sábado, 30 de abril de 2016

Lido: Eu-Próprio o Outro

Eu-Próprio o Outro (bibliografia) é um conto curto de Mário de Sá-Carneiro que constitui mais uma variação sobre vários temas recorrentes na sua prosa. Escrito sob a forma de diário ocasional, conta uma história de atração e fascínio com toques de homossexualidade, protagonizada por um escritor cosmopolita e aborrecido de si mesmo, do mundo e da vida, aquele que escreve o diário, e por um homem misterioso, russo (também não pela primeira vez; o escritor genial que fascina o narrador de Asas é igualmente russo), com o qual o primeiro trava uma amizade inseparável. Aqui, essa amizade acaba numa autêntica metamorfose e, de novo não pela primeira vez, em algo que não se percebe muito bem se é homicídio ou suicídio.

Sendo mais uma variação de uma série de temas já abordados noutros textos, não se pode dizer que haja aqui verdadeira surpresa. Há algumas frases a que os mais sensíveis a esses detalhes facilmente chamariam sublimes, há uma narração eficaz no contexto das limitações a que o registo diarístico obriga, mas surpresa não há. Ou seja: o conto até é bom, mas pessoalmente interessou-me mais enquanto peça de um todo maior, o conjunto de temas obsessivos da prosa de Sá-Carneiro, do que como peça literária independente.

A meros três textos do fim deste livro (que podem conter alguma surpresa, é certo), é curioso verificar quão limitado tematicamente um escritor tão relevante para as letras portuguesas como Sá-Carneiro consegue ser. E incluo neste "tematicamente" aspetos como a ambientação das histórias ou as características das personagens. Aspetos que, claramente, pouco interesse lhe despertavam; o que ele sempre quis foi falar de si próprio. Não é a forma de estar na literatura que mais me agrada, confesso.

Contos anteriores deste livro:

Lido: Dom João

Dom João é uma peça de Molière que constitui, como o título sugere, a abordagem do dramaturgo francês ao mito do impenitente mulherengo Don Juan. O Dom João de Molière é, claro, um fidalgo hedonista, incapaz de resistir a um rabo de saia com uma cara laroca, mas tem a peculiaridade de ser francês e vaguear de um lado para o outro, sempre perseguido por uma nuvem de credores e familiares de donzelas desonradas, acompanhado pelo fiel (embora não muito) criado Esgaranelo. O texto tem todas as características de uma moralizadora comédia de costumes, bastante próxima do texto espanhol que lhe deu origem, na qual Esgaranelo, apesar de também lhe cair o pé para a canalhice com alguma frequência, representa o papel de consciência crítica do amo, frequentemente com respostas ou apartes cheios de espírito, enquanto Dom João se vai sucessivamente escapulindo, com uma dificuldade sempre crescente, a situações embaraçosas.

Um detalhe curioso, que eu desconhecia até ler esta peça mas depois vim a saber que já está presente no texto original de Tirso de Molina, é ela ser também uma obra fantástica, contando com uma estátua falante e com um fantasma como personagens. E pensar que peguei neste livro para variar dos estilos e géneros que geralmente leio só para dar comigo de volta a eles, pelo menos no que ao género diz respeito. Ele persegue-me.

Texto anterior deste livro:

Lido: O Pinto Borrachudo

O Pinto Borrachudo é um continho popular que entra mais claramente do que a maior parte dos outros no território do conto infantil, ainda que dos dotados de características que por um lado são algo perturbadoras e por outro são bem subversivas.

O pinto do título começa por encontrar uma bolsa de moedas enquanto anda a esgravatar e decide levá-la ao rei. Para o fazer, ultrapassa todos os obstáculos que lhe saem ao caminho engolindo-os (no mundo do maravilhoso as limitações volumétricas dos estômagos não são problema). Ao chegar ao palácio do rei as coisas não correm exatamente de feição, mas o pinto não está com meias medidas e regurgita o que foi engolindo, causando com isso um sem fim de problemas até que por fim lá lhe dão o que queria.

De novo, há aqui algo de lengalenga e, mais interessante do que isso, de novo há um humilde, neste caso um mero pinto, a fazer frente com vantagem aos poderosos deste mundo. Não sei se fruto da seleção de Adolfo Coelho ou não (mas provavelmente não), esta velha literatura popular está carregadinha de subversão. Muito curioso.

Contos anteriores deste livro:

domingo, 24 de abril de 2016

Lido: Desobediência Civil

Desobediência Civil é uma vinheta de Luiz Bras que conta uma história de horror futurista. Num mundo em que os paralisados têm de novo acesso a toda a gama de movimentos humanos equipando-se com um exoesqueleto de titânio, estes ganham de repente vontade própria, a qual não coincide necessariamente com a dos seus donos. E estes nada podem fazer para que a sua vontade se sobreponha à da máquina.

É outra história contada com grande brevidade mas também com uma eficácia suficiente para que um arrepiozinho desça mesmo a espinha. Francamente boa, portanto.

Textos anteriores deste livro:

sábado, 23 de abril de 2016

Lido: Rosalinda, a Nenhuma

Rosalinda, a Nenhuma, é uma história de Mia Couto sobre uma mulher anulada por um marido bêbado, abusador e mulherengo como poucos, que em dada altura morre e a deixa viúva. E ao morrer e deixá-la viúva transforma-a de mulher abandonada e desamada, uma entre muitas por mais legítima que seja, em dona do seu destino e da sua vida. É uma história cheia da poesia carregada de neologismos tão típica de Mia Couto, uma história de mulher, também como tantas outras das histórias do autor moçambicano. Uma história com vida dentro, por mais estranho que possa por vezes ser o que faz mover a protagonista. Uma história muito curiosa, em particular no que toca à metamorfose psicológica que toma conta de Rosalinda, ao ver-se enfim livre, como que se convertendo no marido (e depois em louca). Muito bom.

Contos anteriores deste livro:

quinta-feira, 21 de abril de 2016

Lido: As Ruínas Circulares

As Ruínas Circulares (bibliografia) é um conto curto de Jorge Luiz Borges, magnificamente escrito, muitíssimo bem concebido, sobre um tal homem pardo que chega a um local onde se erguem as ruínas circulares do título e, aí, se dedica à criação de universos, sonhando-os. O conto descreve rapidamente o trabalho cosmogónico do mago (assim é tratado o homem pardo por Borges, identificando portanto com clareza as forças em presença como mágicas, mesmo que por vezes se inclua esta história na ficção científica, talvez devido a algumas ideias cosmológicas que contém) e as suas dificuldades e desafios, mas na verdade a grande força desta história reside na sua enormíssima qualidade literária e na reviravolta final.

Ao ler este conto lembrei-me de um livro que li recentemente, o Relatório Sobre a Probabilidade A do Brian Aldiss, embora este conto seja completamente diferente. Há só um ponto de contacto, que não revelarei aqui porque o que esse ponto de contacto é e onde está é fulcral para o pleno desfrute do conto no que ao enredo diz respeito. Spoiler, e tal. E vale bem a pena desfrutá-lo em pleno: o conto é mesmo muitíssimo bom.

Contos anteriores deste livro:

quarta-feira, 20 de abril de 2016

Lido: A União do Gato e do Rato

A União do Gato e do Rato, história popular recolhida pelos Irmão Grimm, é uma fábula sobre dois amigos, um gato e um rato, que foram morar juntos e decidiram fazer provisões para o inverno sob a forma de uma panela de banha. Mas o gato, que era glutão, achava a banha uma tentação irresistível.

É uma história simples, que tem alguns pontos de contacto com a celebérrima fábula da cigarra e da formiga, ainda que a moral desta história seja bastante menos clara. Na verdade, o final até é bastante sombrio, o que desmente a impressão com que eu tinha ficado quando li a primeira história do livro. Aparentemente as coisas não são tão simples como eu pensava. Ainda bem.

Seja como for, esta não é uma historinha memorável.

Conto anterior deste livro:

Lido: «Além e Bailado»

«Além e Bailado» é um texto semi-independente anexo a Asas, uma experiência literária em dois fragmentos (Além e Bailado, precisamente) na qual Mário de Sá-Carneiro encarna o protagonista de Asas, o tal Petrus Ivanowitch Zagorianski, excêntrico autor russo que procurava a forma literária tão pura que seria capaz até de se escapar à gravidade. E de facto faz muito pouco sentido sem o conto-pai.

É um texto inerentemente fragmentário, não só por constar de dois fragmentos, mas sobretudo por consistir de frases normalmente soltas, por vezes unidas em brevíssimas sequências, frases que Zagorianski por intermédio de Sá-Carneiro pretenderia perfeitas. Praticamente não há enredo, praticamente não há uma verdadeira tentativa de contar uma história; é forma pura, quase sem conteúdo extraliterário. E por isso mesmo, naturalmente, não me agradou.

De facto, não me agradou por mais motivos além dessa sobredosagem de forma. Não me agradou também porque este texto me pareceu mal sucedido enquanto experiência. O sucesso existiria, parece-me, se Sá-Carneiro tivesse encarnado realmente o tal Petrus Zagorianski... mas isso implicaria ter usado imagens e estilo próprios da personagem. Um pouco como o Pessoa (que Sá-Carneiro conhecia, de resto, portanto não seria ideia que lhe fosse estranha) fazia com os seus heterónimos. Mas não é isso o que aqui se encontra. O que aqui se encontra é um Sá-Carneiro tão puro que chega a repetir imagens já encontradas noutras das suas histórias.

Malabarismos literários à parte, achei este texto fraco.

Contos anteriores deste livro:

terça-feira, 19 de abril de 2016

Lido: O Rabo do Gato

O Rabo do Gato marca o regresso às lengalengas neste livro de Adolfo Coelho. Começa a história em jeito de fábula, com um gato que vai ao barbeiro para que este lhe fizesse a barba. Mas o barbeiro, talvez por bondade mas mais provavelmente por malícia, sugere-lhe que corte também um bocado do rabo pois assim ficaria mais bonito. O gato vai-se embora, mas depois lembra-se de que o barbeiro lhe ficou com o rabo e regressa para lho exigir de volta, ameaçando-o com o roubo de uma navalha em caso de nega. O barbeiro não devolve o rabo, o gato rouba a navalha e aqui começa a lengalenga, pois daí em diante a história vai seguir sempre este esquema: o gato empresta uma coisa, vai-se embora, volta atrás ameaçando com um roubo se a coisa não lhe for devolvida, esta não é e o gato lá se vai dali com outra coisa em sua posse, voltando ao início.

No mundo das lengalengas, esta até é capaz de ser das melhores, mas, claro, padece do mesmo mal de todas as outras: começa por ser repetitiva e acaba inconclusiva. O que eu começo a achar curioso é haver tantas...

Contos anteriores deste livro:

segunda-feira, 18 de abril de 2016

Lido: Corra, Lalo, Corra

Corra, Lalo, Corra, vinheta de Luiz Bras, é um conto de ficção científica, ou quiçá de fantasia, ou talvez das duas coisas e de outras ainda, que, numa prosa sincopada, ritmada, quase poética (ou poética mesmo), exorta um tal Lalo a fugir, a atravessar portais entre dimensões, a saltitar entre universos, porque o Lalo, por algum motivo que nunca chega a explicar, está a ser perseguido por hordas de criaturas identificadas apenas por uma sua qualidade, por um seu ato, por um qualificativo.

É daqueles contos que sugerem mais do que dizem, e que têm na prosa, na forma, a sua principal força. É frequente não passarem disso, de mera forma sem conteúdo, mas Bras consegue criar imagens evocativas de mundos que apesar de nunca serem vistos parecem estar logo para além da curva seguinte na estrada cósmica. Pode ser só truque, prestidigitação de mago de palco literário. Mas está bem feito. Muito bem feito.

Textos anteriores deste livro:

domingo, 17 de abril de 2016

Lido: Contos Comédia Social

Contos Comédia Social é mais uma das pequenas antologias de contos publicadas pela Rosto e distribuídas pelo JN e pelo DN há alguns anos. E não é das melhores. Não só porque alguns destes contos só com enorme boa vontade podem ser minimamente relacionados com o conceito de "comédia", o que não terá importância se não os encararmos enquanto parte de um conjunto temático como este mas, fazendo parte dele, tem, como porque mesmo abstraindo-nos desse fator estas histórias não são, realmente, nada de extraordinário.

Na verdade, relendo agora o que escrevi sobre cada um, reparo que o adjetivo mais positivo que lhes atribuí foi "interessante".

Com dois contos "interessantes", um "curioso", o outro nem uma coisa nem a outra e um tema que parece ajustar-se mal a parte dos contos escolhidos, ou vice-versa, esta antologia não pode ser boa. Achei-a fraca. Não má, note-se; não chegou a tanto. Mas fraca.

Eis o que achei dos quatro contos:
Este livro foi comprado.

Lido: O Apocalipse Privado do Tio Geguê

O Apocalipse Privado do Tio Geguê, de Mia Couto, é um conto curioso porque no seu âmago, embora profundamente enterrada, está a política. Há nele, na história do homem que se vê alçado a autoridade suprema de um território, do homem que se vê acima da lei, sendo a lei, qualquer coisa de Apocalypse Now, e há nisso uma referência clara ao Moçambique dos tempos da guerra civil. Pois, num momento em que o Estado era fraco, distante e contestado, o país devia estar cheio de pequenos potentados isolados do mundo e das leis como o que aqui se entrelinha.

Por cima, as camadas são múltiplas. Há uma história de amor, ou de amores cruzados, o amor e lealdade filial de um órfão pelo tio, sempre salpicado de ódio e de crime, e o amor do órfão por uma rapariga de sua idade que o tio afasta. E de ciúme, e de desejo, a tal ponto que parece ser isso a mover o conto. Mas não é, não propriamente. O que faz mover o conto é o bem e o mal e o modo como esses ideais se misturam num confuso bolo nas pessoas reais. É bom, o conto? É.

Conto anterior deste livro:

sexta-feira, 15 de abril de 2016

Lido: Pierre Menard, Autor do Quixote

Pierre Menard, Autor do Quixote é um daqueles contos de Jorge Luiz Borges que falsificam a realidade. Neste caso, estamos perante uma biografia falsa, a de um tal Pierre Menard, romancista, aparentemente francês, que, no meio de intensa atividade literária, em parte visível, em parte invisível, terá embarcado num projeto muito sui-generis: o de escrever o clássico de Cervantes. Não, não se trata aqui de reescrever nem de copiar. Nada de pastiches ou homenagens. Nem estamos perante um viajante no tempo. Menard pretendia tão só escrever a obra de Cervantes, tal e qual como o original, palavra por palavra, refazendo originalmente o já feito.

Borges conta a história em forma ensaística, logo sisudíssima, e altamente elogiosa do empreendimento literário a que se dedica o protagonista, o que muito contribui para tornar o conto muitíssimo divertido, amplificando o absurdo da ideia com o absurdo da prosa.

Não há dúvida: Borges é Borges, único e irrepetível. Já li vários textos deste género, cometidos por outros autores; ao lado deste não passam de pálidas sombras.

Conto anterior deste livro:

quinta-feira, 14 de abril de 2016

Lido: O Rei dos Sapos, ou Henrique-de-Ferro

O Rei dos Sapos, ou Henrique-de-Ferro é um dos contos dos Irmãos Grimm recolhidos no folclore alemão. Trata-se de uma fábula sobre uma princesa desdenhosa que tenta obter vantagem de um sapo, abandonando-o em seguida, sem saber que o sapo não era um simples animal mas sim um príncipe encantado, e vai por causa disso apanhar uma lição. Mas uma lição benigna, porque tudo acaba o melhor possível.

Para mim, o mais curioso nesta história, que provavelmente terá mais a ver com as escolhas feitas pelos Grimm — que adaptaram e selecionaram deliberadamente os contos que recolheram para poderem ser lidos por crianças — do que com o material de base, é o quão diferente o ambiente dela é relativamente às histórias populares portuguesas que tenho também andado a ler. Ao humor tantas vezes corrisivo, bruto e subversivo das nossas histórias contrapõe-se aqui o "e viveram felizes para sempre" dos contos de fadas.

Mas este é só um exemplo, a primeira de muitas histórias. Pode ser que não seja sempre assim.

quarta-feira, 13 de abril de 2016

Lido: Histórias Extraordinárias

Histórias Extraordinárias (bibliografia, embora o conteúdo desses livros varie) é uma coletânea de Edgar Allan Poe, que reúne um total de 19 contos distribuídos por dois volumes. É uma compilação de uma parte significativa da prosa curta de Poe (estão publicados certa de 70 contos), incluindo os seus contos mais importantes, e que por isso são publicados e republicados não só em antologias, aqui e ali, mas também em todas as compilações genéricas da sua ficção curta, o que tem como consequência que um leitor que procure conhecê-la, à ficção curta, vai acabar por lê-los e relê-los várias vezes em vários sítios diferentes.

Não que isso seja aborrecido, pois os contos são de facto bons, quase todos, sendo alguns excelentes, e por isso as releituras são prazerosas, salvo casos particulares de histórias que dependem demasiado do primeiro impacto para terem todo o efeito desejado sobre quem lê. E quando vêm servidos por uma tradução competente, como é o caso, menos aborrecidos ainda se tornam.

Este é, pois, um bom livro. Ou dois bons livros, se for esse o ponto de vista. Livro(s) repleto(s) de boas histórias, bem traduzidas e várias delas muitíssimo influentes. Histórias principalmente de horror, mas também policiais, de fantasia, de humor e até de ficção científica. Histórias que, se não são suficientes para um conhecimento completo da obra deste autor, são-no para se ter uma ideia muito concreta de quem ele foi e do seu impacto em vários géneros literários.

Eis o que achei dos contos individualmente considerados:

Primeiro Volume
Segundo Volume
Estes livros foram comprados.

Lido: A Coroa dos Deuses

A Coroa dos Deuses (bibliografia) é o segundo romance da série da Alex 9 do Bruno Martins Soares. Se estão lembrados, já aqui falei do primeiro e não me mostrei particularmente contente com a leitura, mas manifestei a esperança de que as coisas melhorassem nas duas partes da história que ainda aí vinham.

E de facto na segunda melhoraram significativamente.

Esta segunda parte mostra não só uma prosa bastante mais sólida, com menos falhas (embora ainda tenha algumas), como um conjunto de personagens bastante mais bem definido, desenvolvendo-se a história já não numa miríade de pontas mais ou menos soltas espalhadas por todo o lado mas num punhado de núcleos que, por isso mesmo, ficam muito mais bem definidos. E quando falo em núcleos refiro-me não só às personagens, como à própria geografia.

E a própria história, embora seja uma sequência direta da anterior, voltando a saltar entre um Sistema Solar futurista (agora mais na Terra que em Marte) e um planeta distante, o qual começa a mostrar-se não inteiramente medieval mas misto, com a intrusão de artefactos de alta tecnologia na parte da história que aí decorre, tem também um desenvolvimento mais sólido e, desta vez, termina no fim de um verdadeiro arco narrativo secundário, o que cria uma conclusão satisfatória para o volume independente em que também foi publicada.

Ou terminaria se não fosse aquele epílogo, em jeito de "não perca as cenas dos próximos capítulos", com uma série de cenas desgarradas com pouca ligação aparente com o que ficou para trás. Percebo a intenção, mas pareceu-me muito desnecessário: não é preciso dizer-nos que vem aí mais; a própria história se encarregou disso e há o pormenorzito das duzentas e tal páginas que faltam para concluir o livro.

Acresce a isto uma ênfase menor na ação simples, uma descrição mais eficaz das cenas de combate, já não concentrada unicamente nos atos mas também nos porquês dos atos, e estamos perante um romance que, ao contrário do anterior, já é bastante razoável. Se o terceiro mantiver este nível ou o melhorar, este livro acabará por ser uma leitura agradável, embora para mim tenha a pecha, que julgo que não perderá até ao fim, de ser uma história deliberadamente concebida e contada com uma pegada muito pulp, que não é propriamente da minha predileção.

A ver vamos se assim será. Siga a leitura.

Romance anterior deste livro:

terça-feira, 12 de abril de 2016

Lido: Escola de Mulheres

Escola de Mulheres é uma peça de Molière e, aqui chegada, a mancheia de meia dúzia que costuma ler este blogue deve estar a coçar a cabeça e a pensar "Mas ca raio?! Que faz este tipo a ler teatro?! Não uma peçazita numa antologia, ou um sketch noutra, mas teatro-teatro?!"

Resposta: gosto de ler de tudo um pouco; convém, para se poder comparar e ter pelo menos uma ideia do que se fala. Mas é verdade que em certos géneros um pouco é mesmo pouco. Um desses géneros é o teatro. Nunca gostei muito do teatro propriamente dito (o seu caráter artificioso sempre me desagradou), mas li algumas peças na minha fase furiosamente omnívora, no fim da adolescência, e não falo só das leituras de Gil Vicente obrigatórias ou aconselhadas na escola. Gil Vicente sempre me divertiu (um dia ainda o hei de reler), mas do resto também não gostei muito; faltava sempre qualquer coisa àqueles textos, o que é natural, visto que se destinam a ser representados. Por outro lado, nenhum deles era de Molière, e Molière é Molière.

Pois este Escola de Mulheres é uma comédia mundana, cujo protagonista é um homem, em extremo cioso da lisura da sua testa, que por isso decide que há de arranjar uma ingénua, encarcerá-la num casarão sem lhe dar instrução que lhe possa abrir os olhos para o mundo, para assim obter um casamento feliz e livre de cornos. E claro que as coisas correm mal.

Continuei sem gostar muito, é certo. O texto é divertido, mas continua a faltar-lhe o que falta a todos: a parte cénica. E além disso, Molière foi tão influente e escreveram-se tantas comédias de costumes depois dele, que esta peça já perdeu há muito a frescura que poderá ter tido. Assim pensei ao acabá-la, mas foi ao pensar isto que se instalou o assombro.

É que Molière nasceu em 1622, há quase quatrocentos anos, e só viveu 51. E este texto é não só bastante profundo como quase feminista! Só não o é mesmo porque a emancipação da rapariga se dá por via sentimental, acabando ela casada e conforme aos ditames da sociedade patriarcal, o que explicará que, em vez de ter sido proibida e enterrada no fundo do baú das obras subversivas, tenha sido um sucesso. A frescura que poderá ter tido, pensava eu? Que poderá? Não. A frescura que teve mesmo, com absoluta certeza.

Bastou-me ler isto para perceber o porquê de Molière ser Molière. Acho que este é o melhor elogio que se pode dar a um artista. E quando as coisas chegam a esse ponto, o gosto pessoal, no fim de contas, pouca relevância tem.

segunda-feira, 11 de abril de 2016

Lido: Na Europa Tropical

Na Europa Tropical, de Artur Manuel Pires, é daqueles contos nostálgicos sobre a infância que tão do agrado são dos leitores nostálgicos. Não é o meu caso; nostalgia pela infância é doença de que não sofro, e isso retira-me logo do centro do alvo de público a que esta história se dirige.

Às vezes, quando o escritor é particularmente bom, capaz de infundir na obra novidade ou surpresa, sejam estas de perspetiva, enredo ou tratamento literário da língua, contos desta espécie conseguem impressionar até leitores normalmente imunes a este tipo de umbiguismos desfasados no tempo. Pires, embora o esforço seja meritório — o conto tem uma estrutura interessante, analéptica, e um enredo irónico à volta de um tesouro enterrado por dois rapazes, amigos de infância, que poderia causar embaraço (e daí...) aos adultos em que os rapazes se transformaram caso fosse descoberto por terceiros alheios à sua história de vida, e que portanto estes vão procurar localizar e recuperar o mais discretamente possível — não chega bem a esse ponto. Fica-se pela condição de continho simpático, de que nostálgicos provavelmente gostarão mas que me deixou em grande medida indiferente. Achei-o um conto razoável, não mais.

Contos anteriores desta publicação:

sábado, 9 de abril de 2016

Lido: Asas

Asas (bibliografia) é mais um conto fantástico de Mário de Sá-Carneiro onde, de novo, o narrador em primeira pessoa vai encontrar uma personagem particularmente excêntrica, talvez louca, um artista enredado numa frenética busca por um qualquer supremo objetivo artístico. Neste caso, a personagem que se descreve no conto é um poeta russo, e a sua obsessão artística é atingir uma tal pureza das palavras que elas se tornem imunes à ação da gravidade.

À primeira vista, a ideia não passa de um daqueles arroubos poéticos que, com alguma reflexão, depressa se mostram muito disparatados. No entanto, Sá-Carneiro usa-a para desenvolver uma reflexão sobre aquilo que a seu ver será a essência da arte. Uma reflexão à primeira vista inteiramente realista, mesmo sem descontar os exageros de narrador e personagem, mas que no final do conto se vem a revelar fantástica. Também isto não é novo nestes contos e novelas, mas aqui Sá-Carneiro leva a técnica ao limite das possibilidades, pois o fantástico só aparece na última página de um conto que ocupa 16, sem que isso faça com que deixe de ser fundamental para a história.

Este é outro bom conto. Não é certamente a melhor história de Sá-Carneiro, mas também está longe de ser a pior.

Contos anteriores deste livro:

sexta-feira, 8 de abril de 2016

Lido: O Compadre Lobo e a Comadre Raposa

O Compadre Lobo e a Comadre Raposa é outra história popular em jeito de fábula, protagonizada por lobos, raposas e pessoas. Aqui, o lobo volta ao papel de ingénuo que já tinha mostrado em histórias anteriores, mas a criatura traiçoeira e maligna é o homem, mesmo tendo com o lobo e com a raposa (que pouco aparece, e quando o faz é sem a astúcia habitual) relações de compadrio. É uma história curiosa por isso mesmo: em vez da simples antropomorfização dos animais, que é marca de qualquer fábula, os quais depois agem na história com a espécie de personalidades que a lenda lhes associa, e ora não interagem de todo com os seres humanos, ora, quando o fazem, são os primeiros a seguir por maus caminhos, aqui os animais são basicamente vítimas da canalhice das pessoas, primeiro explorados e logo mutilados, e mesmo quando tentam vingar-se o resultado acaba por ser mau. Curiosa inversão esta, que coloca como vilão o bicho que conta a história. Costuma ser ao contrário.

Contos anteriores deste livro:

Lido: Efeito Colateral

Efeito Colateral é uma vinheta de Luiz Bras que apesar de ter leves toques de ficção científica é sobretudo um conto de horror. Cria, num texto de qualidade literária evidente, uma curiosa cosmogonia na qual a vida surge como coisa ameaçada, de sobrevivência incerta, coisa amaldiçoada por uma vingança friíssima, antiquíssima, que a qualquer momento (esta noite mesmo?) pode desabrochar em violência incontrolável, vinda das mais insuspeitas e inertes coisas. Um apocalipse.

O Barreiros tem um conto (na verdade até tem mais que um) no qual explora este tipo de ambiente e ameaça — O Caçador de Brinquedos — e é dos melhores contos que ele escreveu, mas a abordagem de Bras é não só muito mais curta, mas bem diferente. Dá pano para mangas, o tema, e embora estas mangas sejam curtas, o que de resto é padrão de todo o livro (raríssima é a história que ultrapassa as duas páginas), o resultado é também bastante bom.

Textos anteriores deste livro:

Lido: A Rosa Caramela

A Rosa Caramela é um daqueles contos de Mia Couto que se centram numa personagem com qualquer coisa que a torna simultaneamente invulgar e igual a toda a gente, e em que as relações interpessoais desempenham papel de relevo. Aqui vamos encontrar a Rosa Caramela, mulata de muitas mulatezas, corcunda mas linda, que se apaixona, noiva, espera e desespera. Mas a história, que assim contada parece feia, uma história de abandono e preconceito, acaba resgatada, história de amor, de redenção, história bonita.

Mia Couto tem aquele seu jeito típico de contar histórias. Quem o conhece depressa as reconhece, e às vezes basta uma frase como aquela que abre este conto: "Dela se conhecia quase pouco." É um jeito muito bom e, embora esta história não seja das melhores que já lhe li, está cheia desse jeito. E isso, sem bastar para tudo, basta para muita coisa.