sexta-feira, 30 de abril de 2010

Lido: À Espera do Ano Passado

À Espera do Ano Passado (bib.) é um romance de Philip K. Dick que, não sendo dos melhores, é profundamente dickiano. Ficção científica com uns fortes toques de outras coisas, descreve um mundo futuro em que a humanidade terrestre se encontra sujeita a uma ditadura liderada pelo secretário-geral das Nações Unidas (paranoia esta que, aliás, está bem presente ainda hoje nas franjas mais direitistas da política americana), um homem profundamente neurótico e hipocondríaco a um grau quase fatal, e trava uma guerra interestelar contra uma espécie de alienígenas insectoides, os "rigues", tendo como aliada uma humanidade não-terrestre, os "'starmen" (Dick explica este segundo ramo da humanidade duma forma algo dainekeniana, mas não aprofunda essa explicação... felizmente). O protagonista é um médico, especialista em transplantes de órgãos artificiais, que a páginas tantas é chamado pelo ditador para se tornar seu médico pessoal e tentar curá-lo das múltiplas mazelas que o afligem. A este pano de fundo acrescenta-se uma droga experimental, desenvolvida como arma, que tem propriedades peculiares: vicia irrevogavelmente à primeira toma, destrói o utilizador em poucos meses... e permite viajar no tempo e para universos paralelos.

Com estes ingredientes básicos, Dick constroi uma trama sempre em convulsão, na qual nada é exatamente o que parece, nada é fiável. Nem as pessoas, nem a própria estrutura do Universo. Uma história muito típica do autor, portanto. Profundamente paranoica, sempre a pôr em causa a solidez da realidade. Os nossos aliados são na realidade os nossos piores inimigos... e daí talvez não. O mundo de todos os dias está sempre aí para fornecer uma continuidade à nossa existência... mas se calhar não está. O passado é o passado e o futuro o futuro... a menos que não sejam, a menos que se misturem e seja possível viajar por eles à vontade, bastando para tal apanhar uma valente moca.

Dick é grande porque consegue fazer isto sem parecer deixar pontas soltas pelo caminho. Ao longo deste romance, como de muitos dos outros romances do autor, o leitor é forçado a reajustar uma e outra vez a sua noção sobre aquilo que se está a passar, porquê e como, duma forma que parece quase sempre fazer sentido à sua maneira retorcida. E, se se deixar envolver o suficiente, no fim pode dar por si contaminado com a desconfiança que o autor genuinamente sentia pela realidade da realidade. É por isso que ele é muito melhor quando escreve romances do que quando escreve contos, e é isso que faz dele um autor de culto, celebrado como um dos gigantes da FC americana de meados do século XX, dotado com um tipo de imaginação que se adapta particularmente bem às características próprias da linguagem cinematográfica — razão pela qual as adaptações de Dick, mesmo quando não são particularmente fiéis às suas histórias, são-no quase sempre ao espírito dessas histórias. É uma questão de presença. Ele está, inteiro, nas suas histórias.

Com uma presença tão forte, a qualidade do texto acaba por se tornar secundária, e o mesmo acontece a fragilidades de outra índole. De facto, o texto deste romance não é grande coisa (e sofre com uma tradução que apesar de acabar bem começa fraquinha — uma revisão que a descolasse melhor do inglês e matasse falsos amigos não teria sido nada má ideia — e piora com a insuportável floresta de notas de rodapé que o tradutor decide semear pelo romance fora, embora essencialmente no início; quase 50!). E de facto seria possível pegar com detalhes que revelam a completa falta de noção do autor sobre as distâncias envolvidas nas viagens espaciais, que neste livro são tratadas como se não passassem de viagens de meia dúzia de quilómetros, uma idazinha ali aos arredores e pouco mais. Mas a presença compensa. De modo que mesmo quando se é sensível a este tipo de detalhes, como eu sou, tende-se a empurrá-los para o lado dizendo-lhes para não chatearem. E mesmo que eles tornem impossível achar-se o livro excelente, ou até muito bom, não se consegue evitar achá-lo bom.

terça-feira, 27 de abril de 2010

Sexo! Sexo! Sexo!

Chamei-vos a atenção? Eu sei que sim.

Pois é só para vos informar de que já está no ar a minha estreia no estranho mundo dos podcasts. Trata-se do 4º episódio do podcast brasileiro PODespecular, para o qual fui convidado para conversar sobre sexo na ficção científica e fantasia com uma série de gente ligada à FC brasileira. E a conversa foi tão prazerosa (ahem!) que, prevista para um episódio, teve de ser dividida em dois! O que está no ar é a primeira parte, e a seu tempo haverá uma segunda. Os interessados podem encontrar essa primeira parte aqui. Não se assustem com a longa secção de "cartas ao podcast": quando chega ao sexo a coisa fica mais viva. E informativa, espera-se.

Espero ter defendido bem as honras do convento lusitano naquela terra brasilis virtual. Curiosamente, lá os participantes entenderam na perfeição o meu sotaque algarvio. Veremos se acontece o mesmo com os ouvintes.

PS de 29 de Abril: Os links estão de momento indisponíveis, por o tráfego ter excedido o limite, suponho, mensal. Se assim for, é provável que voltem a estar funcionais a 1 de Maio.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Vasco Graça Moura: de asneira em asneira até ao descrédito total

Vasco Graça Moura adora insultar o acordo ortográfico, a nova ortografia e, por extensão, quem o elaborou e quem o utiliza. Fá-lo num estilo carroceiro que já se vai tornando habitual, embora na televisão tenda a suavizá-lo relativamente aos ataques de verborreia insultuosa que tem por escrito. E utiliza "argumentos" que vai alterando ao longo do tempo, à medida que, uns após outros, vão sendo escavacados pela realidade.

Parece que agora foi à TV mandar mais uns bitaites. E, claro, o asneirame não podia faltar.

Mas o que mais disse foi uma enorme quantidade de frases de efeito vazias de conteúdo. Que a nova ortografia é "incompatível com a dignidade da língua portuguesa" (porquê? em quê?) e com a "identidade do nosso país" (desculpe?!), etc., etc. Não vale a pena perder tempo com este tipo de palavreado: como tais afirmações não estão substanciadas, não têm conteúdo, não há ponta por onde pegar-lhes para uma refutação.

Mas nas asneiras, há. Vamos a elas.

Diz o Graça Moura que "o acordo é completamente desajustado à forma como falamos a nossa língua". Os factos, porém, afirmam precisamente o inverso. Os factos dizem que nós pronunciamos o c de facto, razão pela qual ele se escreve e não pronunciamos o c de acto, razão pelo qual ele desaparece. Os factos dizem que nós não pronunciamos o p de acepção, razão pela qual podemos deixar de o escrever e os brasileiros pronunciam, razão pela qual podem continuar a escrevê-lo. Os factos dizem que o acordo é finalmente ajustado ao modo como realmente falamos a língua hoje, não ao modo como falávamos a língua na época em que todas essas consoantes mudas que herdámos por presunção pseudo-etimológica não eram mudas.

Diz o Graça Moura que "o acordo vem desfigurar a maneira de pronunciar". Os factos, porém, afirmam que casos comprovados em que o modo como as palavras se escrevem teve algum impacto no modo como as palavras se pronunciam praticamente não existem. Porque uma língua é uma construção oral que tem uma vertente escrita que procura adaptar-se até certo ponto à oralidade, e não o contrário. Ninguém aprende uma língua materna por escrito: as suas regras, incluindo as da pronúncia, são-nos transmitidas anos antes de aprendermos a ler pelos nossos pais e demais ambiente. Quem pense o contrário não percebe nada do fenómeno linguístico humano. Nada.

Diz o Graça Moura que "é completamente inválido o protocolo modificativo, que prevê que apenas três países subscrevam e ratifiquem, para depois se aplicar aos restantes". Os factos, no entanto, são: o protocolo modificativo (que na verdade são dois, mas o segundo basicamente anula o primeiro) modifica uma cláusula do acordo fazendo com que ele entre em vigor no plano internacional com três ratificações, e foi assinado por todos os países lusófonos. Por todos. Com três ratificações, que já existem, entrou em vigor. Logo é válido. Mas o facto de estar em vigor no plano internacional não implica que entre em vigor internamente — para isso é preciso que os países ratifiquem o acordo. Faltam dois: Angola e Moçambique. Assinaram o acordo e ambos os protocolos, mas ainda não os ratificaram. Logo, ainda não aplicam a nova ortografia porque, ao contrário do que o Graça Moura pretende desonestamente fazer crer, não existe aqui nenhuma imposição seja de quem for sobre seja quem for.

Diz o Graça Moura que com o acordo "desapareceu a ortografia, a maneira correcta de escrever, para ficar tudo ‘à vontade do freguês’". A asneira aqui é tão gritante que quase não se acredita que alguém possa dizer uma barbaridade destas. Porque a mera existência do acordo, que define um conjunto alargado de regras sobre a forma de se escrever a língua portuguesa, prova que há uma maneira correta de escrever. Escreve-se corretamente a língua portuguesa seguindo-se as regras prescritas no acordo ortográfico. Óbvio para qualquer criancinha.

Esta não é asneira, propriamente, mas também mostra o grau de incompreensão do Graça Moura relativamente ao acordo. Pergunta, com base nas diferenças ortográficas que o acordo prevê, "onde está a unidade ortográfica". Eu explico, caro vate. Quando se fala em unificação ortográfica não se pretende, nem nunca se pretendeu, dizer que toda a gente passaria a escrever exatamente da mesma maneira. Pretende-se dizer, isso sim, que o português deixará de ser a única grande língua do mundo com duas grafias oficiais e mutuamente exclusivas para entrar numa situação semelhante, por exemplo, à do inglês, em que as diferenças ortográficas, que existem na prática, não estão reguladas por via legislativa, o que quer dizer que as pessoas podem usar, se bem o entenderem, as regras informais do país anglófono X no país anglófono Y. A consequência disto é que o inglês tem uma espécie de ortografia unificada (no sentido em que pode ser usada por todos) com variações regionais reguladas pelo uso. E é precisamente isso que o português passa a ter.

Mas voltemos às asneiras de bradar aos céus.

Diz o Graça Moura: "E acha natural que se suponha que eu tenha que saber como se pronuncia a minha língua no Brasil, por exemplo, para saber como a hei-de escrever? Porque tem de se saber onde é que se pronuncia o ‘p’ e o ‘c’, nas várias formas ditas cultas de português [...], tenho de saber como se fala a minha língua num país estrangeiro para poder escrever a minha própria língua?" Outro disparate monumental. Não, caro vate, não tem de saber como se pronuncia a sua língua no Brasil nem noutro sítio qualquer. Assumindo que se considera culto, e não tenho qualquer dúvida de que realmente se considera culto, e muito, basta-lhe saber como você pronuncia a sua língua para saber como você a escreve. Basta-lhe saber como é a pronúncia culta no seu país para saber que facto leva c e ato não o leva, que egípcio leva p e adoção não o leva. Se se quiser estar nas tintas para tudo e todos os outros falantes de português, faça favor de o escrever como você o pronuncia. Nada mais.

Finalmente, diz o Graça Moura: "Por isso, quando estão lá um ‘p’ ou um ‘c’ ditos mudos (impropriamente chamadas consoantes mudas), estão lá porque têm uma função, que é a de abrir a vogal que as antecede. Isto é absolutamente fundamental." Isto é absolutamente errado. Parte outra vez da supina asneira de se pensar que as línguas se aprendem lendo, confunde causa com efeito e omite que parte das vogais que antecedem consoantes mudas são (surpreeesa!) fechadas. Mas disso já eu falei noutros sítios. E agora tenho de ir almoçar.

Ah, Graça Moura, Graça Moura. De asneira em asneira até ao descrédito total.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Lido: História que a Velha Aia Contou

História que a Velha Aia Contou (bib.) é um conto clássico de fantasmas, da Mrs. Gaskell. À parte um desenvolvimento algo mais lento do que é costume, e um maior cuidado nas descrições, segue fielmente o padrão nos contos deste tipo: Alguém, neste caso uma precetora com a sua pupila, chega a um casarão rural desconhecido, e vai lentamente descobrindo algo que é do conhecimento geral entre os habitantes do local: o casarão está assombrado por fantasmas originados num momento de forte intensidade dramática ocorrido longos anos antes. No caso deste conto, é a história subjacente ao tal momento dramático que lhe dá algum interesse acrescido, especialmente tendo em conta que foi escrito em meados do século XIX. O drama acontece quando é revelada uma série de segredos familiares que giram em volta de um sedutor, da rivalidade entre duas irmãs, de um casamento secreto e de um filho, mantido igualmente em segredo. Tudo muito feminino e romântico, como seria de esperar. Não me agradou por aí além, mas dentro do género é um bom conto.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Lido: Morituri te Salutant!

Morituri te Salutant! (bib.) é uma noveleta de Gerson Lodi-Ribeiro que descreve a chegada duma nave tripulada por membros duma cultura espacial neorromana a um sistema planetário desconhecido e aquilo que a nave lá encontra. Embora o início da história mantenha o tom informativo das histórias anteriores do livro, esta desenvolve-se depois duma forma mais autónoma, menos orientada para a introdução dos potenciais jogadores ao universo ficcional em que o jogo Taikodom se desenrola e é, por isso, e obviamente a meu ver, a melhor destas histórias até ao momento. Porquê?

Porque tem um enredo mais vincado do que as anteriores. À chegada ao sistema desconhecido, a nave depara com uma sonda autoconsciente do tipo que era usado algumas décadas antes para a exploração inicial dos pontos de salto, e esta sonda descreve um sistema repleto de artefatos alienígenas funcionais que os neorromanos decidem investigar. Porque tem algumas surpresas e reviravoltas nesse enredo, de que não irei falar, exceto para dizer que a conclusão põe de repente todo o universo ficcional num pé muito interessante. E porque tem o interesse acrescido de, como o próprio título sugere, estar cheia de latinismos, o que faz com que o texto propriamente dito jogue muito bem com a história que conta.

É, portanto, uma história bem clássica de ficção científica, uma daquelas histórias que têm no paulatino desvendar de um mistério o seu principal motivo de interesse, uma daquelas histórias em que o mundo (ou, como neste caso, os mundos) é bem mais relevante do que as personagens e do que os aspetos sociológicos que estas deixam entrever. Mesmo não sendo propriamente este o meu tipo preferido de FC, costumo gostar quando as histórias estão bem executadas e me conseguem manter interessado naquilo que vai sendo revelado. É o caso desta.

sábado, 17 de abril de 2010

Lido: The Hidden Place

The Hidden Place é uma noveleta de ficção científica de Ian McDonald que se ambienta num futuro distante, num planeta situado algures na galáxia, colonizado há milénios por uma nave automática (uma sonda semeadora; não propriamente uma máquina de van Neumann, porque não é auto-replicadora, mas o conceito é semelhante) após uma longa viagem interstelar desde um sistema próximo, por sua vez colonizado milénios antes de forma semelhante e assim sucessivamente. No universo humano assim criado, não existe quase nenhum contacto físico entre sistemas planetários, mas a pós-humanidade que por eles se espalha está interligada por uma rede de comunicações e partilha de tecnologia e informação e assume o nome de "Clade".

Mas quem por esta descrição presuma que se trata duma história de FC dura, cheia de metal e ciências fisico-químicas, desengane-se. É uma história sobre um primeiro contacto, num planeta relativamente jovem e no qual a humanidade (uma humanidade algo alterada por erros na transcrição das sequências de ADN) ainda se encontra mais ou menos no estágio evolutivo em que nos encontramos hoje, dividida em nações rivais e mais ou menos guerreiras. Mas não um primeiro contacto presencial: o emissário do Clade que se apresenta aos habitantes do planeta é uma espécie de implante neural, uma personalidade reconstruída artificialmente no cérebro de alguém.

E a história não tem nada do fogo de artifício que muitas vezes se associa à FC. É uma história intimista, muitíssimo bem escrita na primeira pessoa, sobre a relação entre o emissário e uma xenopsicóloga destacada para proceder ao contacto. Também é uma leitura francamente difícil, porque todo este ambiente vai sendo lentamente introduzido ao leitor, confrontado desde o início com noções inesperadas e sem explicação, que só a pouco e pouco vão fazendo sentido. Durante boa parte da noveleta, a confusão é o sentimento preponderante, interrompida aqui e ali por pequenos lampejos de esclarecimento.

Não é, portanto, história para todos. Eu gostei, embora outras histórias deste autor me tenham agradado bastante mais. Esta pecou principalmente, a meu ver, por um fim que, embora faça sentido, não é preparado e parece por isso algo desgarrado no contexto da história. E também, talvez, por alguma falta de camadas, de leituras possíveis. Mas, para mim, o magnífico tratamento dado à língua inglesa compensou essas falhas.

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Anonimatos e ratos

Para quem pensa que a questão dos anónimos não tem importância porque "a net é assim", recomendo uma visitinha ao passado. Um recuo de alguns séculos.

Era uma época em que as casas das vilas e cidades europeias se encostavam umas às outras ou eram separadas por vielas ou ruas estreitas, largas apenas o suficiente para por elas passar uma carroça, e quase invariavelmente inclinadas. Esquecidas que estavam algumas das lições que os romanos deram aos povos dos territórios que conquistaram, pelo centro dessas ruas e vielas corriam regueiros nauseabundos, para onde era despejada toda a porcaria produzida nas casas em redor. Das cascas de cenoura às águas de lavagem, da urina aos excrementos de pessoas e animais e aos vómitos de bêbados e doentes. E, claro, com tanta comida à disposição, era todo um ecossistema que partilhava essas ruas e essas casas com as pessoas. Ratos e ratazanas. Baratas. Percevejos. Mosquitos. E, claro, os gatos gordos e bem alimentados que deles se serviam.

Não terão sido poucos os que, depois de pela enésima vez chegarem a casa com os sapatos cobertos de bosta, acharam que se devia fazer alguma coisa para afastar o lixo das suas vidas, mas se o tivessem dito a alguém certamente teriam recebido a resposta de sempre dos "inteligentes" de plantão: "As coisas são assim. Habituem-se."

Então, só poucos suspeitariam, mas era precisamente esse ambiente nojento que propiciava a propagação das doenças. Foi precisamente por causa dessa falta de higiene que a peste negra matou um terço da população da Europa. Porque as pragas se disseminam sempre em condições assim. E quem sofre as consequências são, sempre, as pessoas. Quer aquelas que contribuem para a nojice reinante, ou por vontade própria ou por não terem alternativa, quer as que não o fazem.

Hoje, é a internet que, segundo os génios de plantão, "é assim". Está cá tudo. O esgoto a céu aberto, as ratazanas, os percevejos, as baratas, os mosquitos. E, claro, os gatos gordos e bem alimentados que deles se servem. E as doenças, naturalmente, propagam-se, com o beneplácito, consciente ou inconsciente, dos que dão palmadinhas hipócritas nas costas de quem se indigna com tentativas anónimas de assassínio de caráter e dizem: "é assim; habitua-te".

As ratazanas agradecem.

Mas, por aqui, e num número crescente de outros locais (é esse, aliás, um dos segredos do sucesso de redes sociais como o facebook), há canalizações. São imperfeitas? Evidentemente. São melhores que nada? Só pode duvidar de que o são quem nunca teve email sem um filtro de spam eficiente.

Ou então quem goste de chafurdar no estrume, quem se alimente das ratazanas e baratas, quem as use para os seus fins inconfessáveis.

Pois bem: eles que fiquem lá bem espojadinhos na lama deles. O resto de nós, ou parte para sítios mais salubres, ou vai construindo lentamente um cordão sanitário em volta dos seus queridos esgotos. Lixo, só lê quem quer.

Limpeza dos últimos pratos

Já agora, e para limpar os pratos todos no que a esta nojeira diz respeito, vou aqui assumir, e fechar de vez, a minha "carreira anónima".

Criei, anonimamente, dois blogues. O Galgo Fedoralgo e o MacJête, ambos com a ambição de serem humorísticos. O primeiro nunca teve leitores, provavelmente por nunca ter tido piada; o segundo teve leitores e, segundo alguns desses leitores, alguma piada. Ambos estão mortos há muitos anos.

Em fóruns em que a regra era usar pseudónimos (cada vez é menos, mas numa dada altura isso era norma), fui semianónimo em alguns. Em todos já não escrevo há anos. E digo semi porque nunca neles me inscrevi com endereços de email que não fossem os mesmos que uso para tudo o resto e, portanto, ainda que os utilizadores normais não soubessem com quem estavam a falar, os administradores sempre souberam. Estão nesse caso o Bad Books Don't Exist, onde tive umas trocas azedas de palavras com o "dono" daquilo, o qual sabia perfeitamente que o "itsfullofstars" era eu, O Cantinho dos Livros, cujo admin revelou, assim que me inscrevi, e com a minha autorização, que eu era o "CantoInferiorEsquerdo", e julgo que também usei um pseudónimo qualquer no SciFreaks, que parece estar extinto (ou pelo menos inacessível de momento) e não me permite ir confirmar. E só. Noutros sítios sou ou Candeias, ou Jorge, ou uma mistura das duas coisas. Quando comento em blogues, por exemplo, é invariavelmente como Jorge, e sempre assim foi, exceto, se bem me lembro, um caso há uma porção de anos em que comentei como Jorge C. num blogue político qualquer para me distinguir de outro Jorge que andava por lá a dizer disparates.

E agora, graças a recentes canalhices provenientes do mesmo sítio de onde elas provém sempre neste deprimente fundown lusitano, só me encontrarão ou no fórum da Saída de Emergência (onde sou "candeias"), ou na minha conta de twitter ou na de facebook, ou no Thousands of Planets ou aqui na Lâmpada, ou então em blogues que me exijam autenticação. Se vir a opção de comentar anonimamente, vou-me embora, quer tenha alguma coisa a dizer, quer não tenha. As coisas chegaram ao ponto em que quem aceita comentários anónimos está a promover a canalhice, a calúnia e o respingar de lama para todos os lados. O mais certo é os anónimos serem eles próprios (na verdade, em certos casos, sei que são). E eu, de certos vigaristas e canalhas só quero uma coisa: distância. Muita.

E se vos disserem, ou de alguma forma sugerirem (certa gentalha é perita na insídia), que algum texto que não obedeça ao que ficou aqui escrito acima é meu, exijam provas. Elas não existirão. E quem o afirmar ou sugerir é um mentiroso e um canalha.

PS de alguns minutos mais tarde: entretanto consegui, por vias travessas, verificar qual o nome que usava no SciFreaks, e não era pseudónimo: era "candeias". Ficam só aqueles dois, portanto.

PPS de algumas horas depois: Esquecimento imperdoável, que no entanto se explica por nada ter a ver com o fundown! Fui também anónimo noutro sítio: no chat que o Markl tinha. Aí era itzemi. Deixei de lá ir mais ou menos na altura em que abri conta no twitter.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Só filhos da puta comentam anonimamente

Vou ser brutalmente claro: só filhos da puta comentam anonimamente, especialmente quando usam o anonimato para insultos e atoardas. Digam o que disserem, o que dizem só vale o esforço de descarregar o autoclismo. E quem presta a mínima atenção a filhos da puta que comentam anonimamente é um imbecil.

Há muitos filhos da puta e imbecis? Há. Montes deles. E em certos ambientes, então, pululam como baratas. E não é de hoje nem de ontem.

De modo que vou instituir aqui na Lâmpada uma regra: comentário anónimo vai imediatamente pia abaixo. Eventuais comentários de resposta a esses comentários também, mesmo que estejam identificados. Depois de publicar este post, vou imediatamente mudar as regras de aceitação de comentários aqui para utilizadores registados. E só.

Espero que outros sites sigam este exemplo. É a única forma de nos vermos todos livres pelo menos de parte dos canalhas que por aí andam.

PS - na verdade, e pensando melhor, vou fazer mais do que esperar que sigam este exemplo, vou suspeitar de que gostam de comentários anónimos se não o fizerem. Vou suspeitar de que usam os comentários anónimos para lançar os insultos e lançar as suspeitas que lhes ficaria mal lançar em nome próprio. Vou suspeitar de que quem escreve comentários anónimos são eles.

terça-feira, 13 de abril de 2010

Lido: Eu Sou a Lenda

Sim, o título é outra vez Eu Sou a Lenda, mas aqui fala-se do livro que, se consultarem a bibliografia, verão tratar-se duma coletânea, composta por um curto romance e vários contos. A lista completa de histórias que compõem a edição que eu li, de 2008, está no fim deste texto.

Globalmente, pareceu-me ser este um daqueles livros que, mesmo que não agradem por aí além, como aconteceu comigo, são de leitura mais do que recomendada a todos os que quiserem ter ideias concretas sobre os géneros literários, por conterem textos importantíssimos na definição de um género, neste caso o do horror. Além do primeiro conto, que achei brilhante, tanto o romance que dá o título à coletânea como pelo menos três dos outros contos são quase paradigmáticos do tipo de histórias a que em grande medida deram origem. Seminais. E por isso mesmo relevantes. Estão, é certo, desgastados pela montanha de histórias que a eles foram beber, daí que a sua leitura, hoje, cause apenas uma sombra do impacto que teria provocado há meio século. São em boa medida vítimas do seu próprio sucesso. Também é certo que nem sempre possuem grande qualidade literária, embora esta aqui e ali também se mostre (em especial no tal primeiro conto). Mas a relevância ninguém lhes pode negar.

Por outro lado, se o vosso gosto é semelhante ao meu, e se viram e leram as derivações destas histórias que eu vi e li, é provável que não gostem muito do livro. Se vos aborrece lerem histórias de mistério em que já sabem de antemão praticamente tudo o que vai acontecer, o bocejo é certo. Parece-me, portanto, que estas histórias, hoje, têm de ser lidas com um espírito bem diferente, bem mais analítico, do que aquele com que seriam encaradas na época em que foram escritas. Pelo menos se o leitor não for inteiramente ingénuo no género. Se o for, talvez seja um bom livro de iniciação, com histórias simples e diretas e capazes de fornecer uma boa ideia de base acerca duma quantidade bastante vasta de obras posteriores, uma porção significativa do horror e também parte da FC.

O livro é composto pelas seguintes histórias:

- Eu Sou a Lenda
- Nascido de Homem e Mulher
- Presa
- Perto da Morte
- Pesadelo a 20.000 Metros de Altitude
- Os Filhos de Noé

Quem cospe para o ar, acaba sempre com a testa molhada

No meio duma busca na net que estava a fazer sobre outra coisa que não interessa ao caso, dei com um post muito curioso no blogue dos Livros de Areia, aqui. Leiam-no: vale a pena. É um belo ensaio sobre como, em Portugal, o rigor e a verdade tendem a ser varridos para baixo do tapete sempre que as conveniências e os interesses falam mais alto. Se não estiverem para aí virados, julgo que não falho eu ao rigor e à verdade explicando que se trata dum veemente protesto sobre o esquecimento a que a edição que a LdA fez da novela Disney no Céu Entre os Dumbos foi votada na recente edição da ficção curta do Barreiros pela Gailivro. Nesse protesto, é referida por duas vezes uma "edição online" da dita novela, sendo que em ambos os casos essa referência está contida numa citação direta das introduções escritas pela pena do próprio autor. Em nenhum sítio se diz onde, claro, mas digo eu. Foi no E-nigma, no já longínquo ano de 2001. Mais precisamente, aqui. Mesmo que não acreditem no que diz o autor nas suas introduções podem confirmar aqui que se trata da primeira edição dessa história, seguida, cinco anos mais tarde, pela da Livros de Areia.

Curiosamente, o que é que a Livros de Areia diz no texto de lançamento? Está aqui, mas, se me permitem, eu cito:

"Uma noveleta [sic] inédita em Portugal, apenas publicada em Espanha no volume "La Verdadera Guerra de los Mundos ". A imaginação delirante e subversiva de João Barreiros, o mais importante autor de FC em Portugal, tão fresca e acutilante hoje como há 22 anos, quando esta história foi escrita.  Uma edição limitada a 200 exemplares, assinados e numerados pelo autor em 2 lindas cores, azul e rosa, como os balões e os Dumbos, e..."

O negrito é meu, naturalmente. O "[sic]" também.

Portanto, recapitulando: os Livros de Areia insurgem-se hoje contra o esquecimento a que são votados numa edição duma obra, que lançaram afirmando ser inédita em Portugal, quando na verdade essa mesma obra tinha sido publicada num sítio português da internet que não é mencionado em lado nenhm, nem por eles nem pelo autor, meia década antes. É isso, não é?

Pois.

Sem comentários.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Lido: Os Filhos de Noé

Os Filhos de Noé (bib.) é um conto de terror de Richard Matheson cujo protagonista teve a infeliz ideia de usar as férias para fazer um périplo, de carro e sozinho, pela Nova Inglaterra. As coisas não lhe correm particularmente bem, mas dão uma guinada para pior quando é mandado parar pela polícia, à saída duma vilória qualquer, por excesso de velocidade. O resto do conto é passado com ele enredado nas malhas da lei, sempre na esperança de que as coisas se resolvam depressa (afinal, trata-se dum simples excesso de velocidade), mas sempre a ver-se cada vez em piores lençóis.

É um bom conto de horror, mas uma vez mais gera uma forte sensação de déjà vu. Até certo ponto essa sensação dever-se-á a ter um ambiente muito semelhante a boa parte da obra de Stephen King, mas também me parece que, embora esta história em concreto nunca tenha sido, tanto quanto sei, adaptada ao cinema ou à televisão, há nela muitas características "reutilizadas" por muito horror audiovisual feito desde que foi publicada em 1957. Por conseguinte, desde o início que percebi que as coisas não se iriam passar como o protagonista esperava, e até o fim — em tese chocante — foi previsível, embora menos do que outras partes da história. Ainda assim, para mim esta é a segunda melhor história do livro. E está muito bem traduzida, se bem que eu não perceba por que motivo o tradudor resolveu deixar New England em vez de usar a designação Nova Inglaterra que está perfeitamente estabelecida em português.

Lido: Toda a Nudez

Usando como mote a velha sentença que reza que "toda a nudez será castigada", Toda a Nudez é um pequeno conto de Arsénio Mota no qual ele põe o seu protagonista a correr nu pela floresta e depois a ser atraído por uma moçoila bem apessoada para um edifício onde a nudez acaba castigada pela tríade repressiva clássica: um padre, um juiz e um militar. Lírico e alegórico, o conto tem também o seu quê de fantástico na forma esquemática e simbólica como personagens e ambiente se dispõem como que num tabuleiro de xadrez (a floresta vs. o edifício de cimento, a rapariga como chamariz e perdição, a própria nudez, etc.) e está bem escrito. Tem todos os ingredientes, portanto, para agradar a quem goste deste tipo de literatura simbólica. Eu, que não gosto muito, não gostei muito. Mas também não desgostei: como disse, o conto usa bem a língua portuguesa e evita cair na armadilha de explicar a moral da história. Mesmo assim, ela é bastante óbvia.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Lido: O Tocador de Paisagem

O Tocador de Paisagem é um conto curto de Rhys Hughes sobre um músico que descobre como fazer instrumentos capazes de tocar não notas, mas sentimentos primeiro e mais tarde paisagens. A inovação, claro, é um êxito estrondoso, até que a nódoa que inevitavelmente cai no melhor pano se torna evidente. E o pobre tocador sai da ribalta pela porta pequena. E distante, cada vez mais distante. É mais um conto entre a fantasia e o surrealismo, do qual gostei moderadamente. A ideia é boa, mas o conto pareceu-me demasiado curto para a explorar realmente bem.

Lido: Um Conto de Londres

Um Conto de Londres é um pequeno conto repleto de sarcasmo, do Lorde Dunsany, sobre a forma como um comedor de haxixe conta ao sultão as maravilhas e deslumbramentos da exótica cidade de Londres. Com pouco de fantástico ou de maravilhoso, esta história é fundamentalmente um arraso às descrições fantasiosas de lugares distantes, e à governação londrina e, por extensão, inglesa. A pesada ironia também cai sobre os videntes, pois Dunsany mostra como eles mudam a história que estão a "ver" assim que reparam que ela não está propriamente a agradar ao cliente, ou porque este conhece detalhes que não são bem como estão a ser contados, ou por qualquer outro motivo. Muito divertido para quem tiver olhos para ir acompanhando as subtilezas.

Lido: Un Punto Negro, Celeste

Un Punto Negro, Celeste, do argentino Martín Panizza, é um conto curto muito lírico que se inspira no trânsito de Vénus (i.e., na passagem de Vénus entre a Terra e o Sol, atravessando o disco da nossa estrela) para desenvolver uma historieta sobre despertares de Vénus espaçados de cento e vinte e dois anos, com mitologia grega à mistura. Detestei esta história. O problema não está no lirismo — o lirismo bem aplicado a uma boa história não me incomoda minimamente, pelo contrário. Nem sequer o disparate astronómico de dar um significado especial aos momentos em que o planeta passa rigorosamente entre a Terra e o Sol, em vez de um pouco acima ou um pouco abaixo como acontece a cada ano e meio, é a maior parcela do problema. O problema principal é mesmo a falta de tema e do que dizer que o conto revela com toda a clareza no quanto consegue tornar repetitiva uma história de pouco mais de uma página. Muito, muito fraquinho. Não recomendo, mas podem ver com os vossos próprios olhos aqui. É a oitava história.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Lido: O Grupo

O Grupo é um pequeno conto exemplar e alegórico de José Saramago sobre "um grupo de dez ou doze pessoas" sentadas em volta dum saco de medos. Ou, melhor dizendo, um misto de conto e crónica propriamente dita, pois o ambiente assim criado — ambiente de conto fantástico, já agora — serve principalmente para Saramago fazer um pocuo de filosofia sobre a relação da humanidade com os seus medos. Muito bem escrito, é verdade, mas eu não costumo gostar muito deste tipo de reflexão em prosa e semi-ficcionada. Esquisitices, fazer o quê?...

Lido: A Vida é uma Longa Violência

A Vida é uma Longa Violência é uma crónica de José Saramago na qual ele discorre, ironicamente, sobre o tema patente no título, sim, mas principalmente sobre a fútil vaidade dos literatos que se saem com frases bombásticas como esta, só para virem a descobrir que um outro literato, ou até vários, já antes haviam tido idêntica iluminação. Divertida, a crónica, mas não passa grandemente disso.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Lido: Virão Chuvas Suaves

Virão Chuvas Suaves (bib.) é um dos contos de Ray Bradbury que serão para sempre grandes obras-primas da ficção científica. Inspirado num poema de Sara Teasdale (e contendo-o), o conto mostra-nos um dia na vida inútil duma casa automática, a única que se mantém em pé numa cidade destruída pelo apocalipse nuclear, apesar das paredes enegrecidas, nas quais se podem ainda ver as sombras em negativo dos seus antigos donos, há muito vaporizados. O conto é perfeito na forma como vai levando o leitor de automatismo inútil em automatismo inútil, mostrando-nos uma vida banal e suburbana que só resiste ainda nas rotinas programadas da casa, e mostrando depois também a destruição implacável desse último sinal de vida humana. Um conto simplesmente magnífico, ainda mais tendo em conta que já tem sessenta anos de história em cima. Envelheceu notavelmente bem.

Lido: O Quarto das Tapeçarias

O Quarto das Tapeçarias (bib.), de Walter Scott, é uma clássica história de fantasmas, contada como quem conta uma história à lareira. Um velho militar inglês, veterano da Guerra de Independência Americana, vai visitar um velho amigo ao seu castelo, e é instalado num quarto que tem fama de assombrado. No dia seguinte, o intrépido soldado anuncia que se vai embora sem dizer porquê, e é a explicação do que lhe terá acontecido e dos motivos que terão levado o amigo a instalá-lo naquele quarto em especial que constitui o grosso do conto. É uma boa história, apesar de se tornar rapidamente previsível, em parte, mas não só, por causa do grande número de histórias semelhantes que foram sendo escritas e passadas a outros media nos últimos dois séculos.

Lido: Despertar do Físico

Despertar do Físico (bib.) é um conto de Gerson Lodi-Ribeiro passado no universo do Taikodom, sobre um génio oriundo da Terra que é despertado duma longa hibernação porque um seu antigo estudante, baseado em Ceres, deparou com um problema na física dos pontos de salto interstelares e precisa da sua ajuda. Para isso, pede a uma sua assistente para pôr o velho cientista ao corrente daquilo que de mais relevante aconteceu em termos de desenvolvimentos científicos durante a sua hibernação, mas esta vai descobrir-se sexualmente atraída pelo velho terrestre peludo, o que a desconcerta.

É um conto que continua ainda muito preso à necessidade de introduzir o universo Taikodom a jogadores e leitores. Aliás, neste isso nota-se mais do que no primeiro conto do livro, porque, apesar do erotismo e da relação que se estabelece entre os dois protagonistas, aqui há menos história e mais explicação. É uma explicação que surge naturalmente — afinal, o terrestre esteve adormecido e é tão ignorante sobre o mundo do presente ficcional como o leitor — mas não deixa de ser explicação, não só sobre os aspetos físicos propriamente ditos da viagem intestelar (naquele momento um campo de investigação ainda muito jovem), mas também sobre as complexas relações entre os vários tipos de humanidade que o universo ficcional comporta. Ainda assim, o conto consegue manter-se interessante, e isso não é coisa de somenos.

terça-feira, 6 de abril de 2010

Lido: The Little Cat Laughed to See Such Sport

The Little Cat Laughed to See Such Sport é um conto de Michael Swanwick, a segunda das três histórias que ele escreveu sobre os vigaristas Darger e Surplus. Darger é um homem, Surplus, um cão, geneticamente, embora tivesse sido refeito com forma e intelecto antropomórficos. O tempo em que a história se passa é um futuro medianamente distante, pós-apocalíptico. O local, Paris. E Darger e Surplus estão a tentar vender uma propriedade que sabem não existir, os restos desmontados da Torrei Eifel, a um homem tremendamente rico, mas praticamente morto, ansioso por deixar uma última marca na história.

Mas o que mais salta à vista é o estilo adotado por Swanwick. Um estilo vitoriano, tanto no modo de agir e nas ideias e valores das personagens, como na própria escrita, algo que mais depressa se esperaria encontrar num qualquer conto steampunk do que numa história pós-apocalíptica passada no futuro. Percebo a ideia, e até a acho bem executada, mas o resultado não me agradou. É um tipo de humor que me deixa indiferente, e parece-me que se Swanwick queria escrever uma história vitoriana escusava de arranjar os seus "cavalheiros" num futuro regressado a um passado praticamente idêntico ao passado verdadeiro na linguagem, nas ideias, nos valores, mas não na tecnologia. Assim, a descrença não se deixou suspender. Tudo aquilo soou a falso. E como consequência, a história não resultou. Comigo.

Lido: Pesadelo a 20.000 Metros de Altitude

Pesadelo a 20.000 Metros de Altitude (bib.) é um conto de Richard Matheson que explora o pânico de voar através do protagonista, um passageiro fóbico que começa a ver um demónio a passear-se por uma asa e a destrui-la em pleno voo. Um demónio que mais ninguém vê. Tudo muito semelhante a um certo conto de um certo autor português entretanto desaparecido, que gerou uma grande celeuma no fandom há coisa duma década. É uma daquelas histórias que vão em crescendo: a princípio tudo parece razoavelmente normal, mas à medida que se avança as coisas vão-se tornando cada vez mais enlouquecidas até que se chega ao clímax final. É um dos contos clássicos de Matheson e deste tipo de horror, que fazia as delícias de quem via a série The Twilight Zone, para a qual foi adaptado. Desde então, esta fórmula foi tantas vezes repetida que o conto, hoje, se torna absolutamente previsível e perde quase por completo o seu impacto. Desconfio que já só assustará alguém que for tão fóbico como o protagonista. É o mal da cópia desenfreada de uma fórmula de sucesso: acaba por ter um impacto negativo também sobre o original. E é também o mal do pulp, ainda que tardio: quando aquilo que leva à popularidade das histórias se esgota, raramente resta alguma coisa que evite que sejam empurradas para a mediocridade.

Lido: O Jardineiro Descalço

O Jardineiro Descalço é um conto vagamente fantástico de Arsénio Mota que acompanha a descoberta feita por um jornalista e respetivo fotógrafo: no meio da cidade, num descampado cerrado de silvas, um homem dedica-se quase em exclusivo à recuperação de um antigo jardim que aí teria existido em tempos. O conto não deixa de ter o seu interesse, mas o estilo em que é escrito, em puro diálogo, e a tendência do autor para colocar na boca das suas personagens um certo excesso de explicação, que numa situação real, num diálogo verdadeiro, não existiria, faz com que eu não tenha gostado dele por aí além. E o fantástico que há no conto é mais questão de ambiente do que de outra coisa qualquer. Os protagonistas como que penetram num mundo fora do mundo, sugerindo algumas dúvidas ao leitor (ou pelo menos a este leitor) quanto à realidade daquele jardim. Muito todoroviano. Mas não propriamente bom, a meu ver.

Lido: A Cidade dos Pestanejos

A Cidade dos Pestanejos é um conto de Rhys Hughes sobre uma cidade exemplar que me fez lembrar As Cidades Invisíveis, de Italo Calvino, embora em grande. Trata de uma cidade matematicamente hierarquizada em sete classes, começando num rei e terminando nos artesãos, que são mais de dois milhões. Toda a gente se vigia, e toda a gente é vigiada: cada nível hierárquico vigia aquele que está logo abaixo, com exceção dos artesãos, que vivem de olhos postos no rei. A perfeição é total, matemática, precisa. Até que acontece um erro que vai ter consequências catastróficas.

É um conto divertido, irónico e bem escrito. Fez-me lembrar o livro do Calvino pela precisão arquitetónica com que é construído, embora, ao contrário dos contos de Calvino, que se limitam à descrição das cidades e à sugestão do que nelas se passa, neste existe alguma história. Não muita, até porque não é propriamente longo, mas alguma. Como gosto deste tipo de coisa — gostei muito do livro do Calvino — gostei.

Lido: A Janela Maravilhosa

A Janela Maravilhosa é um conto do Lorde Dunsany que conta a história de um tal Sr. Sladden, que um belo dia resolve comprar uma janela a um vendedor de rua, estranho e idoso. E é com grande espanto que descobre que a janela dá, não para Londres, como seria de esperar, mas para outro tempo e local, uma cidade medieval onde ondulam bandeiras com dragões dourados nelas desenhados. O bom do Sladden acaba por habituar-se, mas quando a cidade é invadida acaba por tomar uma decisão drástica. Apesar de ser, como os outros, um conto com interesse, este talvez seja o que menos me agradou até agora. Nem sei exatamente porquê... talvez por tê-lo achado previsível, e por este tipo de "portais" para lugares estranhos já ter sido explorado antes de Dunsany, e por vezes com grande sucesso. Por Lewis Carroll, por exemplo. O facto é que este conto me soube a menos do que a maior parte dos outros.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Fui entrevistado. E não é peta de 1 de Abril.

Um curto intervalo na programação habitual para anunciar que o blogue Lydo e Opinado resolveu abrir o mês de Abril entrevistando-me. Na entrevista fala-se da minha atividade de tradutor, do meu trajeto até chegar à literatura, da minha escrita e de vários assuntos relacionados com a tradução e com a literatura de FC e fantástico. Podem lê-la aqui. E não se assustem com o cabeçalho!...