sexta-feira, 4 de junho de 2004

Spam fiction (4)

A vida bela de Klaus Miragata


Baseado num spam intitulado "A vida e bela que por vez cai no cão" (sic)


Klaus sai já quase seco do cubículo a que chama duche. Vem ainda com restos de sabão pegados ao corpo, como todas as manhãs. A água nunca é suficiente, até porque ele aproveita sempre o banho para beber alguma. A água anda cara e escassa; há que aproveitar. Klaus olha para a janela. O remoinho pálido da manhã olha para ele, da janela, dizendo-lhe que é tarde, como de costume, como se fosse necessário. Klaus esfrega-se na toalha imunda, com o vago asco de todos os dias, um asco que já é quase uma segunda natureza, como que uma armadura que lhe reveste os poros para impedir a sujidade de entrar.
Klaus engole à pressa os flocos. Coisas brancas e secas, sem sabor, ou então com sabor a papel temperado com plástico em pó. Uma merda.
Klaus já devia estar habituado. Não está. Não parece haver maneira de se habituar a levantar-se sempre tarde, tomar banhos que nunca chegam a limpá-lo, apressado pelo tiquetaque subjectivo, mas impiedoso, do relógio embutido no pulso, que lhe destila urgência para as veias, passar a vida com sede, ou com fome, ou com sede e fome ao mesmo tempo, enquanto o corpo se desfaz em comichões, como se em vez de pele os seus músculos estivessem cobertos por uma membrana de parasitas.
E se calhar estão mesmo. Há por aí uma nova estirpe de ácaros, diz-se, dez vezes mais agressiva que os velhos causadores de alergias, diz-se.
Diz-se.
Diz-se tanta coisa...
Klaus sai do seu apartamento para o calor húmido da madrugada. Vai a pé até à paragem do electrocarro, mistura-se com a multidão, discreto, procurando passar à frente dos demais sem que ninguém dê por isso. Mas alguém repara no movimento, como sempre acontece. Nas ruas sobrepovoadas, os comportamentos alheios são vigiados com olhos penetrantes como os de falcões, capazes de detectar e interpretar os mais invisíveis dos sinais. Klaus é assediado por insultos, ameaças e cotoveladas e até por uma ponta de um cigarrino de canábis que lhe chamusca o cabelo da nuca. Aos insultos e ameaças, e mesmo às cotoveladas, Klaus responde quase sempre com indiferença. Mas esta é forçada, falsa, pouco mais que máscara e, por isso, por vezes cai, libertando a violência subjacente, especialmente quando aos insultos, ameaças e cotoveladas se acrescenta qualquer coisa.
Como agora. Klaus estende o braço, mão cerrada em punho, e esmurra quem lhe atirou a beata. Uma pancada seca e forte, na boca do estômago, e um olhar furioso, deixam o outro sem resposta, um pouco dobrado sobre si próprio, mas não muito para não dar parte de fraco.
Nas ruas, dar parte de fraco é perigoso.
Klaus sente-se filho de puta. E não gosta nada de sentir-se filho de puta. Nada.
Mas a vida é bela. A vida é bela.
O electrocarro chega, e Klaus consegue entrar. Começa a suar quase de imediato, ou então são os corpos dos vizinhos que suam por ele, enchendo-lhe os poros de gotículas, ajudando a que estas se agreguem em gotas e fazendo com que estas, por sua vez, se transfiram para a camisa de tecido grosseiro, alastrando por ela em grandes manchas escuras que se agarram à pele (aos ácaros?) como cola líquida.
A viagem é longa e incómoda, feita de empurrões e sacolejos, à medida que o electrocarro se vai tentando desviar dos buracos maiores, só para ir cair nos mais pequenos. Klaus agarra-se aos vizinhos para não cair. É sempre assim. As viagens nos electrocarros são uma náusea de encontrões, os passageiros transformados numa mole humana que quase se funde numa massa única de carne, pêlos e piolhos, intercalada de cabeças que tentam manter, a custo, alguma individualidade.
Cada paragem é um alívio para quem sai e uma ocasião para quem fica fornecer um exemplo prático das leis que regem os movimentos dos líquidos, à medida que as novas partículas dos passageiros que entram procuram encontrar maneira de preencher o espaço deixado vago pelos passageiros que saem.
Caos browniano em todo o seu esplendor. E com bónus: fede.
O electrocarro sacoleja por fim até à paragem de Klaus, que fura para a saída com a eficiência de uma vida de prática. Alívio. Mas alívio que não dura: o electrocarro chegou atrasado, como sempre, e Klaus tem menos de um minuto para chegar ao escritório.
Corre.
Depressa abranda.
A língua começa a secar-lhe na boca, e ele sabe que não terá água tão cedo, portanto acaba por parar numa sombra até recuperar o fôlego. O calor é uma manta que sufoca. O ar que lhe entra nos pulmões vem ardente e pesado de cheiros a substâncias insalubres. Não ajuda muito. A sede aperta.
O relógio embutido no pulso começa a estremecer. Está na hora. Deveria estar nesse momento a sentar-se e a estender as mãos para o equipamento.
É a terceira vez esta semana.
Corre.
Minuto e meio depois, de novo respirando com força e suando copiosamente, Klaus senta-se no seu cubículo: um monitor, um teclado, um equipamento de RV e uma cadeira. A paisagem de todos os dias durante dez horas. Mas hoje, preso no teclado, entre duas filas de teclas, está uma novidade. Um cartão de plástico com um garatujo:
"Miragata, favor aprezentesse no xkritório nº 11, logo de manhã"
Klaus relê o recado. Não compreendeu à primeira (favor quê?), mas o jogo de equivalências fonéticas que é obrigado a fazer finalmente dá os seus frutos.
Fica ainda uns minutos sentado, a recuperar completamente o fôlego, à espera que o seu metabolismo deixe de produzir calor em excesso e que as suas glândulas sudoríparas se aquietem. Não é boa ideia chegar ao escritório 11 encharcado. No 11, quanto mais fresco e descontraído se entrar, melhor é.
O ideal, claro, seria não entrar nunca no 11.
Mas a vida é bela.
Pouco depois, Klaus passa os dedos pelos cabelos, alarga a gola da camisa e abana-a, tentando fazer fugir o cheiro e os outros sinais do suor. Mas está muito calor, suar um pouco é natural, e Klaus levanta-se.
O escritório 11 é uma sala ampla, sem janelas, com um écran gigantesco a cobrir duas paredes, parte dele ocupado com uma vista aérea da cidade, a outra parte fragmentada em centenas de imagens individuais de cubículos individuais. Uma mesa enorme, em forma de L, ocupa o centro da sala, e sentado por trás dela, o Shiva parece resumir-se a uma careca enquanto digita qualquer coisa no teclado.
Klaus fica à espera, à soleira, que o outro resolva reparar nele.
Demora.
Mas enfim acontece:
— Ah, Miragata, estava à tua espera. Senta-te, senta-te. É só um pedaço.
Klaus senta-se e espera, em silêncio. O 11 é normalmente um sítio silencioso. Um sítio onde se ouve e não se fala.
O Shiva finalmente termina o que quer que estava a fazer e ergue os olhinhos de rato para Klaus:
— Miragata, imagino que não sabes porque é que te chamámos para aqui.
A língua que este gajo fala é pavorosa, pensa Klaus, e responde-lhe com um sorriso, dúvida e sabedoria de vida ao mesmo tempo, e com um gesto vago com a mão. Tudo em silêncio.
Na vida bela o silêncio é de ouro.
— Óptimo, óptimo — diz o outro, também ele com um sorriso nos lábios cobertos de feridas. — Miragata, és um bom elemento, mesmo de chegares atrasado ao trabalho muitas vezes.
Klaus esboça um gesto vago de desculpas.
— Eu sei, eu sei — atalha Shiva. — Os transportes são maus e nunca chegam a horas. Eu sei. Eu disse que és um bom elemento. Mas a verdade é que a empresa está em reestruturação — continua, de olhos baixos, como se estivesse a ler estas frases de um guião. — O novo software veio diminuir a necessidade de controladores, e estamos a reavaliar a nossa necessidade de pessoal. Além disso, todos os nossos concorrentes trabalham exclusivamente em teletrabalho. Nós escolhemos o método antigo por uma série de razões que não vêm ao caso, mas a administração acha agora que foi uma má ideia e quer mudar tudo. Portanto, estamos a ver alternativas.
Shiva pára de falar, ergue os olhos para Klaus e fica à espera. Este acena mas mantém-se em silêncio.
— Que dizias de ires trabalhar para casa? A companhia empresta-te o teu equipamento e tu fazes todo o teu trabalho em casa, à tua vontade, sem transportes nem chatices.
Era uma pergunta directa. A esta Klaus tinha de responder.
— E qual é a alternativa?
Shiva encolhe os ombros e abre os braços e volta a olhar para baixo:
— Acho que não ias gostar da alternativa. Digo-te só que estas instalações vão fechar para obras e depois serão vendidas para cobrir os custos das viagens deste ano da administração. Segundo os relatórios de desempenho, a representação da empresa nos congressos de Saaremaa, San Andrés e Tokelau saiu cara este ano, e as mais-valias lá obtidas não compensaram. — Shiva volta a erguer os olhos. Atrás deles vinha um sorriso diagonal, com uma ponta de desprezo — É o que acontece quando se leva a administração toda para as ilhas do Pacífico, mais secretariado e electroassistentes, mas pronto...
Klaus fica calado. O teste de lealdade era demasiado óbvio.
— Muito bem, muito bem. Adiante. Como vais passar a não estares presente aqui no escritório, o teu salário vai passar a ser calculado na base dos objectivos, como é natural. Se trabalhares bem, até pode ser que ganhes um bocado mais do que tens ganhado antes.
— Quanto?
A testa do outro franze-se com a pergunta directa. Mas diz quanto.
Klaus faz contas de cabeça. Sem contar com o que ia gastar a mais em energia, água e alimentação, ia ter de passar a trabalhar quase onze horas por dia para ganhar o mesmo.
Negócio de merda.
— Tenho tempo para pensar na proposta?
Shiva volta a baixar a cabeça:
— A administração quer resolver este assunto tão depressa quanto possível, de modo que preferíamos uma resposta já. Até porque isto, no fundo, é uma promoção. Quem não gostaria de ser dono do seu próprio tempo?
Então ele é isso. Querem que não haja tempo para pensar, pesar prós e contras, fazer contas, para que os empregados mordam a isca de serem donos de si mesmos e não se apercebam de que, para a empresa e para eles próprios, o negócio vai muito para além disso.
A vida é dura nas ruas. Mas quando se vive em escravatura voluntária no limiar da sobrevivência qualquer redução nos rendimentos pode pesar mais do que o medo.
Por outro lado, há o medo. Da mudança, do desconhecido, da violência, da fome. Da morte. Da morte dolorosa.
Klaus volta a fazer contas de cabeça, tentando, desta vez, contar com todos os factores.
Sim, é mesmo um negócio de merda.
Mas tem de aceitá-lo. Antes algum rendimento que nenhum, antes comer uma vez por dia papel temperado com plástico em pó do que ter de...
Até pensar nisso é difícil. Parece que o cérebro se recusa, como se alucinasse com flores onde só há lixo, como se bloqueasse o que é desagradável, o que põe em causa a esperança, o que dói.
Tem de ser. Pelo menos durante algum tempo. Pelo menos até arranjar qualquer outra coisa. Pelo menos...
Shiva interrompe-o:
— Então? Estou à espera. Não tenho todo o dia para falar contigo.
Que se lixe, pensa Klaus.
A vida é bela.
— Diz à tua administração, Shiva — diz, enquanto se levanta — que pode enfiar a promoção no olho do cu. De preferência num congresso qualquer no Taiti.
E sai, fechando com cuidado a porta atrás de si.

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