A Guardiã da Memória (
bibliografia) é um romance planetário de Gerson Lodi-Ribeiro ambientado no seu mundo-zoológico de Ahapooka. Este é um planeta que está no centro de de uma série que começou a ser publicada sob o pseudónimo de Daniel Alvarez, um planeta bastante maior que a Terra onde uma misteriosa e poderosa raça alienígena estabeleceu algo de semelhante a uma reserva planetária para espécies inteligentes, permitindo às naves pousar mas impedindo-lhes a partida. Não se trata propriamente de ideia nova; já li várias obras de vários autores, entre contos e romances, que partem desta premissa básica, e
a última até foi há relativamente pouco tempo. Mas é altamente redutor (e por isso disparatado) abordar as obras de FC só com base nas suas premissas básicas, e este livro é disso bom exemplo: tem muito mais que a premissa básica.
Muito mais.
No mundo de Ahapooka, as diversas espécies que aí ficam aprisionadas estabelecem as suas próprias culturas, distribuem-se pelos habitats disponíveis e encontram as suas próprias formas de organização social. Umas regridem ao barbarismo, outras continuam a desenvolver-se tecnológica e socialmente. Umas criam estados monoespecíficos e xenofóbicos, outras adotam sociedades abertas e recebem o Outro mais ou menos de braços abertos. O resultado é uma riquíssima manta de retalhos que, de braço dado com a vastidão do próprio planeta, gera possibilidades quase infindáveis para contar histórias.
Esta é apenas uma delas. Protagonizada por uma humana chamada Clara, descendente de uma das principais famílias de uma das nações mais poderosas de todo o planeta, Rhea, e agente secreta desta, conta uma expedição mais ou menos mal sucedida para recuperar um certo esqueleto que poderia levar à reavaliação do lugar da Humanidade no contexto das civilizações tecnológicas da galáxia (a sociedade galáctica está organizada à semelhança da do universo da Elevação, de David Brin, pois as espécies do presente são todas fruto de elevação por parte de espécies mais antigas, e existe uma velha polémica envolvendo a Humanidade, que pode, ou não, ter chegado independentemente à inteligência e à civilização). Mas, mais do que a expedição, conta a fuga de Clara pelos oceanos de Ahapooka, a bordo de um imenso navio construído e tripulado por uma espécie de crustáceos, perseguida por forças militares de uma nação rival de Rhea, e acompanhada por um centauro.
Não por um centauro dos que conhecemos da mitologia, entenda-se. Gerson Lodi-Ribeiro escreve aqui ficção científica da dura, procurando manter sempre a verosimilhança científica. O seu centauro (que pertence, aliás, apenas a uma de várias espécies centauroides presentes no planeta) é adequadamente alienígena, inclusive no seu ciclo vital, pois passa por uma metamorfose semelhante às dos nossos insetos, após a qual emerge sob uma forma humanoide. E este facto é fulcral em toda a história.
Há quem tenha chamado erótico a este romance. Parece-me uma designação bastante desadequada. Embora exista sexo com certa fartura, pois Clara acaba por se envolver com o centauro de uma forma que acaba por constituir um dos eixos centrais da narrativa, na verdade encontrei nele muito pouco erotismo. Para mim, este romance é principalmente uma história de amor. Uma história de amor como só na ficção científica se pode criar. Uma história de amor que procura explorar os limites da humanidade e as formas que espécies inteligentes têm de lidar com o preconceito. Em
A Guardiã da Memória há preconceitos de todos os tipos. Há o preconceito contra relacionamentos afetivos e sexuais interespecíficos. Há uma espécie em cuja biologia só as fêmeas são inteligentes e portanto não consegue conceber a noção de machos racionais, levando a um preconceito de género extremado. Há outros preconceitos de género. Há preconceitos quanto ao que leva, ao certo, a decidir-se que um sexo é "macho" e outro "fêmea" e, na sequência disso, há também preconceitos relacionados com a homossexualidade. Há preconceitos xenofóbicos. Há preconceitos sobre o estilo de vida que cada indivíduo escolhe para si. E por aí fora.
É a exploração de todos estes níveis de preconceito que Lodi-Ribeiro pretende realmente fazer. O sexo não é fulcro, mas consequência, uma mera ferramenta que ele usa porque vários dos preconceitos que lhe interessam têm um cariz sexual mais ou menos evidente. Este livro é, no fundamental, uma história sobre como o eu se relaciona com o outro, em especial se esse outro é diferente. Ou se
à primeira vista parece diferente. Porque quem sabe se por trás de carapaças, tentáculos, géneros confusos e complexos, um sem-fim de pequenas e grandes estranhezas, não se esconderá um substrato de comunidade? Um substrato até, quem sabe, suficiente para servir de base ao florescimento de afetos?
É esta a exploração que Gerson Lodi-Ribeiro faz neste livro. Não se trata de um livro de ação, embora tenha alguma ação (não muita, há que dizê-lo, e bastante espaçada), em várias homenagens razoavelmente claras a Júlio Verne. Não se trata de um livro erótico, embora haja nele sexo com uma certa abundância. Trata-se de uma exploração profunda do preconceito, das suas raízes, das suas consequências, da coragem que ultrapassá-lo por vezes exige, e de como ele é ultrapassado às vezes quase sem se dar por isso. E nisso, e por isso, é um livro francamente bom.
Este livro foi-me oferecido pelo autor.