Coleira do Amor (bibliografia) é um conto de ficção científica de Gerson Lodi-Ribeiro, daqueles típicos contos especulativos cuja conceção começa com a pergunta "e se?", que tão comuns são na FC hard, e também costumam aparecer regularmente, embora menos, na sua versão mais soft. Neste caso a pergunta é algo como: "E se num futuro em que a humanidade está já trans-humanizada, integrada com as suas criações cibernéticas, em que já se aprendeu a transferir livremente a personalidade do suporte biológico que conhecemos para suporte cibernético e a integrar chips programáveis com os cérebros humanos, alcançando-se assim, portanto, uma espécie de imortalidade (salvo acidentes, desleixos, enganos), um casal tivesse decidido programar-se para se amar eternamente e depois um dos membros morresse?" O Gerson conta o que acontece, num conto bastante bom, interessante não só pela qualidade especulativa da ideia base propriamente dita como pela forma como a concretiza, acrescentando-lhe alguns pormaiores picantes, ideias secundárias, que funcionam bastante bem como complemento narrativo.
terça-feira, 21 de junho de 2016
Lido: 2014 Campbellian Anthology - Jay Posey
Jay Posey é mais um autor presente nesta antologia com um excerto de romance. Intitula-se o dele
Three. Parece tratar-se de um livro de ficção científica distópica, pós-apocalíptica, protagonizado por um daqueles anti-heróis duros e cínicos, sobreviventes natos, seja por uma questão de instinto seja pelas técnicas ensinadas por uma vida dura de sobrevivência, que acabam por obedecer com enorme relutância aos ditames da sua bondade intrínseca, pondo-se a si mesmos em perigo, e que já se tornaram quase chavão de um certo tipo de histórias. Aqui, os humanos que restam são perseguidos por weirs, criaturas cuja natureza o excerto não deixa clara mas sugere poderem ser alienígenas, ou alguma espécie de robôs. Talvez. E o protagonista, que à partida só queria ganhar a vida com material recuperado em zonas perigosas, vai-se ver caçado enquanto tenta proteger uma mãe e o filho desta. O romance pode muito bem ser só isso, uma história de sobrevivência e salvação num ambiente tenebroso. Mas também pode ser mais do que isso. Não sei, o excerto não chega para avaliar. Chega, contudo, para dizer que a prosa é eficaz na criação do ambiente opressivo e da tensão que a ele deve estar associada numa história destas, mas que as personagens estereotipadas, ainda que razoavelmente caracterizadas, não prometem grandes voos de imaginação.
Three. Parece tratar-se de um livro de ficção científica distópica, pós-apocalíptica, protagonizado por um daqueles anti-heróis duros e cínicos, sobreviventes natos, seja por uma questão de instinto seja pelas técnicas ensinadas por uma vida dura de sobrevivência, que acabam por obedecer com enorme relutância aos ditames da sua bondade intrínseca, pondo-se a si mesmos em perigo, e que já se tornaram quase chavão de um certo tipo de histórias. Aqui, os humanos que restam são perseguidos por weirs, criaturas cuja natureza o excerto não deixa clara mas sugere poderem ser alienígenas, ou alguma espécie de robôs. Talvez. E o protagonista, que à partida só queria ganhar a vida com material recuperado em zonas perigosas, vai-se ver caçado enquanto tenta proteger uma mãe e o filho desta. O romance pode muito bem ser só isso, uma história de sobrevivência e salvação num ambiente tenebroso. Mas também pode ser mais do que isso. Não sei, o excerto não chega para avaliar. Chega, contudo, para dizer que a prosa é eficaz na criação do ambiente opressivo e da tensão que a ele deve estar associada numa história destas, mas que as personagens estereotipadas, ainda que razoavelmente caracterizadas, não prometem grandes voos de imaginação.
Lido: The Heisenberg Mutation
The Heisenberg Mutation é um conto de Steve Redwood sobre um homem, incomensuravelmente rico, que de repente começa a transformar-se num... testamento. No seu próprio testamento, para ser mais específico. É que, no mundo surreal e absurdo que Redwood aqui apresenta, as pessoas — ou pelo menos Charles Algernon Soames, o protagonista desta história — são aquilo que os outros neles veem, e o multimilionário Soames, já idoso, é para todos os que o rodeiam um mero pote de ouro à espera de ser aberto assim que bata a bota. Já se vê que o conto, que descreve a metamorfose e o que Soames faz depois de ela ter tido lugar, está coberto de ironia e de um humor muito britânico, mas a verdade é que esta curta descrição não lhe faz justiça pois há vários episódios algo acessórios para o desenlace da história (e outros inteiramente fulcrais para ele) que são muito divertidos. Este é um conto realmente bom. Mas tenho de fazer uma advertência: não é adequado para quem não tenha sentido de humor.
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sexta-feira, 17 de junho de 2016
Lido: 2014 Campbellian Anthology - Sarah Pinsker
Sarah Pinsker também só está presente nesta antologia com uma noveleta. Tem por título
In Joy, Knowing the Abyss Behind. Trata-se de uma história sobre o amor de um casal, contada em dois tempos, ora nos já longínquos anos em que ambos eram novos e o mundo estava cheio de possibilidades, ora num presente de velhice, depois do homem, arquiteto, ter sido vítima de um AVC. Lentamente, vai-nos sendo desvendada a dinâmica do casal, primordialmente através das alterações que ela sofre depois do ataque, e a vida vivida em conjunto. Que tem isso a ver com literatura fantástica?, perguntarão os dois ou três atentos que estão aí desse lado. Ah! A pergunta certa! É que o homem ganhou a vida durante algum tempo fazendo para o exército americano projetos arquitectónicos como que saídos diretamente das revistas de FC. Coisas hipotéticas, pensava ele, exercícios de especulação. Mas então descobre que eram reais, que havia ETs encerrados algures nos desertos do oeste americano, e aqui chegados nós descobrimos que estamos a ler uma história de ficção científica com ETs encerrados em edifícios que ele tinha projetado, e é ao descobri-lo que a sua vida muda. E ele próprio também. É essa mudança que constitui o cerne de toda a história, a qual, já agora, é boa, escrita com sensibilidade e uma mão narrativa firme. E também, talvez, com um certo sentido de rebeldia, oculto sob uma pesada capa de conformismo social que faz com que não haja nada na protagonista e no marido que desafie nem que seja um bocadinho os papéis tradicionais de género. Mas sim, a história é boa.
In Joy, Knowing the Abyss Behind. Trata-se de uma história sobre o amor de um casal, contada em dois tempos, ora nos já longínquos anos em que ambos eram novos e o mundo estava cheio de possibilidades, ora num presente de velhice, depois do homem, arquiteto, ter sido vítima de um AVC. Lentamente, vai-nos sendo desvendada a dinâmica do casal, primordialmente através das alterações que ela sofre depois do ataque, e a vida vivida em conjunto. Que tem isso a ver com literatura fantástica?, perguntarão os dois ou três atentos que estão aí desse lado. Ah! A pergunta certa! É que o homem ganhou a vida durante algum tempo fazendo para o exército americano projetos arquitectónicos como que saídos diretamente das revistas de FC. Coisas hipotéticas, pensava ele, exercícios de especulação. Mas então descobre que eram reais, que havia ETs encerrados algures nos desertos do oeste americano, e aqui chegados nós descobrimos que estamos a ler uma história de ficção científica com ETs encerrados em edifícios que ele tinha projetado, e é ao descobri-lo que a sua vida muda. E ele próprio também. É essa mudança que constitui o cerne de toda a história, a qual, já agora, é boa, escrita com sensibilidade e uma mão narrativa firme. E também, talvez, com um certo sentido de rebeldia, oculto sob uma pesada capa de conformismo social que faz com que não haja nada na protagonista e no marido que desafie nem que seja um bocadinho os papéis tradicionais de género. Mas sim, a história é boa.
Lido: Mulher de Mim
Mulher de Mim é mais um conto breve de Mia Couto a carregar com força na poesia e nas possibilidades expressivas dos neologismos. De resto, é o que Mia Couto faz sempre, embora normalmente o faça tão bem que mal se nota, no sentido em que o trabalhar da linguagem surge não como fim em si mesmo, mas como intrumento manuseado com a máxima delicadeza ao serviço da história que está a contar. Aqui não é bem isso o que acontece, apesar de o ser em maioria. Talvez por força de alguns devaneios que a entrecortam, talvez por outro motivo qualquer, parece faltar à história alguma da solidez que costuma ser apanágio destas ficções. E é pena, claro, mas mais ainda, digo eu que tenho o gosto que tenho, por ser esta uma história fantástica apesar de mais de ambiente do que de factos narrados. Uma história quase fantasmagórica sobre a morte e os seus fantasmas. Ou sobre a vida, os vivos e seus desejos.
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terça-feira, 14 de junho de 2016
Lido: O Bom Negócio
O Bom Negócio é um conto dos Irmãos Grimm sobre as andanças e os negócios de um camponês, extraordinariamente estúpido, que vai deitando dinheiro à rua das formas mais inverosímeis que imaginar se possa mas acaba por se sair bem no fim graças a uma manha cuja vítima é um desgraçado dum judeu. Há várias coisas desagradáveis neste conto, mesmo levando em linha de conta que é obviamente história humorística, destinada a fazer rir quem a ouvisse contar. A idiotice do protagonista é tão excessiva que não é possível crer nela, e menos ainda é possível crer que tamanho cretino seja depois capaz de fazer cair alguém num ardil bem montado. Mesmo sendo judeu, o que nos leva a outra característica desagradável: o indisfarçado antissemitismo que por ela se transmite. Que uma história destas exista é antropoligicamente interessante, mas literariamente nem tanto. E para piorar as coisas para o meu gosto pessoal, ela nada tem de fantástico.
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Lido: 2014 Campbellian Anthology - Trina Marie Phillips
Trina Marie Phillips está presente nesta antologia com um só texto, uma noveleta intitulada
The War of Peace. Trata-se de uma história de ficção científica muito interessante sobre um conflito entre uma espécie alienígena com um nível de desenvolvimento tecnológico bastante baixo e uma colónia humana que se instala, por azar, precisamente numa extensão de terreno que para os alienígenas é fulcral por ser aí, no subsolo, que se desenvolvem e nascem os seus jovens. E as construções humanas, a pavimentação das ruas, etc., impedem os nascimentos, o que para os alienígenas é absolutamente inaceitável, como é natural. Para piorar as coisas, a colónia humana tem recursos limitados e depois de os gastar no estabelecimento da colónia sente dificuldade em abrir mão deles. Esta é uma história de contacto bastante bem elaborada, centrada no ponto de vista dos alienígenas, que gere com bastante qualidade não só o conflito interespecífico mas também os vários conflitos que se geram dentro de ambos os grupos, motivados por diferenças de opinião sobre a melhor forma de resolver o problema. Tudo muito sólido. Bastante bom.
The War of Peace. Trata-se de uma história de ficção científica muito interessante sobre um conflito entre uma espécie alienígena com um nível de desenvolvimento tecnológico bastante baixo e uma colónia humana que se instala, por azar, precisamente numa extensão de terreno que para os alienígenas é fulcral por ser aí, no subsolo, que se desenvolvem e nascem os seus jovens. E as construções humanas, a pavimentação das ruas, etc., impedem os nascimentos, o que para os alienígenas é absolutamente inaceitável, como é natural. Para piorar as coisas, a colónia humana tem recursos limitados e depois de os gastar no estabelecimento da colónia sente dificuldade em abrir mão deles. Esta é uma história de contacto bastante bem elaborada, centrada no ponto de vista dos alienígenas, que gere com bastante qualidade não só o conflito interespecífico mas também os vários conflitos que se geram dentro de ambos os grupos, motivados por diferenças de opinião sobre a melhor forma de resolver o problema. Tudo muito sólido. Bastante bom.
Lido: O Criado do Estrujeitante
O Criado do Estrujeitante, mais um dos pequenos contos populares de Adolfo Coelho, é uma história de fadas bastante típica e bastante sólida enquanto história, que descreve as aventuras (e desventuras também, diga-se) de um moço que procura amo e lhe calha um que é mago. É isso que significa, ou significava, a palavra estrujeitante lá para as bandas do Minho, de onde esta história é oriunda: mago. O rapaz é abelhudo, põe-se a ler os livros de feitiços do amo e aprende a estrujeitar, o que o leva a um novelo de peripécias em compita direta com o amo, repleta de transformações e metamorfoses, e acaba com o rapaz a safar-se à tangente. Bom conto, este, embora curto. Mas as suas duas páginas não seriam muito difíceis de adaptar a material de maior fôlego.
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segunda-feira, 13 de junho de 2016
Lido: 2014 Campbellian Anthology - Gary B. Phillips
Gary B. Phillips também está presente nesta antologia com duas histórias.
The Lady Electric é uma história fronteiriça, uma espécie de retrotecnofantasia se me é permitido mergulhar de cabeça no reino dos neologismos, uma mistura de fantasia com ficção científica e com tecnologias do passado que tanto têm apelado aos leitores nos últimos anos, sobre uma mulher, mais que provavelmente alienígena, que é dotada de tanta energia própria que acaba capturada e a servir de gerador de eletricidade para o mundo inteiro. Mas o que o conto tem de melhor é o modo como está escrito, num texto poético e muitíssimo eficaz a entregar a informação suficiente no tempo certo, contado na primeira pessoa por um homem que se apaixona pela protagonista e se lhe dirige quase como se numa carta. Bastante bom.
Enteral Feeding é uma fantasia mais pura, ainda que tenha uns toques de horror, sobre a captura e metamorfose de uma espécie de vampiro. Continua a ser um conto muito bem escrito, mas julgo-o pior que o primeiro porque aqui Philips não entrega a informação suficiente, nem no tempo certo nem em nenhum outro. Tudo é vago e indefinido. E eu, embora tenha a certeza de que é precisamente esse efeito que o autor desejava, acho que não funciona lá muito bem.
The Lady Electric é uma história fronteiriça, uma espécie de retrotecnofantasia se me é permitido mergulhar de cabeça no reino dos neologismos, uma mistura de fantasia com ficção científica e com tecnologias do passado que tanto têm apelado aos leitores nos últimos anos, sobre uma mulher, mais que provavelmente alienígena, que é dotada de tanta energia própria que acaba capturada e a servir de gerador de eletricidade para o mundo inteiro. Mas o que o conto tem de melhor é o modo como está escrito, num texto poético e muitíssimo eficaz a entregar a informação suficiente no tempo certo, contado na primeira pessoa por um homem que se apaixona pela protagonista e se lhe dirige quase como se numa carta. Bastante bom.
Enteral Feeding é uma fantasia mais pura, ainda que tenha uns toques de horror, sobre a captura e metamorfose de uma espécie de vampiro. Continua a ser um conto muito bem escrito, mas julgo-o pior que o primeiro porque aqui Philips não entrega a informação suficiente, nem no tempo certo nem em nenhum outro. Tudo é vago e indefinido. E eu, embora tenha a certeza de que é precisamente esse efeito que o autor desejava, acho que não funciona lá muito bem.
Lido: O Homem sem Sombra
O Homem sem Sombra é mais um continho de Luiz Bras, muito poético, muito apocalíptico, muito fronteiriço, com um suculento naco de horror a servir de prato principal, uns acompanhamentos de fantasia como conduto e pitadas de ficção científica a salpicar tudo. É uma história literariamente muito forte sobre um homem sem sombra, alegoria da morte, talvez fantasma da ausência de futuro. Lê-se como um longo travelling surreal num vídeo com música de fundo em primeiro plano, porque boa parte da sua força vem da musicalidade da linguagem. Um conto muito bom, este, no qual o enredo se subentende mais do que se entende. Mais um.
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domingo, 12 de junho de 2016
Lido: The Solaris Effect
The Solaris Effect é mais um conto de Steve Redwood mas, ao contrário dos outros, este não é um conto de ficção científica, mas sim um conto sobre a ficção científica. Ou melhor: um conto sobre o modo como a ficção científica, por mais fora de todas as experiências humanas concretas que por vezes pareça, serve tantas vezes de parábola para essas mesmas experiências humanas. Trata-se de uma história de sedução, de amor até, que se entrelaça com o enredo de um filme (e por arrasto de um livro) visto pelo protagonista e pela mulher que estava a tentar seduzir: Solaris, de Tarkovsky (e portanto de Lem). Não todo o enredo, mas muito especificamente a parte da relação entre Kris Kelvin e Rheya, o "fantasma" da sua mulher morta criado pelo oceano vivo de Solaris, que serve como fundo filosófico para esta história de Redwood e de motor para o enredo e o crescimento do protagonista. E é um conto francamente bom, em especial no que toca à construção narrativa. O melhor deste livrinho até agora.
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Lido: 2014 Campbellian Anthology - Shannon Peavey
Shannon Peavey está presente nesta antologia com duas histórias, uma noveleta e um conto.
Scavengers, a noveleta, é uma fantasia com alguns toques que se costumam associar ao steampunk, ainda que não sejam propriamente identificativos do género. Trata-se de uma história sobre o medo do outro, manipulado e amplificado por quem governa a fim de mais firmemente exercer o controlo sobre os governados. Num lugar nunca identificado, um grupo de pessoas vive sob a proteção de uma "Senhora", que as vigia e contacta por intermédio de pássaros mecânicos falantes (os tais mecanismos quase de relojoaria que muitos associam ao steampunk, embora não sejam exclusivos do género) e dotados de alguma inteligência própria, permanentemente acossadas, julgam elas, por forasteiros que pretendem matá-las. A protagonista é uma jovem míope, que devia participar na vigilância contra os forasteiros mas não consegue por causa dos olhos, que só melhoram de forma provisória graças a um unguento especial que a Senhora lhe fornece. Esta, após perder a irmã mais nova, vai acabar por descobrir que a sua vida, a Senhora e toda aquela zona, não são bem como julgava. Uma história bastante boa; bem escrita e bem elaborada.
Ghosts in the Walls, o conto, é uma mistura de conto pós-apocalíptico com história de terror fantasmagórico. Saltitando entre o presente e um passado razoavelmente próximo que o explica, tem como protagonista uma mulher que procura sobreviver num mundo enlouquecido, sacudido por tremores de terra constantes e violentos, enquanto em sua casa é atormentada por um choro de bebé vindo de um ponto específico nas paredes. Também esta é uma boa história, bastante bem escrita e elaborada e muito bem rematada.
Shannon Peavey é autora a manter debaixo de olho.
Scavengers, a noveleta, é uma fantasia com alguns toques que se costumam associar ao steampunk, ainda que não sejam propriamente identificativos do género. Trata-se de uma história sobre o medo do outro, manipulado e amplificado por quem governa a fim de mais firmemente exercer o controlo sobre os governados. Num lugar nunca identificado, um grupo de pessoas vive sob a proteção de uma "Senhora", que as vigia e contacta por intermédio de pássaros mecânicos falantes (os tais mecanismos quase de relojoaria que muitos associam ao steampunk, embora não sejam exclusivos do género) e dotados de alguma inteligência própria, permanentemente acossadas, julgam elas, por forasteiros que pretendem matá-las. A protagonista é uma jovem míope, que devia participar na vigilância contra os forasteiros mas não consegue por causa dos olhos, que só melhoram de forma provisória graças a um unguento especial que a Senhora lhe fornece. Esta, após perder a irmã mais nova, vai acabar por descobrir que a sua vida, a Senhora e toda aquela zona, não são bem como julgava. Uma história bastante boa; bem escrita e bem elaborada.
Ghosts in the Walls, o conto, é uma mistura de conto pós-apocalíptico com história de terror fantasmagórico. Saltitando entre o presente e um passado razoavelmente próximo que o explica, tem como protagonista uma mulher que procura sobreviver num mundo enlouquecido, sacudido por tremores de terra constantes e violentos, enquanto em sua casa é atormentada por um choro de bebé vindo de um ponto específico nas paredes. Também esta é uma boa história, bastante bem escrita e elaborada e muito bem rematada.
Shannon Peavey é autora a manter debaixo de olho.
Lido: O Ex-Futuro Padre e a sua Pré-Viúva
O Ex-Futuro Padre e a sua Pré-Viúva é mais um conto fantástico de Mia Couto sobre relações humanas. Desta feita vamos encontrar um casal infeliz, ele porque desejava ir para padre e uma gravidez extemporânea e misteriosa (e provavelmente impossível, tanto assim que tão depressa surgiu assim desapareceu) o obrigou em vez disso a casar com uma mulher que não desejava, por mais bela que fosse, e ela porque, casada ou não casada, a ausência de intimidade física com o homem por quem se apaixonara era completa. Problema. Problema que, como se sabe, a supertição atribui a maus-olhados e semelhantes feitiços, e para cuja resolução aconselha a consultar bruxas e daqueles professores karamba que enxameiam os limpa-para-brisas dos nossos carros com papelinhos coloridos. Mas aqui não é necessário recorrer a essas formas de publicidade; aqui estamos em África, onde todos conhecem uma bruxa ou feiticeiro especialista em tais assuntos, e lá vai o homem sujeitar-se a tratamento. Mas o tratamento tem efeitos inesperados.
É mais um bom conto, como seria de esperar de Mia Couto, mas não me parece que seja dos seus melhores. Pelo contrário, até. Relativamente ao que é hábito em Mia Couto, esta história fica aquém.
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É mais um bom conto, como seria de esperar de Mia Couto, mas não me parece que seja dos seus melhores. Pelo contrário, até. Relativamente ao que é hábito em Mia Couto, esta história fica aquém.
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sábado, 11 de junho de 2016
Lido: A Magia dos Ventos
A Magia dos Ventos (bibliografia) é o terceiro e último romance que compõe A Saga de Alex 9, de Bruno Martins Soares, e vem muito na continuidade da parte anterior, não só em termos de história propriamente dita, mas também das qualidades e características da escrita e da elaboração do enredo. O que digo de A Coroa dos Deuses é, portanto, praticamente o mesmo que poderia dizer desta terceira parte. Existem diferenças, mas poucas, e em geral para melhor. A qualidade do português continua a melhorar; embora ainda subsistam algumas falhas elas são menos abundantes que na segunda parte e muito menos que na primeira. O núcleo de personagens secundárias (a protagonista é desde o início só uma) continua a solidificar-se e a ganhar textura e substância, mesmo que algumas se mantenham até ao fim bastante unidimensionais e por vezes ainda aconteça ao leitor ser confrontado com uma personagem que não sabe bem de onde vem e como chegou ali.
E a história, claro, não se afasta por aí além do que ficou claro em partes anteriores: estamos num mundo medieval, atrasado, habitado por humanos, ao qual chegaram em épocas diferentes outros humanos vindos de outros sítios (nomeadamente da Terra), na posse de tecnologia avançada, e por algum motivo há uma guerra sem quartel entre dois grupos, sem que ninguém, em especial a própria Alex 9, pareça saber ao certo porquê.
Esta, para mim, é a principal falha deste último romance: se é certo que vai explicando uma coisinha ou outra, a verdade é que o grosso das explicações é relegado para um epílogo que consiste no fundamental de um grande infodump. E mesmo assim ainda ficam pontas soltas o que, mesmo que se trate de ganchos para a eventualidade de outras explorações deste universo ficcional, é sempre pouco satisfatório.
Por outro lado, o texto flui bastante bem e a leitura acaba por ser agradável. As fragilidades que ainda se vão encontrando aqui e ali não são sérias o suficiente para impedir o pleno desfrute da história que, como é à partida evidente para qualquer pessoa que reconheça as influências pulp que aqui se encontram, acaba numa grande apoteose de violência cujo desfecho nunca chega a estar em dúvida. Este é, para mim, outro problema do livro, do qual falarei mais aprofundadamente quando falar do conjunto dos três romances, mas há nisso a intromissão do gosto pessoal; enquanto representante do género da FC pulp, o romance funciona, moderniza-o (em vez da tradicional donzela em perigo, pronta a ser salva pelo macho alfa, temos uma donzela kick-ass e um macho alfa que se reconhece inferior e o aceita sem problemas, o que não é propriamente original — encontramos o mesmo tipo de duo nos livros de fantasia do Brandon Sanderson, por exemplo — mas ainda vai causando por aí umas irritações machistas) e para muitos leitores é precisamente o que procuram num livro destes.
Em suma, o romance funciona. Não creio que seja muito bom, e para as minhas preferências ficcionais certamente não o é, mas funciona bem. E tenho mais umas coisas a dizer sobre ele, mas ficarão para quando falar do livro como um todo.
Romances anteriores deste livro:
E a história, claro, não se afasta por aí além do que ficou claro em partes anteriores: estamos num mundo medieval, atrasado, habitado por humanos, ao qual chegaram em épocas diferentes outros humanos vindos de outros sítios (nomeadamente da Terra), na posse de tecnologia avançada, e por algum motivo há uma guerra sem quartel entre dois grupos, sem que ninguém, em especial a própria Alex 9, pareça saber ao certo porquê.
Esta, para mim, é a principal falha deste último romance: se é certo que vai explicando uma coisinha ou outra, a verdade é que o grosso das explicações é relegado para um epílogo que consiste no fundamental de um grande infodump. E mesmo assim ainda ficam pontas soltas o que, mesmo que se trate de ganchos para a eventualidade de outras explorações deste universo ficcional, é sempre pouco satisfatório.
Por outro lado, o texto flui bastante bem e a leitura acaba por ser agradável. As fragilidades que ainda se vão encontrando aqui e ali não são sérias o suficiente para impedir o pleno desfrute da história que, como é à partida evidente para qualquer pessoa que reconheça as influências pulp que aqui se encontram, acaba numa grande apoteose de violência cujo desfecho nunca chega a estar em dúvida. Este é, para mim, outro problema do livro, do qual falarei mais aprofundadamente quando falar do conjunto dos três romances, mas há nisso a intromissão do gosto pessoal; enquanto representante do género da FC pulp, o romance funciona, moderniza-o (em vez da tradicional donzela em perigo, pronta a ser salva pelo macho alfa, temos uma donzela kick-ass e um macho alfa que se reconhece inferior e o aceita sem problemas, o que não é propriamente original — encontramos o mesmo tipo de duo nos livros de fantasia do Brandon Sanderson, por exemplo — mas ainda vai causando por aí umas irritações machistas) e para muitos leitores é precisamente o que procuram num livro destes.
Em suma, o romance funciona. Não creio que seja muito bom, e para as minhas preferências ficcionais certamente não o é, mas funciona bem. E tenho mais umas coisas a dizer sobre ele, mas ficarão para quando falar do livro como um todo.
Romances anteriores deste livro:
sexta-feira, 10 de junho de 2016
Lido: 2014 Campbellian Anthology - Chrome Oxide
Chrome Oxide (óbvio pseudónimo) está presente nesta antologia com um conto, intitulado
Cop for a Day. E é uma bosta monumental. Pessimamente escrito, com um "humor" do mais básico possível, conta uma historieta de ficção científica mal-amanhada e absolutamente ridícula sobre um tipo que é polícia por um dia e vai descobrindo os problemas de se ser bófia num mundo politicamente correto. Sim, o Chrome Oxide é obviamente um puppy dos mais raivosos e, se o que eles têm a oferecer não passa deste tipo de lixo, percebe-se bem por que motivo raramente ganham prémios, o que, naturalmente, os deixa ainda mais raivosos. Não me perguntem como esta porcaria conseguiu ser publicada na antologia L. Ron Hubbard Presents Writers of the Future porque também não percebo; aparentemente, nos EUA publica-se em livro lixo amador que em Portugal teria dificuldade em ser aceite para publicação online gratuita das menos exigentes. Julgo que não errarei se disser desde já, mesmo sem ter acabado ainda o livro (falta-me ler menos de uma mancheia de histórias, embora falte falar de muitas mais) que este conto é, de longe, o pior de toda a antologia. De fugir.
Cop for a Day. E é uma bosta monumental. Pessimamente escrito, com um "humor" do mais básico possível, conta uma historieta de ficção científica mal-amanhada e absolutamente ridícula sobre um tipo que é polícia por um dia e vai descobrindo os problemas de se ser bófia num mundo politicamente correto. Sim, o Chrome Oxide é obviamente um puppy dos mais raivosos e, se o que eles têm a oferecer não passa deste tipo de lixo, percebe-se bem por que motivo raramente ganham prémios, o que, naturalmente, os deixa ainda mais raivosos. Não me perguntem como esta porcaria conseguiu ser publicada na antologia L. Ron Hubbard Presents Writers of the Future porque também não percebo; aparentemente, nos EUA publica-se em livro lixo amador que em Portugal teria dificuldade em ser aceite para publicação online gratuita das menos exigentes. Julgo que não errarei se disser desde já, mesmo sem ter acabado ainda o livro (falta-me ler menos de uma mancheia de histórias, embora falte falar de muitas mais) que este conto é, de longe, o pior de toda a antologia. De fugir.
Lido: Os da Minha Rua
Os da Minha Rua é daqueles livros que não são muito simples de classificar. Será romance? Será coletânea de contos? É algo híbrido, a meio caminho, um romance em mosaicos, talvez, ou uma coleção de contos interligados.
Também difícil é determinar se se trata de ficção ou relatos de acontecimentos reais, ainda que trabalhados literariamente. Parece também aqui ser um livro híbrido, entre a memória e a invenção, mas talvez com mais daquela do que desta. Memórias de infância e juventude de um tal Ndalu, burguês luandense nascido já após a independência de Angola, que cresceu durante os anos em que o seu país estava politicamente alinhado com a esfera socialista, durante uma guerra civil que o protagonista desta(s) história(s) aparentemente não chega a sentir, e quem não saiba que Ondjaki é pseudónimo de um homem chamado Ndalu de Almeida talvez se sinta tentado a atribuir tudo à ficção; afinal, por mais que a pessoa usada seja a primeira, há aqui construção de personagem, não é verdade?
Não é verdade?
Não sei, a verdade é essa. Não sei quanto disto é verdadeiro e quanto é ficcionado. Não o sabia ao iniciar a leitura e após terminá-la continuei a não saber.
O que sei é que estas histórias me desapontaram. Depois de ter lido há uns aninhos Quantas Madrugadas Tem a Noite, e ficado muitíssimo bem impressionado com o humor, a escrita, a mistura de realismo e fantasia que o romance tem, esperava encontrar aqui algo nos mesmos moldes e não foi isso que encontrei. O português em Os da Minha Rua, sendo embora de qualidade, não tem o mesmo rasgo que se encontra no outro livro; humor está presente em quantidades bem mais discretas na maioria dos contos (há algumas exceções); fantasia não existe. O que aqui se encontra é um retrato da infância, que é em parte universal, porque miúdos são miúdos, e em parte muito característica de um tempo e lugar, a Luanda dos anos 80, estendendo-se um pouco pelos 90. Um retrato bem feito? Sim, provavelmente. Mas falta-lhe qualquer coisa. Ou então sou eu que não reajo bem à escrita umbiguista. Se calhar é isso.
E como também se podem encarar estas histórias como contos independentes, aqui fica o que achei de cada uma:
Também difícil é determinar se se trata de ficção ou relatos de acontecimentos reais, ainda que trabalhados literariamente. Parece também aqui ser um livro híbrido, entre a memória e a invenção, mas talvez com mais daquela do que desta. Memórias de infância e juventude de um tal Ndalu, burguês luandense nascido já após a independência de Angola, que cresceu durante os anos em que o seu país estava politicamente alinhado com a esfera socialista, durante uma guerra civil que o protagonista desta(s) história(s) aparentemente não chega a sentir, e quem não saiba que Ondjaki é pseudónimo de um homem chamado Ndalu de Almeida talvez se sinta tentado a atribuir tudo à ficção; afinal, por mais que a pessoa usada seja a primeira, há aqui construção de personagem, não é verdade?
Não é verdade?
Não sei, a verdade é essa. Não sei quanto disto é verdadeiro e quanto é ficcionado. Não o sabia ao iniciar a leitura e após terminá-la continuei a não saber.
O que sei é que estas histórias me desapontaram. Depois de ter lido há uns aninhos Quantas Madrugadas Tem a Noite, e ficado muitíssimo bem impressionado com o humor, a escrita, a mistura de realismo e fantasia que o romance tem, esperava encontrar aqui algo nos mesmos moldes e não foi isso que encontrei. O português em Os da Minha Rua, sendo embora de qualidade, não tem o mesmo rasgo que se encontra no outro livro; humor está presente em quantidades bem mais discretas na maioria dos contos (há algumas exceções); fantasia não existe. O que aqui se encontra é um retrato da infância, que é em parte universal, porque miúdos são miúdos, e em parte muito característica de um tempo e lugar, a Luanda dos anos 80, estendendo-se um pouco pelos 90. Um retrato bem feito? Sim, provavelmente. Mas falta-lhe qualquer coisa. Ou então sou eu que não reajo bem à escrita umbiguista. Se calhar é isso.
E como também se podem encarar estas histórias como contos independentes, aqui fica o que achei de cada uma:
- O Voo do Jika
- A Televisão Mais Bonita do Mundo
- O Kazukuta
- Jerri Quan e os Beijinhos na Boca
- Os Óculos da Charlita
- A Professora Genoveva Esteve Cá
- A Ida ao Namibe
- O Homem mais Magro de Luanda
- O Último Carnaval da Vitória
- A Piscina do Tio Victor
- Os Quedes Vermelhos da Tchi
- Manga Verde e o Sal Também
- Bilhete com Foguetão
- As Primas do Bruno Viola
- O Portão da Casa da Tia Rosa
- Os Calções Verdes do Bruno
- O Bigode do Professor de Geografia
- No Galinheiro, no Devagar do Tempo
- O Nitó que Também Era Sankarah
- Um Pingo de Chuva
- Nós Chorámos Pelo Cão Tinhoso
- Palavras Para o Velho Abacateiro
quarta-feira, 8 de junho de 2016
Lido: 2014 Campbellian Anthology - Ramez Naam
Ramez Naam também está aqui presente com um excerto de romance, que no caso dele se intitula
Nexus. Um daqueles títulos típicos de ficção científica, e de facto é disso que se trata. Mais precisamente, estamos perante um romance de ficção científica pós ciberpunk, trans-humanista, ambientado (ou pelo menos iniciado) em 2040, que parece ter por tema o desenvolvimento de uma droga (ou pelo menos a sua adaptação ao uso civil, depois de ela, ou uma sua antecessora, ter sido desenvolvida para fabricar supersoldados) capaz de ampliar a capacidade sensorial e mental de quem a toma através da criação de uma rede de nanoestruturas interligadas com o cérebro dos utilizadores, capazes de correr programas próprios, que dão aos utilizadores acesso a uma série de melhoramentos, incluindo a comunicação direta cérebro a cérebro. E claro que algo capaz de correr código está sujeito a bugs. O ambiente está bastante bem criado, incluindo o perigo inerente a tudo aquilo ser clandestino e portanto haver quem procure recolher informações e acabar com toda aquela brincadeira, e o excerto está bastante bem escrito, numa prosa escorreita e ágil. Parece ser um bom romance, mas o que vem publicado nesta antologia não afasta o risco de tudo aquilo degenerar em mero bangue-bangue entre humanos 2.0. Seja como for, o excerto desperta interesse e por isso cumpre bem a sua função.
Nexus. Um daqueles títulos típicos de ficção científica, e de facto é disso que se trata. Mais precisamente, estamos perante um romance de ficção científica pós ciberpunk, trans-humanista, ambientado (ou pelo menos iniciado) em 2040, que parece ter por tema o desenvolvimento de uma droga (ou pelo menos a sua adaptação ao uso civil, depois de ela, ou uma sua antecessora, ter sido desenvolvida para fabricar supersoldados) capaz de ampliar a capacidade sensorial e mental de quem a toma através da criação de uma rede de nanoestruturas interligadas com o cérebro dos utilizadores, capazes de correr programas próprios, que dão aos utilizadores acesso a uma série de melhoramentos, incluindo a comunicação direta cérebro a cérebro. E claro que algo capaz de correr código está sujeito a bugs. O ambiente está bastante bem criado, incluindo o perigo inerente a tudo aquilo ser clandestino e portanto haver quem procure recolher informações e acabar com toda aquela brincadeira, e o excerto está bastante bem escrito, numa prosa escorreita e ágil. Parece ser um bom romance, mas o que vem publicado nesta antologia não afasta o risco de tudo aquilo degenerar em mero bangue-bangue entre humanos 2.0. Seja como for, o excerto desperta interesse e por isso cumpre bem a sua função.
Lido: O Restaurante no Fim do Universo
O Restaurante no Fim do Universo é a segunda parte das cinco que compõem a mais famosa trilogia de cinco livros do Universo e arredores, provavelmente por ser a única dado que todas as outras têm três. Isto, claro, se contarmos as publicações originais, porque se contarmos apenas as portuguesas esta trilogia resume-se a dois livros, este e o primeiro. É das tais coisas. A malta que não compra não compra, a editora chateia-se e deixa de editar e a pouca malta que compra e queria continuar a comprar fica a chuchar no dedo e com uma grande carranca.
Mas adiante.
Não vou repetir o que disse sobre a série quando falei do À Boleia Pela Galáxia, limito-me a aconselhar o leitor interessado (sim, pá, és só tu) a ir lá ler, que tem interesse e relevância para este livro. Tanto as informações sobre a série, sua estrutura e origens, como as que revelam coisas sobre o autor. Também aconselho o mesmo leitor interessado a ir lá ler porque muito do que digo sobre o primeiro livro também se aplica a este. De resto, é natural: este livro começa onde o outro acaba, tem origem no mesmo material radiofónico episódico usado para esculpir o outro, as personagens principais são as mesmas, por aí fora.
Sim, Arthur Dent continua aqui a viajar desastradamente de uns sítios para outros, muitas vezes sem saber como nem porquê, e o Restaurante no Fim do Universo é só uma das suas paragens. Outras são a redação do Guia da Galáxia Para quem Anda à Boleia, o próprio, uma nave prestes a mergulhar numa estrela, uma outra nave carregada de refugiados golganfrinchanos, expulsos do seu planeta porque já ninguém os conseguia aturar por lá, e a Terra pré-histórica, enquanto ainda era uma espécie de jardim do Éden, portanto sem a maçadora presença de gente. Sim, que no universo de Adams coisas sofisticadas como motores de improbabilidade ou teleportadores tanto dão para viajar até às vésperas da morte térmica do Universo como às galáxias mais longínquas ou ao passado remoto.
Paradoxos? Quais paradoxos?
E no meio de tudo isto, ainda descobrem quem é e onde está (mas não propriamente o que faz) o tipo que gere o Universo.
Este segundo romance da série continua a ser muito divertido, e desta vez tive o prazer adicional de ainda não o ter lido, nem sequer parcialmente, portanto todos os gags serem novos. Mas há nele algumas diferenças relativamente ao primeiro. Numa palavra: é melhor. E não sou só eu que o digo: o próprio Adams, rezam as crónicas, também achava. Toda a razão, amigo Douglas. Este livro, mantendo embora um certo caráter episódico, é no entanto significativamente mais coeso do que o primeiro e, em parte por isso, também está bastante mais bem escrito. A própria ironia parece ser aqui mais fina do que no primeiro livro, e os conceitos de ficção científica também me parecem mais sólidos e sofisticados. Ou seja, tudo está aqui mais bem equilibrado, mais bem desenvolvido, e o resultado é um romance francamente bom. E divertido.
Que pena que os outros três ficaram pelo caminho... Talvez um dia, quem sabe?
Mas a verdade é que nada disso importa.
O que realmente importa é saber quantos são seis vezes nove.
Este livro foi comprado.
Mas adiante.
Não vou repetir o que disse sobre a série quando falei do À Boleia Pela Galáxia, limito-me a aconselhar o leitor interessado (sim, pá, és só tu) a ir lá ler, que tem interesse e relevância para este livro. Tanto as informações sobre a série, sua estrutura e origens, como as que revelam coisas sobre o autor. Também aconselho o mesmo leitor interessado a ir lá ler porque muito do que digo sobre o primeiro livro também se aplica a este. De resto, é natural: este livro começa onde o outro acaba, tem origem no mesmo material radiofónico episódico usado para esculpir o outro, as personagens principais são as mesmas, por aí fora.
Sim, Arthur Dent continua aqui a viajar desastradamente de uns sítios para outros, muitas vezes sem saber como nem porquê, e o Restaurante no Fim do Universo é só uma das suas paragens. Outras são a redação do Guia da Galáxia Para quem Anda à Boleia, o próprio, uma nave prestes a mergulhar numa estrela, uma outra nave carregada de refugiados golganfrinchanos, expulsos do seu planeta porque já ninguém os conseguia aturar por lá, e a Terra pré-histórica, enquanto ainda era uma espécie de jardim do Éden, portanto sem a maçadora presença de gente. Sim, que no universo de Adams coisas sofisticadas como motores de improbabilidade ou teleportadores tanto dão para viajar até às vésperas da morte térmica do Universo como às galáxias mais longínquas ou ao passado remoto.
Paradoxos? Quais paradoxos?
E no meio de tudo isto, ainda descobrem quem é e onde está (mas não propriamente o que faz) o tipo que gere o Universo.
Este segundo romance da série continua a ser muito divertido, e desta vez tive o prazer adicional de ainda não o ter lido, nem sequer parcialmente, portanto todos os gags serem novos. Mas há nele algumas diferenças relativamente ao primeiro. Numa palavra: é melhor. E não sou só eu que o digo: o próprio Adams, rezam as crónicas, também achava. Toda a razão, amigo Douglas. Este livro, mantendo embora um certo caráter episódico, é no entanto significativamente mais coeso do que o primeiro e, em parte por isso, também está bastante mais bem escrito. A própria ironia parece ser aqui mais fina do que no primeiro livro, e os conceitos de ficção científica também me parecem mais sólidos e sofisticados. Ou seja, tudo está aqui mais bem equilibrado, mais bem desenvolvido, e o resultado é um romance francamente bom. E divertido.
Que pena que os outros três ficaram pelo caminho... Talvez um dia, quem sabe?
Mas a verdade é que nada disso importa.
O que realmente importa é saber quantos são seis vezes nove.
Este livro foi comprado.
terça-feira, 7 de junho de 2016
Lido: 2014 Campbellian Anthology - E. C. Myers
Com E. C. Myers regressamos aos excertos de romances, que no caso dele se intitula
Fair Coin. Parece ser um romance curioso, talvez misto de horror com ficção científica, que começa quando um rapaz chega da escola e encontra a mãe quase em coma por ter engolido uma porção de comprimidos. Porquê? Porque o julgava morto. E se isso não fosse estranho o suficiente, depressa as coisas se tornam mais estranhas ainda quando ele começa a reparar em incongruências entre o mundo em que se encontra e aquele de que se recorda, quase como se... quase como se estivesse no lugar errado, como se tivesse ido ali parar sem saber como, vindo de outro universo em que as coisas eram subtilmente diferentes. Quase como se não fosse ele o filho daquela mãe suicida, cujo filho teria realmente morrido, mas sim um duplo. Uma cópia. Há histórias destas na ficção científica, e algumas são excelentes, mas esta não sei para onde vai; tanto pode ser mais uma boa história como não. Por vezes, basta o excerto para fornecer garantias, seja pela qualidade da prosa, seja pela forma como o enredo é apresentado, mas nem sempre isso acontece. Este excerto pertence claramente ao segundo grupo. Desperta interesse, mas deixa muitas dúvidas no ar.
Fair Coin. Parece ser um romance curioso, talvez misto de horror com ficção científica, que começa quando um rapaz chega da escola e encontra a mãe quase em coma por ter engolido uma porção de comprimidos. Porquê? Porque o julgava morto. E se isso não fosse estranho o suficiente, depressa as coisas se tornam mais estranhas ainda quando ele começa a reparar em incongruências entre o mundo em que se encontra e aquele de que se recorda, quase como se... quase como se estivesse no lugar errado, como se tivesse ido ali parar sem saber como, vindo de outro universo em que as coisas eram subtilmente diferentes. Quase como se não fosse ele o filho daquela mãe suicida, cujo filho teria realmente morrido, mas sim um duplo. Uma cópia. Há histórias destas na ficção científica, e algumas são excelentes, mas esta não sei para onde vai; tanto pode ser mais uma boa história como não. Por vezes, basta o excerto para fornecer garantias, seja pela qualidade da prosa, seja pela forma como o enredo é apresentado, mas nem sempre isso acontece. Este excerto pertence claramente ao segundo grupo. Desperta interesse, mas deixa muitas dúvidas no ar.
Lido: O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam
O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam é mais um conto sofisticado de Jorge Luis Borges que, de novo, não sendo propriamente ficção científica, tem bastantes pontos de contacto com o género. Superficialmente é uma história de espionagem ambientada durante a I Guerra Mundial e protagonizada por um espião chinês, Yu Tsun, ilustre descendente de um mais ilustre ainda antepassado, que teria abandonado tudo, riquezas, cargos e honrarias, para escrever um livro e/ou um labirinto. Mas logo abaixo da superfície, é uma exploração bastante sólida da ideia do tempo não-linear que tantas histórias de ficção científica nos deu. Está aqui quase tudo o que está na base dos infinitos universos alternativos com as suas linhas temporais alternativas, gerados com base na infinitude de escolhas que o acaso ou a vontade das criaturas está constantemente a fazer. A literatura marca presença, como é habitual em Borges, e o livro que o antepassado do protagoniasta escreve não só serve de parábola às ideias cosmológicas contidas no conto, como faz subtil referência a algumas obras fictícias contidas em outros dos contos deste mesmo livro.
Borges não se limitou a escrever contos: criou com eles labirintos. Ou talvez jardins com caminhos que se bifurcam. É isso, mais que tudo o resto (e o resto é tanto), que faz realmente cair o queixo de assombro.
Contos anteriores deste livro:
Borges não se limitou a escrever contos: criou com eles labirintos. Ou talvez jardins com caminhos que se bifurcam. É isso, mais que tudo o resto (e o resto é tanto), que faz realmente cair o queixo de assombro.
Contos anteriores deste livro:
segunda-feira, 6 de junho de 2016
Lido: Ressurreição
Ressurreição (bibliografia) é uma novela de Mário de Sá-Carneiro que foge um pouco aos ambientes fantásticos da grande maioria das suas outras prosas, mantendo no entanto bem presentes quase todas as suas outras obsessões. Trata-se de um texto francamente umbiguista, protagonizado por um romancista ególatra, pedante e presunçoso que vive entre Paris, cidade que idolatra, e Lisboa, terreola que despreza, como despreza quase todas as criaturas humanas que calham atravessar-lhe a existência. Mesmo aquelas por quem se apaixona, ou por quem se sente atraído, sendo que neste capítulo voltamos a encontrar aqui uma homossexualidade bastante explícita, ainda que racionalizada (como aliás quase sempre) por fatores exógenos. Neste caso, a homossexualidade deixa de ser apenas platónica como na maior parte das outras histórias que a ela aludem, e cumpre-se, sendo no entanto explicada por uma atração mútua, do protagonista e do homem com quem se entrega ao sexo, pela mesma rapariga, uma atriz.
São, de resto, os ziguezagues sentimentais do protagonista relativamente a essa rapariga que constituem o principal motor da história. Sim, esta é principalmente uma história de amor mundana, ainda que não contenha lá muito amor propriamente dito. Contém, sim, muitos estados de alma, muitas reflexões introspetivas, muitas dúvidas, muita literatura, que em parte é de grande qualidade, mas por outro lado me parece exagerar na adjetivação e, aqui e ali, nos advérbios e tender a tornar-se repetitiva pela insistência nas mesmas construções. Ele é Fulano que "acorda em alma", ele é um romance que é "terminado em auréola", ele é o ambiente que "aumenta em exotismo", por aí fora. Cansa.
Curiosamente, sendo esta história, entre todas, a que tem uma homossexualidade mais explícita, é também daquelas em que a morbidez típica da prosa de Sá-Carneiro menos se faz sentir. É certo que o desenlace, que inclui uma fantasmagoria tão ténue que talvez não seja suficiente para aproximar este texto da literatura fantástica, se segue a uma morte, mas o resto da história chega quase a ser luminosa, por vezes. Sim, encontra-se nela o ennui burguês do ocioso rico, solitário e centrado em si mesmo, mas também se acha aqui triunfo, alegria e um júbilo incaracterístico nesse mesmo desenlace, quando estes, em Sá-Carneiro, são quase sempre bastante sombrios.
É uma história com muitos dos pontos fortes e dos pontos fracos da prosa de Sá-Carneiro. Para o meu gosto pessoal peca por contar uma história que pouco interesse me despertou e pelo protagonista que me é francamente antipático (não posso com pedantes, seja na literatura, seja na vida real). Mas é uma história complexa e naturalmente bem escrita, apesar das ressalvas expressas mais acima, que deverá interessar em especial a quem quiser obter uma compreensão mais profunda da psique do autor. Como não é bem isso o que mais me atrai na literatura, para mim não passou do razoável. Há algumas obras-primas neste livro, mas não creio que esta o seja.
Contos anteriores deste livro:
São, de resto, os ziguezagues sentimentais do protagonista relativamente a essa rapariga que constituem o principal motor da história. Sim, esta é principalmente uma história de amor mundana, ainda que não contenha lá muito amor propriamente dito. Contém, sim, muitos estados de alma, muitas reflexões introspetivas, muitas dúvidas, muita literatura, que em parte é de grande qualidade, mas por outro lado me parece exagerar na adjetivação e, aqui e ali, nos advérbios e tender a tornar-se repetitiva pela insistência nas mesmas construções. Ele é Fulano que "acorda em alma", ele é um romance que é "terminado em auréola", ele é o ambiente que "aumenta em exotismo", por aí fora. Cansa.
Curiosamente, sendo esta história, entre todas, a que tem uma homossexualidade mais explícita, é também daquelas em que a morbidez típica da prosa de Sá-Carneiro menos se faz sentir. É certo que o desenlace, que inclui uma fantasmagoria tão ténue que talvez não seja suficiente para aproximar este texto da literatura fantástica, se segue a uma morte, mas o resto da história chega quase a ser luminosa, por vezes. Sim, encontra-se nela o ennui burguês do ocioso rico, solitário e centrado em si mesmo, mas também se acha aqui triunfo, alegria e um júbilo incaracterístico nesse mesmo desenlace, quando estes, em Sá-Carneiro, são quase sempre bastante sombrios.
É uma história com muitos dos pontos fortes e dos pontos fracos da prosa de Sá-Carneiro. Para o meu gosto pessoal peca por contar uma história que pouco interesse me despertou e pelo protagonista que me é francamente antipático (não posso com pedantes, seja na literatura, seja na vida real). Mas é uma história complexa e naturalmente bem escrita, apesar das ressalvas expressas mais acima, que deverá interessar em especial a quem quiser obter uma compreensão mais profunda da psique do autor. Como não é bem isso o que mais me atrai na literatura, para mim não passou do razoável. Há algumas obras-primas neste livro, mas não creio que esta o seja.
Contos anteriores deste livro:
domingo, 5 de junho de 2016
Lido: João Fiel
João Fiel é uma história dos Irmãos Grimm sobre as andanças e aventuras de João Fiel, um criado fidelíssimo, que se esforça para cumprir as derradeiras vontades de um velho rei, as primeiras vontades do novo rei, filho do velho, que lhe sucede quando o pai morre, e as consequências que estas têm. É um conto de fadas, naturalmente, repleto de magia e metamorfoses, misturando ingenuidade com uma dose não despicienda de crueldade, amores impossíveis (e instantâneos) e outros ingredientes da mesma espécie. Mas não é das histórias mais memoráveis. Falta-lhe para isso, talvez, uma ligação narrativa mais firme entre os vários elementos de que se compõe. Dá a sensação de que o enredo procura enovelar-se com fios de cores pouco harmoniosas ou, falando de forma menos oblíqua, de que a história foi sendo construída pelos seus contadores a partir de peças provenientes de outras histórias mais antigas, sensação essa que é acentuada pela habitual nota em que os Grimm se referem a histórias semelhantes encontradas em outros pontos de Alemanha e de outros países, na qual chegam a fazer referência à mitologia romana. Uma história interessante, em especial sob um ponto de vista mais sociológico, mas não muito boa enquanto história.
Contos anteriores deste livro:
Contos anteriores deste livro:
quarta-feira, 1 de junho de 2016
Lido: 2014 Campbellian Anthology - John P. Murphy
John P. Murphy está presente nesta antologia com dois pequenos contos. Nomeadamente:
Tumbleweeds and Indelicate Questions é um divertido conto de ficção científica que relata uma conversa, num bar algures nos EUA, cujo tema é uma cabeça de ET, de uma espécie bizarramente chamada "tumbleweeds", que o bar exibe entre as garrafas de isto e aquilo. Ou melhor: o tema da conversa não é propriamente a cabeça mas quem teria matado o seu dono. É um conto com graça, mas pouco mais.
At the Old Folks Home at the End of the World é um conto de fantasia, também carregadinho de humor, que descreve o aborrecidíssimo dia-a-dia de uma casa de repouso para supervilões imortais (e ocasionalmente divinos) no fim do mundo. Fim do mundo esse que nunca mais chega, raios o partam, deixando os supervilões, fartíssimos uns dos outros como só supervilões imortais poderiam estar, à beira de um ataque de nervos. Ou de vários. Um conto muito divertido e imaginativo, que quase chega a fazer sentir pena dos supervilões. Quase. De qualquer forma, bastante melhor que o primeiro.
Tumbleweeds and Indelicate Questions é um divertido conto de ficção científica que relata uma conversa, num bar algures nos EUA, cujo tema é uma cabeça de ET, de uma espécie bizarramente chamada "tumbleweeds", que o bar exibe entre as garrafas de isto e aquilo. Ou melhor: o tema da conversa não é propriamente a cabeça mas quem teria matado o seu dono. É um conto com graça, mas pouco mais.
At the Old Folks Home at the End of the World é um conto de fantasia, também carregadinho de humor, que descreve o aborrecidíssimo dia-a-dia de uma casa de repouso para supervilões imortais (e ocasionalmente divinos) no fim do mundo. Fim do mundo esse que nunca mais chega, raios o partam, deixando os supervilões, fartíssimos uns dos outros como só supervilões imortais poderiam estar, à beira de um ataque de nervos. Ou de vários. Um conto muito divertido e imaginativo, que quase chega a fazer sentir pena dos supervilões. Quase. De qualquer forma, bastante melhor que o primeiro.
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