domingo, 31 de janeiro de 2010

Lido: O Tesouro da Arca

O Tesouro da Arca é um conto fantástico de Arsénio Mota cujo protagonista é um negociante de antiguidades que recebe a estranha visita de um maltrapilho. Como o negócio anda parado, o negociante dispõe-se a ouvir o que o outro tem a dizer, mas o maltrapilho hesita. A história acaba por revelar-se fantástica quando aquilo que o maltrapilho tem a vender, uma rica arca (ou será uma simples caixa de madeira?), muda consoante a luz que nela incide. É um conto bem construído e bem escrito, que infelizmente é estragado nos últimos parágrafos quando Mota, convencido de que os seus leitores não são suficientemente inteligentes para compreenderem onde quer chegar sem serem levados pela mão a todos os significados ocultos, explica a moral da história. Com isso consegue apenas destruir as sete páginas anteriores. É pena. Mesmo.

Lido: O Honesto Mentiroso: Denis Zachaire

O Honesto Mentiroso: Denis Zachaire é um conto de Rhys Hughes que conta a história de um tal Denis Zachaire que, no mundo real, foi um alquimista do século XVI, filho de boas famílias da Aquitânia (sul de França), que desbaratou a fortuna da família na busca pela Pedra Filosofal e pelo Elixir da Juventude, acabando arruinado e a publicar uma autobiografia, na qual, ao mesmo tempo que acautela os outros contra seguirem o caminho autodestrutivo que ele seguiu, afirma ter sido bem sucedido nas suas pesquisas. No relato ficcionado de Hughes, Zachaire é um aldrabão que acaba por enveredar por uma carreira a desmascarar os outros vigaristas que se usam da alquimia como forma de aliviar a bolsa dos ingénuos, um pouco à semelhança do mágico-cético James Randi ou do duo Penn & Teller. Gostei, principalmente porque neste conto Hughes não envereda por uma imitação de texto histórico mas conta, realmente, uma história (na qual zurze sem misercórdia nos charlatães alquímicos, atirando-lhes para cima toneladas de ironia). O texto ganha logo outra vida.

sábado, 30 de janeiro de 2010

Lido: A Demanda Pelas Lágrimas da Rainha

A Demanda Pelas Lágrimas da Rainha é outro dos contos curtos do Lorde Dunsany que vão buscar forte inspiração aos contos tradicionais. Aqui, a rainha dos bosques procura casamento, mas não com grande afinco. E por isso, como é costume nas histórias românticas (qualificativo do próprio Dunsany), impõe um teste aos seus pretendentes. Cliché manda e Dunsany obedece: quem conseguir superar o teste será o novo rei da floresta. O teste, porém, é invulgar. A rainha tem a característica de nunca chorar, e quando se diz nunca, é mesmo nunca. Não adianta contar-lhe histórias lamechas ou emocionantes, daquelas que deixam as donzelas comuns lavadas em lágrimas (pelo menos é essa a fama que têm as donzelas nas histórias românticas). De modo que um dos pretendentes se vai socorrer de meios mágicos, com fama de infalíveis. Conseguirá dessa forma passar de pretendente a rei? Pois. A dúvida é precisamente essa.

Não gostei tanto deste conto como de vários dos outros. É uma releitura interessante de milhentas histórias populares do folclore europeu, mas achei que as segue demasiado de perto para conseguir surpreender-me. Apesar do fim.

Lido: Hombre con Oscuridad

Hombre con Oscuridad, de Juan Pablo Noroña, é um curto conto de FC com uma premissa bizarra: numa nave movida por velas que captam os fluxos da matéria negra, um tripulante adoece sempre que as velas passam pela zona da nave em que se encontra, uma doença de que nunca ninguém ouvira falar. O conto é demasiado curto para explorar a ideia até ao fundo, mas talvez ainda bem que assim é. A coisa acaba a desembocar no princípio antrópico, em evolução acelerada e, aparentemente, lamarckiana, e com tudo isto foi-me muito, muito difícil atingir aquele estado mental indispensável para apreciar realmente as obras de ficção fantástica: a suspensão da descrença. Por outro lado, se o conto tivesse mais do que ideia talvez algo se tivesse aproveitado, talvez algo tivesse conseguido resgatá-lo. Mas quase não tem. Há um curto enredo que passa pela decisão sobre o que fazer com o invulgar doente, mas também este é pouco explorado. O resto é só ideia. Ora, como esta me pareceu muito má, o conto afunda-se com ela.

Mas não vão por mim. Leiam-no vocês mesmos nesta página (é o primeiro conto).

Lido: Scarium, nº 21

Também com um artigo de que não vale a pena falar, terminei o número 21 do fanzine brasileiro Scarium (bib.), dedicado a Lovecraft. Apesar de conter um conto meu (ou talvez por isso mesmo), parti para a leitura do fanzine com as expetativas bastante baixas, pois Lovecraft é, entre os autores clássicos de literatura fantástica, um dos que mais me desagradam. E de facto não gostei muito, mas acabei por gostar mais do que estava à espera. Sim, os dez contos que contém pareceram-me muito irregulares. Sim, detestei o conto de Lovecraft que lá se encontra. Sim, não gostei de mais um ou dois. Mas houve vários que li com agrado, houve vários que me surpreenderam agradavelmente por fugirem com eficiência à tentação de emular o "mestre", e houve um de que gostei mesmo: Esperando o Fim do Mundo, de Celso Gajo.

Ah, e poderão perguntar: se desgosto tanto de Lovecraft, porque fui escrever um conto lovecraftiano? Bem, acho que lendo o conto se percebe. Não é bem um conto lovecraftiano. É um gozo. A várias coisas. De tal maneira subversivo ao "cânone" que fiquei bastante admirado por mo terem aceite na Scarium. A surpresa diminuiu quando li o fanzine e vi mais contos que também se afastam significativamente das atmosferas e principalmente do estilo de Lovecraft, apesar de os terem sempre por base. Aparentemente, esse foi um critério que os editores seguiram. E eu achei muito bem.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Lido: Asimov's nº 323

Com um artigo de que não vale a pena falar aqui, cheguei ao fim da leitura do número 323 da revista Asimov's, que já tem uns aninhos em cima. Achei este número relativamente fraco, bem longe da qualidade de outros números da mesma revista que tinha lido anteriormente. Da novela, duas noveletas e três contos que constituem o seu conteúdo de ficção só gostei mesmo de uma das noveletas, Lying to Dogs, e de um dos contos, Candy Art. O resto pareceu-me estar entre o razoável e o fraco, e houve até um conto, Her Father's Eyes, de que não gostei mesmo. Considerando que houve Asimov's que me agradaram de princípio ao fim, este número deixou muito a desejar e ficou bem aquém das expetativas que para ele trazia.

Lido: Hip, Hip, Hippies!

Hip, Hip, Hippies! é uma crónica-mesmo-crónica de José Saramago, na qual ele manifesta a sua esperança nas pessoas envolvidas no movimento, mas também o seu ceticismo. Apesar da relevância política que uma crónica assim teria tido em plena guerra colonial, hoje, como aliás acontece frequentemente com as crónicas que o são mesmo, pouco interesse lhe resta.

Lido: Os Velhos

Os Velhos é mais um dos contos muito curtos (e neste caso, é mesmo muito curto) que Bradbury usa para ligar os contos maiores de que se compõe o livro de que faz parte. Alguns ainda funcionam razoavelmente bem como contos independentes, mas outros não. Como este, que se limita a informar que, depois de tudo o resto, os velhos também chegaram a Marte. E nada mais há a dizer sobre ele.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Lido: Na Praia de Chesil

Há já vários anos que venho ouvindo falar de Ian McEwan com entusiasmo, como um grande escritor. De modo que foi com alguma expetativa que peguei neste Na Praia de Chesil, um romance curto (menos de 130 páginas na edição portuguesa) que, pensei, leria num ápice.

Não li.

O romance conta a história de um jovem casal na transição dos anos 50 para os 60. Ele é um descontraído, recém-licenciado em história, originário de uma família disfuncional de uma baixa burguesia rural. Ela é uma violinista perfeccionista, puritana e frígida, cuja família é bastante mais endinheirada do que a dele e também, pelo menos na aparência, muito mais sólida. Ambos estão presos às convenções e tabus sexuais do tempo, só se conhecem realmente, só conversam, após o casamento, o que tem consequências fáceis de prever. E é precisamente aí que está parte da razão para eu não ter gostado lá muito do livro: a sua previsibilidade. A outra parte? Nele quase não acontece nada. A história propriamente dita começa e acaba na noite de núpcias, dedica longas, longas, páginas à descrição psicológica de cada um, completa-a com uns quantos flashbacks que nos levam a momentos específicos do passado de ambos e depois carrega no botão de fast-forward para nos trazer ao presente. De modo que achei o romance quase sempre bastante aborrecido e levei a lê-lo muito mais tempo do que esperei à partida.

Mas.

Mas há um mas, claro. A criação das personagens está muito bem conseguida. São pessoas de cuja realidade não duvidamos nem por um momento, seres complexos, imperfeitos e credíveis. Gente em três dimensões. E, embora seja algo secundária relativamente às personagens, a reconstituição histórica da época, o pano de fundo, também me pareceu muito boa. De modo que não posso dizer que tenha achado o livro mau. Nem por sombras. Os crentes da religião do "show, don't tell" fá-lo-iam, sem dúvida, porque McEwan praticamente não mostra nada e conta quase tudo mas, para mim, opiniões que não tentem ao menos perceber o que o escritor (ou qualquer outro artista) tenta fazer com a sua obra têm credibilidade e relevância rigorosamente iguais a zero. E McEwan nunca quis mostrar nada, quis contar. Não quis narrar, quis descrever. Mais do que uma história o que lhe interessou foram os personagens. E fê-lo bem. Portanto, nada a opor. Eu não gostei por aí além; procuro outras coisas nos livros que leio. Mas quem se delicia com a profundidade psicológica das personagens, e há muitos leitores que é isso mesmo que procuram na literatura, tem aqui um pratinho cheio.

domingo, 24 de janeiro de 2010

Lido: "Shopping Center"

"Shopping Center" (assim mesmo, com aspas e tudo), de Arsénio Mota, não é um conto, é uma caricatura carregada de ideologia. Dois conhecidos encontram outros dois conhecidos num centro comercial e ficam à conversa. Todos empresários, todos fiéis ovelhinhas do deus Mercado, vão dizendo uns aos outros as coisas que fazem e deixam de fazer, que compram e deixam de comprar, na sua busca infindável por status. Tudo muito óbvio, tudo muito inverosímil porque este tipo de gente, embora muitas vezes aja assim, raramente tem a candura de o admitir tão abertamente, tudo muito fraquinho. Três páginas de diálogo pouco crível que revela mais sobre as ideias do autor do que sobre aqueles que ele pretende retratar.

Lido: O Buda Brutal: Barão von Ungern-Sternberg

O Buda Brutal: Barão von Ungern-Sternberg é um conto de Rhys Hughes que conta a história real do Barão von Ungern-Sternberg, um infame mas obscuro oficial do exército russo branco, da época da revolução dos sovietes, que se torna durante alguns meses ditador da Mongólia. A história de Hughes, no entanto, é contada à maneira de Borges: não com o objetivo de ser historicamente exata, mas como poderia ter sido, num entrelaçar de realidade e ficção que obscurece propositadamente a separação entre uma e outra coisa. Tudo escrito, claro, em jeito de compêndio, enumerando os "factos" como se todos eles o fossem, num relato histórico pretensamente objetivo.

Percebo a ideia, e acho que está bem executada, mas com toda a franqueza este tipo de exercício literário não me agrada por aí além.

Lido: Ficções, nº 11

Os seis contos mais ou menos mainstream de que vos tenho vindo a falar pertencem ao número 11 da revista Ficções. Apesar dum conto que achei francamente mau (o do Gide), de outro que me pareceu inconsequente (o do Gombrowicz), e de outro que me desiludiu porque esperava mais do autor (o do Calvino), o saldo final não deixa de ser positivo, em particular porque houve dois que, embora (ou talvez porque) fossem mainstream, me fizeram pensar nas potencialidades, abordagens e limites dos meus géneros de eleição (os do Camus e do Celati). Esta revista contribuiu para me convencer cada vez mais de que, independentemente de géneros e convenções, literatura é literatura e toda ela pode e deve partilhar algumas características básicas sem as quais nada resta de realmente válido.

E também de que aprenderei até morrer. Mas isso já eu sabia.

Lido: Notícias aos Navegantes

Notícias aos Navegantes é um conto do italiano Gianni Celati que abre com a sua própria definição: "Esta história fala de um médico que todos os domingos ia andar de barco à vela com um amigo e a quem aconteceu a aventura de ser possuído por vozes." Não no sentido fantástico da palavra, porém. O conto, embora seja francamente insólito, não chega a ser fantástico. Fala de obsessões, sim, mas não chega sequer a sugerir nada de sobrenatural. O médico ouve uma voz a falar duma doença, uma voz que é transportada sobre a água vinda de terra, como acontece por vezes às vozes, e isso deixa-o subjugado por uma autêntica fome de encontrar a mulher a quem a voz pertence e ajudá-la. De modo que vai à sua procura, mas nunca chega a ter a certeza de a ter encontrado. Encontra, isso sim, uma gigante, supõe que a mulher que procura seja essa gigante, e portanto vai fazer os possíveis para a ajudar mesmo que isso signifique entrar numa espiral de desagregação pessoal, profissional e social.

É um conto que me deixou perplexo. É terrivelmente eficaz na construção duma atmosfera deprimente, mesmo desesperada, duma sensação quase palpável de decadência, e no entanto fá-lo sem que tenha conseguido levar-me a suspender a descrença que, diz-se por aí, é condição sine qua non para se entrar nas histórias e acreditar-se nelas. Este conto transmite na perfeição todas as sensações que pretende transmitir, mas não me consegue nem por um momento levar a acreditar na história que conta. Espantoso.

Só posso concluir que se trata de um grande conto. Ainda que não tenha gostado lá muito dele.

sábado, 23 de janeiro de 2010

Lido: A Menina Cubbidge e o Dragão das Histórias Românticas

A Menina Cubbidge e o Dragão das Histórias Românticas, como é possível suspeitar pelo tamanho do título, aliás, é mais um conto muito curto do Lorde Dunsany. Este conta, numa prosa muito poética, uma variação das lendas sobre dragões que raptam donzelas. A donzela é a menina Cubbidge, dezoito anos recém-completados, filha de um homem ativo na política do Reino Unido. E o dragão agarra nela e transporta-a para as "terras eternas e antigas das histórias românticas", prendendo-a aí com um antigo feitiço. Tudo muito poético, tudo muito romântico, mas também com suficiente ironia à mistura para gerar a suspeita de que Dunsany poderia estar a referir-se, alegoricamente, a acontecimentos e personagens bem reais. Outro conto interessante, portanto.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Lido: Orden Directa

Orden Directa, de Diego Martínez, é um conto de FC sobre um fugitivo de uma espécie de universo paralelo que se escapa a um regime ditatorial e decide criar um plano de realidade em que a Argentina seja uma potência mundial. Ilegalmente, está bem de ver. Mas essa intromissão nos planos de realidade em que o universo se divide tem efeitos secundários, e o fugitivo é detetado e capturado. Suponho que seja um conto interessante para argentinos, graças à ironia com que o país é nele criticado. Mas para nós, que o lemos de fora, perde boa parte do impacto e transforma-se num conto linear e algo batido sobre a alteração da realidade e universos paralelos. Lê-se, mas não me pareceu nada de especial. Quem queira verificar por si, encontra-o aqui.

Lido: Glorious Destiny

Glorious Destiny é uma novela de ficção científica de Allen M. Steele, que fecha uma série de contos, novelas e noveletas interligadas sobre um grupo de dissidentes políticos de um estado fascista que teria surgido no sul dos atuais EUA, os quais roubam a primeira nave interstelar, a Alabama, e nela partem para fundar uma colónia num sistema estelar próximo do nosso. Várias das histórias da série (globalmente intitulada Coyote, que por sua vez é parte de uma trilogia integrada, com outras obras, no universo ficcional homónimo) foram nomeadas para prémios, e esta é uma delas. Conta a chegada à colónia de uma nova nave oriunda da Terra, com o objetivo de colonizar o mesmo planeta e/ou retomar contacto com a tripulação do Alabama.

Não gostei lá muito, confesso. Antes desta, só tinha lido uma outra história da mesma série, por sinal a primeira, o que quer dizer que li esta novela quase como quem lê uma obra isolada. E ela funciona mal como obra isolada. Tem um ritmo lento, mais adequado a romance do que a ficção mais curta, e tem um substrato político que se limita à reafirmação da versão americana de democracia e da velha mitologia americana sobre a fronteira, numa completa banalidade n vezes repetida. Deixou-me a sensação de que os pormenores mais interessantes de toda a série se encontram nas histórias que eu não li, e isso não é bom.

Mas também não posso dizer que tenha desgostado. Achei que não passou da mediania. Uma mediania algo aborrecida.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Segundo livro já tem dono

Ou melhor, já tem dona. Como podem ver nos comentários ao post abaixo, a primeira pessoa a responder corretamente às quatro perguntas foi a Ana C. Nunes. Parabéns para ela, e o livro será enviado assim que eu tenha tempo de ir ao correio sem apanhar uma molha pelo caminho. O mesmo se aplica ao Francisco. Depois aviso-vos por email.

E as respostas eram:

  1. O primeiro livro publicado por João Barreiros intitulou-se 2 Fábulas Tecnocráticas e foi editado, em edição de autor, em 1977. Ver aqui.
  2. Jorge Candeias estreou-se em 1998 com o conto Nos Confins, publicado no nº 1.02 do e-zine Eventos. Um par de meses mais tarde, o mesmo conto saiu na Webfiction, mas o Eventos saiu primeiro. Ver aqui.
  3. Sacha Ramos é, de facto, jornalista da RTP. Essa informação encontra-se em vários locais da internet, nomeadamente neste PDF, que contém a nota de imprensa sobre o lançamento da Imaginários.
  4. Luís Filipe Silva batizou as suas entidades virtuais da Galxmente como padrões, conforme pode ser confirmado, por exemplo, aqui.
Isto foi giro. Acho que vou fazer coisas destas mais vezes...

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Segundo Passatempo Imaginários


Este é para o pessoal que não escreve ou não conseguiu imaginar nada que o inspirasse para o primeiro passatempo. É um passatempo mais tradicional, e por isso mesmo mais rápido, presumo. São quatro perguntinhas, uma sobre cada um dos autores portugueses presentes na antologia, e todas as respostas podem ser encontradas na internet. As respostas deverão ser dadas aqui mesmo, nos comentários, e leva o livro para casa quem for mais rápido a responder corretamente às quatro perguntas. E corretamente significa uma resposta certa a todas as partes de que a pergunta se compõe, no caso de ser mais do que uma.

Prontos? Então cá vai:

  1. Qual o título do primeiro livro publicado por João Barreiros, e em que ano ele saiu?
  2. Em que publicação periódica se estreou Jorge Candeias e que título tinha o conto?
  3. O que faz profissionalmente Sacha Ramos?
  4. Que nome deu Luís Filipe Silva às entidades virtuais dos seus romances do ciclo da Galxmente?

E é isto. Há um Imaginários 2 à espera do primeiro a responder a estas perguntas. Boa sorte.

And the winner is...

Quando lancei o passatempo imaginários pensei cá com os meus botões que, se tivesse mesmo muita sorte, obteria uma ou duas histórias boas, tanto no que toca à criação dos ETs, como na história propriamente dita. Desde o princípio achei que era mais provável que me aparecessem histórias com fragilidades, ou num lado ou no outro, e por isso mesmo esclareci logo à partida que iria dar prioridade à qualidade na construção dos ETs.

O resultado foi mais ou menos o que eu esperava. A melhor história chegou-me do Brasil, o que a deixa apenas candidata ao tal e-book (logo vos digo alguma coisa sobre ele se e quando se concretizar). E entre as demais, houve uma que se destacou no uso do português, na qualidade na construção da história e na escolha de um bom final, embora não tivesse conseguido levar-me a acreditar no alienígena que apresenta, motivo que a levou a ser preterida. E houve a vencedora, aquela que leva o livro para casa.

É uma história com fragilidades, que denota claramente ter saído dos dedos dum escritor ainda imaturo, mas a verdade é que já li coisas bem piores publicadas em fanzines, revistas e até em livros. E foi, das histórias portuguesas, aquela em que se notou um maior cuidado na criação de uma espécie ET simultaneamente estranha e verosímil. Por isso, os meus parabéns ao Francisco Norega, e aqui a têm:

O Acordar dos Amot

"O meu avô dizia-me que vivemos nas costas de um grande animal" atirou o rapaz de cabelos e olhos negros para os outros dois, por nenhuma razão em especial. Estavam deitados numa pequena clareira, a descansar depois de uma tarde típica de trapalhadas.
Estava tudo calmo, o vento trazendo de tempos a tempos os ténues sons da povoação.
"Dizia que todas as aldeias estavam construídas por cima de uns bichos gigantescos em forma de montanha, que formavam um manada," continuou o rapaz "e que, de vez em quando, eles acordam e se movem."
Silêncio. O céu estava cinzento — como sempre — e, o ar, frio.
"Tenho fome" disse o outro rapaz, virando-se, depois, para o louro. "Vamos a tua casa?"
"Vamos."
Levantaram-se e puseram-se a caminho, em silêncio. Era sempre a descer até à aldeia, por isso não tardaram a lá chegar.
As ruas eram estreitas e as casas, de dois ou três andares, encavalitavam-se umas nas outras. No centro da aldeia havia um grande buraco. Não era um poço, não dava acesso a sítio nenhum (pelo menos que alguém soubesse), e nunca ninguém tinha atingido o seu fundo. Não se sabia a razão de aquilo existir, mas ninguém se questionara com isso — simplesmente sempre tinha existido, e não deixaria de existir tão cedo. Tampouco se sabia a função que tinham as grandes estruturas de madeira que formavam arcos por toda a povoação, encabeçadas por uma sólida e gigantesca trave de madeira que ligava as casas dos dois lados das ruas.
Mas estes não eram assuntos com que se preocupassem os habitantes daquela aldeia, nem os das outras aldeias da região, todas elas construídas à volta de um buraco semelhante e com as mesmas traves.
"Olá rapazes" disse a mãe do rapaz louro, sorridente — não sabia, com certeza, das trapalhadas que o seu filho e os amigos tinham andado a fazer. Ou talvez soubesse — mas se eles não o fizessem naquelas idades, quando seria? "Acabei de fazer uns bolos deliciosos, e vocês devem estar cheios de fome!"
Os três rapazes sorriram, tão genuinamente como só as crianças conseguem fazer. Apressaram-se a ir até à sala e sentaram-se à frente do forno, aquecendo-se com o calor das brasas ainda acesas, e recebendo com um agradecimento silencioso os bolos que a mãe lhes levou.
Comeram o seu lanche com uma felicidade silenciosa, mas verdadeira. Ficaram ali até começar a anoitecer e se retirarem para o calor das suas famílias.

Um pequeno tremor assolou a aldeia, já a pouca luz com que o sol a brindava se tinha extinguido. As chamas da lareira foram rapidamente apagadas por um homem, como que num gesto reflexo.
Um novo tremor, desta feita ligeiramente mais forte, voltou a sentir-se. Uma criança de cabelos castanhos olhava para os toros agora encharcados, dando por si a pensar nas palavras que o seu amigo, nessa mesma tarde, proferira, a pensar nos míticos seres nas costas dos quais supostamente havia sido construída aquela aldeia — e muitas outras.
O filho, o pai e a mãe abraçaram-se e deram as mãos, com um brilho sereno nos olhos. E assim entraram pela noite dentro, enfrentando os sucessivos estremecimentos da terra com esperança e calma.

Os estremecimentos tornaram-se cada vez mais frequentes e não demorou muito até se tornarem num único tremor contínuo e avassalador. As pessoas permaneceram dentro de casa, providas de uma calma aterradora — todas as lareiras haviam sido apagadas de uma forma quase mecânica, e todos as famílias se haviam reunido.
Graças às estruturas de madeira que antes poderiam parecer excessivas, os edifícios — ou grande parte deles — iam resistindo. As traves de madeira e as estruturas anexas evitavam que os edifícios desabassem uns contra os outros, e as reforçadas estruturas internas das casas impediam que estas ruíssem. A esperança, essa, também ajudava — ou pelo menos nisso todos acreditavam.
Nas ruas ainda intactas apareceu um louco, proclamando o acordar dos Amot e profetizando a morte de toda a gente. Amot, era esse o nome que o meu avô dava aos grandes animais nos quais tinham sido construídas as aldeias, relembrou-se, aterrado, o rapaz de cabelos pretos como a Morte. Porque estaria aquilo a acontecer, logo naquele dia, que tinha contado as histórias do avô aos seus amigos? Seria culpa dele?
Amot.
"Vamos todos morrer! Os Amot acordam esfomeados, sedentos de carne que lhes dê energias para a sua migração. As casas não tardarão a ruir e os que não morrerem debaixo do tecto que sempre os abrigou serão asfixiados pelos gases que sairão de dentro do Buraco! Vamos todos morrer!" A sua voz estridente e rouca enchia todas as casas da aldeia e ecoava na floresta que cobria a montanha.
Depois, silêncio, por momentos. Meu Deus, que fiz eu? O rapaz sentia-se culpado e rompeu o abraço que os pais lhe davam, correndo para a rua. Rompeu a força da esperança, a esperança à qual a aldeia parecia agarrar-se. Era difícil andar na rua, o chão fugia-lhe debaixo dos pés e ele caía constantemente — quando finalmente chegou perto do buraco, o rapaz estava completamente ensanguentado, lavado em lágrimas de culpa.
Mas do buraco saía um odor estranhamente agradável, sedutor. O rapaz aproximou-se, rastejando, e inspirou profundamente, sentindo os tremores de uma forma cada vez mais ténue, sentindo-se leve. Leve.
Dois gritos de desespero fizeram-se ouvir quando o rapaz se deixou cair para o grande buraco. O pai e a mãe do rapaz caíram no chão, num lamento angustiado, desprovido de esperança.
"Não há esperança! Vamos todos morrer!" repetiu o louco. Os seus gritos assemelhavam-se ao crocitar de um corvo. "Só há Salvação para quem chegar às Planícies puro! A Terra deixará de tremer e todos pensarão que tudo ficará bem, mas depois virá o Cheiro e todos morrerão!" profetizou ele.

Quando o céu começou a clarear os estremecimentos tornaram-se mais e mais fracos, como previsto pelo louco.
Numa casa, ouviu-se uma voz feminina, algo hesitante. “Se calhar ele tem razão.”
"É só um louco" respondeu um homem — mas nem ele estava seguro do que dizia.
"Pode ser que sim. Mas…" pausa, como que para ganhar coragem, "e se não for?"
Da rua, como que em resposta, o louco voltou a gritar. "Vamos todos morrer! Quem sentir o Cheiro não terá salvação!"
O homem pareceu mudar de ideias. "Vamos embora, antes que seja tarde de mais" disse, tentando pela primeira vez transmitir algo não completamente genuíno — um sentimento de confiança.
A mulher não hesitou, e correu a meter os bolos que tinha confeccionado no dia anterior numa trouxa. O homem pegou num ramo de uma qualquer erva com um cheiro muitíssimo intenso. "Vamos" disse a mulher, despenteando os cabelos louros do filho e pegando-lhe pela mão. Este resistiu, e afastou-se da mãe.
"Vou chamar os meus amigos", disse, decidido. E, perante o olhar repreensivo do pai, continuou, batendo o pé. "Não os vou deixar cá. Não vou, não vou, não vou!"
"Vamos todos morrer!" voltou a fazer-se ouvir o louco, qual corvo agoirento.
"Não é altura para fazer destas birras, filho!" disse o pai, enquanto se aproximava dele, agarrando-o o pegando-o ao colo. Depois, voltou-se para a mulher. "Leva esse ramo de erva-das-neves, proteger-nos-á na floresta."

Tão rápido quanto os tremores ocasionais lhes permitiam correr, afastaram-se da aldeia, descendo a montanha. Ao chegarem ao pé de um pequeno riacho, o pai pousou o filho no chão durante um momento e, então, ele desatou a correr, com uma energia que só as crianças com um sentimento de amizade tão puro conseguem ter. Em poucos segundos tornou-se inalcançável, mas a mãe começou a correr atrás dele, desesperadas, sofrendo a perda antecipadamente, mas rapidamente caiu e se deixou ficar no chão, estendida a soluçar.
"Nestes momentos é preciso frieza" disse o homem para si mesmo, enquanto observava o seu filho a desaparecer nos confins da floresta, mais rápido do que ele alguma vez conseguiria correr.
Aproximou-se da mulher e tomou-a nos braços. Esta continuava a soluçar, mas encontrava-se já quase inconsciente. Apressou-se a descer o resto da montanha, num passo determinado, e, chegado ao seu sopé, pousou o corpo adormecido da mulher na erva verde.
Avançou, entrando pela planície verdejante dentro. O ar gelado que sentira centenas de metros acima, na aldeia, fora-se transformado numa brisa quente à medida que ia descendo a montanha.
Parou, observando à sua volta. Da planície vasta, erguiam-se abruptamente várias montanhas, distantes umas das outras, mas numa disposição que quase fazia lembrar uma manada.
De repente, um ruído ensurdecedor encheu-lhe os ouvidos — todo o mundo parecia desabar naquele momento. Mas não, eram as montanhas! Elas… estavam-se a… mover!
"Deus me valha!" A base das montanhas separavam-se da planície e as grandes massas de rocha moviam-se agora, qual imponente manada em migração.
De repente, um pensamento assolou-lhe a mente, e ele virou-se assustado. A sua mulher, onde estava? Deixara-a ali, a umas parcas dezenas de metros de onde se encontrava, mas esse sítio não mais existia, era sim uma grande massa de terra e rocha desordenada, deixada pelo levantar da montanha.
"Deus me valha…" repetiu ele, desalentado. Agora sim, tinha perdido tudo. A calma deu lugar ao desespero e um laivo de loucura despontou-lhe nos olhos — assim como tinha acontecido ao velho louco que vagueara pela aldeia naquela noite várias dezenas de anos atrás. Agora, a sua sina seria avisar os próximos aldeões que viessem a habitar no topo dos Amot, assim como o louco fizera.

Nas montanhas, a terra que circundava os buracos começou a desabar, levando consigo todos os seres atraídos pelo sedutor gás para o interior do sistema digestivo dos Amot — eram eles que lhes iam alimentar a migração.
Isto acontecia sempre que se iniciava uma nova migração, fazendo os buracos ficar maiores ao longo dos tempos. E é o tamanho do buraco que nos diz a idade de cada Amot.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Passatempo Imaginários: prazos, confirmações e eventuais reenvios

Terminou há cerca de 50 minutos o prazo para entrega dos contos do Passatempo Imaginários. Para já há uma certeza: houve participações, e o livro será entregue a alguém.

A todos os participantes acabou de ser enviado um email acusando a receção do respetivo conto. Se não receberem esse email é porque o vosso conto não me chegou. Se estiverem nessa situação, têm até à meia-noite de hoje, segunda-feira, para voltarem a enviá-lo (o que também serve para retardatários, visto que não tenho maneira de distinguir uns dos outros). Desta vez, acusarei a receção assim que receba os contos, ou assim que me ponha online, de modo que se me enviarem um conto que teime em não chegar, contactem-me pelo twitter ou pelo facebook para podermos conversar e resolver o problema.

Portanto já sabem: ainda têm mais um dia para tentar ganhar um livro. Boa sorte.

sábado, 16 de janeiro de 2010

Lido: Jardim no Inverno

Jardim no Inverno é um pequeno conto fantástico de José Saramago, no qual o narrador entra num jardim que desconhece e, debaixo de chuva, depara com um estranho homem que não reage quando ele se aproxima, mas depois lhe sorri e cresce para se transformar numa estátua. Típico fantástico-propriamente-dito, fielmente seguidor das definições todorovianas sobre deixar o leitor na dúvida sobre o que é real e o que não é. E curioso, como outras das "crónicas" que na realidade são vinhetas, por nos mostrar um Saramago que ainda não escreve "à Saramago" mas já vai experimentando os temas e técnicas que virá mais tarde a usar nos romances fantásticos que lhe conquistaram um Nobel.

Lido: Usher II

É perfeitamente possível que todos os escritores de literatura fantástica tenham escrito, ou pelo menos pensado escrever um dia, uma história em que defendem a sua dama dos ataques dos cultores do mainstream literário, ou simplesmente daqueles que não encontram na literatura qualquer interesse prático, os burocratas, as pessoas sem imaginação. Ray Bradbury escreveu várias dessas histórias, mas talvez nenhuma seja tão explícita como Usher II (bib.).

Este conto é, acima de tudo, uma homenagem a Edgar Allan Poe. Mas também a uma série de outros escritores e, em geral, à fantasia e ao terror. O protagonista, um tal William Stendahl, depois de ser perseguido na Terra, numa sociedade de gente que odeia a imaginação e a arte e queima livros à semelhança do clássico bradburiano Fahrenheit 451, constrói em Marte uma réplica da casa de Usher de Poe, e usa-a para exercer uma terrível vingança contra os fiscais que vêm tentar obrigá-lo a demoli-la. O conto, em si, como peça isolada, é muito bom, mas creio que é um dos que pior se enquadra no livro em que se insere, que procura, com a sequência de contos, contar uma história que os ultrapassa.

Não que isso tenha muita importância.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Lido: O Zumbido

O Zumbido é um conto de Arsénio Mota que começa quando um velho jornalista amargurado ouve, na redação do jornal em que trabalha, um estranho zumbido que mais ninguém ouve. Ou, visto sob outro ponto de vista, é uma violenta diatribe contra os jornalistas que se socorre do tal velho jornalista e seu zumbido para obter uma voz que não seja a do autor. E aí reside o que me leva a não ter gostado por aí além deste conto. Não é credível que o velhote ouça o zumbido, se manifeste curioso a respeito dele e logo de seguida o esqueça por completo para arrancar por uma sequência de pensamentos em que se desfaz em desprezo pelos colegas, sequência essa que tem todas as características de ter sido pensada muitas vezes ao longo de muitos anos. O artifício do zumbido (e aquilo que se vem a descobrir no fim que o causa) é demasiado gratuito, e gratuita também é a súbita, e provavelmente temporária, tomada de consciência final desses mesmos colegas. Ou pelo menos de um deles. Tudo demasiado óbvio, muito pouco subtil.

Por outro lado, em termos de português nada tenho a apontar. O conto está bem escrito.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Lido: E Tudo o Tempo Levou

Aviso prévio: é impossível falar duma forma inteligível deste livro sem revelar o seu enredo. Aconselha-se os mais sensíveis ao fator-spoiler a manterem-se bem afastados deste post. Estão avisados.

Toda a gente conhece, suponho, a história de E Tudo o Vento Levou, provavelmente através do filme, embora o livro em que aquele se baseia também seja bastante conhecido. Não será surpreendente, portanto, que quem pegue num livro intitulado E Tudo o Tempo Levou faça a associação. Mas ela, embora exista, não é nem tão óbvia nem tão forte como os títulos portugueses fazem supor. Os portugueses; os originais são bem diferentes: Gone With the Wind e Bring the Jubilee, respetivamente.

E Tudo o Tempo Levou (bib.) é um romance de ficção científica e história alternativa, publicado em 1953 por Ward Moore. Começa por ambientar-se nuns Estados Unidos da América muito reduzidos, algumas décadas depois do Sul ter ganho a Guerra Civil Americana. Uns EUA não só derrotados, mas também terceiro-mundistas, dominados pelo crime organizado, e nos quais não parece haver esperança de futuro. O protagonista é um jovem oriundo do campo, com uma paixão pela história, que decide ir tentar a sua sorte para a cidade mas não encontra exatamente aquilo que procurava. Não imediatamente, pelo menos, pois ao fim de alguns anos acaba por associar-se a uma espécie de comuna de investigadores e cientistas que parece cumprir o destino que procurava, e está situada não muito longe do local onde o Sul vencera a guerra: Gettysburg. É nessa comuna que se dá uma descoberta fulcral: a mais genial das cientistas que dela fazem parte descobre como construir uma máquina do tempo. E constrói-a. E o nosso historiador decide ir observar de perto o momento definidor do seu país, para melhor poder escrever a sua tese sobre a guerra. Mas comete um erro, uma insignificância, que acaba por transformar o seu mundo... no nosso. O Norte vence a guerra e tudo muda. Tudo.

É verdade, enredos em que os Estados Confederados da América vencem a guerra só são ultrapassados na escala do cliché da história alternativa por aqueles em que é o Eixo que vence a II Guerra Mundial. A solução dos paradoxos inerentes à viagem do tempo com a alteração da linha temporal, transformando uma alternativa naquilo que aconteceu na história verdadeira, também está vista e revista. Mas é precisamente por isso que há uma coisa bastante mais importante do que as ideias na literatura: há o modo como elas são postas em prática.

E neste caso, esse modo é francamente bom. O mundo alternativo está bem desenvolvido e é credível, as personagens têm profundidade e são, de novo, credíveis. Seres de carne e osso. E a história está bem contada. Apesar dos clichés que contém, não se torna muito previsível, porque, à semelhança da História com H grande, há sempre vários caminhos por onde poderia seguir. Só é pena o grande número de erros de edição que prejudicam bastante a leitura (palavras coladas, falta de travessões em diálogos, etc.), e uma tradução com falhas. Não fosse isso, e este seria um belo livro. E ainda há quem diga que a edição em Portugal está em degenerescência.

sábado, 9 de janeiro de 2010

Lido: Admirável Mundo Novo

A primeira releitura de um ano que deve vir a ser mais rico nelas do que a média é um livro que tinha lido na adolescência e do qual me lembrava já muito mal: Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley.

Para quem não conhece — porque há sempre quem não conheça, mesmo um romance clássico como este — Admirável Mundo Novo é uma distopia política que se passa numa sociedade futura em que o hedonismo e a felicidade são erigidos a valores principais e protegidos a todo o custo. Para esse fim, a sociedade é extirpada de todos os elementos perturbadores, sejam eles a arte ou a ciência, o amor ou a paixão, a religião, a política ou até a família. As novas gerações são geradas in vitro, e cada indivíduo é condicionado a abraçar o lugar que lhe está predestinado numa sociedade rigidamente estratificada em castas. A própria noção de indivíduo é desencorajada, com exceção parcial para os membros da casta mais elevada, os alfas. Os restantes são sempre membros de grupos de gémeos idênticos, ou clones, e encorajados a um gregarismo absolutamente conformista, nos quais a droga, o desporto e o sexo assumem papéis de relevo. O mundo está quase inteiramente ocupado por este admirável mundo novo, embora subsistam alguns enclaves, em zonas remotas, nos quais as pessoas mantém velhas tradições e modos de vida obsoletos.

O romance tem dois protagonistas. O primeiro, e principal, é Bernard, um alfa que terá sofrido um acidente durante o tempo de gestação que o deixou incaracteristicamente franzino e cheio de complexos, o que exacerbou o seu sentido de individialidade e o seu inconformismo. É Bernard que, ao levar uma putativa conquista amorosa a uma reserva de selvagens, descobre o outro protagonista, John, ou "o Selvagem". Filho de uma mulher civilizada da classe beta, que foi engravidada por um alfa e abandonada entre os selvagens — e no admirável mundo novo ter-se uma mãe é a maior das obscenidades —, John cresceu sem condicionamento, com uma educação ao deus-dará na qual as histórias que a mãe contava sobre a civilização se misturaram com as crenças religiosas dos índios com os quais mãe e filho viviam, e com tudo o que conseguiu ir lendo, em particular Shakeapeare. John tem adoração por Shakespeare, sabe-o todo de cor, e cita trechos à mínima oportunidade. Mas essa educação transformou-o num asceta puritano, cheio de ideias bizarras sobre o que é puro e o que é sujo.

Este romance é acima de tudo uma reflexão sobre os caminhos que as sociedades ocidentais do início do século XX pareciam seguir. Não só as sociedades totalitárias de esquerda ou de direita, mas também o capitalismo mecanizado e mecanicista. A religião, por exemplo, é substituída por uma adoração a Ford, cujo símbolo é um T (relembro a quem não entenda a referência que o primeiro automóvel produzido em série foi o Ford modelo T). E é uma reflexão que consegue a proeza de ser em parte ingénua, e em parte terrivelmente perspicaz. E também muito desesperada. Porque Huxley não nos oferece qualquer alternativa capaz. Os cidadãos do admirável mundo novo são seres desprovidos de profundidade, meros membros do formigueiro, criaturas irrelevantes que vivem numa sociedade inerentemente estagnada e nem sequer têm consciência desse facto. E o homem vindo do passado é um histérico irracional, mais do que meio enlouquecido, cujo destino final é inevitável desde o início. E não há mais ninguém.

É frequente por-se este romance lado a lado com 1984, de George Orwell. Também é frequente discutir-se qual dos dois é melhor. A mim parecem semelhantes em qualidade, mas prefiro este. Porque, enquanto 1984 é um estudo sobre a opressão e a mentalidade de guerra, Admirável Mundo Novo é um estudo sobre aquilo que é preciso para que o domínio se mantenha sem que a opressão continue a ser necessária. Nos dias que correm, este parece-me bastante mais necessário do que aquele.

Lido: Os Rapazes

Já ouviram falar dos irmãos Coen? Aqueles que fazem filmes e com grande sucesso? Pois Os Rapazes é um conto que foi escrito por um deles, o Ethan Coen. Trata-se de uma história repleta de desespero existencial que nos abre uma curta janela para a vida de um pai, aparentemente sozinho, e dos seus dois filhos, que não parecem ser inteiramente normais. Especialmente o mais novo, cheio de obsessões. Para aumentar ainda mais a sensação de deriva, a história passa-se fora dos ambientes familiares às personagens, numa viagem de férias pelas zonas áridas do oeste americano. É um conto muito eficaz na construção da sua atmosfera opressiva. Incomoda. E o facto de ser inteiramente aberto, sem conclusão de qualquer espécie, só contribui para essa sensação de opressão, de não haver uma saída para o pesadelo da vida. Um bom conto, no qual a história que é contada é absolutamente secundária para o objetivo que se pretende atingir. Dizem que se suspeita de que o texto é algo autobiográfico. Mas também isso pouco importa. Não é isso que o faz.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Lido: A Pilhagem de Bombasharna

A Pilhagem de Bombasharna é mais um conto bastante curto de Lord Dunsany que mais parece um esboço para outros escritores desenvolverem. Desta feita, trata-se de um conto fantástico de piratas, no qual um certo capitão dá por si demasiado acossado para seu gosto (e da tripulação) e decide instalar-se em paragens distantes, vendo-se também livre do navio, por demais conhecido por quem os persegue. E a partir daí, entramos no bem conhecido território das lendas sobre navios (e tripulações) fantasmas. Não posso dizer que tenha gostado particularmente deste conto, nem sequer acho que seja tão pioneiro como alguns dos outros, mas também não desgostei.

Lido: La Triple Muerte de Moffo Mönnly

Nas minhas caóticas leituras às vezes acontecem sincronicidades engraçadas. Uma dessas sincronicidades apareceu com esta noveleta, lida logo a seguir ao conto pulp lovecraftiano do Carqueija e que partilha com ele uma série de características. Não é lovecraftiano, mas é igualmente pulp, baseando-se fortemente em referências da literatura dita popular americana da primeira metade do século XX. Num e noutro há um herói que é investigador e que é contratado para resolver um mistério, num e noutro o mistério é solucionado a contento, como não podia deixar de ser e, também como não podia deixar de ser, num e noutro o herói acaba com a garota. Mas à parte isso, dificilmente seriam mais diferentes.

La Triple Muerte de Moffo Mönnly, de Fabio Ferreras, é um conto de ficção científica pulp, que brinca com o policial negro — o protagonista chama-se Ray M. Chandler, referência óbvia a Raymond Chandler — e com o seu velho cliché do detetive privado sem um tostão furado no bolso, que é subitamente contratado para resolver um assassínio. Neste caso, o assassínio de Moffo Mönnly, um alienígena muito peculiar, que chega ao escritório do detetive já morto. Ou por outra, já ressuscitado, pelo que é ele próprio a contratar o herói, identificando de imediato o seu próprio assassino. Parece fácil. Só que a trama complica-se quando Chandler é de novo contratado, quase de imediato, para descobrir o paradeiro de Mönnly... precisamente por quem o matou.

Ou seja, apesar de também ter algumas daquelas características típicas do pulp que mais me desagradam, incluindo alguns disparates astronómicos (gente a viver na superfície de Saturno, coisas do género), esta história é muitíssimo melhor do que a do Carqueija. Porque tem espaço para se desenvolver e desenvolve-se com reviravoltas no enredo que o mantém interessante. Não é uma grande história, mas é uma história muito aceitável, dentro do género. Provavelmente é capaz de agradar quer aos fãs de FC mais ligados ao pulp, quer a fãs de policial. A mim, entreteve com eficácia.

Se alguém estiver interessado, pode ler a noveleta aqui.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Acordo ortográfico: o asco, a parvoíce, os enganos e as coisas válidas

O Acordo Ortográfico foi assinado por Portugal em 1990. O acordo propriamente dito foi ratificado por Portugal em 1992, tendo sido o primeiro país a fazê-lo e o único que o fez dentro do prazo inicialmente  definido para a sua entrada em vigor. Por atrasos nas ratificações dos outros países que o assinaram em 1990, não entrou logo então em vigor e foi preciso entrar-se na negociação, assinatura e ratificação de protocolos modificativos, que são assim uma espécie de adendas ao acordo que o alteram em certos pontos. Houve dois destes protocolos, e em ambos as únicas alterações feitas tiveram a ver com prazos e número de ratificações necessárias para a entrada em vigor do acordo. O último destes protocolos foi ratificado por Portugal na Primavera e promulgado pelo PR no verão. O acordo entrou, portanto, em vigor a 1 de janeiro último.

E dando mostras dum inultrapassável sentido de oportunidade, os tipos que são contra o acordo estão a burburinhar agora!

Haja pachorra para esta gente. E haja pachorra para esta gente, principalmente, porque daquilo que andam a dizer pouco se aproveita. Este post vai passar em revista coisas que tenho ouvido e lido nos últimos tempos, desde aquelas que só servem mesmo para me encher de asco até às válidas (mas que já vêm atrasadas), assim numa espécie de ordenação do pior para o melhor, para ver se acabo o post numa nota razoavelmente positiva.

Então cá vai, começando pelo pior:

O Asco

O asco, o completo nojo, surge quando a xenofobia e o racismo aparecem claríssimos em certas coisas que têm sido vomitadas a respeito do acordo ortográfico. Já vi tipos a escreverem que não têm nada que mudar a forma como escrevem por causa de países do terceiro mundo (quando não dizem mesmo "dos pretos"), que a língua "é nossa e portanto os outros que aprendam a falar" e outras imbecilidades do mesmo calibre. Faço à maioria dos oponentes do acordo ortográfico a justiça de achar que se sentem embaraçados por terem por aliados cretinos deste calibre. Mas que eles existem, existem. E nem sequer lhes dou resposta. Este tipo de bacorada racista fala por si, e é eloquente quanto baste.

As Parvoíces

A parvoíce é o tipo de reação mais comum, e a mais comum das parvoíces é dizer-se que este acordo é uma cedência ao Brasil. E isto é uma parvoíce porque basta olhar para o que muda para se ver que, naquilo que é mais apontado como cedência, não existe a mínima cedência ao Brasil, mas sim uma adequação do modo como os portugueses escrevem ao modo como os portugueses falam. É porque os portugueses pronunciam o c de facto que vão continuar a escrever facto, e é porque não pronunciam o p de acepção que passarão a escrever esta palavra como aceção. Se houvesse cedência ao Brasil, facto passaria a fato e aceção continuaria a escrever-se com p, porque esse p, no Brasil, é pronunciado. Isso é que é uma cedência; escrever as nossas palavras como nós as pronunciamos só é cedência se a lógica for uma batata.

E sim, é verdade, os brasileiros pronunciam consoantes que, na pronúncia culta portuguesa, são mudas. E os casos de palavras que passam a ter dupla grafia por nossa causa não são tão poucos como isso.

A verdade é que o acordo, como acordo que é, implica cedências. Mas essas cedências são mútuas e são mínimas. O Brasil cede na abolição do trema de palavras como freqüência e do acento em palavras como idéia, passando a escrevê-las como nós, os restantes países cedem nas maiúsculas dos meses, passando a grafá-los com minúscula como os brasileiros já faziam. Tanto umas como as outras implicam mudanças num número insignificante de palavras. De resto não há cedência nenhuma, mas há mais um detalhe de que vale a pena falar.

Antes do acordo, quem escrevesse "fato" em Portugal ou "facto" no Brasil estava a incorrer num erro ortográfico. Mas o acordo trouxe as duplas grafias (na verdade não trouxe nada de novo, limitou-se a ampliá-las. Mais sobre isto mais à frente), o que significa que ambas as formas passam a ser corretas em todo o espaço lusófono. Mas ninguém duvida de que uma delas será absolutamente dominante num dos dialetos da língua e a outra no outro. Contudo, isto tem uma consequência engraçada: como a pronúncia culta portuguesa emudece mais consoantes do que a pronúncia culta brasileira, há uma série de palavras que só perdem os seus cês e pês porque nós não os pronunciamos. Acepção, por exemplo. Mas como os brasileiros os pronunciam e as formas brasileiras, tal como as portuguesas, passam a ser corretas em todo o espaço lusófono, qualquer português que queira continuar a escrever essas consoantes mudas pode fazê-lo e está a escrever com inteira correção. Isto é, em muitos casos serão os maiores teimosos ortográficos, incluindo os xenófobos que dizem disparates atrás de disparates sobre a língua que se fala cá e lá, quem passará a escrever à brasileira.

Divertidíssimo.

Quem quiser analisar isto pessoalmente tem no Portal da Língua Portuguesa uma lista completa do que muda e onde. Está aqui. Chamo particular atenção para as notas.

Portanto chega da parvoíce da cedência ao Brasil, sim? E antes que venham falar-me do célebre argumento sobre a abertura das vogais, deixem-me mandar-vos até às ideias erradas. Mas antes, há outra parvoíce de que vos quero falar.

Há por aí uns linguistas (bem, pelo menos um linguista, um tal António Emiliano) que chegam ao ridículo de "desafiar seja quem for a usar o acordo", afirmando que ninguém o percebe, que ninguém sabe usá-lo, aqui d'El-Rei que cai o Carmo e a Trindade se alguém conseguir. Pois lamento informar o caro linguista, mas eu, pelos vistos, sei mais de linguística do que ele, mesmo não sendo linguista, porque já uso o acordo no quotidiano há meio ano, já traduzi um livro de quase 400 páginas usando o acordo e já tenho outro de 400 e tal quase traduzido, já escrevi duas peças de ficção usando o acordo, uma curta, outra razoavelmente longa, etc., etc., etc., tudo usando o acordo e sem qualquer dúvida séria sobre o que se usa onde (houve algumas dúvidas na questão da hifenação, que realmente está confusa, mas nestes seis meses e em centenas de milhares de palavras devo ter tido dúvidas menos de dez vezes). E não sou o único. Conheço várias pessoas que usam o acordo no dia-a-dia sem a mais pequena dificuldade, e algumas nem sequer fazem vida das letras. Gente que consegue fazer aquilo que para o nosso amigo linguista é impossível.

Há alguém nesta história que é muito incompetente, pelos vistos.

Mas adiante, melhoremos isto mais um bocadinho e debrucemo-nos sobre...

As Ideias Erradas

As ideias erradas são aquelas ideias que até parecem fazer sentido até se pensar um bocadinho nelas. Depois, descobre-se que a ideia é errada. Ou mais uma parvoíce (não é bem a mesma coisa). Por exemplo:

Há muito quem diga — esse foi, aliás, o argumento para a manutenção das consoantes mudas que já o eram quando se reviu a ortografia em 1911 — que as consoantes mudas servem para abrir a vogal que a antecede. Repare-se que não dizem que serve para abrir algumas vogais, o que de resto não faria sentido; dizem que é para abrir as vogais, uma afirmação totalizante e taxativa. Ora, qualquer estudo básico de lógica ensina que, para provar ser falsa uma afirmação deste género basta encontrar um caso em que ela seja falsa. Então cá está ele: actual. QED.

Esta ideia, aliás, baseia-se muito numa parvoíce infelizmente muito disseminada: a ideia de que a ortografia determina a pronúncia. É uma ideia popular entre pessoas que têm na cultura livresca a coluna vertebral da sua forma de olhar o mundo, mas que, infelizmente para elas e para todos nós (porque não se calam com isto), é crassa asneira. Reparem:

Portugal tem uma ortografia unificada há cerca de dois séculos. Caso fosse a ortografia a determinar a pronúncia, todas as pessoas alfabetizadas pronunciariam as palavras da mesma forma, o que teria como consequência imediata o desaparecimento dos sotaques (ou melhor, a redução de todos eles a um sotaque padrão). Óbvio, não? Ora, como isso não acontece, como se comprova facilmente todos os dias, forçoso se torna concluir que a ortografia não determina a pronúncia. É simples lógica, meus caros amigos. A consequência que isto tem para o acordo ortográfico é que, ao contrário do que dizem os adversários do acordo em Portugal, a abolição das consoantes mudas não vai fechar as vogais que as antecediam, e ao contrário do que dizem os adversários do acordo no Brasil, a abolição do trema não vai fazer com que deixe de se pronunciar o u em palavras como frequência, como aliás nós, em Portugal, sabemos perfeitamente.

(E sim, eu sei que existe uma redução dos sotaques em curso. Acontece que ela não é determinada pelas normas ortográficas, mas sim pelos media audiovisuais, primeiro o rádio, depois a televisão, e pela muito maior mobilidade que o século XX trouxe às pessoas)

O que seria bom que as pessoas compreendessem é que a língua é, verdadeiramente, a oralidade. A escrita e as regras que a regem são apenas um sucedâneo do fenómeno linguístico, que é intrinseco ao ser humano e tem muito de instintivo, pelo menos nos primeiros tempos da aprendizagem, e um sucedâneo que é altamente arbitrário. Uma mesma língua pode ser expressa duma infinidade de formas diferentes sem que mude minimamente. Com outras regras de transposição da fala para o texto, este muda mas a língua propriamente dita não. Por exemplo, esta última frase poderia escrever-se como "kom outrah regrah de tranhpozisão da fala para o texto, ehte muda mas a língua propriamente dita não" se a regra fosse usar k para o c de cão e o qu de quem, h para aquela espécie de x curto que se exprime com s nos plurais e antes de consoante, etc. A língua e a forma como é pronunciada é a mesma, as regras ortográficas é que são diferentes. Podíamos até mudar de alfabeto, que a língua continuaria a ser a mesma (há casos de povos inteiros que foi isso mesmo que fizeram; os moldavos, por exemplo, fizeram-no por duas vezes no século XX). Uma coisa é independente da outra. Metam isto na cabeça. Ninguém vai passar a "falar brasileiro", como muito pateta anda por aí a apregoar, por deixarmos de escrever letras que já não pronunciamos.

Outra ideia errada fala, não do português, mas do inglês e, com menos insistência, do espanhol. Diz-se com frequência que o acordo ortográfico é desnecessário para aquilo que se pretende fazer com ele, porque o inglês não precisa de acordo nenhum para ser dominante. Idem para o espanhol. Pois bem, quem diz isto está a esquecer-se de que existe algo chamado Hollywood que, por si só, mesmo na ausência de tudo o resto, transforma o inglês numa língua dominante a nível internacional. E há ainda tudo o resto. O poderio económico dos Estados Unidos, que tem impacto direto na projeção da sua língua noutras formas de arte e na tecnologia pelo mundo fora, etc. O português não tem nada disso. Tem um país desenvolvido mas que não está entre os mais desenvolvidos e não tem um peso demográfico que permita gerar um mercado interno suficiente para que a língua se imponha, tem um gigante ainda adormecido, que continua em desenvolvimento, que ainda é uma economia emergente, e tem mais uma série de países em geral muito pobres. Comparar uma coisa com a outra é comparar alhos com bugalhos. É óbvio que aquilo que resulta para o inglês não pode resultar para o português.

E quanto ao espanhol, quem dá esse exemplo está a entrar no campo da parvoíce. Porque o espanhol é gerido internacionalmente pela Real Academía Española. Não existe um acordo ortográfico porque a RAE é a autoridade linguística de todo o espaço de língua castelhana, e é a própria RAE a reconhecer as duplas grafias e os regionalismos dos vários pontos do globo em que se fala espanhol. Na língua portuguesa não temos nenhuma RAE; o Instituto Camões não tem nem a força nem a projeção internacional que a RAE tem, e o Instituto Internacional da Língua Portuguesa, criado no âmbito da CPLP, é ainda novo e algo incipiente. Aliás, nem existia quando o acordo ortográfico foi assinado, em 1990. Consequência? A ortografia tem de ser objeto de acordo entre os estados. É uma inevitabilidade.

E finalmente, chegámos ao último grupo,

As Ideias Válidas

No meio de tanta patacoada, é com um certo alívio que se vê alguém a lançar ideias válidas. Mas mesmo nestas, a minha opinião tende a ser contrária à dos que se opõem ao acordo. Por exemplo:

Uma das ideias válidas que tem sido lançada é que só faz sentido avançar em simultâneo, isto é, que todos os países deviam adotar o acordo ao mesmo tempo. É verdade. Mas acontece que foi essa a opção tomada em 1990, e falhou. Foi essa a opção seguida aquando do primeiro protocolo modificativo, e também falhou. Deixou de ser essa a opção seguida aquando do segundo protocolo modificativo porque as outras duas falharam. E está a resultar. Neste momento, dos oito países lusófonos só Angola e Moçambique ainda não procederam às ratificações necessárias. São os únicos que faltam, os outros seis já se encontram no barco.

E note-se que aqui ninguém impõe nada a ninguém. Há uma diferença entre assinatura e ratificação. O acordo foi negociado por todos e foi assinado por todos. Os dois protocolos modificativos também. Com essas assinaturas, os países manifestaram-se de acordo com o acordo, com perdão do pleonasmo. Falta, em dois casos, a ratificação, que corresponde à transposição da ortografia para a ordem jurídica interna de cada um dos estados. Ou seja, falta eles porem em prática algo com que já disseram repetidamente que concordavam. É questão de tempo, nada mais.

Outra ideia válida diz que o acordo é desnecessário porque o português de Portugal e o do Brasil se encontram em divergência, a caminho de se transformarem em línguas diferentes e, portanto, tentar unificar a sua ortografia é tentar remar contra a maré. O futuro dirá se assim é ou não, mas eu julgo que quem assim pensa ainda não compreendeu o mundo em que vivemos já hoje e o mundo que viveremos no futuro.

É que as línguas, para divergirem dum tronco comum e se formarem, precisam duma coisa acima de tudo: isolamento. Portugal e Brasil tiveram esse isolamento ao longo dos 200 anos que decorreram desde a independência da nossa antiga colónia americana. Mas hoje, esse isolamento já não existe. Nunca como hoje portugueses e brasileiros comunicaram tanto entre si, pela internet escrita mas também, cada vez mais, através de teleconferência e outras formas tecnológicas de unir as pessoas. E nunca como hoje houve tanta mistura de sotaques nas nossas cidades. Um dia, também os outros países lusófonos começarão a chegar em número significativo a este vasto espaço de língua portuguesa que já está criado no mundo eletrónico e que nele cresce rapidamente. A lusofonia não é uma ideia abstrata, saída da cabeça de utópicos com saudades do império: é uma realidade criada todos os dias pelos falantes de português espalhados pelos quatro cantos do mundo com uma ligação à internet. Ora, sem isolamento, não me parece que a divergência continue a aprofundar-se. Pelo contrário, creio que a partir de agora o português tende, isso sim, a reunificar-se, num processo algo semelhante à redução de sotaques causada pela rádio e pela televisão. Será um processo lento, muito mais lento do que aquele, mas creio que é inevitável e que, enquanto houver toda esta comunicação ao alcance dos dedos, é também irreversível. E que, seja como for, tem muito pouco a ver com a ortografia.

Com esta já tem a ver uma terceira ideia válida, a de que a supressão das consoantes mudas é um erro porque afasta as palavras da sua raiz etimológica. É inteiramente válido que se pense assim, e é verdade que é isso que acontece. Mas, meus caros amigos, o que se está a fazer agora não passa de dar sequência a um trabalho que ficou a meio quando Portugal avançou sozinho para a reforma de 1911. Não havia, e continua a não haver, qualquer motivo válido para que sciencia passe a ciência, mas abstracto não passe a abstrato. Não havia lógica, e continua a não haver, para que herva passe a erva mas actual não passe a atual. E não há qualquer problema, hoje em dia, em reconhecer em erva a mesma raiz etimológica de herbáceo. De modo que não compreendo quem quer manter os restos de teimosia etimológica que a reforma de 1911 deixou ficar para trás, mas não defende o regresso à ortografia etimológica "pura" (que não o era lá muito, mas faz de conta) anterior a 1911. No fundo, o que estão a defender é a mixórdia que tínhamos até 1 de Janeiro último, em que parte da ortografia é determinada primordialmente pela fonética, e a outra parte pela etimologia. Embora eu compreenda quem defende a ortografia etimológica, custa-me muito a compreender quem defende a mixórdia ortográfica. Em 1911, Portugal, e só Portugal, deu início a um caminho que faltava concluir. O Brasil teve mais tarde a coragem de dar os passos seguintes, infelizmente sozinho. Pois bem, já é mais que tempo de os darmos também nós.

E fico-me por aqui, que isto já vai um pouco longo demais.

domingo, 3 de janeiro de 2010

Lido: A Sinistra Aventura

A Sinistra Aventura (bib.), de Miguel Carqueija, é um conto lovecraftiano que tenta usar duma forma divertida a atmosfera pulp das histórias do início do século XX, contemporâneas ao próprio Lovecraft, embora se desenrole "no tempo da exacerbação eletrónica". Um investigador é contratado, por uma baronesa absolutamente insuportável e pela filha, para encontrar o barão, pai duma e marido de outra, que terá desaparecido num portal dimensional à boa maneira dos exploradores temerários dos pulp mais antigos. E a história desenrola-se a partir daí, terminando, como é óbvio desde o início, com o barão encontrado, toda a gente vivinha da Silva e sem um arranhão, apesar do sítio a que o tal portal dimensional vai dar nos ser apresentado como muito perigoso, e a herdeira já a pensar em casamento com o destemido investigador, depois de ter passado com ele algumas horas.

Não sou, muito longe disso, fã dos pulps à antiga. Sempre achei a fórmula que utilizam simplória em demasia, e tão previsível que torna as histórias um aborrecimento pegado. Mesmo quando conseguem evitar seguir de cliché em cliché como quem atravessa um ribeiro por cima das pedras semeadas pelo seu leito sem chegar a molhar os pés. Como esta não consegue fazer isso, e julgo que nem sequer tenta, suponho que não seja de surpreender que não tenha gostado nada dela. Até porque, além de lhe encontrar o defeito do pulp, encontrei também outros. Achei-a, por exemplo, apressada, contando resumidamente uma história que exigiria uma maior elaboração para ser contada decentemente, e ocupando ainda por cima uma boa parte do texto com as discussões parvas entre mãe e filha, que não adiantam nem atrasam. Só um exemplo. Podia dar outros, mas julgo que não vale a pena: vocês já perceberam.

sábado, 2 de janeiro de 2010

Lido: Potherb Gardening

Potherb Gardening é um poema de Ruth Berman, que, com uma dose razoável de humor, dá conselhos de jardinagem de fantasia, listando as qualidades das terras disto e daquilo (a terra de sereias é boa para pântanos, a de unicórnios limpa venenos, coisas assim). Não me parece grande coisa como poema — mas que sei eu de poesia? — mas lê-se com um sorriso, de modo que não tenho nada contra. Estranho é a inclusão de algo tão decididamente fantasista numa revista de FC. Estranho, mas aceito, naturalmente.

E acabou-se a enxurrada de posts: este foi o último dos textos curtinhos que li hoje.

Lido: O Fato Virado

Curiosa coincidência ter lido O Fato Virado precisamente hoje, dia 2 de Janeiro. É que esta crónica de José Saramago se debruça, precisamente, sobre a falsidade das promessas de ano novo, e o que elas têm, no entender do Saramago de há 40 anos, de hipócrita e mentiroso. Não posso dizer que discorde, nem que as coisas tenham mudado muito nas décadas que separam este texto do presente. De modo que esta crónica tem pelo menos esse interesse, embora literariamente não seja nada de especial.

Lido: A Nomeação dos Nomes

Ainda de Bradbury, A Nomeação dos Nomes (bib.) é outro dos tais contos muito curtos que, no livro a que pertencem, têm a função de fazer a ponte entre contos maiores. Como os outros, pouco vale se considerado isoladamente, limitando-se a apresentar ao leitor até que ponto Marte é transformado numa espécie de Terra II, ou, mais propriamente, de América II.

Lido: Conduzindo às Cegas

O último post fala do último conto deste livro, que é, assim, o primeiro livro cuja leitura foi concluída nesta década. E, como marco, podia ser bastante melhor.

Conduzindo às Cegas (bib.), coletânea de 21 contos e, principalmente, contos curtos, de Ray Bradbury, é um livro de velho. Bradbury mostra-se nele uma sombra do que foi, revisitando territórios já percorridos décadas antes, por vezes sem chama, outras com ela reduzida a um pálido reflexo daquilo que o transformou num dos monstros sagrados da literatura fantástica americana. Os contos são frequentemente melancólicos e reflexivos, e o autor olha através deles muito mais para trás do que para o futuro. Bradbury sempre olhou para trás, para os tempos da sua infância, mas normalmente compensava essa nostalgia com brilhantes fábulas sobre futuros possíveis ou apenas sonhados. Aqui, o futuro quase não existe, e quase todo o livro é uma espécie de janela para um mundo moribundo. O seu.

Não quero com isto dizer que não há alguns bons contos, que há. Mas nenhum tem a força de outros tempos, nenhum é genial, como o Bradbury de décadas atrás sabia ser. Bradbury foi um grande escritor, e por isso, mesmo na decadência, ainda consegue por vezes uma qualidade que escritores medíocres só alcançam no seu auge, e como que por acidente. Mas só por vezes. Doutras vezes, cai numa mediania e irrelevância que não lhe fazem justiça. Também por isso, ler este livro se torna algo melancólico.

O tempo não poupa ninguém.

Em termos de géneros, o livro é mais mainstream do que qualquer outra coisa, apesar de vir publicado na coleção Argonauta. Há alguns contos fantásticos, é certo, noutros o fantástico surge sugerido duma forma mais atmosférica apesar de não estar realmente presente, mas a maioria são contos realistas. O que me leva a perguntar a mim próprio se alguns editores lêem mesmo os livros que publicam. A verdade é que há pouca justificação para publicar este livro na Argonauta; será talvez, entre todos os livros da coleção, aquele que menos tem a ver com ficção científica. Não será mau, tanto para a coleção como para o próprio autor, colar tudo o que escreve a um género? No caso de Bradbury, parece-me que essa etiquetagem e todos os preconceitos que com ela vêm (de parte a parte) foi muitíssimo perniciosa, e este livro é um claro exemplo disso. Julgo que teria uma aceitação muito maior junto do público mainstream do que do de FC.

Mas o que está feito, feito está.

Lido: O Cuco que Sai do Relógio

Eis a primeira leitura de 2010. O Cuco que Sai do Relógio (bib.) é um conto americana de Ray Bradbury, que relata o que acontece quando, na paisagem suburbana e/ou de cidade pequena que é típica da maioria dos muitos contos do género que ele escreveu, se instala uma mulher diferente. O estranho que se instala numa comunidade e perturba o seu normal funcionamento é um tema recorrente em Bradbury. Por vezes, o estranho é realmente estranho, um fantasma, uma criatura sobrenatural qualquer, mas doutras trata-se simplesmente de um ser humano como qualquer outro, embora incompreendido e, no contexto daquela comunidade específica, algo excêntrico. Neste conto, acontece o segundo caso, e a mulher vai transformar-se em alvo primeiro do falatório do mulherio circundante. Mas acaba a vingar-se com toda a eficácia. Não sendo, nem de perto, nem de longe, um dos grandes contos de Bradbury, é um conto de leitura agradável que não desmerece o autor.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

Primeiro Passatempo Imaginários


Estão a ver isto que está aqui à esquerda? É a capa do segundo volume de Imaginários, aquele que contém o meu conto, além de mais três contos portugueses e cinco brasileiros. E tenho um exemplar para dar.

Como?, perguntam. E perguntam bem. Mas antes, falemos um pouco de alienígenas.

Toda a gente sabe que os alienígenas da FC, e em particular da FC audiovisual, são com grande frequência menos alienígenas do que muitos membros da nossa espécie, apesar dos bocados de borracha que trazem colados às testas ou às orelhas. Na FC literária as coisas são bastante melhores, e há aí bons exemplos de criação de ETs, mas mesmo assim, com frequência, o mesmo antropocentrismo algo pateta que se vê nos filmes surge nos contos e livros.

Ora, basta olhar para a fauna deste planeta, para organismos que vivem ou viveram aqui mesmo, para se compreender como esta forma de criar alienígenas é limitada.

De modo que o que eu quero que vocês façam é que criem uma espécie de ET, de preferência inteligente, e escrevam uma pequena história à volta dela. Espécies de ET biologicamente credíveis (nada de patetices new-age como "seres de energia" ou "cristais vivos", portanto) mas realmente alienígenas. Na nossa biologia há um vasto campo de inspiração, e podem criar ETs muito estranhos com base em animais e plantas bem reais da nossa biosfera, mas não se sintam limitados por ela se a vossa imaginação for suficientemente delirante.

A história que publiquei hoje aqui em baixo pode servir-vos de guia para o tipo de coisa que tem boas hipóteses de levar o seu autor a ganhar um livro. Com o meu conto autografado, se for essa a sua vontade.

A história vencedora será publicada aqui na Lâmpada. E, se houver histórias razoáveis em quantidade suficiente, pode-se mesmo pensar em fazer um pequeno e-book com elas, se os autores quiserem. Claro que bons ETs com boas histórias têm melhores hipóteses, mas se tiver de escolher entre bons ETs em más histórias e boas histórias com maus ETs, escolho a primeira opção.

As histórias devem ser enviadas para o endereço de email que pode ser encontrado ali na coluna do lado direito, onde diz "contacto". Não há limites de tamanho, nisso têm toda a liberdade. Como para escrever o Escultura-Homenagem o trabalho durou cerca de duas horas, incluindo escrita e revisão, a coisa pode ser bastante rápida e vou dar-vos um prazo curto. Digamos, duas semanas? Um pouco mais? Até terminar o domingo, 17 de Janeiro? OK, então o prazo é esse.

Só mais uma nota: este passatempo tem dois objetivos. Um deles é incentivar à criação e levar autores ou aspirantes a tal a pensar naquilo que um ET realmente alienígena poderia ser. Mas o principal é divulgar o livro onde é complicado adquiri-lo. O que isto significa é que, embora aceite de bom grado contos brasileiros, eles serão no máximo candidatos ao e-book, visto que é simples arranjar o Imaginários no Brasil (a própria editora fornece no seu site uma lista de locais de venda). O vencedor terá de ter um endereço português para onde eu possa enviar o livro.

E como escrever pode ser muito divertido, divirtam-se.

Conto: Escultura-Homenagem

Haverá melhor maneira para começar um ano do que escrevendo um conto? Provavelmente há. Mas, convenhamos, há-as bem piores. Ir ouvir o Emanuel debaixo de chuva, por exemplo.

Este conto foi escrito ontem de madrugada. Pouco mais de uma hora de trabalho, e estava pronto, três páginas de texto, pouco mais de mil palavras. Hoje, meia hora de revisão e ficou melhor. Publicável. Pronto para vos ser oferecido neste primeiro dia de 2010. De modo que aqui o têm.


Escultura-Homenagem

A abertura nada tem de impressionante. Apenas um buraco redondo numa parede branca, pequeno demais para que Henrique não seja obrigado a dobrar-se, com cuidado para não tropeçar. É o que faz, apertando ao peito o pictogramógrafo. Da entrada parte um túnel, cujo diâmetro se vai alargando progressivamente até desembocar numa espécie de gruta, iluminada por uma luz difusa que parece vir das paredes, e obstruída por uma floresta de estalactites nitidamente artificiais, cones perfeitos que terminam em pontas agudas a centímetros do chão. Mas é claro não se tratar de nada de sólido ou pesado, pois basta a leve aragem criada pelos movimentos de Henrique para as fazer oscilar lentamente. Pêndulos solenes.
Olha em volta, olha para cima. Dá dois passos para um lado, outros quatro para outro, examinando a disposição das estalactites, tentando encontrar nelas algum motivo escondido. Nada encontra. Outra abertura escancara-se, negra, ao seu lado direito e é para lá que se dirige. Esta está concebida de modo a que possa ser percorrida confortavelmente, mas Henrique precisa de parar alguns momentos para conseguir adaptar-se à escuridão e ver um muito ténue veio de luz a sobressair no negrume e a indicar-lhe o caminho. Segue-o. Um pouco mais adiante, o corredor vira à esquerda, e vai desembocar numa segunda sala, esta brilhantemente iluminada com pequenos projetores multicoloridos que derramam todas as cores do arco-íris através duma miríade de estruturas que se assemelham a uma espécie de biombos translúcidos que lhe chegam aos ombros. Alguns fios de seda prendem-nos ao teto, e outros, mais grossos, geram padrões abstratos e variados nos próprios biombos. O caminho aberto entre eles leva Henrique a atravessar o centro da sala, onde todas as cores se fundem em brancura e os padrões formam um desenho em mutação constante, de novo causada pela levíssima aragem dos seus movimentos.
Henrique para um momento, maravilhado. Aquilo é, lembra a si próprio, o resultado de pouco mais de vinte e quatro horas de trabalho ininterrupto.
Continua a avançar. A saída da sala é, desta vez, uma larga arcada tapada por uma cascata de fios de seda aos quais estão presas a intervalos regulares minúsculas gotas iridescentes de algo que parece um líquido. Hesita antes de lhes tocar, instintivamente convencido de que aqueles filamentos são pegajosos e se lhe irão prender nas mãos ou no corpo. Mas ao vê-los ondular com a aragem da sua respiração, apercebe-se de que não se prendem uns aos outros, não se entrelaçam, não se emaranham, antes deslizam como se estivessem imunes a qualquer tipo de atrito. Por isso avança uma mão, tateia os filamentos com dedos cautelosos, sentindo-os fluir e fazer cócegas como longos cabelos secos. Segue a mão e penetra noutro corredor. Este é curvo desde o início, uma curva larga e suave para a direita, iluminada com uma luz muito forte cuja origem Henrique não consegue ver dali.
Percorre lentamente o corredor, cada vez mais ofuscado. Para por um instante. Procura nos bolsos os óculos de ajustamento de frequência, amaldiçoando-se por só agora se ter lembrado deles, e leva-os à cara. Assim que os põe, o corredor como que ganha vida. A luz, que parecia tão simples e potente como a dum projetor, dissolve-se em subtileza, e as paredes cobrem-se de desenhos realistas de animais e plantas, cenas de um mundo natural que lhe é estranho. Grandes animais voadores com quatro asas, minúsculos seres carnudos que parecem ser propulsionados a jato, milípedes gigantescos de corpo achatado, saltitões assentes num único pedúnculo semelhante a um caule e com uma coroa de apêndices a rodear aquilo que provavelmente será uma cabeça, plantas de folhas gigantescas e esburacadas, inflorescências de formas bizarras. Uma janela aberta para um mundo alienígena que Henrique só conhece muito vagamente. Demora-se, maravilhado, mas por fim arranca-se àquela contemplação e continua a avançar. À frente, ouvem-se ruídos, uma espécie de frufru, estalidos musicais. No fim do corredor, uma nova cortina de filamentos de seda define o início duma nova sala. Henrique atravessa-a e estaca.
O tórax do alienígena roda sobre si próprio, perfazendo cento e oitenta graus com uma velocidade excessiva, brandindo dois braços numa grande agitação. O abdómen em forma de pêra, de onde saem quatro patas carnudas com três articulações cada termina em mais dois apêndices, muito mais curtos do que os restantes, que trabalham num frenesi a seda que sai duma glândula bolbosa situada entre eles, um pouco mais abaixo. Trabalham-na dando-lhe a forma de cordões ou fitas, e vão adicioná-la a um objeto qualquer que Henrique não consegue ver dali por estar escondido pela parte mais larga da pêra. Através dos óculos de ajustamento de frequência, o alienígena parece tão colorido como uma arara ou um peixe-dragão. Henrique pega no pictogramógrafo, carrega na combinação de teclas que faz apresentar o pictograma de saudação interespecífica e apresenta-o ao alienígena. Este, sem nunca deixar de trabalhar a seda com todo o afã, dispara um braço articulado em quatro pontos e em menos de um segundo faz suceder no pictogramógrafo um conjunto de imagens que se atropelam com demasiada rapidez para que Henrique as consiga captar. O auricular ligado ao aparelho vem em seu socorro, traduzindo-as para áudio, a uma velocidade mais adequada.
— Saudação-interespecífica / resposta-enfática.
— Aguardar / caro-amigo / quase-feito / escultura-homenagem.
— Pronto-pronto.
E de novo o rodopio de tórax. Henrique espera, sentindo curiosidade de saber o que faltará para concluir aquela obra de arte, mas sem que essa curiosidade seja suficiente para o levar a cometer a provável indiscrição de se aproximar ou de espreitar. Mas não tem de esperar muito. Minutos mais tarde, o tórax do alienígena volta a rodopiar com grande rapidez e sem aviso prévio, e o seu abdómen desvia-se para o lado, com tanta velocidade que é como se num momento estivesse parado num sítio e no instante seguinte se encontrasse noutro, igualmente parado. Os braços teclam no pictogramógrafo uma breve sucessão de pictogramas, e o auricular traduz:
— Feito-feito / escultura-homenagem.
Henrique aproxima-se, já a introduzir no pictogramógrafo os pictogramas de admiração e elogio que sabe serem adequados. Mas é com dificuldade que os conclui, com mãos que começaram a tremer e braços cuja pele se enruga num arrepio. De repente, toda aquela sucessão fantasticamente bela de grutas de seda como que se transforma num túmulo. Pois na sua frente está uma representação humana em tamanho natural, uma representação humana com feições que não tem qualquer dificuldade em reconhecer como suas, e Henrique sente o coração na garganta porque essa representação humana tem os olhos fechados e a coloração uniformemente branca duma mortalha.

2010

E lá começou mais um. Que terá, tudo o indica, a dúbia distinção de vir a ser um dos piores anos da minha vida.

É que nem que tudo o resto me corra improvavelmente bem. Nem que o trabalho continue a ser abundante e interessante, nem que o Martin conclua o seu quinto livro, ele seja tão bom como o terceiro (ou melhor, porque não?) e eu o traduza com o mesmo gozo com que traduzi o Storm of Swords. Nem que Unidade em Chamas, a pequena novela que escrevi em Outubro, seja mesmo publicada no Brasil e seja unanimemente aplaudida. Nem que consiga acabar o romance que estou a escrever, ele saia tão bom como eu desejo, e a primeira editora a que o apresentar corra a publicá-lo e consiga vendê-lo como pãezinhos quentes. Nem que me farte de ganhar amigos novos, não perca nenhum dos antigos e os inimigos me deixem em paz duma vez por todas. Há uma coisa, uma probabilidade, uma quase certeza, que se sobrepõe a tudo e fará deste ano de 2010 um ano de merda.

Mas isso é para mim. Que os vossos sejam tudo com que sonham. Que esta economia de bosta que tivemos em 2009 melhore mesmo. Que a porcaria de políticos que nos governa ganhe por artes mágicas um mínimo de qualidade e deixe, já agora, de se dedicar a birrinhas cretinas e faça política, o que implica negociação e cedência. Que o desemprego se transforme em emprego. Que deixe de haver tanto disparate à volta do acordo ortográfico. E que percamos menos tempo com merdas, todos nós, para nos dedicarmos de alma e coração ao que realmente interessa.

Porque o tempo, esse porco, não espera por nada nem ninguém.

Ah, sim, e que voltem cá em breve, porque assim que me passar a neura tenho coisas novas para vos dar.