Anda por aí uma moda de fazer listas das leituras do ano. Parece-me uma boa moda, e como eu até sei o que li este ano, porque fui comentando as leituras aqui na Lâmpada, posso ir desenterrar essa informação sem grande dificuldade. E posso fazê-lo já, pois o que tenho entre mãos garante que não acabarei mais nenhum livro até terminar o ano.
Assumo desde já que li pouco, o que, aliás, tem sido uma constante desde que comecei a trabalhar como tradutor. As minhas leituras reduziram-se a cerca de metade do que eram antes, ou ainda menos. Mesmo assim, ainda se consegue fazer uma listinha razoável:
1- O Prestígio, de Christopher Priest (romance fantástico);
2- "Aconteceu Mesmo!?...", de José Saibreira (romance de FC);
3- Patrulha Interstelar, de Edmond Hamilton (contos interligados de FC);
4- Biblioteca, de Zoran Zivkovic (contos interligados fantásticos);
5- Samurai: Nome de Código, de Neal Stephenson (romance de FC);
6- O Sexo na Moderna Ficção Científica, org. por Isabel Meireles (antologia de contos de FC e fantasia);
7- O Sentido Latente, de Nuno Neves (romance de FC);
8- Regresso a Marte, de Ben Bova (romance de FC);
9- O Grande Deus Pã, de Arthur Machen (contos fantásticos/terror);
10- Poção de Marte, de organizador desconhecido e vários autores (antologia de FC e fantasia; inclui um romance de FC e vários contos);
11- Ar, de Geoff Ryman (romance de FC);
12- Solaris, de Stanislaw Lem (romance de FC);
13- A Sereia de Curitiba, de Rhys Hughes (contos interligados surrealistas);
14- O Livro dos Guerrilheiros, de José Luandino Vieira (contos interligados mainstream);
15- A Morte de Ivan Ilitch, de Lev Tolstoi (novela mainstream);
16- Vénus, de Ben Bova (romance de FC);
17- 333, de Pedro Sena-Lino (romance (?) de história secreta);
18- Desgraça, de J. M. Coetzee (romance mainstream);
19- A Virgem e o Cigano, de D. H. Lawrence (novela mainstream);
20- Little Brother, de Cory Doctorow (romance de FC).
A acrescentar aos livros propriamente ditos, li também revistas, que funcionam praticamente como se fossem antologias periódicas e portanto também contam para o total:
21- Fantasy & Science Fiction, nº 611 (contos de fantasia e (pouca) FC);
22- Ficções, nº 3 (contos mainstream e fantásticos);
23- Asimov's, nº 324 (contos de FC);
E li ainda dois livros porque o trabalho a isso obrigou:
24- Royal Assassin, de Robin Hobb (romance de fantasia épica; parte de série);
25- Assassin's Quest, de Robin Hobb (romance de fantasia épica; parte de série).
O melhor livro do ano? Não me é fácil escolher só um, de modo que faço um top-3, sem qualquer ordem: Solaris, Desgraça e Little Brother. O pior já é mais fácil. Foi, claramente, Patrulha Interstelar. Menções honrosas para "Aconteceu Mesmo!?..." e, bastante mais acima na escada da qualidade, O Sentido Latente.
terça-feira, 29 de dezembro de 2009
Lido: Little Brother
Little Brother, de Cory Doctorow, é um romance de ficção científica que vai buscar inspiração aos EUA dos anos Bush para desenvolver uma distopia política na qual todos os abusos reais e documentados que se seguiram aos ataques de 11 de Setembro são amplificados, chegando-se muito perto da instauração de um estado fascista e policial enquanto se afirma estar-se a defender a democracia americana contra os terroristas e os "elementos subversivos seus aliados". Esta espécie de duplipensar dos tempos modernos tem ascendência evidente no 1984 de George Orwell, que é assumida por Doctorow no próprio título do romance e nos agradecimentos e bibliografia. Mas, ao contrário do romance de Orwell, quem combate o totalitarismo não é um funcionário do sistema que se apercebe do seu caráter inerentemente maligno, mas sim um adolescente, hacker, que arranja maneira de contornar os sistemas de segurança do Departamento de Segurança Interna e de outras instituições e aparelhos, e se dedica à denúncia dos abusos que estão a ter lugar na sua cidade de São Francisco depois de ter sido uma das primeiras vítimas desses abusos logo após a cidade ter sido vítima dum atentado terrorista. Enquanto o faz, e sem que o planeie, numa espécie de efeito secundário, acaba por gerar um movimento político com consequências de grande alcance.
Como acontece quase sempre com as distopias políticas, trata-se de um romance claramente ativista. Escrito em 2006, já depois de Abu Ghraib e de terem sido tornados públicos os abusos e torturas de Guantanamo e das prisões secretas em países como a Síria (ambos surgem no romance, embora a Guantanamo de Little Brother seja uma ilha na baía de São Francisco), pretende denunciar violentamente toda a atitude mental que lhes deixou o caminho livre, acabando mesmo por fazer um apelo direto ao voto, contra a apatia. E, claramente, contra o Partido Republicano.
Como tal, é uma leitura interessante mas que corre o risco de se tornar datada muito depressa, especialmente se tivermos em conta que a eleição de Obama pôs travão aos aspetos mais tenebrosos da América de Bush, pelo menos por enquanto e até ver; os que votaram em Bush e depois em McCain continuam lá, a destilar veneno, prontos a regressar à primeira oportunidade. Apesar disso, para quem partilha das convicções políticas do autor, Little Brother é um pratinho cheio, um belo acepipe, chegando por vezes a ser comovente. Os outros, achá-lo-ão talvez demasiado panfletário ou até coisas piores. Eu próprio, que até partilho das ideias de Doctorow relativamente a uma série de coisas, senti-me por vezes incomodado por esse tom panfletário, em especial na primeira metade do livro.
Mas seja qual for a ideologia do leitor, provavelmente concordará que a história está bem contada e bem escrita. E quem saiba alguma coisa sobre o que aconteceu no mundo na última década só pode achá-la verosímil, por mais que isso lhe custe. Vale definitivamente a pena ser lida. E os leitures portugueses, segundo o próprio Doctorow divulgou via twitter há um par de meses, terão essa oportunidade, não se sabe ainda quando. Tenho muita curiosidade em ver essa tradução: o meu cérebro de tradutor não parou de se assustar com a mistura de jargão informático especializado e oralismos que foi encontrando ao longo de toda a leitura. É um trabalho e pêras, e o tradutor que o consiga levar a bom termo tem o meu eterno respeito. E a responsabilidade é grande: um trabalho que fique aquém corre o risco de arruinar o livro quase por completo. É livro que comprarei de certeza.
Mas para quem não quiser esperar e/ou deseje lê-lo em inglês, o livro está livremente (e legalmente) disponível na net. Por exemplo, na DailyLit, onde foi serializado em 139 partes. Boas leituras.
Como acontece quase sempre com as distopias políticas, trata-se de um romance claramente ativista. Escrito em 2006, já depois de Abu Ghraib e de terem sido tornados públicos os abusos e torturas de Guantanamo e das prisões secretas em países como a Síria (ambos surgem no romance, embora a Guantanamo de Little Brother seja uma ilha na baía de São Francisco), pretende denunciar violentamente toda a atitude mental que lhes deixou o caminho livre, acabando mesmo por fazer um apelo direto ao voto, contra a apatia. E, claramente, contra o Partido Republicano.
Como tal, é uma leitura interessante mas que corre o risco de se tornar datada muito depressa, especialmente se tivermos em conta que a eleição de Obama pôs travão aos aspetos mais tenebrosos da América de Bush, pelo menos por enquanto e até ver; os que votaram em Bush e depois em McCain continuam lá, a destilar veneno, prontos a regressar à primeira oportunidade. Apesar disso, para quem partilha das convicções políticas do autor, Little Brother é um pratinho cheio, um belo acepipe, chegando por vezes a ser comovente. Os outros, achá-lo-ão talvez demasiado panfletário ou até coisas piores. Eu próprio, que até partilho das ideias de Doctorow relativamente a uma série de coisas, senti-me por vezes incomodado por esse tom panfletário, em especial na primeira metade do livro.
Mas seja qual for a ideologia do leitor, provavelmente concordará que a história está bem contada e bem escrita. E quem saiba alguma coisa sobre o que aconteceu no mundo na última década só pode achá-la verosímil, por mais que isso lhe custe. Vale definitivamente a pena ser lida. E os leitures portugueses, segundo o próprio Doctorow divulgou via twitter há um par de meses, terão essa oportunidade, não se sabe ainda quando. Tenho muita curiosidade em ver essa tradução: o meu cérebro de tradutor não parou de se assustar com a mistura de jargão informático especializado e oralismos que foi encontrando ao longo de toda a leitura. É um trabalho e pêras, e o tradutor que o consiga levar a bom termo tem o meu eterno respeito. E a responsabilidade é grande: um trabalho que fique aquém corre o risco de arruinar o livro quase por completo. É livro que comprarei de certeza.
Mas para quem não quiser esperar e/ou deseje lê-lo em inglês, o livro está livremente (e legalmente) disponível na net. Por exemplo, na DailyLit, onde foi serializado em 139 partes. Boas leituras.
Lido: A Virgem e o Cigano
A Virgem e o Cigano é uma novela póstuma de D. H. Lawrence, publicada em 1930, que apresenta a quem a lê uma jovem protagonista, Yvette, e as relações que ela tem com o seu círculo familiar, conservador, religioso, ocioso e repressivo, e com algumas pessoas que lhe atravessam a vida e que ela encara como lufadas de liberdade. Em particular o cigano do título, por quem tem uma espécie de paixoneta.
Intelectualmente, consigo entender a relevância que esta obra pode ter tido, como exaltação da liberdade e, até certo ponto, do sexo, numa sociedade inglesa ainda muito marcada pelo puritanismo vitoriano e trancada na sua famosa rigidez social. Da mesma forma consigo entender que haja quem lhe veja méritos na construção das personagens, e o livro quase que se resume a isso. Até simpatizo com o desprezo que Lawrence mostra sentir pelo egoísmo daquelas pessoas mui tementes a deus-nosso-senhor. Mas a verdade é que o livro comigo falha no aspeto mais fundamental e básico da literatura: a capacidade de comunicar com o leitor. E falha de um modo total e absoluto. Lawrence pura e simplesmente não comunica comigo.
Num livro tão baseado na construção de personagens como este, convém que o leitor consiga acreditar nessas personagens, caso contrário corre o sério risco de não obter nada do livro. E eu não consigo acreditar em nenhuma daquelas pessoas, todas elas me parecem caricaturas inverosímeis e surpreendentemente desprovidas de profundidade. Podiam perfeitamente ser orcs do Tolkien, que o alheamento que me causariam não seria maior. A história é-me completamente indiferente, vivendo como vivo numa época em que já nada daquilo tem o mínimo relevo e a liberdade social e sexual são dados adquiridos. Hoje, as faltas de liberdade que têm interesse e relevância são as que têm a ver com a política e a possibilidade de crença, e principalmente de descrença, em especial em certas partes do mundo, e aquelas que têm a ver com a sobrevivência económica. Donzelas burguesinhas e reprimidas, com desejo por ciganos, num momento em que o tema em cima da mesa é o casamento homossexual? Bocejo.
Com todo este desinteresse por personagens e tema, a única hipótese deste livro não ter sido para mim um completo aborrecimento seria se o texto propriamente dito fosse algo de extraordinário, capaz de me fazer esquecer tudo o resto. Mas também não. De modo que contrariamente ao que aconteceu ao ler Coetzee, aqui só senti um reavivar da minha velha zanga com o mainstream literário.
É pena.
Intelectualmente, consigo entender a relevância que esta obra pode ter tido, como exaltação da liberdade e, até certo ponto, do sexo, numa sociedade inglesa ainda muito marcada pelo puritanismo vitoriano e trancada na sua famosa rigidez social. Da mesma forma consigo entender que haja quem lhe veja méritos na construção das personagens, e o livro quase que se resume a isso. Até simpatizo com o desprezo que Lawrence mostra sentir pelo egoísmo daquelas pessoas mui tementes a deus-nosso-senhor. Mas a verdade é que o livro comigo falha no aspeto mais fundamental e básico da literatura: a capacidade de comunicar com o leitor. E falha de um modo total e absoluto. Lawrence pura e simplesmente não comunica comigo.
Num livro tão baseado na construção de personagens como este, convém que o leitor consiga acreditar nessas personagens, caso contrário corre o sério risco de não obter nada do livro. E eu não consigo acreditar em nenhuma daquelas pessoas, todas elas me parecem caricaturas inverosímeis e surpreendentemente desprovidas de profundidade. Podiam perfeitamente ser orcs do Tolkien, que o alheamento que me causariam não seria maior. A história é-me completamente indiferente, vivendo como vivo numa época em que já nada daquilo tem o mínimo relevo e a liberdade social e sexual são dados adquiridos. Hoje, as faltas de liberdade que têm interesse e relevância são as que têm a ver com a política e a possibilidade de crença, e principalmente de descrença, em especial em certas partes do mundo, e aquelas que têm a ver com a sobrevivência económica. Donzelas burguesinhas e reprimidas, com desejo por ciganos, num momento em que o tema em cima da mesa é o casamento homossexual? Bocejo.
Com todo este desinteresse por personagens e tema, a única hipótese deste livro não ter sido para mim um completo aborrecimento seria se o texto propriamente dito fosse algo de extraordinário, capaz de me fazer esquecer tudo o resto. Mas também não. De modo que contrariamente ao que aconteceu ao ler Coetzee, aqui só senti um reavivar da minha velha zanga com o mainstream literário.
É pena.
sexta-feira, 18 de dezembro de 2009
Mudanças nos comentários, segundo passo
Recebi hoje o tal email da Haloscan a pedir dinheiro que já previa aqui. Consequência imediata: os comentários Haloscan desapareceram da Lâmpada.
A exportação dos comentários foi feita com sucesso e sem problemas, mas ainda não encontrei nenhuma maneira de os importar para o sistema do Blogger. Acho que é só uma questão de adaptar a espécie de XML que sai da exportação do Haloscan para o Atom que o Blogger utiliza, para poder depois fazer a importação, mas não encontrei na internet nenhum serviço nem programa que o faça. E sim, gastei já algumas horas à procura.
Se alguém souber de alguma coisa dessas, peço encarecidamente que me dê um toque para que eu proceda ao terceiro e último passo nas mudanças nos comentários. Até lá, os antigos terão de ficar aqui armazenados no meu disco. Em animação suspensa, digamos.
A exportação dos comentários foi feita com sucesso e sem problemas, mas ainda não encontrei nenhuma maneira de os importar para o sistema do Blogger. Acho que é só uma questão de adaptar a espécie de XML que sai da exportação do Haloscan para o Atom que o Blogger utiliza, para poder depois fazer a importação, mas não encontrei na internet nenhum serviço nem programa que o faça. E sim, gastei já algumas horas à procura.
Se alguém souber de alguma coisa dessas, peço encarecidamente que me dê um toque para que eu proceda ao terceiro e último passo nas mudanças nos comentários. Até lá, os antigos terão de ficar aqui armazenados no meu disco. Em animação suspensa, digamos.
Lido: A Mulher Adúltera
A Mulher Adúltera, conto de Albert Camus, passa-se na Argélia dos tempos do colonialismo francês, e segue um vendedor e sua mulher em viagem pela província argelina. O homem viaja em negócios, e a mulher aborrece-se, seguindo-o porque ele lho pedira, mas sem tirar da viagem o mínimo gosto. A personagem principal é, claro, a mulher, e Camus passa todo o conto a jogar com as expetativas que o título cria no leitor, mas acaba por resolvê-las duma forma excelente, ao mesmo tempo inteiramente lógica, poética e irónica. Se bem que, no fundo, a principal protagonista desta história seja a própria Argélia, a sua paisagem, tanto natural como humana, na qual o casal de franceses não passa de um intruso.
Mas para o leitor e praticante de ficção científica que escreve aqui na Lâmpada, o principal interesse deste conto, sobre o qual vou desde já adiantando que gostei bastante, em geral, é o facto de o encontrar cheio de uma coisa que a FC promete quase sempre mas com irritante frequência não entrega: o estranhamento. Este conto devia ser leitura obrigatória para tantos, tantos escritores de ficção científica, tanto novatos como experientes, tanto lusófonos como estrangeiros, para verem como se faz. Para compreenderem como se leva o leitor a sentir no âmago a estranheza de paisagens e civilizações que lhe são alheias.
E tudo com um conto inteiramente realista, puro mainstream. Sem mundos com ambientes bizarros nem extraterrestres. O estranhamento que aqui se encontra, tão mais estranho do que os alienígenas americanos de tantos romances, está já ali, a algumas centenas de quilómetros para sul. Em termos cósmicos, é mesmo aqui.
Mas para o leitor e praticante de ficção científica que escreve aqui na Lâmpada, o principal interesse deste conto, sobre o qual vou desde já adiantando que gostei bastante, em geral, é o facto de o encontrar cheio de uma coisa que a FC promete quase sempre mas com irritante frequência não entrega: o estranhamento. Este conto devia ser leitura obrigatória para tantos, tantos escritores de ficção científica, tanto novatos como experientes, tanto lusófonos como estrangeiros, para verem como se faz. Para compreenderem como se leva o leitor a sentir no âmago a estranheza de paisagens e civilizações que lhe são alheias.
E tudo com um conto inteiramente realista, puro mainstream. Sem mundos com ambientes bizarros nem extraterrestres. O estranhamento que aqui se encontra, tão mais estranho do que os alienígenas americanos de tantos romances, está já ali, a algumas centenas de quilómetros para sul. Em termos cósmicos, é mesmo aqui.
quinta-feira, 17 de dezembro de 2009
Lido: As Preces Imprudentes de Pombo, o Idólatra
As Preces Imprudentes de Pombo, o Idólatra é mais um conto muito curto do Lorde Dunsany que, em jeito de conto popular, nos fala do tal idólatra chamado Pombo que procura resolver um problema não explanado com recurso a preces. Primeiro reza a um deus em concreto e, como esse não lhe resolve o problema de imediato, logo reza a outro, e depois a outro e assim sucessivamente até se aperceber de que os deuses ficaram ofendidos com a sua infidelidade e falta de paciência, e passaram a sabotar-lhe os pedidos. Desesperado, acaba por ouvir falar de um último recurso, um deus longínquo que não liga aos demais, mas as coisas, claro, não correm bem como está à espera.
É um continho algo diferente dos outros lidos até aqui. Tem mais de conto popular do que os outros, quer na toada que Dunsany adota, quer no facto da história trazer em si uma moral razoavelmente óbvia. Algo adequadamente popular, como "quem espera sempre alcança" ou "não te metas em alhadas". Mas não é por isso que deixa de ter interesse, tem é um interesse algo diferente do dos demais.
É um continho algo diferente dos outros lidos até aqui. Tem mais de conto popular do que os outros, quer na toada que Dunsany adota, quer no facto da história trazer em si uma moral razoavelmente óbvia. Algo adequadamente popular, como "quem espera sempre alcança" ou "não te metas em alhadas". Mas não é por isso que deixa de ter interesse, tem é um interesse algo diferente do dos demais.
terça-feira, 15 de dezembro de 2009
Início de mudanças nos comentários
Esta é para os raros gatos pingados que comentam aqui no blogue. Se olharem para baixo dos posts aqui da Lâmpada, verão que a partir de hoje há duas filas de links para comentários. Na de cima encontram-se comentários Blogger, recém-chegados aqui ao blogue; na de baixo continuam a ver-se os comentários do Haloscan que o têm acompanhado há anos.
Isto é um primeiro passo para transferir os comentários para o Blogger, abandonando o Haloscan. O motivo é simples: desde que a Haloscan foi comprada pela JS-Kit nunca mais houve a mínima mudança (exceto algumas mudanças pouco significativas... para pior) no sistema de comentários. O desenvolvimento está parado há anos, e só a inércia e uma grande dose de paciência me fez mantê-los por cá. Essa paciência já estava esgotada há meses, e como já há notícias sobre o que a JS-Kit pretende fazer (o que chegou ao Mug ainda não me chegou a mim, mas certamente chegará), está na hora de se sacudir também a inércia.
De modo que por enquanto ficam os dois sistemas instalados, mas eu aconselho vivamente a que todos comentem via Blogger a partir de agora. O outro sistema desaparecerá assim que eu arranjar maneira de importar os comentários para o sistema do blogger e tempo para o fazer.
Isto é um primeiro passo para transferir os comentários para o Blogger, abandonando o Haloscan. O motivo é simples: desde que a Haloscan foi comprada pela JS-Kit nunca mais houve a mínima mudança (exceto algumas mudanças pouco significativas... para pior) no sistema de comentários. O desenvolvimento está parado há anos, e só a inércia e uma grande dose de paciência me fez mantê-los por cá. Essa paciência já estava esgotada há meses, e como já há notícias sobre o que a JS-Kit pretende fazer (o que chegou ao Mug ainda não me chegou a mim, mas certamente chegará), está na hora de se sacudir também a inércia.
De modo que por enquanto ficam os dois sistemas instalados, mas eu aconselho vivamente a que todos comentem via Blogger a partir de agora. O outro sistema desaparecerá assim que eu arranjar maneira de importar os comentários para o sistema do blogger e tempo para o fazer.
segunda-feira, 14 de dezembro de 2009
Lido: Llanto por un Astronauta
Tal como acontece com o decano da FC brasileira, também Domingo Santos, o seu "homólogo" espanhol, nunca foi publicado em Portugal, o que, considerando que houve décadas em que se publicava qualquer porcaria oriunda dos Estados Unidos (hoje já não), diz muito sobre as opções editoriais que foram sendo tomadas ao longo da história da edição de FC entre nós.
Llanto por Astronauta é um conto melancólico de FC soft. Ambientado no centenário da Era Espacial, mostra-nos um ex-astronauta desencantado com a sua vida e com aquilo que aconteceu ao programa espacial, a sua transformação, de um movimento heroico na direção das estrelas, numa coisa banal, movida pelos interesses económicos, industriais e outros. É um conto razoavelmente típico dos escritores de FC de uma certa geração, aqueles que assistiram maravilhados aos primeiros passos da Humanidade fora do nosso planeta e se foram aos poucos desiludindo com o rumo que os programas espaciais foram tomando, bem distante dos amanhãs que cantam das primitivas promessas. Li-o com alguma irritação, porque dificilmente seria possível discordar mais de muito daquilo em que ele se baseia. Mas reconheço-lhe qualidades. Domingo Santos é um experiente contador de histórias (e tem de o ser, com onze romances publicados desde os anos 60 e várias coletâneas de contos) e, ajuizando por este exemplo, conta-as bem, com um estilo limpo e eficaz. Quem quiser ver por si próprio, pode lê-lo aqui.
Llanto por Astronauta é um conto melancólico de FC soft. Ambientado no centenário da Era Espacial, mostra-nos um ex-astronauta desencantado com a sua vida e com aquilo que aconteceu ao programa espacial, a sua transformação, de um movimento heroico na direção das estrelas, numa coisa banal, movida pelos interesses económicos, industriais e outros. É um conto razoavelmente típico dos escritores de FC de uma certa geração, aqueles que assistiram maravilhados aos primeiros passos da Humanidade fora do nosso planeta e se foram aos poucos desiludindo com o rumo que os programas espaciais foram tomando, bem distante dos amanhãs que cantam das primitivas promessas. Li-o com alguma irritação, porque dificilmente seria possível discordar mais de muito daquilo em que ele se baseia. Mas reconheço-lhe qualidades. Domingo Santos é um experiente contador de histórias (e tem de o ser, com onze romances publicados desde os anos 60 e várias coletâneas de contos) e, ajuizando por este exemplo, conta-as bem, com um estilo limpo e eficaz. Quem quiser ver por si próprio, pode lê-lo aqui.
Lido: Augurio
Augurio (bib.), conto curto lovecraftiano de Marcelo Galvão, leva-nos até à Bretanha romana onde um comandante militar aborrecido pela pacificação das tribos locais anseia por uma campanha. É por isso com satisfação que recebe notícias de uma rebelião num local que, ajuizando pelos nomes, se situa em Gales, e que parte ao encontro dos rebeldes. Mas aí chegado, encontra-os mais duros de roer do que estava à espera.
É um conto curioso, com uma ambientação original (e inesperada para um autor brasileiro) e premissa bem conseguida, sendo embora prejudicado por algumas falhas de português que poderiam ter sido resolvidas com uma revisão mais atenta, e por uma certa pressa no desencadear de algumas partes da história, muito em particular o momento em que o comandante Belisário decide fazer a sua invocação. Das duas uma: ou ele não era cético à partida, e a invocação é consequência natural da crença, ou era e há que explicar bem o processo que o leva a mudar de opinião. Mostrá-lo cético e, apesar disso, passar imediatamente à invocação mina a credibilidade e verosimilhança da história.
Mas mesmo com estes aspetos que me pareceram algo deficientes, achei o conto bastante razoável e li-o com gosto. O final, em particular, é muito eficaz.
É um conto curioso, com uma ambientação original (e inesperada para um autor brasileiro) e premissa bem conseguida, sendo embora prejudicado por algumas falhas de português que poderiam ter sido resolvidas com uma revisão mais atenta, e por uma certa pressa no desencadear de algumas partes da história, muito em particular o momento em que o comandante Belisário decide fazer a sua invocação. Das duas uma: ou ele não era cético à partida, e a invocação é consequência natural da crença, ou era e há que explicar bem o processo que o leva a mudar de opinião. Mostrá-lo cético e, apesar disso, passar imediatamente à invocação mina a credibilidade e verosimilhança da história.
Mas mesmo com estes aspetos que me pareceram algo deficientes, achei o conto bastante razoável e li-o com gosto. O final, em particular, é muito eficaz.
Lido: Her Father's Eyes
Her Father's Eyes é um conto de Kage Baker que, estranhamente, tendo em conta a revista onde veio publicado, nada tem a ver com ficção científica. Trata-se de uma história de fantasmas que faz, através dos olhos de duas crianças (ou talvez não) que se encontram num comboio e nos desenhos que vão fazendo, uma visita aos horrores da Segunda Guerra Mundial e a outros horrores bem mais subtis, bem mais próximos de cada um de nós. Pesadelos e famílias de pesadelo. Uma história de horror, portanto.
Confesso que o achei muito desinteressante. Sabem aquelas histórias que se lêem e no dia seguinte já se tem dificuldade em recordar os pormenores? Aquelas histórias tão esquecíveis que se esquecem quase assim que se acaba de lê-las? Pois. Foi exatamente o que senti com este conto. Aborrecido, esquecível e, apesar do tema, bastante vazio, embora literariamente me tenha parecido bom, tanto na qualidade do texto propriamente dita, como na caracterização das duas personagens principais. Mas há nele coisas que simplesmente não jogam. Um exemplo é o facto da protagonista, uma menina com uns oito ou nove anos, ter ficado mais marcada por um afago distraído feito pela mãe do amigo fantasmagórico do que pela guerra a que acabara de sobreviver. Não gostei.
Confesso que o achei muito desinteressante. Sabem aquelas histórias que se lêem e no dia seguinte já se tem dificuldade em recordar os pormenores? Aquelas histórias tão esquecíveis que se esquecem quase assim que se acaba de lê-las? Pois. Foi exatamente o que senti com este conto. Aborrecido, esquecível e, apesar do tema, bastante vazio, embora literariamente me tenha parecido bom, tanto na qualidade do texto propriamente dita, como na caracterização das duas personagens principais. Mas há nele coisas que simplesmente não jogam. Um exemplo é o facto da protagonista, uma menina com uns oito ou nove anos, ter ficado mais marcada por um afago distraído feito pela mãe do amigo fantasmagórico do que pela guerra a que acabara de sobreviver. Não gostei.
sexta-feira, 11 de dezembro de 2009
Lido: Cismando no Sismo
Em Cismando no Sismo, José Saramago regressa às crónicas propriamente ditas, fazendo uma reflexão pessoal, e com punhos de renda (afinal estávamos em tempos de fascismo e censura), sobre o sismo de 1969, sentido principalmente no Barlavento algarvio, mas também na zona de Lisboa e em todo o sul do país. Como acontece com frequência, esta crónica, mais baseada em acontecimentos contemporâneos, resistiu muito pior ao tempo do que as crónicas que mais se aproximam do conto. Esta lê-se, mas deixou-me basicamente indiferente.
Lido: Três Horas da Madrugada
Três Horas da Madrugada é uma espécie de ficção de insónia, de José Saramago. Que quero eu dizer com isto? Quero dizer que se trata de uma ficcionalização, num tom onírico e poético, da cidade (no caso, Lisboa) em plena madrugada. Saramago acrescenta-lhe um forte cunho fantástico, ao dar corpo aos sonhos da cidade adormecida e torná-los indistinguíveis daquilo que de material ela é feita. Como que juntando numa só duas cidades, a real e a dos sonhos. Embora não tenha gostado tanto como da vinheta em que passado se encontra com presente e Saramago com Bocage, esta também me encheu as medidas.
Lido: Travessa de André Valente
Travessa de André Valente é uma crónica de José Saramago. Ou por outra, é uma vinheta, um pequeno bocadinho de ficção, no qual o narrador, presumivelmente o próprio Saramago, se encontra com Bocage numa interseção do espaço-tempo numa travessa de Lisboa. Há histórias de ficção científica feitas com base nesta mesma ideia, e a de Saramago é mais uma. Muito curta, muito bem concebida, dos bocadinhos de prosa mais interessantes que tenho lido no livro de que faz parte. Não existe propriamente uma história, mas nem sempre é necessário que haja história. É um conto de momento, feito de perplexidades e francamente bom.
Lido: O Deserto
Mais um conto de Bradbury, este O Deserto (bib.) é tão 1950 que hoje em dia, nesta época pós-emancipação em que vivemos, pode parecer algo ridículo. Ou algo mais que algo. Mostra-nos o momento em que uma candidata a noiva de um dos colonos de Marte decide, entre hesitações, partir atrás do seu homem para um mundo novo, deixando o seu para trás, e faz um paralelismo com o que acontecia na época da conquista do Oeste americano. É das tais histórias de FC que dizem ao leitor atual mais sobre a sociedade da época em que foram escritas do que sobre qualquer outra coisa. O Bradbury de 1950 partia do princípio de que os conquistadores de Marte seriam inevitavelmente homens, e que as mulheres ficariam para trás, de olhos em alvo e coraçõezinhos apertados de medo pela segurança e sobrevivência dos seus bravos machos alfa. Hoje, que temos a presença corriqueira de mulheres no espaço, isto parece um anacronismo sem pés nem cabeça, e esse facto poderia ter assassinado o conto sem remissão, até porque para lá do conflito da candidata a mulher de colono o seu enredo pouco mais nos oferece.
Ah, mas está escrito com tamanha magnificência que tudo o mais empalidece em comparação. É que o Bradbury de 1950, por misógino e conservador que se mostrasse, era acima de tudo um escritor e peras.
Ah, mas está escrito com tamanha magnificência que tudo o mais empalidece em comparação. É que o Bradbury de 1950, por misógino e conservador que se mostrasse, era acima de tudo um escritor e peras.
quinta-feira, 10 de dezembro de 2009
Lido: Mr. Pale
Mr. Pale (bib.) é um conto de fantasia científica de Ray Bradbury, passado numa nave espacial de partida da Terra, na qual aparece um muito estranho e moribundo passageiro clandestino. Dizer mais desvenda demasiado da história, que se apoia fortemente no lento desvendar da identidade do passageiro clandestino e daquilo que o traz à nave, de modo que direi apenas que, contrariamente ao que possa parecer à primeira vista, este conto é uma reflexão sobre a mortalidade. Uma reflexão sobre a mortalidade escrita por um escritor idoso, que vê claramente na sua frente o fim da vida a aproximar-se e procura reconciliar-se com ele. Apesar do ambiente de ficção científica (nave espacial, e tal) não se trata de um conto de ficção científica e, na verdade, se for olhado apenas sob esse prisma estreito é bem capaz de parecer bastante mau. Mas abrindo-se os horizontes é, talvez, o melhor conto do livro em que se insere, pelo menos até agora.
Lido: Desgraça
Desgraça, do sul-africano J. M. Coetzee, é um grande romance.
Descrevendo a vida de um professor de literatura na Universidade do Cabo depois de se entregar a uma relação com uma aluna, o livro é uma dura reflexão sobre as relações de poder numa sociedade à deriva e em transição entre o poder repressivo duma minoria e o poder da maioria pós-apartheid, e onde o racismo nunca se encontra coberto por mais do que uma fina película de recém-adquirida tolerância, quando está coberto por alguma coisa.
O protagonista começa o romance no topo da escala social, como professor respeitado, pelo menos na aparência, ainda que tenha a sensação de que na realidade não está a ensinar nada a ninguém. Divorciado, encontra em prostitutas a forma de dar vazão às suas necessidades sexuais, até que uma das suas alunas lhe desperta a atenção. Sedu-la, valendo-se para isso do poder que detém enquanto professor. Não chega propriamente a violá-la, mas não anda longe. E cai em desgraça quando a rapariga faz queixa.
Começa logo aqui o jogo de Coetzee com as relações de poder na sociedade em que vive (ou vivia, quando escreveu o romance; hoje vive na Austrália e tornou-se entretanto cidadão australiano), mas ele leva-as muito mais longe. O professor, caído em desgraça (embora lhe tenha sido oferecida a oportunidade de se redimir com um pedido público de desculpa, que ele não aceita), vai viver com a filha lésbica que tem terras e uma espécie de canil numa zona rural distante. Aí conhece um dos vizinhos da filha, antigo empregado e recente proprietário que está em plena ascenção social. Negro, claro. E é na dinâmica da relação entre a filha (e o próprio professor) e este vizinho que Coetzee baseia a sua analogia com a África do Sul como um todo.
Numa sociedade em mudança, o burguês intelectual, que nunca escondera o seu snobismo, e a sua filha, proprietária rural, dois tipos naturais de repressores de tempos idos, acabam na condição de vítimas quando um grupo de criminosos viola a filha (engravidando-a) e espanca e quase queima vivo o pai. Criminosos que, marcados pela sua antiga condição de vítimas, se acham agora no direito de passar a repressores, desencadeando uma violência que é como um espelho daquela a que foram antes sujeitos. Têm desculpa? Será preciso, ou até possível, levá-los à justiça e fazê-los pagar pelos seus atos? É nesta discussão que se abre um abismo entre o pai e a filha. Aquele procura vingança, ainda que duma forma inconsequente e ineficaz; esta prefere esquecer, e prepara-se para ter o filho e cuidar dele, aceitando a proteção do vizinho (familiar de um dos agressores) e a sua nova condição de impotência.
Escrito num estilo adequadamente seco e objetivo, nu de rodriguinhos, este livro é grande literatura, sem sombra de dúvida. Uma história interessante e bem contada, personagens credíveis, diálogos verosímeis, um estilo adequado e, acima de tudo, muitíssimo conteúdo. É verdade que eu prefiro outras literaturas à realista, como esta, mas não é menos verdade que livros como este quase me levam a fazer as pazes com o mainstream literário. Muito bom.
Descrevendo a vida de um professor de literatura na Universidade do Cabo depois de se entregar a uma relação com uma aluna, o livro é uma dura reflexão sobre as relações de poder numa sociedade à deriva e em transição entre o poder repressivo duma minoria e o poder da maioria pós-apartheid, e onde o racismo nunca se encontra coberto por mais do que uma fina película de recém-adquirida tolerância, quando está coberto por alguma coisa.
O protagonista começa o romance no topo da escala social, como professor respeitado, pelo menos na aparência, ainda que tenha a sensação de que na realidade não está a ensinar nada a ninguém. Divorciado, encontra em prostitutas a forma de dar vazão às suas necessidades sexuais, até que uma das suas alunas lhe desperta a atenção. Sedu-la, valendo-se para isso do poder que detém enquanto professor. Não chega propriamente a violá-la, mas não anda longe. E cai em desgraça quando a rapariga faz queixa.
Começa logo aqui o jogo de Coetzee com as relações de poder na sociedade em que vive (ou vivia, quando escreveu o romance; hoje vive na Austrália e tornou-se entretanto cidadão australiano), mas ele leva-as muito mais longe. O professor, caído em desgraça (embora lhe tenha sido oferecida a oportunidade de se redimir com um pedido público de desculpa, que ele não aceita), vai viver com a filha lésbica que tem terras e uma espécie de canil numa zona rural distante. Aí conhece um dos vizinhos da filha, antigo empregado e recente proprietário que está em plena ascenção social. Negro, claro. E é na dinâmica da relação entre a filha (e o próprio professor) e este vizinho que Coetzee baseia a sua analogia com a África do Sul como um todo.
Numa sociedade em mudança, o burguês intelectual, que nunca escondera o seu snobismo, e a sua filha, proprietária rural, dois tipos naturais de repressores de tempos idos, acabam na condição de vítimas quando um grupo de criminosos viola a filha (engravidando-a) e espanca e quase queima vivo o pai. Criminosos que, marcados pela sua antiga condição de vítimas, se acham agora no direito de passar a repressores, desencadeando uma violência que é como um espelho daquela a que foram antes sujeitos. Têm desculpa? Será preciso, ou até possível, levá-los à justiça e fazê-los pagar pelos seus atos? É nesta discussão que se abre um abismo entre o pai e a filha. Aquele procura vingança, ainda que duma forma inconsequente e ineficaz; esta prefere esquecer, e prepara-se para ter o filho e cuidar dele, aceitando a proteção do vizinho (familiar de um dos agressores) e a sua nova condição de impotência.
Escrito num estilo adequadamente seco e objetivo, nu de rodriguinhos, este livro é grande literatura, sem sombra de dúvida. Uma história interessante e bem contada, personagens credíveis, diálogos verosímeis, um estilo adequado e, acima de tudo, muitíssimo conteúdo. É verdade que eu prefiro outras literaturas à realista, como esta, mas não é menos verdade que livros como este quase me levam a fazer as pazes com o mainstream literário. Muito bom.
terça-feira, 1 de dezembro de 2009
Lido: 333
Peguei em 333 muitíssimo desconfiado, julgando tratar-se de mais uma da miríade de histórias secretas mais ou menos cabalísticas, mais ou menos templárias, que tem proliferado no mundo literário desde que Dan Brown cometeu o seu Código Da Vinci, e das quais tenho lutado, com sucesso e diligência, por me manter bem afastado. Não só o título, que remete imediatamente para o famigerado Número da Besta, mas também o grafismo da capa, faziam temer o pior. Mas este livro apareceu de paraquedas cá por casa, de modo que resolvi lê-lo, com desconfiança e tudo.
E descobri que se trata, realmente, duma história secreta, mas não propriamente do mesmo género. Pedro Sena-Lino, o autor, não escreveu um romance, propriamente, mas sim uma compilação de historietas sobre o que aconteceu aos 333 exemplares que foram impressos de um livro antigo e razoavelmente maldito, cujo principal crime é versar o amor e o desejo vistos sob o ponto de vista duma mulher, que além de mulher era freira. A semelhança com a soror Mariana Alcoforado e suas romanticíssimas cartas não é coincidência, pura ou impura. Sena-Lino estuda a literatura feminina de tempos idos, e procura de facto com o seu livro fazer uma homenagem à velha freira alentejana.
Mas fá-lo duma forma que, embora a princípio pareça apenas algo desconcertante, depois se torna aborrecida de tão monótona. Ao seguir a "vida" de cada um dos 333 exemplares, Sena-Lino descreve-nos uma sucessão de acidentes, percalços, incêndios, inundações, o diabo a quatro, que vão destruindo quase metodicamente toda a edição. Concomitantemente, os donos dos livros vão também tendo os fins mais variados, transformando o livro (o de Sena-Lino, não o dos 333 exemplares) numa longa sucessão de tragédias. Não há exemplar e respetivo dono que mereça mais do que meia dúzia de páginas, de modo que não há história que sofra desenvolvimento suficiente para agarrar o leitor, e não há personagem que ultrapasse o esboço. Nem poderia haver, visto que o autor se auto-impôs a tarefa de se desembaraçar de 333 livros ao longo de menos de 200 páginas.
Quem não quiser spoilers sérios faça favor de saltar o próximo parágrafo, porque vou ter de desvendar nele o final de 333 a fim de referir algo de relevante. Aviso feito, avante.
No seu desfecho, 333 acaba por adquirir tons de fantástico, na vertente todoroviana da palavra, embora haja também nele muito de alegoria. Ao ser destruído o último dos 333 exemplares do livro, o fantasma da autora é libertado, fazendo-nos reavaliar todos os acontecimentos passados. A parte alegórica é óbvia e algo banal, e parte da velha ideia de que o escritor coloca parte da alma naquilo que escreve. Mas esse final parece-me mais interessante por sugerir (e apenas sugerir) que a destruição dos 333 exemplares se fica de facto a dever à ação do fantasma da autora, aflito por ganhar a liberdade por que ansiava há muito.
Em suma, não posso dizer que tenha gostado deste livro. Um final com algum interesse não compensa de forma alguma a monotonia das muitas páginas que a ele levam, e confesso que o usei por mais do que uma vez como forma de curar insónias. Mas acredito plenamente que haja quem se delicie com todas as historietas que o compõem. É a velha questão de gostar-se de amarelo. E eu, não gosto.
E descobri que se trata, realmente, duma história secreta, mas não propriamente do mesmo género. Pedro Sena-Lino, o autor, não escreveu um romance, propriamente, mas sim uma compilação de historietas sobre o que aconteceu aos 333 exemplares que foram impressos de um livro antigo e razoavelmente maldito, cujo principal crime é versar o amor e o desejo vistos sob o ponto de vista duma mulher, que além de mulher era freira. A semelhança com a soror Mariana Alcoforado e suas romanticíssimas cartas não é coincidência, pura ou impura. Sena-Lino estuda a literatura feminina de tempos idos, e procura de facto com o seu livro fazer uma homenagem à velha freira alentejana.
Mas fá-lo duma forma que, embora a princípio pareça apenas algo desconcertante, depois se torna aborrecida de tão monótona. Ao seguir a "vida" de cada um dos 333 exemplares, Sena-Lino descreve-nos uma sucessão de acidentes, percalços, incêndios, inundações, o diabo a quatro, que vão destruindo quase metodicamente toda a edição. Concomitantemente, os donos dos livros vão também tendo os fins mais variados, transformando o livro (o de Sena-Lino, não o dos 333 exemplares) numa longa sucessão de tragédias. Não há exemplar e respetivo dono que mereça mais do que meia dúzia de páginas, de modo que não há história que sofra desenvolvimento suficiente para agarrar o leitor, e não há personagem que ultrapasse o esboço. Nem poderia haver, visto que o autor se auto-impôs a tarefa de se desembaraçar de 333 livros ao longo de menos de 200 páginas.
Quem não quiser spoilers sérios faça favor de saltar o próximo parágrafo, porque vou ter de desvendar nele o final de 333 a fim de referir algo de relevante. Aviso feito, avante.
No seu desfecho, 333 acaba por adquirir tons de fantástico, na vertente todoroviana da palavra, embora haja também nele muito de alegoria. Ao ser destruído o último dos 333 exemplares do livro, o fantasma da autora é libertado, fazendo-nos reavaliar todos os acontecimentos passados. A parte alegórica é óbvia e algo banal, e parte da velha ideia de que o escritor coloca parte da alma naquilo que escreve. Mas esse final parece-me mais interessante por sugerir (e apenas sugerir) que a destruição dos 333 exemplares se fica de facto a dever à ação do fantasma da autora, aflito por ganhar a liberdade por que ansiava há muito.
Em suma, não posso dizer que tenha gostado deste livro. Um final com algum interesse não compensa de forma alguma a monotonia das muitas páginas que a ele levam, e confesso que o usei por mais do que uma vez como forma de curar insónias. Mas acredito plenamente que haja quem se delicie com todas as historietas que o compõem. É a velha questão de gostar-se de amarelo. E eu, não gosto.
Lido: Os Filhos Madraços
Os Filhos Madraços é um conto razoavelmente curto em que Italo Calvino nos descreve uma família de mãe, pai e dois filhos adultos, os quais, para desapontamento e fúria dos pais, se estão nas tintas para trabalhar, preferindo passar os dias a mandriar. É um dos primeiros contos de Calvino e ainda está muito longe daquilo a que o autor nos habituou mais tarde, os seus contos e romances fantásticos que por vezes chegam mesmo a roçar-se com grande entusiasmo na ficção científica. Longe no tema, mas também longe, parece-me, em qualidade. É um conto sem história propriamente dita, um conto de situação e de construção de personagens, mas só uma das personagens está razoavelmente bem construída, não passando as outras de esboços. A mãe é quase inexistente, o pai existe apenas no esforço que faz para arrancar a prole à inércia e na irritação que manifesta pela atitude dos filhos, o irmão do narrador resume-se à preguiça, e só o narrador se mostra com alguma profundidade: é mandrião, sim senhores, mas pelo menos tem alguns pruridos de consciência pelo facto. Mas como está bem escrito, o conto acaba por ser razoável, embora eu de Calvino espere sempre muito melhor do que isto.
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