domingo, 20 de setembro de 2015

Lido: Manga Verde e o Sal Também

Manga Verde e o Sal Também é uma historinha de Ondjaki sobre vingança. Muito longe de ser das histórias mais interessantes deste livro, conta como, um belo dia, os miúdos da família do protagonista decidem fazer um festim de manga verde com sal à revelia dos adultos, para o que já tinham apanhado as mangas da árvore e alguém teria de ir surripiar o sal. Mas um aviso bem intencionado é recebido com uma resposta torta, os adultos chegam e põem-se a fazer perguntas e o pequeno Ndalu abre o saco das respostas.

Esta é capaz de ter sido a historieta que menos me agradou até ao momento.

Contos anteriores deste livro:

sábado, 19 de setembro de 2015

Lido: O Gato Negro

O Gato Negro (bibliografia) é mais um conto de terror de Edgar Allan Poe que, de tão reconhecido, encontra lugar na maioria das compilações de contos do autor americano. Portanto já o tinha lido e falado sobre ele, claro. Alertando para a existência de revelações sobre o enredo, indico que essa opinião está aqui, sob um título levemente diferente do desta.

O leitor que sou hoje é menos entusiasta do que o Jorge de há cinco anos, embora continue a reconhecer ao conto toda a qualidade e relevância. É que este conto, para funcionar em pleno, precisa do lento desvendar da história, de que esta ainda não seja conhecida por quem lê. E cinco anos não foram suficientes para me roubar a memória do conto, o que teve como consequência que esta leitura tenha sido acompanhada por bastante menos interesse no que chegaria ao virar da página. Não que o conto deixe de funcionar em releitura, como acontece por vezes. Mas não funciona por inteiro. Falta-lhe a emoção da descoberta.

Contos anteriores deste livro:

Lido: The Secret Life of Allen Lewis

The Secret Life of Allen Lewis (primeiro de um conjunto de quatro contos que constituem excerto de uma coletânea) é um continho de Jeff VanderMeer que relata, num muito borgesiano estilo pseudofactual, aquilo que o título indica: a vida secreta de Allen Lewis, sacerdote episcopaliano. Não sou grande apreciador dos pseudofactuais, que têm os seus fãs e os seus cultores (e VanderMeer é um dos modernos; Rhys Hughes é outro) e que são indubitavelmente uma forma inteiramente válida de fazer literatura. Eu é que não gosto muito. Dito isto, este texto de pouco mais de uma página está muito bem escrito e é divertido e vagamente fantástico, o que, na minha mundovisão literária, são logo três motivos de interesse.

Texto anterior deste livro:

Lido: Aquele Sol Poente

Aquele Sol Poente, de William Faulkner, é um belíssimo conto, que narra a história de Nancy, uma negra no muito racista Sul dos Estados Unidos numa época em que, embora já tivesse deixado para as páginas de história os anos da escravatura, continuava a fazer coincidir negro com miserável e empregado do patrão branco. Isto, de resto, continua a ser verdade hoje em dia, embora não de forma tão absoluta como na época retratada nesta história, o início do século XX.

Nancy é lavadeira de uma família branca numa cidade chamada Jefferson (há várias no Sul dos EUA, mas provavelmente será a da Louisiana, pois é a mais próxima do espaço geográfico em que Faulkner viveu, embora pouco passe de uma vila. Ou então é ficcional), posta a fazer outros serviços porque a cozinheira da família (também negra, claro) adoeceu. Mas Nancy tem uma vida complicada, dificultada ainda mais por um homem que a enlouquece de terror apesar de ter desaparecido. Ou talvez precisamente porque desapareceu, deixando atrás de si ameaças por concretizar.

É esse terror que serve de esteio à história, esse terror e as interações entre ela e a família. O que torna o conto especial é ser contado sob o ponto de vista dos filhos da família branca, que pouco ou nada compreendem do que se está a passar. Vemos tudo distorcido pelos olhos deles, como quem olha o mundo pelo fundo de uma garrafa de inocência, e é só isso que torna suportável a indiferença com que quase toda a gente reage aos terrores da mulher, por muitos vistos como simples "coisas de negros". E também é isso que acentua o terror, através do contraste com as brincadeiras normalmente alegres dos miúdos.

É nestas pequenas-grandes opções que se distinguem os grandes escritores dos que não chegam lá. Faulkner foi um grande escritor; basta este conto para o compreender.

Conto anterior deste livro:

Lido: Ladislau Ventura

Ladislau Ventura é outro continho de uma página de Mário de Sá-Carneiro que, à semelhança do anterior, também tem muito de estudo de personagem. Mas este é mais do que isso. Não só conta uma história, os comos e os porquês de Ladislau Ventura, escritor titubeante, desejoso de subir à ribalta literária, mas impedido de o fazer por um sistema que lhe diz que não, acabar por pôr termo à vida, como o faz de uma forma carregadinha de uma ironia corrosiva que tem como alvo o modo como funcionava o meio literário daquele tempo (o conto é de 1908).

Mas que digo? Daquele tempo? Não. O modo como funciona o meio artístico ainda hoje; quantas vezes vimos já, na literatura, na música ou em outras formas artísticas, que é a morte a trazer um sucesso que a vida tão frequentemente renega? É esse o tema deste conto, que também é um aviso precoce das decisões que o autor viria a tomar alguns anos mais tarde.

Se achei Maria Augusta medíocre, neste conto encontrei muitos mais motivos de interesse. Melhor até que o primeiro.

Contos anteriores deste livro:

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Lido: O Ovo de Cristal

O Ovo de Cristal (bibliografia) é um conto de ficção científica de H. G. Wells, que constitui uma espécie de prequela do seu célebre romance A Guerra dos Mundos. Tudo gira em volta de um estranho cristal em forma de ovo, que um vendedor de antiguidades e quinquilharias teria para vender, barato, mas de repente passa a resistir a fazê-lo, subindo exorbitantemente o preço por motivos que a princípio ninguém consegue descortinar. Com tudo muito envolto em secretismo, o leitor (mas não a maior parte das pessoas que o rodeiam) vai sendo informado a pouco e pouco de que a razão da mudança de atitude para com o objeto foi o comerciante ter reparado que dele provinha, sob certas circunstâncias, uma estranha luminosidade. O conto relata-nos a investigação, levada a cabo pelo comerciante e por um conhecido seu, jovem homem de ciência, que vai acabar por revelar um outro mundo, inteiramente desconhecido e habitado por criaturas bizarras, embora de certa forma semelhantes ao Homem. Já imaginam que mundo é esse, claro: Marte.

O conto é bom, mas melhor se torna para quem leu antes o romance marciano de Wells e consegue fazer a ligação entre uma obra e a outra, pois assim o conto ganha um grau de ameaça, um tom agoirento, que, sozinho, não tem. Muito interessante mesmo.

Contos anteriores deste livro:

Lido: Os Quedes Vermelhos da Tchi

Os Quedes Vermelhos da Tchi é mais um continho de infância de Ondjaki, e este é francamente bom. Conta, da forma suave e ternurenta que já vai sendo habitual, a participação do seu jovem protagonista nas celebrações oficiais do 1º de Maio, numa Luanda muito mergulhada nos rituais do bloco socialista. Mas, num segundo nível de leitura, é também uma muito subtil tomada de posição política, que se serve dos sapatos (os quedes são uma espécie de sapato) para fazer alusão ao clima político da época, pois o jovem vai, feliz e contente, participar na festa levando os sapatos vermelhos da irmã, apesar de estes lhe estarem apertados e lhe magoarem os pés. A sublinhar essa leitura, o conto fecha com um parágrafo de três palavras: "Antigamente, eu ia." Só isto.

Esta é uma historinha mais complexa que a maioria das restantes, e por isso mesmo, parece-me, melhor.

Contos anteriores deste livro:

Lido: O Escaravelho de Ouro

O Escaravelho de Ouro (bibliografia), uma noveleta, é das mais conhecidas histórias de Edgar Allan Poe e por isso é sistematicamente incluída nas compilações de contos deste autor americano. Por conseguinte, já a tinha lido, e até mais que uma vez. A última leitura foi há cinco anos e desta vez não tenho mesmo nada de significativo a acrescentar à opinião que emiti então. É aquilo, sem mais. Venha a próxima.

Contos anteriores deste livro:

Lido: Coincidências

Coincidências (bibliografia) é uma noveleta retrofuturista de Pedro Afonso, protagonizada por um escritor de romances baratos que se vê mergulhado numa série de acontecimentos apocalípticos que, vindos aparentemente do nada (embora muitas fossem os avisos espalhados pelos outros contos desta antologia), abalam profundamente a capital portuguesa ao baterem as badaladas da passagem de 1999 para 2000. A noveleta está bastante bem escrita, e isso é o que tem de melhor. Por outro lado, deixa tantas pontas soltas ao seguir o que vai acontecendo ao protagonista ao longo de dois dias, é tão incongruente com a sua lógica interna, que não funciona bem enquanto texto autónomo. Falta-me ainda a leitura da derradeira história da antologia para o confirmar plenamente, portanto isto por enquanto é apenas suspeita, mas a ideia que me fica é que este texto de Pedro Afonso se destina sobretudo a fazer uma espécie de introdução para o que se lhe segue. Adiante veremos se a faz bem, mas uma coisa é certa: sem reformular intensamente esta sua história, não creio que Afonso venha a ter grande sucesso em autonomizá-la, por exemplo através da sua inclusão num livro de contos seu, ao contrário do que acontece com a maioria das demais que, deixando embora clara a sua adesão ao universo compartilhado por todas, também funcionam bem como textos isolados.

Isto, note-se, não é defeito, caso tenha resultado de uma opção consciente do autor e da organização da antologia, que pretende claramente usar as várias peças de que se compõe para contar uma só história. É feitio. Analisando esta história como noveleta autónoma, não é me possível achá-la boa, mas se a vir como parte de um todo até talvez seja; falta-me a leitura da história que se segue para o saber com certeza.

Contos anteriores deste livro:

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Lido: Putois

Putois é um muito irónico conto de Anatole France sobre a forma como as histórias, por mais mitológica — ou, por outras palavras, mentirosa — que a sua origem possa ser, mostram uma curiosa tendência para se transformarem em realidade. De certa forma. Putois é um homem que um belo dia alguém inventou para se ver livre de um importuno e que, como quem conta um conto acrescenta um ponto, depressa ganhou não só nome mas aspeto físico, comportamento e personalidade. De vadio, trabalhador eventual de pouca confiança, o bom do inexistente Putois depressa passa a ladrão, perseguido pela polícia em toda a região.

O conto não só é bastante divertido, como também tem uma profundidade considerável, mergulhando bem fundo na natureza maleável da memória, na psicologia, tanto individual como coletiva, e na origem e poder das religiões. Uma bela surpresa.

Lido: Shriek: An Afterward

Shriek: An Afterward é um romance de fantasia de Jeff VanderMeer, parte da sua série Ambergris. Neste livrinho, no entanto (em que finalmente peguei depois de o deixar uma década abandonado na pilha), é apenas um excerto, e bastante curto — meras 7 páginas que contam uma expedição de um irmão e uma irmã por uma floresta, em busca de um lugar que nenhum dos dois sabe ao certo se se encontra lá. Mas são sete páginas muito bem escolhidas, pois, ao mesmo tempo que mostram uma prosa de grande qualidade, cheia de originalidade, humor e personagens interessantes, despertam com grande eficácia a curiosidade pelo livro completo. Sim, fiquei curioso. O que indica que o excerto cumpriu plenamente o objetivo.

Lido: Maria Augusta

Maria Augusta é um pequeno conto de juventude de Mário de Sá-Carneiro que esboça a história de Maria Augusta, rapariga pobre mas bonita, que se terá deixado encantar pelos homens e pela vida sem trabalhar (pelo menos num trabalho assalariado socialmente aceite) que os homens lhe puderam proporcionar. Entre o conto e o mero estudo de personagem, este texto, com mera página e meia de extensão, pareceu-me significativamente pior que o conto de estreia, em tudo menos, talvez, na qualidade da prosa. Um textinho bastante medíocre, este.

Conto anterior deste livro:

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Lido: 2014 Campbellian Anthology - A. R. Kahler

A. R. Kahler é mais um autor presente na antologia com um excerto de romance. O dele chama-se

The Immortal Circus. É uma história de fantasia urbana, aparentemente, ou talvez de horror, centrada numa rapariga que se emprega num circo bastante peculiar. Um circo onde, nas palavras da sua chefe, todos os executantes têm... excentricidades. Esse facto constitui parte significativa do enredo, claro, mas não se limita a isso, pois quase ao mesmo tempo que a protagonista começa a trabalhar, acontece no circo um homicídio.

Embora o excerto mostre uma prosa agradável e um ambiente bem caracterizado, com boas personagens, ao lê-lo não me saía da cabeça o ameaçador circo da série televisiva Heroes. Apesar de eu não ter acompanhado fielmente esta série, e por isso ter de reconhecer que posso estar a laborar em erro, achei o ambiente do excerto tão semelhante ao do "Sullivan Bros., Carnival" que dificilmente, parece-me, não terá havido influências. Seja como for, também neste caso muito depende da direção em que o autor decida fazer evoluir o enredo. O livro tem potencial para ser bom, e a relativa falta de originalidade do ambiente não implica necessariamente uma falta de originalidade ou de interesse do livro como um todo. Por outro lado, essas faltas podem acontecer; o excerto deixa-as em aberto. Este é, portanto, mais um caso em que o excerto me deixa na dúvida, sem me convencer.

Lido: A História do Falecido Mr. Elvesham

A História do Falecido Mr. Elvesham (bibliografia) é mais um conto de H. G. Wells, no qual os pós, os misteriosos preparados e soluções, têm um papel fulcral. Um jovem, no fulgor da vida mas pobre, é certo dia abordado por um misterioso velho que, apesar de o desconhecer por completo, lhe faz uma proposta irrecusável: transformá-lo em seu herdeiro, mas só no caso de ele cumprir uma série de requisitos, para o que o velho exige que lhe permita investigar-lhe a vida e o estado de saúde. O jovem aceita, muito menos desconfiado do que seria verosímil, pelo menos nesta nossa sociedade contemporânea cheia de burlas de todos os tipos. E passa os testes que o velho impõe, mesmo sem saber ao certo quais são. Depois, deixa-se drogar, e acontece-lhe algo que já era bastante previsível que acontecesse, mas no conto se pretende como surpresa.

É essa a grande falha desta história: a previsibilidade de um desfecho que o enredo tenta sem sucesso ocultar até perto do fim. Talvez seja o leitor razoavelmente sofisticado do século XXI, com um século e tal de literatura fantástica a alterar-lhe a perspetiva, que olha com olhos experientes uma história novecentista e pioneira que os contemporâneos teriam, talvez, lido com inocência, mas o facto é que, após a apresentação inicial da situação, pouco neste texto me surpreendeu nem que fosse um pouco. Wells é aqui igual a si próprio no que toca à forma de escrever, o que de imediato impede o conto de ser mau, mas também não me parece que seja lá muito bom. Está entre o mediano e o bom, julgo eu. Em todo o caso, lê-se com prazer. Julgo ser necessário dizer isto, não vá o que digo acima levar alguém a julgar o conto aborrecido. Não é. Previsível, sim, aborrecido, não.

Contos anteriores deste livro:

Lido: 2014 Campbellian Anthology - Sharon Joss

Sharon Joss marca presença na antologia com um só conto, que tem o romântico título de

Love in the Time of Dust and Venom. Trata-se de uma história de ficção científica com uma premissa muito interessante: num futuro não muito distante mas em que a tecnologia para as viagens no tempo já foi desenvolvida, um velho japonês emigrado nos Estados Unidos deseja viajar para o futuro. Porquê? Porque a sua família foi expulsa da sua aldeia pelo desastre de Fukushima e ficou impedida de lá regressar, e ele acha que o seu espírito não terá paz a menos que morra na terra dos antepassados, onde repousa a família. As coisas, no entanto, não correm inteiramente como o velhote pretende, embora este se mantenha inabalável na sua determinação. A interseção que este conto mostra entre futurismo e cultura japonesa ancestral está muito interessante, e todo o conto está francamente bem conseguido. Aprovado.

Lido: A Piscina do Tio Victor

A Piscina do Tio Victor, mais um dos continhos de infância de Ondjaki, relata uma fascinação de criança, daquelas que todos os miúdos têm. No caso, é o Tio Victor, um tio que raramente se deixava ver por habitar, não em Luanda, mas em Benguela, mas que sempre que vinha de visita trazia histórias mirabolantes para contar. No caso, a história era sobre uma piscina que teria lá na sua casa longínqua, cheia não de água como as piscinas normais, mas de coca-cola. Além de estar tão bem escrito como os anteriores (e isso é o que alguns têm de melhor) este continho, sobre a magia das histórias bem contadas, por mais inacreditáveis que elas sejam, é mesmo muito divertido. Dos melhores deste livro, pelo menos até ao momento.

Contos anteriores deste livro:

terça-feira, 15 de setembro de 2015

Lido: 2014 Campbellian Anthology - Paul Antony Jones

Paul Antony Jones traz-nos de volta aos excertos de romances, intitulando-se o dele

Extinction Point. Trata-se de uma história-catástrofe, o que é basicamente o mesmo que dizer uma história de sobrevivência, sobre um mundo que se vê de súbito assolado por uma estranha precipitação vermelha que causa em quem com ela contacta uma súbita doença hemorrágica que leva a uma morte inevitável em poucas horas. Como outras histórias baseadas em epidemias avassaladoras, também esta parece posicionar-se algures entre a ficção científica e o horror. Não sei como Jones consegue sustentar a sua história até ao fim, naturalmente, mas o excerto, razoavelmente longo, é promissor. As personagens estão sólidas, os ambientes também e a prosa é competente. No entanto, em histórias deste tipo quase tudo depende do enredo, e no excerto só temos direito a apresentações: de personagens, de situações, etc. Por conseguinte, o livro completo tanto pode ser bastante bom como bastante mau, consoante Jones consiga lidar melhor ou pior com a situação que criou.

Lido: O Coração Revelador

O Coração Revelador (bibliografia) é um conto curto de Edgar Allan Poe que consiste basicamente de um depoimento. Algo híbrido entre o policial e o horror, o conto, escrito em primeira pessoa, conta o modo e o motivo (ou a ausência de) como e porque o narrador assassinou um homem que vivia com ele e o que depois fez ao cadáver. À evidente loucura dos atos, o narrador contrapõe veementes afirmações de sanidade, procurando por todos os meios convencer dela o leitor.

Este conto pertence a uma segunda linha dos contos de Poe. Não é dos mais (re)conhecidos nem dos mais seminais, mas também está longe de ser dos mais obscuros. É geralmente visto como um dos seus melhores contos, julgo que principalmente devido ao uso que Poe nele faz de um narrador não confiável. Mas eu confesso que não gosto muito do conto, embora reconheça que essa técnica literária do narrador não confiável está, de facto, muito bem usada nele. O problema é que me parece que o conto se resume a ela, que pouco passa de exercício de estilo. E isso não me basta. Peculiaridades de gosto? Provavelmente, sim.

Contos anteriores deste livro:

Lido: 2014 Campbellian Anthology - José Iriarte

José Iriarte está presente nesta antologia com dois textos, um conto e uma noveleta.

Yuca and Dominoes, o conto, é uma história ambientada no seio da comunidade cubano-americana de Miami, e centra-se num edifício, a Casa Varadero, e nas pessoas que o habitam, exilados cubanos e seus descendentes. Mas a Casa Varadero não é um edifício qualquer. É um edifício mágico, na realidade ou pelo menos em fama, que não permite facilmente que os seus habitantes dele saiam e vão viver vidas plenas em algum outro lugar. Quem sai, fica amaldiçoado, diz-se, e essa maldição é parte integrante também da vida dos que ficam. Um conto muito bom, com personagens muito palpáveis, muito tridimensionais, e uma ambientação também muito bem conseguida.

Cabrón, a noveleta, também é um conto com base na comunidade cubano-americana, mas este ambienta-se num colégio interno católico em Porto Rico no início da década de 1960. Cristina, a protagonista, é filha de exilados, ricos e ferozmente contrarrevolucionários, e assim que chega ao colégio chama a atenção do Hermano Leopoldo, padre conhecido entre as outras miúdas como El Jorobado, o Retorcido. Não propriamente por ser coxo e cordunda, que também era. Mas por ser pedófilo. E o que se segue é mais uma boa história, cheia de personagens muito bem construídas e de ambientes bem palpáveis, revolvendo esta em torno de magia negra, abuso e vingança.

Ajuizando por estes dois exemplos, Iriarte é um autor com muito interesse, mesmo sendo, aparentemente, tão conservador como seria de esperar do membro da comunidade cubana nos EUA que parece ser.

Lido: Quem Semeia no Tejo

Quem Semeia no Tejo (bibliografia) é um conto de Pedro G. P. Martins que acompanha um investigador racionalista, exterior a um mainstream que, na sociedade altamente eletrificada que este universo partilhado apresenta, é dominado por espiritualistas, gente que investiga a sério a existência e comportamento dos fantasmas, cujo surgimento, suspeita-se, está de alguma forma ligado às omnipresentes Torres Tesla. Muito ancorado às ficções de João Barreiros que servem de sustentáculo à antologia (o que nem sempre acontece), este conto mostra o momento em que o ceticismo do protagonista é posto em causa, após ser chamado a consultar o rei, que parece ter também caído vítima de uma estranha epidemia que assola a capital. A prosa, muito burilada, é agradável, e o conto é bom, sofrendo apenas de uma certa fragilidade em termos de ritmo narrativo. Torna-se por vezes um pouco arrastado, creio que em parte porque Martins procura descrever ambientes e atmosferas que talvez fizesse sentido descrever tão extensamente se o conto dele surgisse isolado dos demais, mas que no contexto desta antologia, depois de dezena e meia de outras histórias ambientadas da mesma forma, já não faz. Mas apesar disso, repito, achei o conto bom. Não tanto como alguns dos outros, mas bom.

Contos anteriores deste livro:

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Lido: 2014 Campbellian Anthology - Jess Hyslop

Jess Hyslop está presente nesta antologia com dois contos.

The Sandman's Dreams é um continho de fantasia, romântico e poético (inclusivamente na prosa), sobre uma mulher que, já adulta, é visitada pelo Sandman, criatura do folclore centro e norte-europeu que, segundo as lendas, traz os sonhos às crianças. Parecida ao nosso João Pestana, mas não exatamente igual. O insólito de uma adulta ainda ser visitada pelo Sandman é explicado de forma simples: também o Sandman tem os seus próprios sonhos. Românticos. Bonito, mas não foi conto que me enchesse as medidas.

Triolet é outro conto de fantasia, este mais longo, escrito numa prosa cheia de poesia, que gira em volta de uma velhota chamada Srª. Entwistle que cultiva poemas no jardim. Sim. A ideia fulcral do conto é essa: de algum modo mágico, a velhota cultiva plantas capazes de, quando afagadas, recitar poemas. Ou melhor, um poema específico de cada planta. À volta desta ideia, Hyslop tece uma história bastante interessante de inveja, amor e desamor, em que relações se fazem e desfazem por causa dos seus poemas, dado eles realçarem as qualidades e também os defeitos, as forças e as fraquezas de personagens e relações. Não só a ideia é boa, como a construção do conto também o é. Nada de extraordinário, mas bom.

Lido: O Caixão

O Caixão é um continho muito curto de Mário de Sá-Carneiro que, também ele, se serve da técnica da história-de-ouvir-contar para narrar como um rapaz vê da varanda de sua casa lisboeta um par de homens a transportar um caixão e se deixa impressionar ao ponto de se pôr a segui-los, imaginando os enredos mais melodramáticos. Sendo o primeiro conto publicado por Sá-Carneiro, aos dezoito anos, não impressiona por aí além, embora mostre promessa. E mostra também outras coisas: uma morbidez precoce, apesar de cortada pela ironia do final, e uma aproximação aos temas fantásticos, se bem que ainda não levada até ao fim. Sim, o escritor deste conto era um jovem, mas já era Sá-Carneiro.

Lido: 2014 Campbellian Anthology - M. K. Hutchins

M. K. Hutchins está presente nesta antologia com um só conto, intitulado

Blank Faces. Trata-se de um conto inspirado pelas histórias sobre a vida no velho Oeste americano da época da corrida ao ouro, mas com algumas diferenças. Para começar, o ambiente tem algo de steampunk, pelo menos nos membros mecânicos que algumas personagens ostentam. E depois há nele algo de sobrenatural, pois uma das coisas de valor que os prospetores desenterram é ossos, que no entanto não se comportam como simples ossos e em vez disso mostram uma certa tendência a contaminar quem os possui com as qualidades e sobretudo os defeitos do respetivo morto. Uma história muito mestiça, muito híbrida, que no entanto se mostrou também bastante esquecível. Não é má, mas não me causou qualquer impacto minimamente durarouro.

Lido: O Caso Plattner

O Caso Plattner (bibliografia) é um conto de H. G. Wells, de uma espécie de ficção científica bastante ectoplásmica, que tem umas ressonâncias muito interessantes com histórias bem mais recentes e baseadas muito mais solidamente naquilo que se sabe sobre as realidades físicas do mundo, o que não deixa de ser notável tendo em conta que esta história de Wells data ainda do século XIX.

Plattner é um professor cuja absoluta incompetência nunca o impediu de ensinar aos seus alunos o pouco que julgava saber, mas que, por outro lado, não deixava de ser zeloso o suficiente para procurar remediar um pouco a sua falta de conhecimentos nos domínios em que a ignorância era maior. Nomeadamente em química. E é aí que a porca torce o rabo porque, ao realizar uma experiência com um misterioso pó, dá-se uma explosão e o bom do Plattner simplesmente desaparece.

Passados dias reaparece, em circunstâncias comprometedoras, com uma história para contar. Esta, que volta a cair no velho estratagema vitoriano da história fantástica que alguém conta e o narrador repete sem com ela se comprometer, é, no essencial, uma história de universos paralelos, ainda que tenha sido concebida com base nas histórias de fantasmas. Wells faz neste conto uma espécie de naturalização do fenómeno fantasmático, arrancando-o (embora não por completo e de uma forma francamente ambígua) aos domínios do sobrenatural através do mundo paralelo que cria e sobretudo do pó que lhe serve para transportar o protagonista de um mundo para o outro. O que, por outro lado, também faz lembrar as experiências obtidas através do uso de certas drogas.

O conto é muito curioso, fortemente irónico, e bem mais complexo do que pode parecer à primeira vista. É conto com muito que dissecar.

Conto anterior deste livro:

sábado, 12 de setembro de 2015

Lido: O Último Carnaval da Vitória

O Último Carnaval da Vitória é mais uma das historinhas de infância de Ondjaki. Esta conta, de uma forma como que desconjuntada, uma série de sucedidos num determinado dia, em que Ondjaki parece querer demorar-se mais em afagos a esta ou aquela personagem do que propriamente no conto da história propriamente dito. Embora seja curioso ficar a saber o que rodeava o dito Carnaval da Vitória (uma festa que comemoraria o dia em que as últimas tropas sul-africanas saíram de território angolano), e apesar da doçura do texto, esta foi mais uma historinha que me soube a pouco.

Contos anteriores deste livro:

Lido: 2014 Campbellian Anthology - Alexis A. Hunter

Alexis A. Hunter é outra autora que está presente na antologia com dois contos.

Midnight Hour é uma romântica história de amor fantasmagórico entre uma morta, fantasma, que como que assombra a praia onde foi assassinada, regressando ao estado corpóreo durante um breve período, à uma da manhã, e um homem assolado há anos por um sentimento de culpa. É um bom conto, muito feminino, bastante bem escrito e bem concebido. Há cliché na situação e na resolução, não se encontra aqui nada de particularmente original ou inesperado, mas a autora consegue fazer com que a história pegue na mão do leitor e o leve pela praia fora.

A Reason to Linger é um continho muito curto e muito esquecível sobre uma alma (penada?) que mantém uma espécie de bar, imagino que no limbo, onde os fantasmas podem deixar-se estar antes de atravessarem a porta que os levará definitivamente para o outro mundo. Farto, o dono do bar está a pensar desistir, até que lhe aparece um novo fantasminha. É um conto sentimental que, embora não deixe de estar bem escrito, me pareceu bastante medíocre.

Lido: O Poço e o Pêndulo

O Poço e o Pêndulo (bibliografia) é um magnífico (quase magnífico, melhor dizendo) conto de horror de Edgar Allan Poe que... hm... que eu já tinha lido com toda a certeza. Ora deixa lá ver se a leitura prévia deu azo opinião.

Deu, claro que deu. Está aqui. E concordo integralmente com o tipo que a escreveu, o Jorge Candeias de há cinco anos: a única parte insatisfatória deste conto é o fim. Acrescento apenas uma coisa que me ocorreu durante esta leitura mas, aparentemente, não durante a de 2010: não é só em filmes de horror e de suspense que se encontram sucedâneos mais ou menos diretos deste conto; é também em jogos de computador. Quando agora li o conto ocorreu-me que tanto o pêndulo como o poço têm tudo a ver com as armadilhas mortais que se encontram em jogos tão antigos como o Prince of Persia, entre outros.

Este conto deixou uma gigantesca pegada em várias formas de arte e entretenimento. Basta isso para ser obrigatório tirar-se-lhe o chapéu.

Contos anteriores deste livro:

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Lido: 2014 Campbellian Anthology - Louise Hughes

Louise Hughes consta da antologia com um só texto, um conto intitulado...

Over the Waves. É um conto de ficção científica com algum interesse, mas mais em termos de ambientação e de construção de personagens do que propriamente no que toca ao enredo, à história contada. Ambientado num futuro razoavelmente próximo em que já se sentem com toda a força as consequências do aquecimento global, é protagonizado por uma jovem que ganha a vida a transportar clientes e mercadorias, no seu barco, da periferia onde vive até uma cidade semissubmersa. A história é suave e de tal forma inconclusiva que este conto poderia perfeitamente ser um capítulo de um romance, o que para alguns leitores pode ser um problema. Dá um pouco a sensação de "OK, mas e daí?" Por outro lado, o texto é bom e tanto as personagens como a ambientação são muito credíveis. Não sendo dos melhores contos aqui presentes, também não é dos piores.

Lido: Contos Crime

Contos Crime é mais uma das pequenas antologias que saíram há um par de anos com o JN e o DN, esta construída em volta de crimes. À primeira vista dir-se-ia que se trata de um livro policial, o que é reforçado pela minissinopse que vem na capa ("o desvendar de segredos e delitos por grandes mestres da ficção"). Mas lendo verifica-se que essa é ideia em grande medida errada. Pouco há aqui do "desvendar" típido daquilo que reconhecemos como literatura policial. Um conto, o que mais se aproxima disso, é um whodunnit que não respeita as regras do género; outro é uma sátira à sociedade que recorre a um trio de simpáticos trapaceiros; outro é uma história de terror psicológico.

Para leitores de policiais que procurariam aqui o que os atrai no género, imagino que este livrinho seja uma deceção. Mas eu, apesar de ter lido muitos policiais há uns anos largos, não sou grande fã do género e, talvez por isso, gostei bastante dele. Talvez por isso e porque os contos são em geral bastante bons enquanto contos, independentemente das regras e das expetativas de cada um. Numa coleção que oscila entre o bom e o meramente aceitável, este livro inclui-se no grupo dos melhores. Para mim, foi uma boa surpresa; não esperava gostar tanto dele.

Quem quiser saber o que achei sobre cada um dos contos, basta seguir os links:
Este livro foi comprado.

terça-feira, 1 de setembro de 2015

Lido: A República Nunca Existiu

A República Nunca Existiu (bibliografia) é uma antologia que foi apresentada com pompa, circunstância e retumbantes trombetas como trabalho inaugural, em Portugal, de um subgénero das literaturas fantásticas que já existia há décadas lá por fora, tanto nos lugares do costume como no próprio Brasil a partir dos trabalhos de Gerson Lodi-Ribeiro, entre outros. Para isso escolheu-se um ponto de divergência muito concreto na nossa história: 1910 e a implantação da República que, na proposta antológica, não teria acontecido.

O resultado é extremamente irregular, juntando-se neste volume alguns, poucos, bons contos a textos absolutamente lamentáveis, incluindo (ou talvez sobretudo, porque tinha pergaminhos e portanto obrigação para fazer muitíssimo melhor) o do autor mais prestigiado dos 14, João Aguiar, e a textos de autores que depressa se torna bastante óbvio que desconhecem o que é e como se faz história alternativa, apresentando contos que mal se adequam à proposta ou não se lhe adequam de todo. Alguns destes contos até têm interesse intrínseco, mas numa antologia temática pretende-se que os autores respeitem o tema, caso contrário a antologia deixa de ser temática. A inclusão, numa antologia temática, de contos que desrespeitam o tema piora o conjunto. Se isto é verdade quando o conto desrespeitador é o melhor de todos, como aconteceu com Os Anos de Ouro da Pulp Ficion Portuguesa, mais o é quando entre os que mais desrespeitam o tema se contam alguns que não são grande coisa, como acontece aqui.

Ou seja, esta antologia é má. Não tem nenhum conto extraordinário, tem um absolutamente inenarrável, tem mais dois ou três maus (leia-se "conto" em sentido lato, pois aqui também se inclui um texto teatral) e tem contos que, não sendo maus, não são contos de história alternativa ou só o são por uma questão de maquilhagem.

No entanto, eu já disse, já repeti e volto a fazê-lo aqui: se numa antologia houver nem que seja um conto bom, ela vale a pena, por pior que seja globalmente. É preferível que uma má antologia abra espaço à publicação de uma ou duas coisas boas a não se publicar o mau mas isso ter como consequência que também não se publicou (ou nem sequer se escreveu, por vezes) o bom. E aqui existem quatro contos que se erguem acima da mediania: o de Gerson Lodi-Ribeiro, o de Bruno Martins Soares, o de José Manuel Lopes e sobretudo o de João Seixas. Para ler boas coisas estou disposto a engolir alguns sapos. E se é certo que neste livro há duas ou três coisas que passam largamente o mero sapo, que são autênticas salamandras, daquelas bem gosmentas, não é menos certo que estes quatro contos valem o livro.

Dos outros não rezará a história. Em certos casos, felizmente.

Eis o que achei dos catorze textos que aqui se incluem:
Este livro foi comprado.