratura, não-literatura, porque em vez de se preocupar com o que realmente importa na literatura, o texto, a linguagem, perde tempo com histórias escritas banalmente e cheias de — que horror! — enredo."

Já todos ouvimos ou lemos alguma variação deste disparate, não é verdade? O que está escrito acima é assumidamente uma caricatura, mas coisas semelhantes, escritas ou ditas muito a sério, são mato em certos meios. E muitas vezes acontece que quem ouve ou lê isto sabe que não é verdade mas sempre que dá um contraexemplo a resposta, invariável, é: "Ah, mas isso não é ficção científica." Pergunta-se porquê? A resposta, plena de lógica (coff coff): "Porque é literatura."

Pois bem, Estados do Vácuo (bibliografia) é ficção científica, sem qualquer lugar a dúvidas. Viu a luz numa revista de ficção científica, foi escrita por Geoffrey Landis, alguém que não só se assume como escritor de ficção científica como até é, nos tempos livres da escrita (ou vice-versa), um cientista propriamente dito. Alguém que trabalha na NASA, nem mais nem menos, o que é coisa para não deixar dúvidas quanto às credenciais científicas do homem. E quanto ao autor estamos conversados.

A história é tão de ficção científica que até é de um dos ramos mais clássicos da ficção científica. A FC dura, de laboratório, repleta de jargão científico e ideias derivadas diretamente do estado corrente (já não, mas na época em que a história foi escrita sim) da fronteira entre o conhecido e o desconhecido, baseando-se na invenção de um método para extrair energia do próprio vácuo. A FC que quase roça a divulgação científica, tentando transmitir ao leitor ideias científicas sólidas de uma forma acessível, algo que já Verne fazia.

E também a FC que traz em si filosofia, o que acontece com frequência, para espanto de quem a desconhece. É que os cientistas envolvidos na experiência estão perante um dilema sobre o qual não conseguem pôr-se de acordo e precisam por isso de uma opinião exterior. E é aí que entra o experimentalismo eminentemente literário de Landis: ele conta a história na segunda pessoa, quebrando a barreira entre história e quem a lê. Narra o que o leitor faz, as explicações que o leitor ouve, o que o leitor pensa. É nas mãos do leitor que põe a chave (literal) do dilema; é a ele que pergunta o que fazer. E isso com recurso a um artifício de linguagem, de forma. Trata-se, portanto, de algo que só um nível ridículo de contorcionismo intelectual conseguiria excluir do âmbito literário. Um exemplo perfeito, portanto, de algo que é indubitavelmente literatura e FC.

E mais: já deixei várias vezes dito por aí que para mim a melhor literatura é aquela que não renega nem forma nem conteúdo, aquela que escolhe a forma em função daquilo que pretende contar. Seria o caso aqui, se a explanação do problema não fosse tão longa. É-o inevitavelmente, talvez, mas mesmo assim a extensão do infodump faz com que não me pareça estarmos aqui perante a melhor literatura. É um bom conto, com uma excelente utilização da segunda pessoa narrativa, um belo exemplo de como ficção científica e literatura não são, nem de perto nem de longe, dois conceitos mutuamente exclusivos, mas é por aí que ficamos. E já não é nada mau.

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sexta-feira, 1 de setembro de 2017

Lido: O Maior Espectáculo do Mundo

Voltamos aos contos de Alexandra Pereira, e mais uma vez, a primeira coisa que se lê a seguir ao título é uma dedicatória. Esta, porém, vem com diferenças. Não só se dirige a um vivo, como não se trata de alguém oriundo da vida literária. Trata-se de um músico, Arild Andersen, contrabaixista de jazz que eu não conhecia apesar de gostar muito de jazz (o contrabaixo é um instrumento a que não ligo muito — faço mal, bem sei — e o reconhecimento dos seus executantes sofre com isso). E faz todo o sentido, pois o conto desenrola-se em torno de um espetáculo musical no qual um contrabaixista é basicamente o protagonista.

Bem escrito como é costume, este conto é mais reflexão sobre o que é o espetáculo, e logo O Maior Espectáculo do Mundo, nada menos que isso, e que tipo de pessoas (e de sociedade) sai de casa para a ele assistir do que propriamente uma história, mesmo havendo, como há, umas pitadas de realismo mágico a dar-lhe um pouco mais de sabor, na figura de um índio, possivelmente um xamã, que parece ser fundamental (ou será que não?) para o bom sucesso da atuação. Outro conto com o seu interesse, em suma.

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