quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Clive Barker: O Ladrão da Eternidade

O inglês Clive Barker é bem conhecido pelos leitores de horror internacionais sobretudo pelas suas cinco coletâneas de contos e novelas intituladas Books of Blood. Em Portugal, com a conhecida renitência dos editores em publicar coletâneas de contos (e dos leitores em lê-las, provavelmente), claro que esses cinco livros nunca viram a luz do dia, tendo sido o autor apresentado aos leitores portugueses pelo seu primeiro romance, The Damnation Game, publicado há muitos anos na coleção Pêndulo da Europa-América. Este O Ladrão da Eternidade (bibliografia) é apenas o segundo livro dele a sair entre nós. E não é propriamente um romance de horror. É um romance juvenil com algum horror à mistura. Uma fantasia sombria.

E sendo um romance juvenil, o protagonista é um miúdo. Um miúdo que vivia feliz com os pais (apesar de se aborrecer um pouco) até que um misterioso personagem de falinhas mansas o convence a ir passar uma temporada numa espécie de colónia de férias, algures na cidade. Com autorização dos pais, pelo menos na aparência. A colónia de férias rapidamente se revela um casarão, com certos ares de vitoriano, daqueles que tão comuns são nas histórias que envolvem alguma espécie de magia ou de criaturas sobrenaturais. Sim, sim, esta história não está livre de clichés.

Porque no casarão há bastante magia e criaturas sobrenaturais, como o miúdo vai descobrindo aos pontos, a princípio com o expectável deleite, mais tarde com crescente apreensão. Para começar, todos os dias parece passar um ano completo, com as estações todas e as respetivas festividades a suceder-se umas atrás das outras. E depois há as aventuras e brincadeiras, sempre cheias de magia... e ocasionalmente de aterrorizar.

Por trás de tudo aquilo, claro, há algo de sinistro. É o que o jovem protagonista acaba por descobrir aos poucos, juntamente com o leitor que também compreende assim o que Barker quer dizer quando intitulou o romance como O Ladrão da Eternidade (e neste caso o título português segue de perto o original). No final aparece a inevitável batalha do bem, protagonizado pelo rapaz, que se vem a descobrir especialmente talentoso para manusear as forças mágicas do mundo, e o mal, protagonizado pelo ladrão da eternidade e seus lacaios. E, claro está, o bem vence.

Há livros mais imaginativos? Sem dúvida. Mas este é um livro juvenil bastante bom, ainda que talvez não resulte numa grande experiência de leitura para leitores mais experientes, que dele deverão obter algumas horas de entretenimento e pouco mais. Para miúdos, ainda com poucas leituras no género, deverá haver aqui surpresas e emoção em quantidade mais que suficiente, e o livro está bem construído, com bom ritmo, com tudo nos lugares certos. Não sendo propriamente uma obra-prima, é um livro que cumpre bastante bem aquilo que se propõe fazer.

Este livro foi comprado.

Anabela Santos: O Poço do Terror

Mais um conto muito mauzinho, este O Poço do Terror (bibliografia), conto que, como o próprio título indica, é de terror. Ou tenta ser. Em parte, o conto é mau por ser outro conto muitíssimo adolescente, mas é-o principalmente devido muito frágil português de Anabela Santos, e sobretudo devido ao seu péssimo uso da pontuação. Das vírgulas, acima de tudo.

No meio de tantas fragilidades, a história quase passa despercebida. É uma história banal sobre um poço dominado por uma assombração assassina, numa aldeia remota de Portugal, a qual causa mortes misteriosas que são investigadas e desvendadas por um rapaz vindo da cidade, particularmente sensível a atividades paranormais. Bem escrita, a história poderia ser interessante, mesmo trazendo pouca novidade, mas assim é mais um conto sem grande salvação. Não é tão mau como o anterior, mas está claramente abaixo da média desta antologia, que já de si não é nada famosa.

Textos anteriores deste livro:

Mia Couto: A Dona da Ausência

Uma característica curiosa da escrita de Mia Couto é o protagonismo feminino que ele tantas vezes introduz nas suas histórias. É frequente serem histórias não só com mulheres, mas de mulheres, e mesmo quando são histórias de casal, como este A Dona da Ausência, é frequentemente a mulher quem tem o papel mais destacado. Ou pelo menos mais sensato.

Aqui, estamos perante um casal reencontrado após anos de ausência. O marido andava na guerra, provavelmente a civil que opôs a RENAMO à FRELIMO, e a mulher foi deixada para trás, tentando sobreviver como pudesse. Começa a história quando ele chega, decidido a voltar a tomar posse da casa e da família, mas o que encontra é uma mulher senhora de si própria e das suas vontades.

A cadeira, aqui, e mais uma vez, é principalmente simbólica. Simboliza o poder doméstico do homem, uma espécie de pequeno trono, e é principalmente o facto de não a ter encontrado ao regressar a casa que despoleta a ira (e a insegurança) do ex-combatente. Mas a mulher explica-lhe que tinha sido forçada a vendê-la para conseguir sobreviver. E depois mostra-lhe quem manda, com autoridade e doçura.

Quanto à escrita, é mais simples do que muitas vezes se encontra em Mia Couto, sem aquelas inovações entrocadilhadas que ele gosta (gostava?) de fazer. Não deixa de ser poética, mas a poesia está mais na situação, no enredo propriamente dito, do que na escrita. Mas é um conto de Mia Couto. Talvez não seja dos seus melhores, mas é bom.

Contos anteriores deste livro:

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

Franz Kafka: Bestiário de Kafka

Embora tenha outras obras bastante conhecidas, em especial O Processo e, em menor grau, O Castelo, é incontestável que Franz Kafka vai ficar na história da literatura sobretudo graças à novela que costuma levar o título português de A Metamorfose. Não há pessoa razoavelmente culta que não saiba que essa história é sobre alguém que de repente se vê transformado num bicho, ainda que a natureza concreta do bicho seja objeto de debate.

Mas Kafka não escreveu só essa história com protagonista animal. A prova está neste livro, adequadamente intitulado Bestiário de Kafka, uma antologia feita em Portugal, selecionada por Álvaro Gonçalves, o qual também traduz algumas das histórias. São nove textos ao todo, com extensões que vão do miniconto à novela, incluindo algumas ficções póstumas e textos incompletos.

Há alguns temas comuns, como é natural numa compilação temática como esta. Mas apesar disso, esta coletânea é bastante heterogénea. Inclui o clássico maior de Kafka, como não poderia deixar de incluir, aqui rebatizado como A Transformação, mas também inclui alguns textos que não me pareceram particularmente bem conseguidos... para alguém com os pergaminhos de Kafka, note-se; seriam quase sempre bons textos para muitos outros autores.

No entanto, este livro, ou a escrita de Kafka em geral, não é para todos os leitores. Há nele um detalhismo, uma tendência para tecer labirintos de palavras que não têm necessariamente saída, que pode não agradar a leitores mais imediatistas. Em vários destes textos há uma ironia e um humor que se escondem sob uma superfície bastante árida que também pode ser difícil de penetrar para alguns leitores. Noutros, são os temas subjacentes que mais interesse me parecem ter, mas também aqui o subjetivismo tem a sua importância: temas que me interessam a mim podem não interessar a Fulano e vice-versa.

Para mim, há aqui três textos que se destacam dos demais. A Transformação, obviamente, e talvez nem valesse a pena fazer-lhe esta referência. A Toca, porque me tocou, com perdão do trocadilho. E Josefina, a Cantora, ou o Povo dos Ratos, pelo humor. São também, em companhia das Investigações de um Cão, três das quatro histórias mais longas, o que é curioso. Ou talvez não, pois o estilo de Kafka só se revela em pleno em histórias com alguma extensão.

De resto, esta é uma boa coletânea. E bem organizada, com as histórias distribuídas por forma a ficarem as melhores no princípio e no fim. Não sei bem é se concordo com todas as opções de tradução que aqui foram feitas, nem se a diluição de uma novela como A Metamorfose (ou A Transformação, pronto) num livro como este não poderá funcionar um pouco em seu detrimento, ao diluí-la num todo significativamente maior. Por outro lado, um bestiário de Kafka sem esse texto nunca seria um bestiário de Kafka, pelo que a sua inclusão seria sempre obrigatória.

Seja como for, foi uma boa leitura e no fim de contas isso é o que mais importa.

Eis o que achei de cada um dos textos deste livro:
Este livro foi comprado.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

Maria Alexandra Silva: A Primeira Aparição da Deusa Agima a Vitória, a Incrédula

E eis um conto que é mesmo muito mau. Francamente mal escrito, com deficiências no português tão gritantes que até um «benefício que oferece-mos a nós» cá se encontra, este texto de Marta Alexandra Baptista Pinto da Silva nem na história encontra alguma salvação, porque a A Primeira Aparição da Deusa Agima a Vitória, a Incrédula (bibiografia) pouco mais é que uma divagação umbiguista pretensiosa, com um enredo fantástico algo ténue e pretensões a texto filosófico-teológico. Tudo péssimo ao ponto de se tornar ridículo.

Só não digo desde já que este é o pior conto que se encontra nesta antologia porque ainda não os li a todos.

Textos anteriores deste livro:

Bill Pronzini: Gato

Embora a metáfora mais comum para os géneros literários seja a de caixinhas dentro das quais as obras se enfiam e de onde não podem extravasar sob pena de já não pertencerem ao género, eu sempre a achei muito desadequada, porque implica que uma obra x é necessariamente coisa unidimensional e sempre achei a realidade bastante mais complicada do que isso. Para mim, uma obra relaciona-se com os géneros como um borrão se relaciona com a quadrícula numa folha de papel quadriculado: pode ocupar principalmente um determinado quadrado, e por isso se diz que é uma obra do género x ou y, mas estende-se quase sempre também por géneros próximos e por vezes há até um pingo que salta e vai cair noutro quadrado bem afastado.

E se há obras e autores que tentam conter-se em quadrados específicos, outros existem que parecem apostados em marcar presença no máximo possível de quadrados. Não sei se é o caso de Bill Pronzini, autor que nunca antes tinha lido. Mas é o caso deste Gato (bibliografia).

O que ficou dito acima, no entanto, não significa que a densidade do borrão não seja maior nuns géneros do que noutros. Gato é sobretudo um conto irónico de horror, apesar de ter elementos de ficção científica e de fantasia, através sobretudo de referências a histórias de diversos autores mas em particular de Fredric Brown. A história é bastante simples: um homem, que só queria ficar sossegado a ler ficção científica, depara com um gato em sua casa e, por mais que faça, não consegue ver-se livre dele. É que o gato aparece e desaparece, aparentemente a seu bel-prazer, o que deixa o desgraçado do protagonista paranoico primeiro, desesperado depois e por fim meio enlouquecido.

E é também uma homenagem, quer aos géneros fantásticos, quer aos seus autores, pelo menos a alguns, citados no texto. Especialmente Brown. É daqueles contos autorreferenciais de que muita gente de género gosta muito mas a que eu tendo a torcer um pouco o nariz porque quanto mais autorreferencial é um género mais críptico tende a tornar-se para quem está de fora, e todos os leitores começam por estar de fora, o que tem consequências que me parecem óbvias e negativas. Mas, se a autorreferencialidade for usada com conta, peso e medida, e se as histórias não dependerem dela para fazer sentido, nada contra.

Não me parece que este seja um conto particularmente bom, mas é um conto interessante. E divertido, que a ironia se sobrepõe de forma clara ao horror.

Contos anteriores desta publicação:

domingo, 23 de fevereiro de 2020

Leiturtugas da semana #54

Sim, o Artur Coelho ainda continua sozinho nas Leiturtugas. Mas esta semana é a última em isso acontece, que para a próxima haverá pelo menos mais um participante a arrancar o ano: eu. Dois livros englobáveis já estão lidos, falta apenas o tempo para escrever as opiniões.

Mas por enquanto, o Artur soma e segue, apresentando-nos desta vez uma opinião sobre um livro infantil de Álvaro Cunhal. Sim, esse Álvaro Cunhal. Intitulado O Burro Tinha Razão e publicado pela Página a Página, o livro não tem FC, pelo que o Artur sobe esta semana a 1c4s.

E por agora é só. Até para a semana. Vêm aí coisas interessantes.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

Teolinda Gersão: A Árvore das Palavras

E para terminar o volume, um excerto de romance bastante curto, de Teolinda Gersão, outra autora que eu nunca tinha lido. Intitulado A Árvore das Palavras, como o romance de que é retirado, este excerto não funciona lá muito bem como conto mas parece dar bastante bem o tom do romance. É uma prosa bastante poética mas com bom gosto, a fazer lembrar um pouco Lídia Jorge ou Mia Couto, carregada com uma atmosfera nostálgica e, talvez por isso, cheia de magia. Mas não é particularmente memorável, talvez por ser tão curto — menos de 10 páginas.

O tom parece ser de realismo mágico, ainda que num excerto tão curto seja difícil ter certezas — pode tratar-se apenas de arroubo poético. Mas não creio — e a história parece situar-se algures em África. Não dá para perceber muito mais do que isso: o excerto é sobretudo uma descrição de ambientes e personagens. Bastante colorida, diga-se. Apetece ler o resto, ao contrário do que acontece com alguns dos outros excertos; nisso, este é inteiramente bem sucedido porque a ideia de toda a antologia é precisamente essa. Um dia lerei mais Teolinda Gersão. Olhando para as pilhas de livros que me rodeiam, tenho de reconhecer que não será em breve. Mas será um dia.

Textos anteriores deste livro:

Michael Cisco: Doença do Arroz Claro

Mais uma história/doença com um título português que me parece decididamente pouco inspirado. É verdade que Doença do Arroz Claro (bibliografia) é uma tradução possível para o Clear Rice Sickness original, mas os grãos de arroz são brancos, bolas. Não há nada mais claro que o branco. E o arroz, na verdade não é claro, é translúcido.

E é precisamente essa a doença criada por Michael Cisco: uma estranha metamorfose mediada por um parasita que contamina o arroz e torna invisíveis as vítimas que ingerem arroz contaminado. O arroz translúcido a que o título se refere.

Há neste continho algum diálogo com O Homem Invisível do Wells, necessariamente escasso dada a pequena extensão do conto de Cisco, o que o situa em territórios bastante típicos da weird fiction — de resto, é esse o território de toda a antologia, mesmo que por vezes os contos fujam um pouco dele — um género híbrido com elementos de horror, fantasia/fantástico e FC. Nesta historinha há as três coisas, e ela até conta uma história, a da descoberta da doença, pelo que pertence ao grupo de contos que, entre os pseudofactuais, mais me agradam.

Textos anteriores deste livro:

Capitolina: Não Jogue com a Morte

Mais uma autora brasileira, esta Capitolina. E mais um conto com elementos de ficção científica, este Não Jogue com a Morte (bibliografia), ainda que a FC que aqui se encontra seja absolutamente anacrónica, fazendo lembrar mais o Frankenstein da Mary Shelley (apesar de não ser precisamente aí que se inspira; tem mais a ver com o Homem Invisível do Wells) do que qualquer ficção científica produzida de há coisa um século para cá.

É uma daquelas histórias vitorianas, de cientista mais ou menos enlouquecido, que, sozinho ou escassamente acompanhado, inventa uma fórmula para alcançar um milagre científico qualquer. Neste caso, é a ressurreição. E claro que as coisas correm horrivelmente mal.

Não é mau, o conto. Cabe bem no espaço que a autora decidiu usar, não há erros grosseiros no português, etc. Mas é anacrónico. E muito cliché. Custa-me perceber o que leva alguns autores a repetirem fórmulas criadas há cento e tal anos, ignorando tudo o que se produziu entretanto (incluindo muitos pastiches dos velhos clássicos) e correndo assim o risco de se limitarem a repetir coisas já feitas muitas vezes. Eu, esta, já tinha visto até num filme.

Talvez simplesmente desconheçam o que se produziu no último século?...

Textos anteriores deste livro:

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

António Bettencourt Viana: Saudações de Tau Ceti

A ficção científica dura, em modo mais ou menos asimoviano, não é um subgénero com grande tradição em Portugal. São raros os autores que a tentam e mais raros ainda, praticamente inexistentes, os que têm alguma espécie de sucesso na tentativa. António Bettencourt Viana tentou, como comprova este Saudações de Tau Ceti (bibliografia) e como as intenções expressas no prefácio fazem prever que comprovem os restantes contos deste volume. Mas terá tido sucesso?

Bem, neste primeiro conto a resposta é mais ou menos. Saudações de Tau Ceti é daqueles contos de FC de laboratório, ainda que não se restrinja ao laboratório: uma antena de rádio capta um sinal oriundo de Tau Ceti e o conto descreve, com abundância de detalhes técnicos que na maior parte dos casos não contribuem para a narrativa mas se inserem na filosofia literária do autor, a forma como o sinal é confirmado e algumas das consequências imediatas que ele tem.

Toda a abordagem do autor é pedagógica. Ele pretende usar a FC para ensinar qualquer coisa. Daí os detalhes técnicos, as informações sobre radioastronomia ou dinâmica orbital que são espalhadas por este conto. É uma abordagem que tem alguns antecedentes, incluindo o próprio Asimov, mas que me parece algo estéril quando se resume a isso. Isto é, quem vai ler uma história de FC só para obter informações que mais fácil e eficazmente encontra nalgum manual? É preciso mais qualquer coisa. Asimov compreendia isso, daí as suas obras estarem repletas de reflexões sobre os limites da humanidade e a nossa relação com o Outro. E Viana, compreende?

Ajuizando por este conto, até parece compreender: há aqui umas ferroadas geopolíticas, há um pouco de humor, etc. Mas não parece saber muito bem o que (e como) introduzir na história para a tornar mais apelativa para o leitor. A ver vamos se nas histórias seguintes o faz melhor. Para já, o que fica é uma história razoável, que podia ser bastante mais interessante com menos didatismo.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

Anabela Afonso: Último Outubro

E de repente, um texto só com umbigo.

Anabela Afonso é outra autora que não escreve mal mas, ajuizando por este exemplo, tem da literatura aquela ideia, tão comum em certos setores literários, de que o que interessa realmente é o malabarismo de palavras, talvez com um pouco de desabafo íntimo à mistura, e isso de contar histórias é para quem não faz realmente literatura. É pelo menos a minha interpretação para o motivo por que, numa iniciativa de ficção fantástica, resolve apresentar um texto destes, que inclui apenas o mínimo indispensável de referências a coisas mais ou menos transcendentais para que se possa integrá-lo, com boa vontade (com muita boa vontade), no género.

Sim, Último Outubro (bibliografia) não é bem uma história. É uma salada de palavras, é certo que geralmente bonitas mas completamente sobrecarregadas pelo peso de tanto íntimo autoral. Este texto tem mais de umbigo que o pouco que conheço de Pedro Paixão. Imagino que a Anabela Afonso goste muito de Pedro Paixão; de resto, não estará sozinha, que há mais quem goste. Eu é que detesto. Detesto esta abordagem à literatura, esta banalíssima (e, neste caso, ainda por cima sentenciosa) tentativa de extrair de experiências e ruminações pessoais qualquer coisa que se assemelhe à experiência humana aborrece-me de morte. Ao menos que as acompanhe com uma história, personagens, um bocadinho que seja de Outro a diluir tanto Eu.

É que os umbigos são basicamente todos iguais e frequentemente malcheirosos. E cá fora há um Universo inteiro.

Textos anteriores deste livro:

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

Ray Bradbury: O País de Outubro

Embora as suas obras mais conhecidas sejam o romance de ficção científica distópica Fahrenheit 451 e, bastante mais abaixo na escala de reconhecimento, a coleção de contos interligados Crónicas Marcianas, também de ficção científica, a verdade é que Ray Bradbury nunca foi um autor que se deixasse restringir à caixinha da FC. Escreveu FC, sim, e é conhecido sobretudo como autor de FC, mas também escreveu bastante fantasia e horror, além de histórias que não têm nenhum elemento fantástico relevante.

O País de Outubro (bibliografia) é disso prova. Trata-se de uma coletânea de contos sobretudo fantásticos, frequentemente de horror, ainda que este por vezes adquira aquelas tonalidades suaves e juvenis que em Bradbury — e não só nele — vêm muitas vezes associadas ao Halloween, trazendo alguns também bastante humor, e quase sempre carregadinhos daquela poesia muito característica da ficção bradburiana.

E como é costume acontecer nas compilações de contos do autor, também aqui se encontram algumas pedras preciosas, alguns grandes contos. Histórias como O Lago, A Multidão, A Segadeira, O Homem do Segundo Andar, A Cisterna ou, e sobretudo, O Esqueleto são histórias que não destoariam numa compilação as melhores ficções do autor. E O Esqueleto é um conto obrigatório em qualquer compilação desse género.

Mas não é um livro sem os seus problemas. A tradução, por exemplo, não me agradou, e há aqui dois ou três contos que destoam do grupo e me parecem menos bons. Não sei bem até que ponto as duas coisas estão relacionadas, isto é, até que ponto uma tradução desagradável poderá ter contribuído para uma experiência de leitura em que não transparece a qualidade que Bradbury costuma ter. Por outro lado, costumar ter não é o mesmo que ter sempre, e é verdade que por vezes o "poeta da FC" como alguém lhe chamou um dia, fraqueja. Seja como for, é livro de leitura mais que recomendável. Bastaria conter O Esqueleto para o ser.

Eis o que achei de cada um dos contos:

Jeracina Gonçalves: A Gaivota Ferida

Não é muito comum encontrarmos contos infantis, cheios do maravilhoso que lhes é característicos, mas que contêm também elementos de ficção científica, por mais frágeis que esses elementos possam ser. Mas é precisamente isso que se encontra neste A Gaivota Ferida (bibliografia) de Jeracina Gonçalves.

A narrativa começa em modo infantil, sim, mas bastante mainstream. Uma miúda encontra uma gaivota ferida na praia e, com a ajuda da avó, leva-a para casa a fim de cuidar dela. E consegue curá-la, mas nessa altura tem uma surpresa: a gaivota começa a falar e depois transforma-se numa princesa (loura e de olhos azuis, claro, que há coisas que estão entranhadas...) não muito mais velha do que a miúda, pelo menos na aparência.

Onde está a FC, perguntam vocês? Aqui: a tal princesa é extraterrestre e veio parar à Terra, sob a forma de gaivota, pela ação de uma bruxa. É só uma ténue camada de significado a dar um pouco mais de cor a uma história que no fundo é um típico conto de maravilhoso, mas está lá.

Quanto ao conto, é eficaz. Está escrito de forma competente, com aquela linguagem simples (e cheia de diminutivos) que muitos autores usam para contar histórias a crianças, a história contada ajusta-se bem à dimensão do texto, enfim, é uma história boazinha. Em mais do que um sentido.

Textos anteriores deste livro:

domingo, 16 de fevereiro de 2020

Isaac Asimov: Uma Noite de Canto

Ao ler este Uma Noite de Canto (bibliografia), a minha cabeça pôs-se automaticamente a fazer comparações entre os dois contos sobre o demónio de dois centímetros chamado Azazel que li até agora, este e o anterior, e os contos mais conhecidos de Isaac Asimov: os seus contos sobre robôs positrónicos.

Existem, naturalmente, pontos de contacto, ou não fosse o autor o mesmo. Existe uma comunhão de estilo literário, por exemplo. Mas também existe algo que podia perfeitamente não existir, uma vez que estes contos sobre Azazel são fantasia: rigor lógico. O rigor lógico é dos aspetos preponderantes nos contos de robôs, os quais consistem geralmente de um problema levantado pela aplicação prática das Três Leis da Robótica em situações extremas e da respetiva investigação e/ou solução. E aqui podia não se encontrar nada disso, dado o caráter mais ligeiro, humorístico e fantasioso destas histórias. Mas a verdade é que se encontra.

É que, se é certo que dois contos é pouco para ter uma ideia global sobre todos, não é menos certo que este conto é o segundo em que temos um problema que o bom do Azazel é chamado a resolver, o que ele faz de uma forma tão literal que o resultado é, em vez de uma verdadeira solução, uma catástrofe. Aqui o problema é uma mulher que gosta de cantar é cruel e põe um pretendente a andar de uma forma particularmente humilhante. E o ex-pretendente decide vingar-se dando-lhe, por um dia, uma voz perfeita. Com a ajuda do Azazel, naturalmente. Mas o que vos parece que acontece a quem experimenta a perfeição uma só vez e se vê depois condenado à imperfeição quotidiana? Precisamente.

Veremos se os outros contos seguem também este esquema. Para já fica a segunda história que, sem ser realmente nada de especial, não deixa de ser divertida e interessante.

Conto anterior deste livro:

Leiturtugas da semana #53

E tudo como dantes no quartel de Abrantes. Em mais uma semana de Leiturtugas, elas voltaram a ficar nas mãos do Artur Coelho, que ao contrário de todos nós, os outros, ainda em prolongadas férias, soma e segue, tendo desta vez publicado a sua opinião sobre um velho e esquecido livro com quase noventa anos, intitulado Novelas Submarinas. O autor, tão velho e esquecido como o livro (ou mais, talvez), chama-se Fernando Branco e o livro foi publicado por uma editora que, claro, já não existe: a Sá da Costa. Não tem FC, pelo que o Artur passa a 1c3s.

E por esta semana é só. Para a semana poderá ser que o Artur deixe de ficar sozinho. Poderá haver qualquer coisa nova vinda aqui da Lâmpada, mas também pode ser que só saia para a outra semana. Ou talvez haja qualquer coisa vinda de outras paragens.

Antes de fechar, aproveito para relembrar que quem quiser ler FC&F portuguesa e esteja apertado de finanças pode dar um salto aos vários locais onde existe material online e servir-se. Preparei uma lista e pu-la online aqui na Lâmpada. E qualquer publicação pode associar-se ao projeto em qualquer momento, portanto estão à vontade.

sábado, 15 de fevereiro de 2020

Em janeiro falou-se de...

Em janeiro leu-se e comentou-se muitas coisas, mas poucas dessas coisas foram portuguesas, o que, pela parte que me toca, o transforma num mês mau. E se não fosse Saramago, então, seria um mês péssimo. Portanto, olhem, viva Saramago! Mas vamos à conversa habitual destinada aos que cá cheguem pela primeira vez? Bora lá.

A explicação sobre o que vem a ser isto está no primeiro destes posts, aqui, onde também se dão conta das limitações que isto tem, do lugar de onde isto vem, do que se pretende alcançar com isto, e por aí fora. E se quem aqui chegar pela primeira vez tiver curiosidade sobre o que já se publicou de semelhante no passado (e no futuro, que se o leitor cá cair depois de março de 2020 já haverá coisas semelhantes posteriores a esta), basta-lhe clicar na tag leituras fc e empanturrar-se de informação. E siga para as listas, que depois delas há comentários.

Ficção portuguesa
  1. Orion, nº 5, ed. Renato Abreu
  2. A Nossa Alegria Chegou, de Alexandra Lucas Coelho
  3. Mistério na Praia da Rocha, de Susana Custódio (conto)
  4. Imortal, de José Rodrigues dos Santos
  5. Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago (2x)
  6. Ensayo Sobre la Lucidez, de José Saramago
  7. O Futuro à Janela, de Luís Filipe Silva
Ficção brasileira
  1. Aqui quem Fala é da Terra, org. ??
  2. Vislumbres de um Futuro Amargo, org. ??
  3. Amália Atrás de Amália, de Marco Aqueiva
  4. A Droga da Obediência, de Pedro Bandeira
  5. Escalpo, de Ronaldo Bressane
  6. As Aventuras de Honey Bel, de Miguel Carqueija
  7. Serpentário, de Felipe Castilho
  8. Gastaria Tudo com Pizza, de Pedro Duarte
  9. Hannah, de Bruno Godoi
  10. Janete, de Nicolás Irurzun (2x)
  11. Rio: Zona de Guerra, de Leo Lopes
  12. Incompletos, de Sabine Mendes Moura
  13. O Silêncio dos Livros, de Fausto Luciano Panicacci (4x)
  14. A Volta do Relógio, de Simone Paulino
  15. Hiperhelix, de Michel Peres
  16. Páginas do Imaginário, de E. E. Postali
  17. Eles Herdarão a Terra, de Dinah Silveira de Queiroz
  18. A Taverna, nº 2, ed. Diogo Ramos, Otniel Pereira e Ian M. M. Duarte
  19. Abismo do Mal, org. Gabriel G. Sampaio
  20. Favela Gótica, de Fabio Shiva (2x)
  21. Traição, de Márcia Silva
  22. Cinco Júlias, de Matheus Souza
  23. Oceanïc, de Waldson Souza
  24. Heróis de Novigrath, de Roberta Spindler
  25. 17 Histórias, de Ataíde Tartari
  26. Juca Pirama, de Enéias Tavares
  27. A Morte e o Meteoro, de Juca Reiners Terron
  28. Viajantes do Abismo, de Nikelen Witter (2x)
  29. WOW! O Primeiro Contato, de Pablo Zorzi
Ficção internacional
  1. Lua Ano Um, org. ??
  2. Planolândia, de Edwin A. Abbott
  3. Mundos Apocalípticos, org John Joseph Adams (5x)
  4. Stolen Souls, de Mike Allen (conto)
  5. A Máquina que Ganhou a Guerra, de Isaac Asimov (conto)
  6. As Cavernas de Aço, de Isaac Asimov
  7. Fundação, de Isaac Asimov (2x)
  8. Fundação e Império, de Isaac Asimov
  9. O que os Olhos Vêem, de Isaac Asimov (conto)
  10. Um Lugar Aquoso, de Isaac Asimov (conto)
  11. O Conto da Aia / A História de uma Serva, de Margaret Atwood (3x)
  12. O Coração é o Último a Morrer, de Margaret Atwood
  13. The Testaments / Os Testamentos, de Margaret Atwood (10x)
  14. Unrequited Death, de Tamara Rose Blodgett
  15. Farenheit 451, de Ray Bradbury (3x)
  16. Laranja Mecânica, de Anthony Burgess (2x)
  17. Uma Princesa de Marte, de Edgar Rice Burroughs
  18. A Parábola dos Talentos, de Octavia E. Butler
  19. Despertar, de Octavia E. Butler
  20. Kindred, de Octavia E. Butler
  21. A Menina que Tinha Dons, de M. R. Carey
  22. A Seleção, de Kiera Cass
  23. To Be Taught if Fortunate, de Becky Chambers (conto)
  24. Liking What you See: a Documentary, de Ted Chiang (conto)
  25. The Shape of My Name, de Nino Cipri (conto)
  26. 2001: Uma Odisseia no Espaço, de Arthur C. Clarke
  27. O Fim da Infância, de Arthur C. Clarke
  28. Jogador 1, de Ernest Cline
  29. Ten Little Aliens, de Stephen Cole
  30. Abbadon's Gate, de James S. A. Corey
  31. Auberon, de James S. A. Corey
  32. Leviatã Desperta, de James S. A. Corey
  33. Recursão, de Blake Crouch (2x)
  34. Babel-17, de Samuel R. Delany (2x)
  35. Estrela Imperial, de Samuel R. Delany
  36. A Invasão Divina, de Philip K. Dick
  37. Espere Agora Pelo Ano Passado, de Philip K. Dick
  38. O Homem do Castelo Alto, de Philip K. Dick (2x)
  39. O Tempo Desconjuntado, de Philip K. Dick
  40. Sonhos Elétricos, de Philip K. Dick
  41. Ubik, de Philip K. Dick
  42. O Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry
  43. Alien, de Alan Dean Foster
  44. Alphabet Squadron, de Alexander Freed (2x)
  45. Guia do Explorador da Galáxia, de Jason Fry
  46. A Cruz de Fogo, de Diana Gabaldon
  47. Seres Mágicos e Histórias Sombrias, org. Neil Gaiman e Al Sarrantonio
  48. Saturn 3, de Steve Gallagher
  49. Agente do Caos, de Kami Garcia
  50. The Man Who Folded Himself, de David Gerrold
  51. Extraordinary Engines, org. Nick Gevers
  52. Lord of the Flies, de William Golding
  53. A Mão Esquerda da Escuridão, de Ursula K. Le Guin
  54. Os Despossuídos, de Ursula K. Le Guin
  55. Metrópolis, de Thea von Harbou
  56. Pátria Amada, de Robert Harris
  57. O Armazém, de Rob Hart (2x)
  58. O Mapa do Tempo, de Heidi Heilig
  59. Children of Dune, de Frank Herbert
  60. Duna, de Frank Herbert
  61. Dune Messiah, de Frank Herbert
  62. God Emperor of Dune, de Frank Herbert
  63. Ei... ii, Sai cá pr'a Fo... ora!, de Shinichi Hoshi (conto)
  64. À Beira da Eternidade, de Melissa E. Hurst
  65. Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley
  66. Flores Para Algernon, de Daniel Keyes (2x)
  67. O Bazar dos Sonhos Ruins, de Stephen King
  68. O Instituto / The Institute, de Stephen King (3x)
  69. Contágio, de David Koepp
  70. O Ano da Graça, de Kim Liggett
  71. A Floresta Sombria, de Cixin Liu
  72. O Despertar dos Legados, de Pittacus Lore
  73. O Chamado de Cthulhu e Outras Histórias, de H. P. Lovecraft (3x)
  74. A Vida Antes de Legend, de Marie Lu
  75. O Jogo do Coringa, de Marie Lu
  76. Warcross, de Marie Lu
  77. O Retorno de Jedi, de George Lucas
  78. Almas Gémeas, de John Marrs
  79. Nightflyers, de George R. R. Martin
  80. The Quiet War, de Paul McAuley
  81. Máquinas Como Eu, de Ian McEwan
  82. The Eleventh Tiger, de David A. McIntee
  83. Dia 21, de Kass Morgan
  84. 1984, de George Orwell (5x)
  85. O Centro do Labirinto, de Agustín Fernández Paz
  86. Histórias Extraordinárias, de Edgar Allan Poe
  87. A Faca Sutil, de Philip Pullman
  88. Os Reinos do Norte, de Philip Pullman
  89. Intruso, de Iain Reid (2x)
  90. U.G.L.Y., de H. A. Rhoades
  91. Reencontro Mortal, de J. D. Robb
  92. Ano Um, de Nora Roberts
  93. De Sangue e Ossos, de Nora Roberts
  94. O Forjador de Almas, de James Rollins
  95. O Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry
  96. Coração de Aço, de Brandon Sanderson
  97. Starsight, de Brandon Sanderson
  98. A Última Colônia, de John Scalzi
  99. As Brigadas Fantasma, de John Scalzi
  100. Guerra do Velho, de John Scalzi
  101. Vilão, de V. E. Schwab
  102. Ômega, o Planeta dos Condenados, de Robert Shekley
  103. O Médico e o Monstro & Outros Experimentos, de Robert Louis Stevenson (3x)
  104. Battle Royale, de Koushun Takami (2x)
  105. Reiniciados, de Teri Terry
  106. Através do Vazio, de S. K. Vaughn (2x)
  107. A Volta ao Mundo em 80 Dias, de Jules Verne
  108. Viagem ao Centro da Terra, de Jules Verne
  109. Segunda Hipótese, de Charles V. de Vet (conto)
  110. Café da Manhã dos Campeões, de Kurt Vonnegut (2x)
  111. Fragmentos do Tempo, de Rysa Walker
  112. O Monstro que Veio do Gelo, de David Walliams
  113. O Homem Invisível, de H. G. Wells (2x)
  114. O País dos Cegos e Outras Histórias, de H. G. Wells
  115. Interferências, de Connie Willis
  116. O Livro do Juízo Final, de Connie Willis
  117. O Monstrologista, de Rick Yancey
  118. O Último Comando, de Timothy Zahn
Não-ficção internacional
  1. Science Fiction a New Mythos, de Ednita P. Bernabeu
  2. O Zen e a Arte da Escrita, de Ray Bradbury
  3. A Nova Idade das Trevas, de James Bridle
  4. Major Trends in American Science Fiction, de Thomas D. Clareson e Edward S. Lauterbach
  5. 21 Lições Para o Século XXI, de Yuval Noah Harari
  6. Homo Deus, de Yuval Noah Harari
  7. O Guia Geek de Cinema, de Ryan Lambie
  8. Sobre Histórias, de C. S. Lewis
  9. Monstros Fabulosos, de Alberto Manguel (2x)
  10. A Vida de Philip K. Dick, de Anthony Peake
  11. Childhood's End: A Median Stage of Adolescence?, de David N. Samuelson
  12. A Terra Inabitável, de David Wallace-Wells
Pois é... o mês foi mau para a FC portuguesa. 7 títulos fica abaixo do que me parece ser o mínimo dos mínimos para haver alguma saúde, e isso ainda é sublinhado pelo facto de um desses títulos ter tido de vir de Espanha (Saramago, claro) e outro se dever ao autor ter ido desenterrar uma velha crítica a um livro seu. Eu também não ajudei, é certo, ainda que um destes títulos venha aqui da Lâmpada, mas o afastamento do pessoal da FC portuguesa durante o mês de janeiro foi bastante generalizado. O destaque do mês? Saramago. Foram três comentários a dois títulos; o único autor a receber mais que um comentário a uma só obra e o único autor a receber comentários a mais que uma obra.

Em contraste, foi um mês excelente para a brasileira, um dos melhores de sempre. Foram mencionados por aí 29 títulos, nada mais, nada menos, e foram vários os que o foram por mais que uma vez. De resto, estes correspondem aos destaques do mês, pois não houve nenhum autor a ter mais que um título comentado em janeiro. Nicolás Irurzun recebeu dois comentários, Fausto Luciano Panicacci quatro, Fabio Shiva dois e Nikelen Witter outros dois.

Quanto à FC internacional, a abundância foi muita e voltámos a ultrapassar os 100 títulos. A abundância e a diversidade, e desta vez até nem se dá o caso de não haver títulos muito lidos, como noutros meses em que os números foram tão elevados, pois na lista ali em cima surgem dois títulos com 5 leituras cada e um com 10. O mês foi de Margaret Atwood, com 14 opiniões distribuídas por 3 títulos, mas também tiveram destaque John Joseph Adams, que organizou uma antologia comentada 5 vezes, Isaac Asimov, com 7 comentários distribuídos por 6 títulos, Philip K. Dick, também com 7 comentários distribuídos por 6 títulos, e George Orwell, com 5 comentários ao seu romance mais famoso.

Para acabar, cabe uma nota para a grande quantidade de obras de não-ficção lidas e comentadas durante o mês de janeiro. Foram 12 títulos, julgo que o número mais elevado da não-ficção internacional que apareceu nestas listas desde que elas começaram, que correspondem a 13 comentários, pois um desses títulos foi comentado por duas vezes. Não sei se isto quer dizer alguma coisa ou não, e se é epifenómeno ou tendência só o futuro o dirá. Futuro esse que começará a desvendar-se daqui a cerca de um mês. Até lá.

Corvo: Dois Mais Meio Igual a Um

Mais um autor brasileiro, este que assina apenas como Corvo. E até escreve bem, conseguindo com este Dois Mais Meio Igual a Um (bibliografia) criar uma história equilibrada, contando-a de uma forma adequada ao espaço disponível. Trata-se de uma versão algo onanista do tema do duplo, provavelmente inspirada por O Homem Duplicado do Saramago, e talvez também em parte pelo conto de Poe intitulado William Wilson.

E é precisamente aqui que reside a principal insuficiência desta história: é impossível lê-la sem nos lembrarmos dos textos acima mencionados. Isso não seria problemático se o Corvo tivesse conseguido introduzir na sua história algo que a tornasse única, mas embora existam alguns elementos que, se bem explorados, poderiam fazê-lo, eles não chegam a passar do esboços. Não existe aqui nada que se compare com a exploração da consciência presente na história de Poe ou a da individualidade presente em Saramago. O Corvo parece querer apenas explorar a ideia do duplo e ver onde ela o leva, mas isso resulta num conto insuficientemente coeso, algo onírico no sentido de as coisas irem acontecendo de uma forma um tanto ou quanto incoerente. E como resultado, o conto, não sendo mau, também não chega propriamente a ser bom.

Textos anteriores deste livro:

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

Luís Cardoso: Cadeira de Sândalo

De Timor, Luís Cardoso escreve uma história com elementos de realismo mágico sobre uma Cadeira de Sândalo. Uma história sobre a História de Timor-Leste, uma história sobre lealdades cruzadas, colonialismo e rebelião. É sabido que, desde o início, o colonialismo português recorreu ao auxílio de aliados locais, povos, regiões e classes descontentes com os seus senhores que viram nos portugueses um aliado poderoso, capaz de os ajudar a inverter em seu favor as relações de poder, mesmo que no fim dessem por si tão subjugados como antes. O protagonista desta história é um desses aliados, numa época indeterminada do século XX, um timorense coronel do exército português que é encarregado pelo governador de ir combater uma rebelião e volta vitorioso mas frustrado.

Porque em vez de trazer da vitória a rainha rebelde, como era seu desejo e tradição do seu povo, recebera do governador a ordem para a deixar em paz. E por isso só trouxera a cadeira de sândalo do título, uma espécie de trono, símbolo do poder da mulher. Mas esta parece ter enfeitiçado a cadeira fazendo com que quem nela se sentasse mergulhasse numa espécie qualquer de estado catatónico e não conseguisse levantar-se. Até que a filha do protagonista, que também é a narradora da história, resolve o assunto de uma forma drástica e inesperada.

É bastante bom, este conto. Não só a história em si é interessante como a forma como está escrita, numa prosa sinuosa e cheia de qualidades, é francamente boa. Chegando ao fim, apetece ler mais, apesar de este não ser daqueles contos frustrantes que deixam o final em aberto. Demasiadamente em aberto, melhor dizendo. Não; o final desta história é um final inteiramente conclusivo para a história. Apetece ler mais porque apetece conhecer mais sobre aquele ambiente e personagens e porque a prosa é agradável. Ou seja: não é defeito, é qualidade.

Contos anteriores deste livro:

André Silva: O Cenotáfio de Lorelei

Este livro ainda não me proporcionou a leitura de nenhuma história que me tenha parecido realmente boa, sem reservas, e a esta altura o mais certo é que acabe sem proporcionar, mas entre o muito material fraco, deficiente ou até mau que contém encontram-se várias histórias interessantes, com qualidade suficiente para inclusão numa publicação mais exigente, ainda que talvez numa segunda linha. O Cenotáfio de Lorelei (bibliografia), de André Silva, é uma dessas histórias.

Trata-se de um daqueles contos macabros que vão beber na tradição do romantismo mas, felizmente, André Silva resiste à tentação de ultrapassar a mera inspiração e fazer mais um dos pastiches ou cópias mais ou menos mal amanhados que muitos outros autores tendem a produzir. O seu é um conto delicado, sem problemas de vulto a nível de escrita, sobre a relação entre um homem e uma mulher que talvez não seja propriamente uma mulher. O casal ganha a vida com um negócio funerário, que se calhar não é apenas um negócio. E o conto está bem concebido o suficiente para que o final funcione como surpresa ao mesmo tempo que é inteiramente coerente com o que fica para trás.

Este é um dos melhores contos desta antologia. Talvez não chegue ao bom, porque afinal de contas também inclui uma dose razoável de clichés e porque a prosa não é inteiramente "lisa", mas não anda longe.

Textos anteriores deste livro:

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

Em 2019 falou-se de... ficção brasileira

Depois da portuguesa, aqui está o apanhado da FC brasileira que mereceu leitura e comentário na rede aberta de língua portuguesa (principalmente) e não passou entre as malhas da rede lançada pelo Ficção Científica Literária durante o ano de 2019. Antes de passar à lista, relembro muito rapidamente que isto vem do FCL, e mais especificamente da secção do FCL dedicada a resenhas. Se alguma não consta, é porque não foi detetada ou porque está encerrada num jardim privado (aka rede social). E siga para a lista:

?? (org.)
  1. Confinados (3x)
  2. Histórias (Mais ou Menos) Assustadoras
Almeida, Dalton
  1. Names
Alvarez, Rodrigo N.
  1. O Primeiro Imortal
Amaral, Olavo
  1. Dicionário de Línguas Imaginárias
Aqueiva, Marco
  1. Amália Atrás de Amália (2x)
Aragão, Octavio
  1. A Mão que Pune
Assis, Machado de
  1. Sobre a Imortalidade de Rui de Leão (9x)
Azevedo, Fernando
  1. O Antissocial
Barbieri, Marco; Nascimento, Will
  1. Autômato (3x)
Barbosa, Lucas
  1. Amaimon
Benjamin, Márcio
  1. Fome
Beraldo, J. M.
  1. Jogos de Guerra (2x)
Bergalo, Laura
  1. A Revolta da Sucata
Bianchi, C. Nan
  1. A Melhor Idade (2x)
Billy, Gabriel
  1. Sonhos e Pesadelos
Borges, Roberto Pio
  1. Só os Objetos Salvam!
Brandão, Ana Beatriz
  1. Entre a Luz e a Escuridão (8x)
  2. Sob a Luz da Escuridão (6x)
Brandão, Ignácio de Loyola
  1. Desta Terra Nada vai Sobrar a Não ser o Vento que Passa
  2. Não Verás País Nenhum
Bras, Luiz
  1. Anacrônicos
Braz, Júlio Emílio; Martins, Patrícia
  1. Asimov e os Perseguidores da Lua
Bresnau, Brenda
  1. No Cosmo, Assim Como no Coração
Bueno, Ruth
  1. Asilo nas Torres
Campos, Évany Cristina
  1. A Guia (3x)
Caniato, André; Bianchi, Jana (org.)
  1. Aqui quem Fala é da Terra
Capellano, Bruno
  1. O Viajante do Céu
Carcereri, Pedro
  1. Sob o Trópico de Capricórnio
Carneiro, André
  1. Amorquia
  2. O Teorema das Letras
  3. Piscina Livre
Carvalho, Nohane
  1. A Ordem
  2. O Caos
Carvalho, Pedro
  1. O Jogo dos Sonhos
Castilho, Felipe
  1. Serpentário (12x)
Castro, Beatriz
  1. Killian
  2. Pietra
  3. Serafine
Castro, Paulo de
  1. O Androide
Causo, Roberto de Sousa
  1. Mestre das Marés (4x)
  2. Selva Brasil
Causo, Roberto de Sousa (org.)
  1. Fronteiras (3x)
  2. Os Melhores Contos Brasileiros de Ficção Científica
Coelho, Maurício (org.)
  1. Teslapunk (2x)
Conrado, Laura
  1. O Dia Depois do Fora
Costa, Tulio
  1. O Ladrão de Palavras
Dellú, Thunder
  1. As Pirâmides Revolucionárias
Demétrius, B.
  1. LOG#1525 (3x)
Dodsworth, Alexey
  1. Dezoito de Escorpião
  2. Extemporâneo (3x)
Dugim, Claudia
  1. Matando Gigantes
  2. Rede Vermelha em um Oceano de Merda e Outros Contos
Dutra, Daniel I.
  1. A Eva Mecânica e Outras Histórias de Ginoides
Fernandes, Day
  1. Colonização (3x)
  2. Mundo Sombrio
  3. Sencientes (conto)
Fernandes, Fábio
  1. Back in the USSR (2x)
  2. Charlotte Sometimes (conto) (2x)
Fernandes, Fabio; Oliveira, Nelson de
  1. Oneironautas (2x)
Filho, Ozias
  1. A Maratonista (conto)
Flaibam, Denise
  1. As Coisas que Encontramos
Fonseca, Rodrigo
  1. Projeto 94
Fontana, Fernando
  1. Deus, o Diabo e os Super-Heróis no País da Corrupção
Fraeman, Raphael
  1. Krystallo (3x)
Freire, José M. S.
  1. A Lua Negra de Patânia
  2. Caçada Cósmica
Freitas, Emília
  1. A Rainha do Ignoto
G., Mai Passos
  1. A Herdeira do Trono
Giffoni, Luís
  1. Infinito em Pó
Gonçalves, Priscila
  1. Alys - Elemento Alpha (3x)
Grossos, Vinícius
  1. Feitos de Sol (4x)
Irurzun, Nicolás
  1. Janete (2x)
Issa, Nelson
  1. As Esferas
Jacob, F. E.
  1. Homo Tempus (2x)
Junqueyra, Beto
  1. O Código de Camões (2x)
Kriptocaipora, Coletivo (org.)
  1. A Era de Aquária
Kuperman, Mario
  1. Labirinto Digital
Kupstas, Marcia (org.)
  1. Sete Faces da Ficção Espacial
Lasaitis, Cristina
  1. Além do Invisível (conto)
Lee, Thiago
  1. O Homem Vazio
Lessa, Jefferson
  1. A Ascensão da Trindade
Lobato, Monteiro
  1. O Macaco que se Fez Homem
  2. O Presidente Negro
Lodi-Ribeiro, Gerson
  1. Assessor Para Assuntos Fúnebres (conto)
  2. Aventuras do Vampiro de Palmares
  3. Capitão Diabo das Geraes (conto)
  4. Crepúsculo Matutino (conto)
  5. Morcego do Mar (conto)
  6. O Vampiro de Nova Holanda (conto)
Lopes, Angélica
  1. Operação Meleca Mutante
Loppara, Tadeu
  1. Quãm e os Indícios Mortais
Ludwig, P. H.
  1. Omnes Viae
Maia, Ana Paula
  1. Assim na Terra como Embaixo da Terra (2x)
Mallmann, Max
  1. Zigurate
Marinho, João Carlos
  1. A Viagem
Martins, Camila
  1. Muito Além das Rosas
Matheus, L.
  1. A Queda dos Nove
Medeiros, Diego
  1. A Caçada do Imortal
Mesquita, Ricardo
  1. Casulos (2x)
Miguel, Raphael (org.)
  1. Os Supremos
Miquelino, Bruno
  1. Vende-se Este Futuro
Monteiro, Jeronymo
  1. Tangentes da Realidade
Morais, Bárbara
  1. A Retomada da União
Morales, Danilo
  1. ABC da Morte
Moreira, Alexandre
  1. Escuridão (2x)
Nascimento, Gabriela S.
  1. O Fantasma da Máquina
Neto, Miguel Sanches
  1. A Segunda Pátria (2x)
Neves, Reinaldo Santos
  1. News for Mr. Name
Nicacio, Clovis
  1. As Cinco Esposas de Nathan (8x)
Novello, Eric
  1. Ninguém Nasce Herói (3x)
Oliveira, Nelson de
  1. Às Moscas, Armas! (2x)
Oliveira, Nelson de (org.)
  1. Fractais Tropicais (7x)
Oliveira, Rodrigo de
  1. A Era dos Mortos, parte 1
  2. A Era dos Mortos, parte 2
  3. A Ilha dos Mortos
  4. A Senhora dos Mortos
  5. Elevador 16
  6. O Vale dos Mortos (2x)
Oliveira, Wallace
  1. Filhos do Homem
Pacheco, Márcio Cardoso
  1. O Senhor do Tempo
Panicacci, Fausto Luciano
  1. O Silêncio dos Livros (23x)
Pascale, Ademir (org.)
  1. Possessão Alienígena
Patati, Carlos
  1. A Sorte dos Girinos
Pattal, M.
  1. A Revelação (2x)
Pereira, Francélia
  1. Fallen Angels
Pereira, Luiz Gabriel
  1. Delírios Mortais
Pitz, Allan
  1. A Revolução dos Animais Transmutantes
Pivatto, Loraine
  1. Pseudônimo Mr. Queen
Rahmati, Rodrigo
  1. Aquecimento Global (Em Fogo Alto) (conto)
Ramos, Diogo; outros (ed.)
  1. A Taverna, nº 1 (4x)
Ramos, Diogo; Pereira, Otniel (ed.)
  1. A Taverna, nº 2 (2x)
Rebello, Pablo Amaral
  1. Peixeira&Macumba
Regina, Ivan Carlos
  1. O Fruto Maduro da Civilização / O Éter Inconsútil
Rocha, Newton
  1. Nana-Neném (conto)
Rüsche, Ana
  1. A Telepatia São os Outros (2x)
Saint, Sandro J. A.
  1. Manjedoura
Santos, Ricardo; Tavares, Rochett; Silva, Alec (org.)
  1. Estranha Bahia
Scavone, Rubens Teixeira
  1. O Projeto Dragão
Schinzare, Romy
  1. Contos Reversos (2x)
Schwinden, Cristiane
  1. A Lince e a Raposa
Sena, Junno (org.)
  1. Afrofuturismo
Shiva, Fabio
  1. Favela Gótica (2x)
Silva, Márcia
  1. Interferência
  2. Traição
Sophie, T. L.
  1. O Anel de Tekarin (conto)
Spindler, Roberta
  1. A Torre Acima do Véu
  2. Heróis de Novigrath (2x)
Sybylla, Lady
  1. Cão 1 Está Desaparecido (conto)
Tavares, Braulio
  1. Fanfic (2x)
  2. Histórias Para Lembrar Dormindo
Tavares, Braulio (org.)
  1. Páginas do Futuro
Tavares, Enéias; Witter, Nikelen; Cordenonsi, A. Z.
  1. A Alcova da Morte (2x)
Terron, Joca Reiners
  1. A Morte e o Meteoro (4x)
Tiburi, Marcia
  1. Sob os Pés, meu Corpo Inteiro (2x)
Tremeschin, Leonardo; Costa, Andriolli; Ferraz, Lucas R. (org.)
  1. Mitos de Origem (2x)
Trigo, Luly
  1. O Reino de Zália
Vaccaro, Giovanna
  1. E Se... (2x)
  2. Stowe
Valek, Aline
  1. As Águas-Vivas não Sabem de Si (2x)
Veríssimo, Erico
  1. As Aventuras de Tibicuera (2x)
Villela, T.
  1. O Último Dia
Witter, Nikelen
  1. Viajantes do Abismo
Zorzi, Pablo
  1. WOW - O Primeiro Contato (3x)
Zuin, Lidia
  1. Deus Sonha o Homem
Zuin, Lidia (org.)
  1. 2084: Mundos Cyberpunks
Salta imediatamente à vista que esta lista é significativamente maior que a portuguesa. No entanto, a diferença é muito menos pronunciada do que tinha sido no ano anterior. De facto, embora o número de autores e equipas de autores tenha aumentado um pouco (119 autores e equipas de autores contra 109; 15 antologistas e editores contra 16), o número total de títulos mencionados teve uma ligeira redução, de 169 para 166. Por outro lado, há este ano uma proporção muito mais reduzida de contos, que este ano são apenas 13 face aos 54 do ano passado, o que implica um aumento bastante razoável nas publicações completas que foram alvo de leitura e comentário. Ou seja, há um progresso, ainda que ligeiro.

Entre toda esta gente, há alguns destaques, claro. Em certos casos, o destaque deve-se a campanhas de (auto)promoção bem sucedida e também a alguma demora da minha parte em identificar que aquilo que à primeira vista parece ser uma resenha não passa na realidade de um texto promocional que é republicado em vários sítios, por vezes com pequenas variações, por quem muito provavelmente nem se deu ao trabalho de ler os livros. Escusado será dizer que isso me deixa com muito má impressão dos livros e das publicações que assim agem, perdendo por completo a vontade de ler uns e outros, mas eu sou um tipo esquisito; se calhar resulta com outras pessoas.

Incluindo estes casos, os destaques do ano foram Machado de Assis, graças aos 9 comentários que recebeu uma obra sua, Ana Beatriz Brandão, com 14 comentários distribuídos por dois livros da mesma série, Felipe Castilho, com 12 comentários ao seu lançamento do ano, Roberto de Sousa Causo, com 5 comentários distribuídos por 2 títulos, a que acrescem mais 4 a duas antologias que organizou, Day Fernandes, com 5 comentários distribuídos por 3 obras, Gerson Lodi-Ribeiro, com 6 comentários a outros tantos títulos, Clovis Nicacio, com 8 comentários a um só título, Nelson de Oliveira, com 7 comentários a uma antologia que organizou, Rodrigo de Oliveira, com 7 comentários distribuídos por 6 obras e Fausto Luciano Panicacci, com 23 comentários a um só título.

E siga para a FC internacional. Essa é que vai ser uma lista e peras.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

António Orta: Feridas de Ódio e Amor

E aqui temos mais uma fantasia científica, a pender fortemente para o lado da fantasia, como de resto é comum acontecer. Inspirado pelo Frankenstein (sim, é daí que vem a parte de FC) e pelos contos de fadas, António Orta funde os dois mundos num conto de vingança e violência bastante mal escrito, especialmente, mas não só, devido ao péssimo uso das vírgulas. Feridas de Ódio e Amor (bibliografia) são a justificação para a violência, mas qualquer pessoa que conheça o livro de Mary Shelley percebe que este monstro sanguinário de Orta não é a criatura criada pelo Dr. Frankenstein, cujas únicas aspirações são ser amada, não fazer mal a ninguém e não sofrer mal de ninguém.

Essa é uma das coisas que me desagradaram neste conto; e sim, bem sei que esta não é a primeira história a subverter a natureza da criatura de Shelley, mas o facto é que gostaria que menos o fizessem. Uma das grandes qualidades do romance de Shelley reside na sua denúncia da xenofobia, porque é o medo do outro e a violência que este gera que leva o monstro a ser violento em autodefesa, e histórias como esta só a reforçam. E esse desagrado existiria mesmo se o conto fosse bom.

Mas não é. Não só a prosa é má, como a história, de uma fada com sede de vingança que aprende a criar o seu próprio monstro segundo a receita do Dr. Frankenstein e depois usa a natureza sanguinária do monstro que cria para se vingar das outras fadas, está um bom bocado mal amanhada. E o resultado é que este é dos contos mais fraquinhos de todo o livro.

Textos anteriores deste livro:

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

Franz Kafka: Josefina, a Cantora ou o Povo dos Ratos

E mais uma vez aqui desponta a fina ironia com que Franz Kafka insufla as suas histórias. Josefina, a Cantora ou o Povo dos Ratos é uma noveleta cujo conteúdo segue fielmente o guião estabelecido pelo título. Estamos entre ratos, e um desses ratos analisa, com a frieza clínica e cerebral que também encontramos noutros textos, o estranho comportamento de Josefina. Ou por outra, os estranhos comportamentos que se desenvolvem em torno de Josefina, tanto o desta quanto o dos restantes ratos para com ela.

É que Josefina é uma artista. Uma cantora, ainda que o narrador não consiga encontrar nenhuma diferença entre os assobios dela e os dos outros membros do povo dos ratos. E Kafka usa esta qualidade para se divertir um pouco à custa do vedetismo em particular, e da condição artística em geral, pois, como é costume acontecer nos seus contos mais ou menos fabulosos, não parece haver diferença realmente substantiva entre o povo dos ratos e o povo dos homens.

Kafka diverte-se não só a si mas também a quem lê porque Josefina, sempre a diva, é um retrato perfeito das Castafiores deste mundo (não sabem quem é a Castafiore? Uma palavra: Tintim). A dada altura julga-se, como é óbvio, injustiçada pela plebe ignara, que nunca lhe falha como público mas não lhe confere o respeito e consideração que ela julga merecer. E o que acontece a seguir não é bem o que ela esperava, naturalmente. Esta é uma bela forma de fechar esta coletânea; um conto carregadinho de ironia e, para lá da ironia, de suminho crítico ao mundo artístico e a algumas das suas personagens.

Contos anteriores deste livro:

Susana Celina Augusto: O Submundo dos Antigos

Dois contos consecutivos relacionados com ficção científica? Ena. Se bem que este seja uma fantasia científica, com alguns toques de FC mas um enredo baseado em portais interdimensionais que soam mais a fantasia que a FC. Susana Celina de Oliveira Augusto, a autora deste O Submundo dos Antigos (bibliografia), não escreve mal, propriamente, ainda que sobrecarregue demasiado a sua prosa de adjetivos e advérbios; o ritmo, que essa adjetivação quase estraga, é a sua melhor qualidade, e podia ter dado muito bom uso a esse ritmo nesta história se não fosse um detalhe.

A história é daquelas de enredo movimentado, um conto de mistério e investigação envolvendo mortes não naturais e por aí fora. Com a camada adicional de fantasia científica em cima e uma prosa bem ritmada a acompanhar, o resultado podia ser bastante interessante... se, mais uma vez, o tamanho do conto fosse o adequado. Não é, longe disso. A ideia dava para uma noveleta, no mínimo, mas a autora viu-se obrigada a encafuá-la num conto curto, sem espaço para desenvolver personagens, ambiente e até o enredo e despachando um enredo promissor com um final a que só posso chamar desastrado.

Nem todas as histórias dão contos curtos; nem todas as histórias dão noveletas, novelas ou romances. Uma das qualidades mais importantes de quem escreve reside na capacidade de perceber que tamanho resulta melhor para cada história. E os autores presentes neste livro, salvo algumas exceções, parecem ainda não ter desenvolvido essa qualidade. O resultado é a grande quantidade de contos como este: promissores, mas apenas isso. E já escrevi algo de semelhante a isto e suspeito que vou voltar a escrever.

Textos anteriores deste livro:

domingo, 9 de fevereiro de 2020

Leiturtugas da semana #52

Neste princípio de ano, ao que parece, estamos todos de férias de Leiturtugas. Todos? Não! Uma pequena aldeia resiste ainda e sempre ao invasor... ah, esperem. Isto é de outra história.

A esta história pertence o Artur Coelho, que continua sozinho a carregar o archote leiturtuga, pelo menos até que eu acabe algum dos seis livros enquadráveis que tenho atualmente em várias fases de leitura. Sim, sim, seis. Mas isso é para o futuro. No presente temos mais uma opinião do Artur sobre uma BD, como de costume mais desenvolvida noutro sítio. Desta vez, o alvo da leitura arturiana foi o álbum Andrómeda de Zé Burnay, publicado já este ano por A Seita. E o Artur passa a 1c2s.

E por esta semana é só. Haverá mais para a semana que vem? No domingo veremos.

sábado, 8 de fevereiro de 2020

Lançamentos de FC de janeiro 2020 (segundo o FCL)

Pela primeira vez mensalmente, cá temos os lançamentos de que o FCL foi tendo conhecimento durante o mês de janeiro. Há várias coisas que convém ter em conta (e eu se calhar devia mesmo criar uma página com todas estas ressalvas para evitar estar a ter de as fazer a cada post destes), nomeadamente que isto se refere ao momento em que o FCL toma conhecimento dos lançamentos, não ao momento em que os lançamentos são efetuados, que por isso, e porque há uma janela de cerca de três meses para trás e outros três para diante, é inteiramente possível que lançamentos anunciados no ano passado voltem a sê-lo no início deste, que lançamentos que não aparecerem anunciados na rede aberta não são apanhados pelo FCL e por conseguinte não aparecem aqui, que há sempre algumas dúvidas sobre se certos lançamentos contêm FC ou não, pelo que por vezes acontece que um lançamento irrelevante é anunciado ou outro relevante não é, e por aí fora (e sim, devia mesmo criar a tal página).

Adiante.

Isto começa muito fraquinho para a FC portuguesa, com três lançamentos anunciados em janeiro, o que, se tivermos em conta que este é o primeiro mês e portanto apanha também lançamentos planeados para os dois ou três meses seguintes, estamos em plena sequência do ano passado, entre o devagar e o parado. E de gente com pergaminhos, nada.

Quanto ao Brasil, vai de vento em popa, mesmo que vários destes títulos só apareçam aqui devido aos atrasos de alguns sites ou blogues na divulgação dos lançamentos brasileiros (e aos três meses de tolerância, obviamente). De resto, a variedade é grande, com clássicos, coisas de gente nova e um pouco de tudo o que existe no meio.

No que toca à ficção traduzida, dá-se o caso curioso e invulgar de termos mais lançamentos anunciados em Portugal que no Brasil (e zero nos outros países lusófonos, como sempre). É um facto que se explica em parte pela existência em Portugal de editoras que divulgam no início do ano o seu plano de lançamentos semestral ou anual, e este é reproduzido em alguns veículos, o que no Brasil tende mais a ser feito mensalmente ou quando os lançamentos se efetuam de facto. Assim, estes lançamentos portugueses incluem também lançamentos de fevereiro e março, pelo que nos próximos meses estes números já deverão ser menores. E em parte, a explicação é também a ausência de anúncios de novos lançamentos de Perry Rhodan no Brasil, pois estes costumam ser numerosos e fazer subir bastante os números por lá.

De resto, há um lançamento angolano a registar, mais uma vez a cargo de Agualusa, que gosta de misturar realismo mágico e FC, normalmente em vertente distópica, há um lançamento de não-ficção portuguesa e académica e há uma só publicação periódica brasileira a ter sido divulgada. Isto apesar de uma portuguesa também ter saído e até ter sido criticada num blogue; as notas de lançamento só chegaram em fevereiro. E por falar em fevereiro, lá nos encontraremos.

Ficção portuguesa:
  1. Na Imensidão do Universo, org. ??
  2. O Despertar da Múmia, de Nuno Caravela
  3. Raus Human, de Michel Alex
Ficção brasileira:
  1. Ad Tempore, de Irenia
  2. Alcântara, de Miriam Rezende Gonçalves
  3. Caminhantes do Céu, de Paulo Maurício P. Péres
  4. Eles Herdarão a Terra, de Dinah Silveira de Queiroz
  5. Encontre-me no Passado, de Mari Scotti
  6. Jornadas Além das Fronteiras, de Raphael Fraeman
  7. O Canto das Mulheres Livres, de Lucas R. Machado 
  8. O Espectro de Iks, de Guilherme Pimenta 
  9. O Ovo do Tempo, de Finisia Fideli
  10. O Silêncio dos Livros, de Fausto Luciano Panicacci 
  11. Patrulha Para o Desconhecido, de Roberto de Sousa Causo
  12. Relicário da Maldade, de Jefferson Sarmento
  13. Traição, de Márcia Silva 
  14. Três Meses no Século 81, de Jeronymo Monteiro
Ficção angolana:
  1. No Princípio Era a Palavra, de José Eduardo Agualusa (publicado em Portugal)
Ficção internacional:

Edições portuguesas:
  1. O Ano do Oráculo, de Charles Soule
  2. A Máquina Pára e Outros Contos, de E. M. Forster
  3. A Quinta, de Joanne Ramos
  4. Cerimónia Mortal, de J. D. Robb 
  5. Fundação e Império, de Isaac Asimov
  6. Nós e Outras Novelas, de Evguéni Zamiátin
  7. O Principezinho, de Antoine de Saint-Exupéry 
  8. O Último Oráculo, de James Rollins
  9. Os Testamentos, de Margaret Atwood 
  10. Tono-Bungay, de H. G. Wells
  11. Um Terrível Verdor, de Benjamín Labatut 
Edições brasileiras:
  1. 1984 - Edição Especial, de George Orwell
  2. A Marcha dos Zumbis, de Max Brallier
  3. Café da Manhã dos Campeões, de Kurt Vonnegut, Jr.
  4. Cidade das Trevas, de Adam Christopher
  5. De Sangue e Ossos, de Nora Roberts
  6. Fragmentos do Tempo, de Rysa Walker
  7. Frankenstein, de Mary Shelley
  8. O Napoleão de Notting Hill, de Gilbert K. Chesterton
  9. O Tempo em Marte, de Philip K. Dick
  10. Recursão, de Blake Crouch
Não-ficção portuguesa:
  1. Imaginários Distópicos, org. João Carlos Correia, Anabela Gradim e Ricardo Morais
Periódicos:

Edições brasileiras:
  1. Conexão Literatura, nº 55