domingo, 28 de abril de 2019

Leiturtugas da semana

E cá temos mais uma semana de Leiturtugas, mais uma vez com o Marco Lopes a abrir com mais uma opinião sobre mais um conto da antologia Por Mundos Divergentes. Esta semana é um conto de Ana C. Nunes e intitula-se Dispensáveis. É um conto de ficção científica, como já se sabe, e o Marco passa a 11c0s. E falta-lhe uma opinião para cumprir os objetivos anuais.

E desta vez não esteve sozinho. Foi ainda na semana anterior que a Maria publicou mais uma opinião que, depois de algumas dúvidas, acabou por integrar também no projeto, durante esta semana. Fala ela nessa opinião do livro de contos Impressão Indelével, de Camilo Castelo Branco, o qual inclui pelo menos uma história que é possível integrar na literatura fantástica (e faz parte de duas das três edições da Antologia do Conto Fantástico Português). Nada nesse livro existe de FC, no entanto, pelo que a Maria passa a 1c3s.

Por fim, o Artur Coelho publicou a sua opinião sobre Lisboa Oculta, uma antologia sem informação disponível sobre o organizador (mas que eu suponho que seja o Carlos Silva), publicada pela Imaginauta. Tenho sempre partido do princípio de que este livro deverá ter textos que pelo menos rocem a ficção científica, mas esta opinião do Artur deixou-me na dúvida. Seja como for, vou supor provisoriamente que sim e passar o Artur para 3c1s; se não estiver correto logo se corrige mais tarde.

quinta-feira, 25 de abril de 2019

Achas que vives numa democracia completa? Pois enganas-te redondamente.

A esquerda tem feito um péssimo trabalho a explicar às pessoas a ideia de que não existe democracia real sem haver também democracia económica. E sem isso, não vamos lá.

É possível que parte do motivo para tão mau trabalho seja as várias esquerdas darem pesos muito diferentes às duas partes desta equação. Alguma esquerda, com demasiados exemplos históricos que, por óbvios, me dispenso se citar, tende a ignorar a democracia política em prol da económica (esta última mais teórica que real, ainda por cima, pois em todos esses casos se formou uma casta com poder político e poder económico a condizer). Pelo contrário, outra, que tende a só se distinguir da direita na retórica, ignora a democracia económica, resumindo a equação democrática à política.

Não fossem essas divergências, julgo que seria um conceito bastante simples de explicar. Tão simples, na verdade, que essa explicação talvez bastasse para erodir significativamente alguns mitos urbanos que ajudam a direita a manter a óbvia preponderância que detém na opinião publicada.

Tudo radica no conceito de poder e nas formas de que esse conceito se pode revestir.

A democracia, como se sabe, baseia-se na ideia de que todos os membros de um determinado grupo humano detêm o mesmo poder para determinar a direção política desse grupo de que fazem parte. Nas democracias políticas, na maior parte dos casos, esse poder uniforme e universal é exercido por intermédio do voto e emprestado a representantes cuja função é agir em obediência às propostas sufragadas, seja pelo todo social, seja pelos eleitores de uma determinada fação política (quando a representação se faz em estruturas parlamentares).

E nunca é perfeita. Isto é, existem sempre desvios, maiores ou menores, a este ideal de universalidade do poder, e a democracia é tanto mais avançada quanto menores forem esses desvios.

E parte dos desvios (e na verdade uma parte considerável) vem diretamente da economia.

A questão é que numa sociedade cuja economia se baseie em dinheiro (e em qualquer sociedade cuja economia se baseie em dinheiro, não só no capitalismo financeiro em que vivemos), este confere poder a quem o tem. Esse poder pode ser tão básico como o poder de escolher o que consumir e o que deixar nas prateleiras das lojas, ou seja, o poder de decidir onde (e se) gastar o dinheiro que se tem, poder esse que tem um impacto direto sobre toda a sociedade, mesmo em sistemas de economia planificada, quanto mais não seja por poder gerar maior ou menor proporção de desperdícios, o que tem impacto na eficiência da produção, o que tem impacto na eficiência da economia e por aí fora.

Mas quando a desproporção entre quem tem mais e quem tem menos aumenta, começa a fazer-se sentir um outro poder, mais insidioso e mais diretamente político: o poder de levar outras pessoas a fazer o que se quer que elas façam.

O que também tem vários graus. Pode tratar-se apenas de poder contratar alguém para fazer um trabalho que não se quer ou não se tem capacidade para fazer. Mas no extremo oposto desta escala está a corrupção, a compra de votos, a compra de influência política, a compra de leis que beneficiem especialmente quem detém mais poder financeiro, e por aí fora.

É fácil de perceber até que ponto isto distorce e deturpa a democracia. Quando deixamos que a vontade e os interesses de uns poucos se sobreponham à vontade e aos interesses da maioria, porque esses poucos são capazes de brandir um poder económico despropocionalmente elevado, estamos a deixar que a democracia se deteriore, mesmo que no campo formal e institucional ela pareça funcionar na perfeição.

Um exemplo prático: Portugal tem uma instituição chamada Comissão Permanente de Concertação Social. Nela têm assento representantes do governo, representantes das confederações patronais e representantes das confederações sindicais. Ou seja: representantes do poder político, representantes do poder económico, e representantes do resto do mundo laboral. Independentemente do que se possa pensar sobre a utilidade de uma tal instituição para manter a paz social, é indiscutível que ela reconhece institucional e politicamente a vasta diferença de poder económico entre o punhado de patrões e a grande massa de trabalhadores. Quando se faz depender do acordo da concertação social coisas como o montante do salário mínimo está-se a dizer que uma fração diminuta da população, o patronato, tem tanto ou mais poder político que a vasta maioria.

E isso não é democrático.

Porque a democracia, como se sabe, se baseia na ideia de que todos os membros de um determinado grupo humano detêm o mesmo poder para determinar a direção política desse grupo de que fazem parte.

Pode-se achar que a democracia deve ser limitada ao mero formalismo político. É, basicamente, o que a direita pensa. Mas a esquerda, que tem na democracia económica um dos seus principais esteios e tem-se deixado demasiadas vezes (e muito por culpa própria) acantonar em posições defensivas relativas não só à economia e ao mundo do trabalho mas à própria ideia da democracia, teria a obrigação de deixar muito claro

- que a luta contra a desigualdade é uma luta pela democracia
- que a democracia só se completa quando for tanto política como económica
- que uma democracia realmente avançada é uma democracia capaz de reduzir as diferenças de poder entre os vários grupos de que se compõe
- que políticas que fomentem a desigualdade, qualquer desigualdade, são na sua essência políticas que atacam a democracia

E por aí fora.

Isto é particularmente sério num momento em que o ideal democrático está em erosão acentuada. Pudera: quando a democracia económica não existe, haver democracia política é equivalente a ter-se apenas duas pernas de uma cadeira, deixando-a tão instável que muita gente pode sentir-se tentada a pensar que não serve para nada. Especialmente quando quase ninguém fala das duas pernas em falta.

É mais que tempo de começarmos a falar. Consistentemente. Constantemente. Não (nunca!) em oposição à democracia política, mas como complemento urgente.

quarta-feira, 24 de abril de 2019

Lido: José Matias

Com José Matias, cujo título dificilmente poderia ser mais apropriado, Eça de Queirós regressa aos estudos de personagem que abrem este livro. E este é bastante longo para esta espécie de retratos: 18 páginas de letra miudinha e apertadinha.

A personagem que Eça estuda é, claro, José Matias. Um jovem aristocrata ultrarromântico que se perde de amores platónicos (e correspondidos) por uma bela casada e se recusa a permitir que o platonismo passe a coisa concretizada quando a rapariga fica viúva, tudo contado como quem fala connosco, numa narração onde aqui e ali assomam as marcas de oralidade típicas do discurso direto. A princípio parece que a costumeira ironia queirosiana vai desfazer a tolice e o absurdo inerente àquela patetice sentimental, mas com o desenrolar da história percebemos que não, que Eça não troça do seu protagonista; tem pena dele.

O detalhe mais bem apanhado deste conto é a forma narrativa. Eça escreve como quem fala com o leitor, com marcas de oralidade que, não sendo fortes, estão espalhadas pelo texto. Dirige-se diretamente ao leitor, chamando-lhe "meu amigo", e explica-lhe a história das idas e vindas da sua relação com José Matias e, por intermédio dessa história, também a vida do protagonista desde que pela primeira vez pôs os olhos naquela que viria a ser o objeto da sua paixão platónica, até à sua morte (e não, não estou a revelar nada que Eça não revele logo na primeira linha do conto), destruído e alcoólico, anos mais tarde.

Mas não posso dizer que tenha realmente gostado desta história. Sim, está tão bem escrita como seria de esperar de algo feito pelo Eça, e sim, a técnica narrativa é usada de forma praticamente perfeita. Mas a história que Eça conta foi-me aborrecendo mais depressa do que as páginas foram passando. Poderia talvez ter gostado dela com cerca de metade da extensão, apesar de reconhecer ser provável que sem prolongar a lenta agonia autoimposta do protagonista Eça teria tido dificuldade em retratá-lo de forma adequadamente patética. Mas mesmo assim... É que muito antes de chegarmos ao fim, muito antes, já sabemos que estamos perante um palerma tresloucado, e a confirmação e reconfirmação desse facto em sucessivas peripécias em que o tosco do protagonista toma as decisões mais estúpidas possíveis depressa se tornam francamente maçudas.

Lá está: nada tenho a apontar à forma, bem pelo contrário. Mas o conteúdo... meh. E como dou primazia ao conteúdo, a opinião final não é das melhores.

Contos anteriores deste livro:

terça-feira, 23 de abril de 2019

Lido: Crupe dos Doenceiros

E terminaram as releituras, mas no caso deste conto e do que se segue, isso só aconteceu porque o livro em que eles se inserem ainda está há mais tempo à espera na pilha de leituras futuras do que este número da Bang!

Escrito por Neil Gaiman (ou melhor, pelo Dr. Neil Gaiman), este Crupe dos Doenceiros (bibliografia) é um pseudofactual vagamente borgesiano cuja principal força está no brilhante uso da linguagem (muito bem vertido para português, já agora) que confere à história uma camada adicional e fundamental de significado. Gaiman descreve uma doença imaginária (o que de resto é a proposta do tal livro) que se pode resumir como uma forma peculiar de hipocondria com alguns sintomas adicionais.

Sou, como sabe quem costuma ler-me, mais sensível ao conteúdo do que à forma. Mas o topo da fruição literária dá-se, para mim, quando a forma serve o conteúdo de forma perfeita. Não quando o substitui, como tantas vezes acontece, mas quando o serve. E é precisamente o caso aqui. Este conto é excelente.

Contos anteriores desta publicação:

domingo, 21 de abril de 2019

Lido: O Nome do Diabrete (Rumpelstilzchen)

E continuamos em maré de crueldades e sacanices. O Nome do Diabrete (Rumpelstilzchen) é mais um daqueles contos que os Irmãos Grimm construíram a partir de várias histórias tradicionais pré-existentes e é mais um daqueles contos que começam em mentira e crueldade e terminam em injustiça.

Tudo começa com mentira. Um moleiro tinha uma filha bonita mas, não lhe chegando, tenta promovê-la mentindo que a rapariga era tão dotada que era capaz de fiar palha e transformá-la em ouro. Segue-se a crueldade: o rei ouve aquilo e decide pôr a rapariga à prova, encerrando-a numa sala cheia de palha e ameaçando matá-la caso ela não tivesse a palha toda transformada em ouro no dia seguinte.

É então que aparece o diabrete, que faz um acordo razoavelmente faustiano com a rapariga: salva-a mas não gratuitamente. Só que, rapariga salva, chega a hora do pagamento e esta não paga. O diabrete ainda lhe dá mais uma oportunidade, dispensando-a do pagamento se ela no prazo de três dias adivinhasse o seu nome. E ela adivinha... fazendo batota.

Este é mais um daqueles contos muito reveladores da psique alemã (embora os Grimm também deem conta de versões do conto em França e em alguns países nórdicos). Basta isso para o tornar interessante. Não propriamente agradável de ler, talvez, mas interessante.

Contos anteriores deste livro:

Leiturtugas da semana

Mais uma vez, temos Leiturtugas a apresentar e, mais uma vez, quem inaugura as festividades da semana é o Marco Lopes, com mais uma opinião sobre mais um conto da antologia Por Mundos Divergentes. Calha a vez ao conto Em Asas Vermelhas, de Nuno Almeida. Mais um conto de FC, claro, pelo que o Marco passa a 10c0s.

Mas desta vez ficamo-nos por aqui. Não houve mais, foi só a do Marco. Até para a semana.

sexta-feira, 19 de abril de 2019

Lido: O Patriota Improvável

E eis-nos de regresso às releituras. O Patriota Improvável (bibliografia) é um conto de história alternativa de Maria de Menezes que eu já tinha lido e comentado há quatro anos. Tão pouco tempo depois, é natural que não tenha absolutamente nada a acrescentar à opinião que aqui deixei então. Ou melhor, até tenho: de todas as releituras a que este número da Bang! me levou, algumas bem mais distantes no tempo do que esta, este é o conto que eu recordava pior.

Não é nada bom sinal.

Contos anteriores desta publicação:

quinta-feira, 18 de abril de 2019

Lido: O Mundo Apagado

A um conto sobre maluquice segue-se logo outro. Aqui é um autor português quem nos leva aos labirintos da mente de um incel, palavra de origem inglesa que nasceu como acrónimo de "celibatário involuntário": Vasco Luís Curado.

Este O Mundo Apagado (bibliografia) é basicamente um estudo de personagem, e com poucos argumentos para justificar a sua inclusão nos géneros fantásticos. Existe uma impressão subjetiva de apagamento do mundo por parte de um homem abandonado (e gozado) pela ex-namorada, associada a um mergulho progressivo numa espécie de loucura de autoisolamento, mas não existe realmente uma sugestão de que essas alterações na estrutura subjetiva do mundo exterior possam ter algum paralelo na realidade, ou seja, que possam não se limitar a alterações presentes apenas na cabeça do protagonista, as quais ainda por cima se autoderrotam na decisão de contar a história em primeira pessoa: se o homem apaga o mundo, está a contar a história a quem?

Haverá aqui, suponho, um pouco de terror psicológico, mas é visível que o objetivo do conto não é causar alguma espécie de medo ou de qualquer outra reação visceral. É apenas explorar um delírio e levá-lo às suas consequências. E fá-lo bem, com a ressalva da primeira pessoa de que falo acima, e apesar de ficarmos a saber no último parágrafo que ele tem momentos de lucidez, o que diminui essa ressalva; o conto está bem escrito, a narração progride de uma forma previsível mas segura. No fundo é o que importa, não é?

Contos anteriores desta publicação:

quarta-feira, 17 de abril de 2019

Lido: O Bornal, o Chapéu e a Corneta

Um dos clichés eternos dos contos populares em que aparecem três irmãos ou, mais raramente, outros tipos de trios (e têm de ser três, naturalmente), determina que os dois primeiros a aparecer na história devem ter características semelhantes mas o terceiro faça contraste com eles em algum detalhe fulcral (ou em mais que um), ou pelo menos que as qualidades (ou defeitos) vão em progressão do primeiro para o segundo e deste para o terceiro. Lembram-se da história dos Três Porquinhos? Pois. É um caso típico: os dois primeiros são imprudentes e preguiçosos e estúpidos, embora o segundo seja menos mau que o primeiro, e o terceiro é prudente, trabalhador e inteligente, salvando-se assim do lobo.

Esta história, de acordo com a habitual nota dos Irmãos Grimm e para variar, não resulta na fusão de dois ou mais contos. E é uma dessas histórias protagonizadas por três irmãos, nos quais uma certa qualidade vai em progressão do primeiro para o terceiro, seguindo portanto de perto o esquema dos Três Porquinhos. Que qualidade? A ambição.

A ambição de saírem da miséria, para começar. Por isso partem pelo mundo, em busca de fortuna. O primeiro irmão encontra-a sob a forma de uma montanha toda feita de prata; o segundo, sob a de uma montanha de ouro. E o terceiro?

Bem, se atentarem a que a história se intitula O Bornal, o Chapéu e a Corneta poderão imaginar, corretamente, que esses três objetos vão acabar por constituir a fortuna do terceiro. Como? Sendo mágicos, claro.

São esses três objetos os prémios do terceiro irmão. Não direi que magia tem cada um, mas sigo que esse terceiro irmão é um canalha de todo o tamanho, que consegue os seus três objetos da forma mais criminosa possível, e que depois de os reunir, de voltar a casa, de mais umas quantas peripécias, acaba como rei. Não se trata, pois, daqueles contos de fadas em que no fim os bons vencem os maus e vivem felizes para sempre. É um conto cínico e brutal, que deixa à interpretação de cada um se a brutalidade do terceiro irmão é de elogiar por levar a que ele alcançasse tudo aquilo que desejara ou, pelo contrário, se trata de uma história de denúncia do negrume que os reis têm dentro. Seja como for, é um conto perturbador e, em parte por isso, interessante.

Contos anteriores deste livro:

terça-feira, 16 de abril de 2019

Lido: Aventura Borgiana: Uma Sinopse Avançada

Um dos truques recorrentes de Jorge Luís Borges foi utilizar textos pseudofactuais para contar histórias. Biografias falsas, ensaios inventados sobre obras literárias ou autores inexistentes, por aí fora. Adequadamente, Nuno Fonseca usa o mesmo truque para este conto que é, em essência, uma fanfic de Borges.

E assumida, caso contrário não se intitularia Aventura Borgiana, com o subtítulo de Uma Sinopse Avançada (bibliografia). Trata-se de um texto de ficção científica, que transporta o truque pseudofactual de Borges para o futuro e para fora do âmbito do papel, a que Borges sempre se limitou. Aqui estamos em comunidades virtuais, exploradas e imperfeitamente compreendidas por um estudioso de um futuro ainda mais longínquo, e captamos vislumbres irónicos da sociologia dessas comunidades. Tudo sob a forma de uma sinopse (avançada) para um artigo científico.

É um exercício curioso e razoavelmente bem sucedido. Peca sobretudo pelo facto de Fonseca não ser Borges. Não só a qualidade da escrita é significativamente pior que a do grande contista argentino, como faltam a esta ficção alguns níveis de profundidade, que as de Borges têm sempre. Aqui, ficamo-nos pela ironia e pela homenagem, também por um comentário à forma como a nossa hipermodernidade poderá um dia ser apenas arqueologia de outrem, e pouco mais; em Borges vamos quase invariavelmente mais fundo, umas vezes à natureza humana, outras a conceitos matemáticos abstratos e daí à estruturação do próprio universo, etc.

É o grande problema dos pastiches: levam sempre à comparação com o original, e esta só muito raramente lhes é favorável. Mas este conto consegue ser interessante, o que é mais do que se pode dizer de muitos outros.

segunda-feira, 15 de abril de 2019

Lido: Filho do Sangue

Finalmente, ao fim de 51 páginas de um total de 88, eis que nesta revista deparo com um conto que ainda não tinha lido.

Estava previsto que este Filho do Sangue (bibliografia) fosse incluído na edição especial da coletânea Eu Sou o Sangue, de Richard Matheson, mas isso acabou por não acontecer, ficando-se a sua publicação em terras portuguesas por este número da Bang! Mas este conto é, tal como a história principal da coletânea de Matheson, um conto sobre vampiros.

Pelo menos se interpretado como tal. É que aqui encontramos aquela dúvida sobre o que é real (no contexto do universo ficcional, entenda-se) e o que é imaginário, que Todorov elegeu como elemento identificativo do fantástico, e é possível interpretar o aparecimento dos vampiros na história como decorrência da loucura do protagonista. Até porque essa não oferece dúvida. Quase.

A história gira em volta de um jovem que desde criança tem a ambição de ser vampiro e à medida que cresce vai mergulhando cada vez mais profundamente na ilusão (ou será que não se trata de ilusão?) de o ser mesmo. Vamos acompanhando vários pontos fulcrais desse aprofundamento até um clímax bastante bem construído, onde surgem finalmente na história os verdadeiros vampiros. Talvez.

Este é um bom conto. Não tão bom como outros contos do autor, o qual chega por vezes a níveis de excelência que não são muito comuns e aqui escorrega um pouco para o lado da caricatura, mas sim, é um bom conto.

Contos anteriores desta publicação:

domingo, 14 de abril de 2019

Leiturtugas da semana

Mais uma semana, mais Leiturtugas. Começa, como de resto tem sido hábito, com o Marco Lopes, o qual marcou um dia, a segunda-feira, para pôr online as suas opiniões integradas neste projeto. Mas esta semana até tem duas, começando com uma opinião genérica sobre mais uma antologia da Divergência, a Por Mundos Divergentes (sem menção a organizador), e seguindo com uma opinião sobre o conto Patriarca, de Ricardo Dias. Esta antologia é distópica, pelo que todos os contos são de FC ou relacionam-se com FC, e isso significa que o Marco passa a 9c0s.

A Maria lá acrescentou a etiqueta à sua opinião, pelo que o livro é mesmo para contar. Que livro? Um que para mim foi uma surpresa: uma coletânea de contos de Florbela Espanca, essa mesma, a poetisa, intitulado As Máscaras do Destino. Pelos vistos, inclui alguns contos de horror sobrenatural. Sem nada de FC, portanto, pelo que a Maria passa a 1c2s.

E por esta semana estamos conversados. Para a semana decerto haverá mais.

quinta-feira, 11 de abril de 2019

Lido: Branca de Neve

E eis-nos chegados a mais um clássico. Quem não conhecer esta história, provavelmente em versão Disney, deve ter passado a vida debaixo de alguma pedra.

Mas aqui está o original. E é mesmo original, pois este Branca de Neve é um daqueles contos que os Irmãos Grimm escreveram "a partir de diversas histórias" populares. Uma obra realmente sua e não fruto de recolha mais ou menos adaptada.

Talvez por isso, está lá tudo o que já todos mais que conhecemos, e de uma forma muito semelhante à que conhecemos das adaptações mais ou menos movidas a Disney: a Branca de Neve, a madrasta/bruxa má com mania da beleza, o seu espelho mágico, os sete anões, o príncipe encantado, e por aí fora. Mas "muito semelhante" é uma coisa, "igual" é outra. Aqui no original, por exemplo, não há cá príncipes a beijar donzelas que se julgam mortas e a trazê-las à vida. O príncipe, de resto, é mais trapalhão que encantado. Ele ou os criados por ele. É que a Branca de Neve regressa à vida não com um beijo abusivo mas com um tropeço, um tombo e um bocado de maçã que se desaloja da garganta.

Também por isso, este é um conto particularmente bom. Há nele muito de arquetípico; como que corporiza em meia dúzia de páginas (bem, são um pouco mais que meia dúzia: dez) as principais características do conto de fadas, sem parte do que esta história tem de negativo em outras versões, quiçá mais conhecidas. Quem o lê na condição de leitor experiente dificilmente lhe encontrará alguma novidade, mas encontra uma espécie de origem. Alguns dos contos deste livro são assim. Pena é serem relativamente poucos.

Contos anteriores deste livro:

Em março falou-se de...

E em março o pessoal continuou a ler, de ambos os lados do Atlântico, ficção científica ou coisas próximas. E continuou a falar delas, naturalmente. O pessoal é assim. Eu é que voltei aos meus atrasos na referenciação do que foi aparecendo na web, lá no Ficção Científica Literária, pelo que se alguma coisa saiu nos últimos dias de março é natural que não conste destas listas. Constará das de abril.

Antes das listas, já se sabe, há que fazer a habitual lista de ligações. Podem encontrar mais informação sobre isto no primeiro post da série, que se encontra aqui. E o lugar onde se encontram todos estes posts, passados, presente e futuros, é a etiqueta que os reúne e que está aqui. E agora vamos às listas e no fim terão comentários.

Ficção portuguesa:
  1. Fantascom, de João Barreiros (conto)
  2. Alma Mater, de José Pedro Castro (conto)
  3. Winepunk - A Guerra das Pipas, org. Joana Neto Lima, A. M. P. Rodriguez e Rogério Ribeiro
  4. A Nossa Alegria Chegou, de Alexandra Lucas Coelho
  5. O Povo do Mar, de Vasco Luís Curado (conto)
  6. Modulação Ascendente, de Júlia Durand (conto)
  7. O Homem Duplicado, de José Saramago
  8. Pecado da Carne, de Carlos Silva (conto)
  9. Y + T, de Marta Silva (conto)
Ficção luso-brasileira:
  1. A República Nunca Existiu, org. Octávio dos Santos
Ficção brasileira:
  1. Autômato, de Marco Barbieri e Will Nascimento
  2. Sob a Luz da Escuridão, de Ana Beatriz Brandão (2x)
  3. A Ordem, de Nohane Carvalho
  4. O Caos, de Nohane Carvalho
  5. O Androide, de Paulo de Castro
  6. Mestre das Marés, de Roberto de Sousa Causo (2x)
  7. Charlotte Sometimes, de Fábio Fernandes (conto)
  8. Krystallo, de Raphael Fraeman (2x)
  9. Alys - Elemento Alpha, de Priscila Gonçalves (2x)
  10. O Homem Vazio, de Thiago Lee
  11. Casulos, de Ricardo Mesquita
  12. Os Supremos, org. Raphael Miguel
  13. Fractais Tropicais, org. Nelson de Oliveira
  14. A Taverna, nº 1, ed. Diogo Ramos e outros
  15. Capitão Diabo das Geraes, de Gerson Lodi-Ribeiro (conto)
  16. A Lince e a Raposa, de Cristiane Schwinden
  17. As Águas-Vivas não Sabem de Si, de Aline Valek
  18. As Aventuras de Tibicuera, de Erico Veríssimo
Ficção internacional:
  1. A Vida, o Universo e Tudo Mais, de Douglas Adams
  2. O Restaurante no Fim do Universo, de Douglas Adams
  3. O Salmão da Dúvida, de Douglas Adams
  4. Obsidiana, de Jennifer L. Armentrout
  5. Originais, de Jennifer L. Armentrout
  6. As Cavernas de Aço, de Isaac Asimov
  7. Fundação, de Isaac Asimov
  8. Vitória Involuntária, de Isaac Asimov (conto)
  9. O Conto da Aia, de Margaret Atwood
  10. Senlin Ascends, de Josiah Bancroft
  11. Utopia de um Homem que Está Cansado, de Jorge Luís Borges (conto)
  12. Mentes Poderosas, de Alexandra Bracken
  13. Fúria Vermelha, de Pierce Brown
  14. O Viajante de Negro, de John Brunner
  15. A Guerra das Salamandras, de Karel Čapek
  16. História da Sua Vida e Outros Contos, de Ted Chiang
  17. O Despertar, de Arthur C. Clarke (conto)
  18. Matéria Escura, de Blake Crouch
  19. Vox, de Christina Dalcher (5x)
  20. O Crepúsculo dos Deuses, de Clark Darlton
  21. O Tempo Desconjuntado, de Philip K. Dick
  22. Muitas Águas, de Madeleine l'Engle
  23. Time's Black Lagoon, de Paul Di Filippo
  24. Splinter of the Mind's Eye, de Alan Dean Foster
  25. Tambores de Outono / Os Tambores do Outono, de Diana Gabaldon (2x)
  26. Count Zero, de William Gibson
  27. O Periférico, de William Gibson
  28. Terra das Mulheres, de Charlotte Perkins Gilman
  29. Crianças do Éden, de Joey Graceffa
  30. Desafiando as Estrelas, de Claudia Gray (2x)
  31. Os Filhos Adotivos do Sol, de Hubert Haensel
  32. Como Parar o Tempo, de Matt Haig
  33. Guerra sem Fim, de Joe Haldeman
  34. Imortalidade, de Rachel Heng
  35. Filhos de Duna, de Frank Herbert
  36. Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley
  37. Os Eternos, de Amie Kaufman e Meagan Spooner
  38. Flores para Algernon, de Daniel Keyes
  39. The Calculating Stars, de Mary Robinette Kowal
  40. Jovens de Elite, de Marie Lu
  41. Legacy of the Nautilus, de P. C. Martin
  42. Scarlet, de Marissa Meyer
  43. Winter, de Marissa Meyer
  44. Iron Council, de China Miéville
  45. Perdido Street Station, de China Miéville
  46. The Scar, de China Miéville
  47. Antes de Vos Deixar, de Lauren Oliver
  48. Quem Teme a Morte, de Nnedi Okorafor
  49. 1984, de George Orwell (3x)
  50. O Ouro do Predador, de Philip Reeve
  51. O Labirinto de Ossos, de James Rollins
  52. Nerve, de Jeanne Ryan
  53. Skyward - Conquiste as Estrelas, de Brandon Sanderson (3x)
  54. A Abóbada Energética, de K. H. Scheer
  55. Amor & Cia, de Robert Sheckley (conto)
  56. A Nuvem, de Neal Shusterman
  57. Os Desajustados, de Robert Silverberg (conto)
  58. Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde and Other Stories, de Robert Louis Stevenson
  59. The Big Book of Science Fiction, org. Jeff e Ann VanderMeer
  60. Viagem ao Centro da Terra, de Jules Verne
  61. As Sereias de Titã, de Kurt Vonnegut (2x)
  62. Matadouro 5 ou Matadouro Cinco, de Kurt Vonnegut (4x)
  63. O Último Contato, de Louise Voss e Mark Edwards
  64. Números - O Caos, de Rachel Ward
  65. A Máquina do Tempo, de H. G. Wells
  66. Guerra dos Mundos, de H. G. Wells
  67. Blood and Amber, de Roger Zelazny
O número mágico de 10 comentários a material português voltou este mês a não ser atingido, embora só por um... mas esperem, que há uma antologia portuguesa que também inclui material brasileiro, pelo que de certa forma até foi. Seja como for, este é o segundo número mais elevado de comentários a FC portuguesa desde que faço isto, graças em boa medida ao grande número de opiniões individuais sobre contos que o Leiturtugas tem gerado. E eu, que gosto de contos (de ler e de escrever, diga-se de passagem) e penso que não faria mal nenhum ao pessoal se lesse mais em formato mais curto, acho muito bem. Aliás, posso mesmo confessar aqui que um dos motivos que me levou a colocar em pé de igualdade nas regras do projeto os contos com os outros formatos foi precisamente esse. Ouro sobre azul. Não há é destaques a fazer: tivemos nove opiniões (ou dez) e nove autores/editores (ou dez).

No Brasil, o mês foi relativamente fraco, caindo abaixo de 20 títulos pela primeira vez este ano. Ou seja, está bom para o que era hábito no ano passado, que estas coisas tendem a ser relativas. O destaque vai para os vários autores que tiveram direito a duas opiniões: Ana Beatriz Brandão, Nohane Carvalho (a dois livros), Roberto de Sousa Causo, Raphael Fraeman e Priscila Gonçalves. É curioso constatar que a maioria são autores pouco conhecidos, o que pode indicar uma de duas coisas (ou talvez as duas ao mesmo tempo): ou se trata de renovação nas fileiras da FC brasileira ou efeito de campanhas de marketing mais ou menos informais para tentar aparecer.

As leituras internacionais é que deram um valente trambolhão, reduzindo-se praticamente para metade entre fevereiro e março. Em parte tem a ver com o meu atraso, de que falo no início deste post, em parte tem a ver com a diminuição no número de comentários a contos, mas esses dois fatores somados não ficam longe de explicar uma queda tão abrupta. Parece que se leu mesmo bastante menos FC (e arredores) em março do que nos meses anteriores e eu não tenho explicação para o facto. Até os destaques são fracos: Vonnegut teve direito a 6 comentários, distribuídos por 2 obras, e Dalcher teve direito a 5 comentários ao seu romance best-seller. E só: os nomes seguintes não passaram dos 3.

Para acabar, uma notazinha sobre as outras coisas de que raramente falo mas aparecem sempre: livros de não-ficção, ficção vinda de outras paragens além de Portugal ou do Brasil, etc. Pois desta vez não houve. Nem um. Duvido que queira dizer alguma coisa, mas não deixa de ser curioso.

E é tudo. Até daqui a um mês.

quarta-feira, 10 de abril de 2019

Em 2018 falou-se de... outras coisas

Então vá, concluamos esta série de posts, que já é mais que tempo. Depois da parte relativa à ficção portuguesa, depois à brasileira, depois o longo post sobre a traduzida, eis que aqui se reúne tudo o resto. O esquema é um pouco diferente do dos outros posts: não há uma lista única, obviamente, mas sim várias listas separadas, uma por categoria e cada uma destas categorias é seguida por um comentário próprio, em vez de ficar todo o palavreado para o fim. A ordem das categorias é mais ou menos da mais abundante para a menos abundante.

Não-ficção internacional:

??? (org.)
  1. The Universe Next Door
Avent, Ryan
  1. A Riqueza dos Humanos
Benson, Michael
  1. 2001: Uma Odisseia no Espaço – Stanley Kubrick, Arthur C. Clarke e a Criação de uma Obra-Prima (2x)
Bostrom, Nick
  1. Superinteligência
Dole, Stephen H.
  1. Habitable Planets for Man
Favro, Terri
  1. Generation Robot
Frost, Mark
  1. Twin Peaks: The Final Dossier
Gaines, Caseen
  1. De Volta Para o Futuro
Ganascia, Juan-Gabriel
  1. O Mito da Singularidade (2x)
Gordon, Charlotte
  1. Romantic Outlaws: The Extraordinary Lives of Mary Wollstonecraft and Her Daughter Mary Shelley
Gunn, James
  1. Alternate Worlds
Harari, Yuval Noah
  1. 21 Lessons for the 21st Century / 21 Lições para o Século 21 / 21 Lições para o Século XXI (6x)
  2. Homo Deus (2x)
Ishiguro, Kazuo
  1. Minha Noite no Século Vinte e Outros Pequenos Avanços
Kaku, Michio
  1. O Futuro da Humanidade
Knowles, Christopher
  1. Nossos Deuses são Super-Heróis
Leonhard, Gerd
  1. Tecnologia versus Humanidade
Lincoln, Don
  1. Universo Alien
O'Reilly, Tim
  1. WTF?: What's the Future and Why It's Up to Us
Roberts, Adam
  1. A Verdadeira História da Ficção Científica (7x)
Rogak, Lisa
  1. Coração Assombrado (2x)
Weldon, Glen
  1. A Cruzada Mascarada (2x)
  2. Superman: Uma Biografia não Autorizada
Wendig, Chuck
  1. Damn Fine Story
Wilson, Daniel H.
  1. Where's My Jetpack?
Entre estas categorias menos comuns, a mais movimentada foi a da não-ficção internacional (i.e., traduzida), que engloba obras dos mais variados tipos, desde textos teóricos sobre ficção científica a textos futuristas, cuja inclusão no FCL é feita mais por uma questão de potencial inspiração para autores do género do que por qualquer outro motivo, passando por biografias, crónicas, por aí fora.

É, portanto, uma categoria muito variada, e não muito abundante. Reúnem-se aqui 22 autores (e um organizador desconhecido) e 25 títulos, ou seja, só dois dos autores estão presentes com mais que uma obra. São precisamente esses os destaques: Yuval Noah Harari, presente com duas obras, foi alvo de 8 opiniões, e Glen Weldon, também presente com duas obras, foi alvo de três opiniões. Um terceiro destaque é Adam Roberts, cujo ensaio sobre FC recebeu 7 opiniões.

Ficção portuguesa e internacional:

??? (org.)
  1. Steampunk Internacional (3x) 
Mendes, Roberto Bilro (ed.)
  1. Dagon, nº 2
E a segunda categoria mais comum entre estas categorias pequenas resume-se a dois títulos, dois editores (um dos quais desconhecido) e 4 opiniões. Não há, portanto, grande coisa a dizer sobre ela, à parte ser curioso que a esmagadora maioria das publicações de autoria múltipla (e neste caso as leituras refletem bem o que é publicado) tendam a especializar-se: os autores ou são lusófonos, ou são traduzidos, sendo relativamente raro coexistirem na mesma publicação autores em tradução e com escrita em português e ainda mais raro haver algum equilíbrio ou uma proporção significativa do grupo minoritário, como é o caso destas publicações.

Não-ficção portuguesa:

Oliveira, Arlindo
  1. Mentes Digitais
Vieira, Joaquim
  1. José Saramago - Rota de Vida (2x)
Em princípio, esta categoria seria tão diversificada como a não-ficção estrangeira, mas publicou-se tão pouco (ou o que se publicou foi tão ignorado, talvez), que só aqui cabem três comentários, a um livro técnico com elementos de antecipação tecnológica e a uma biografia de Saramago. É pouco, muito pouco para um ano inteiro, mas na verdade não seria de esperar mais: se a ficção é como é, a não-ficção só poderia ser isto.

Ficção luso-brasileira:

Ribeiro, Gerson Lodi- (org.)
  1. Solarpunk
Ribeiro, Gerson Lodi-; Silva, Luís Filipe
  1. Vaporpunk 
Aqui reúnem-se não só aquelas publicações com equilíbrio na representação portuguesa e brasileira, mas também as que são predominantemente portuguesas ou brasileiras mas incluem uma componente relevante do outro lado do Charco Atlântico. E só tivemos direito a duas, ambas publicadas no Brasil. Fraquinho, muito fraquinho. Mas quem já tentou fazer ou participar numa coisa destas, e eu já estive dos dois lados, compreende: os pagamentos transatlânticos são tão complexos e onerosos que só compensam realmente quando os autores abdicam de pagamento ou com livros que tragam bom retorno financeiro. O que não é o caso das antologias de FC. O desenvolvimento de verdadeiro intercâmbio literário no espaço lusófono, para o qual a carolice não chega, só se dará quando houver intervenção política nesse sentido. E cada vez há mais escolhos no caminho dessa intervenção.

Não-ficção brasileira:

Manfredi, Lúcio
  1. O Boitatá com Olhos de Césio
Souza, Kátia Regina
  1. A Fantástica Jornada do Escritor no Brasil
Sobre a não-ficção brasileira julgo que se pode dizer mais ou menos o que disse sobre a portuguesa, mas com duas agravantes: apesar de tudo os comentários a ficção brasileira sempre são significativamente mais abundantes que os que se debruçam sobre a portuguesa, pelo que em princípio aqui deveria haver mais títulos, por uma questão de proporção, e, ainda por cima, um dos que há nem sequer vem de um leitor brasileiro, mas de mim.

Ficção angolana:

Agualusa, José Eduardo
  1. Barroco Tropical
Agualusa como único representante da ficção angolana, e até africana em geral, infelizmente, não é surpresa. Não será o único autor lusófono africano que introduz em algumas das suas ficções elementos próximos da ficção científica, mas é praticamente o único que já conseguiu sair de África e ser lido tanto em Portugal como no Brasil. E não havendo nos PALOP, ao contrário do que acontece em Portugal e no Brasil, quem se dedique a ler e a divulgar na internet o que se vai fazendo por lá, suspeito que vamos ficar limitados ao Agualusa durante muito tempo.

Poesia brasileira:

?? (João Martins de Athayde ou Leandro Gomes de Barros)
  1. O Homem Que Subiu em Aeroplano Até a Lua
É raríssimo publicar-se poesia de FC ou relacionada com FC (como neste caso) e mais raríssimo ainda é falar-se dela. Não é portanto surpresa só haver aqui um título. Surpresa é haver um título. Não deverá acontecer em muitos anos. Aconteceu em 2018.

Ficção internacional fora do género (mas relacionada com ele):

Lodge, David
  1. O Homem de Partes
Por fim, algo que não deve aparecer mais vez nenhuma, pelo que é naturalíssimo só incluir um título. Se houvesse uma categoria de diversos seria candidato preferencial.

E é isto. Acabou. Deu uma trabalheira gigantesca, motivo pelo qual só ficou feito em abril e também motivo pelo qual não voltará a ser feito nos mesmos moldes. Já comecei a automatizar parcialmente o processo (através do fiel Excel) e vou ver se para o ano, com a coisa meio automatizada, corre melhor. Não queria deixar de fazer isto, porque me parece útil, mas tenho de arranjar um equilíbrio entre a utilidade e o trabalho que dá, porque senão não vale a pena. Este ano deu muito mais trabalho do que a utilidade que tem.

terça-feira, 9 de abril de 2019

Lido: A Novela da Chancela Negra

E à terceira história pouco muda: também esta novela de Arthur Machen é uma releitura, e também ela já tinha sido comentada aqui na Lâmpada, há praticamente dez anos. No entanto, foi-o numa época em que os comentários que eu ia fazendo às minhas leituras eram francamente minimalistas, pelo que tenho mais a dizer sobre ela do que sobre os contos anteriores.

Como digo no post de há dez anos, A Novela da Chancela Negra (bibliografia) é uma história de horror contada por "uma senhora em Leicester Square", como se diz ao abrir, num truque comumente utilizado nas ficções oitocentistas para lhes emprestar verosimilhança. Uma daquelas histórias de ouvir contar, portanto, que de resto tem mais que uma camada de ouvir contar pois parte da história da jovem senhora chega-lhe através de uma carta escrita por outrem.

Pois a "senhora de Leicester Square", extremamente empobrecida, consegue livrar-se da fome empregando-se como secretária de um académico, e o que faz mover a novela é o envolvimento progressivamente maior dessa narradora nas pesquisas do patrão, durante o qual vai fazendo descobertas cada vez mais perturbadoras.

E como o mistério é em boa medida o que mantém esta história de pé, quem tiver horror a spoilers o melhor que faz é parar por aqui.

O enredo, como tantas vezes acontece tanto na fantasia como no horror, ainda que normalmente de forma menos declarada do que aqui, vai beber profusa inspiração ao folclore. O académico dedica-se a estudos de etnologia e uma série de relatos chama-lhe a atenção e leva-o a formular a teoria de que as fadas não são apenas personagens das histórias mas criaturas bem reais. E quando descobre, no interior da Grã-Bretanha, inscrições com os mesmos caracteres de uma chancela em pedra preta que lhe teria sido enviada de escavações arqueológicas na Babilónia, fica praticamente com a certeza de ter razão.

E lança-se à investigação. Perigosa, como se vem a provar, pois acaba por desaparecer após uns quantos episódios misteriosos (e terríficos), deixando apenas uma carta onde se explica. É bastante boa, esta novela, mesmo podendo deixar em alguns leitores a sensação de demasiadas pontas soltas. Mas são pontas que Machen quis deixar soltas; é claramente por opção que o autor não explica todos os mistérios e conserva a aura de inexplicável ao colocar o derradeiro ponto final. Nunca sabemos, por exemplo, o que aconteceu ao académico; ficam apenas as suspeitas, como pelas suspeitas se fica a verdadeira natureza (e até existência) das tais criaturas que ele procurava. Isso pode frustrar alguns leitores mais amigos de ficções bem amarradas; outros provavelmente acharão que uma explicação mais completa só prejudicaria a novela. Pessoalmente, inclino-me mais para esta segunda opinião.

Contos anteriores desta publicação:

Uma surpresa nos finalistas do prémio livro do ano Bertrand

Nunca tinha ligado ao prémio que a Bertrand instituiu para escolher o livro do ano. Não surpreende: o prémio é recente e demasiado generalista para me despertar a curiosidade imediata, pois premeia (pelo menos este ano, que isto das categorias dos prémios é coisa fluida) "ficção lusófona", "ficção de autores estrangeiros", "reedição de obras essenciais" e "poesia". Mas a estrutura que criaram para o prémio é razoavelmente interessante: há uma pré-seleção de títulos, feita (este ano) por dois jornalistas, entre estes títulos pré-selecionados os livreiros da Bertrand votam nos seus preferidos, escolhendo assim os finalistas, e entre os finalistas será o público leitor a escolher os vencedores.

Mas este ano tive uma surpresa: um dos finalistas é um romance de ficção científica.

Trata-se de Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, a concurso na categoria de "reedição de obras essenciais". Imagino que esta imagem aqui em cima já tinha servido vagamente como pista...

Ena!

Ah, sim, e também lá anda um livro traduzido por mim (Sangue & Fogo, do Martin), na categoria de "ficção de autores estrangeiros", o que também tem a sua pintarola. Mas o que me deixou mesmo meio boquiaberto foi o Bradbury.

domingo, 7 de abril de 2019

Crescer receita fiscal com taxas de impostos mais baixas? Sim, é possível.

Não sou economista, mas quanto mais o tempo passa mais me convenço de que percebo melhor como funciona a economia (pelo menos certas partes da economia, que há coisas que continuam a ser para mim puro chinês) do que muita gente que diz que é economista, ou jornalista económico ou por aí fora. Por um motivo simples: consigo compreender as relações de causa e efeito de que a grande máquina económica se compõe e eles, claramente, não.

Ou isso ou são uns grandes aldrabões. É a outra possibilidade.

A última dessa gente é a "enorme" carga fiscal que, dizem, está em cima dos portugueses.

Numa coisa têm razão: poderíamos não pagar demasiados impostos se realmente víssemos o dinheiro daqueles que pagamos a ser-nos útil em investimentos dos sistemas públicos que nos melhoram e facilitam a vida, em vez de só o vermos a ser entregue a bancos e a parcerias público-privadas perfeitamente ruinosas. Sim, exagero, mas é para vincar um ponto: é absolutamente vital que a população realmente veja o dinheiro dos impostos a servir para coisas úteis; quando isso não acontece, abre-se a porta à conversa de qualquer aldrabão de feira que se saia com meia dúzia de patacoadas vagamente verosímeis.

Mas a verdade é que este governo baixou globalmente as taxas dos impostos. Desapareceram as milhentas sobretaxas que foram impostas pelo governo do Passos, para começar, desceram alguns IVAs e a reestruturação dos escalões do IRS levou a que a esmagadora maioria das pessoas passasse a pagar menos IRS, embora também tenha havido alguns movimentos em sentido contrário. Houve dois ou três impostos que surgiram (o chamado "imposto Mortágua", por exemplo), invariavelmente a apanhar universos muito restritos, ora de gente particularmente endinheirada, ora de atividades económicas que tinham até aqui uma capacidade de fuga ao fisco bem superior à do comum dos mortais. Também diminuíram as contribuições de muita gente para a Segurança Social o que, não sendo propriamente imposto, também pesa na carteira (agora menos) e serve para financiar o Estado.

Ao mesmo tempo que esta diminuição acontecia, aumentou o total de receita arrecadada pelo Estado por via dos impostos. E quem não percebe patavina de economia não consegue perceber como é que isto é possível, o que é muitíssimo útil aos charlatães de feira. Menos taxa de imposto e mais receita?! Como?!

Simples. Através da melhoria da economia.

E por três vias.

1- Subida nos rendimentos;
2- Aumento na atividade económica;
3- Redução do desemprego e aumento do emprego

A subida nos rendimentos pode levar a um aumento de receitas mesmo com uma redução nas taxas. Se alguém tem 1000 euros de rendimento bruto e paga 20% de IRS sobre esse rendimento, paga 200 euros ao Estado. Se esse alguém tem o rendimento aumentado para 2000 euros e a taxa de IRS se reduz para 15%, passa a pagar 300 euros ao Estado. Menos taxa de IRS, mais dinheiro que entra nos cofres do Estado. E, claro, muito mais dinheiro que fica no bolso do cidadão (de 800 passa a 1700).

A subida nos rendimentos também pode levar a um aumento de receitas quando pessoas que não ganhavam o suficiente para pagarem IRS, ficando abaixo do mínimo, passam a ganhar mais que esse mínimo e portanto entram no sistema. Idem para os profissionais liberais que pagam IVA; quando os seus rendimentos não chegam a um mínimo anual estão isentos de IVA; quando o ultrapassam passam a pagar. Não vamos mais longe: aconteceu isso comigo. Em dois dos anos do Passos estive isento de IVA porque não tive trabalho suficiente para atingir o mínimo. Desde a Geringonça que o ultrapasso todos os anos.

E o IVA leva-nos ao aumento da atividade económica. A taxa pode baixar, mas se a economia crescer, se houver mais empresas, mais gente e entidades a fazer compras e compras de maior montante, a receita aumenta. A subida dos rendimentos tem aqui um impacto evidente e a diminuição nos descontos para a segurança social também: é mais dinheiro que fica disponível para transações, e portanto para fazer crescer o bolo do IVA. E fazer-se subir mais os rendimentos de quem menos tem do que os de quem tem mais também ajuda, porque quanto maiores as dificuldades por que as pessoas passam mais provável é que gastem esse dinheiro extra no que lhes faz falta em vez de o enterrarem no banco (ou em paraísos fiscais). E quem diz IVA diz outros impostos sobre o consumo como o que incide sobre os combustíveis. O mecanismo é igual. E há ainda os lucros das empresas que quando crescem aumentam o bolo do IRC, e por aí fora.

É também esse basicamente o efeito da redução do desemprego, e mais ainda o do aumento do emprego (não é bem a mesma coisa; há gente que não está a trabalhar e não conta como desempregado, mas passa a contar como empregado quando... bem, quando se emprega). Quem não está no mercado de trabalho não paga impostos (geralmente; há situações em que paga, mas são pontuais); se entra passa a pagá-los, o que aumenta as receitas do Estado, além de ter normalmente mais dinheiro no bolso para gastar e ir fazer crescer o bolo do IVA e quejandos.

Ou seja: com mais gente a trabalhar, com mais rendimento disponível, com mais transações económicas, com mais empresas a pagar IRC, a quantidade de dinheiro arrecadada pelo Estado sobe mesmo que as taxas de impostos desçam.

A direita não percebe isto. Daí a parvoíce das contas de merceeiro para "explicar" política económica, como se o traseiro tivesse alguma coisa a ver com as calças. Daí a política cretina do Passos Coelho y sus muchachos e os orçamentos nunca baterem certo, nem com o Vítor Gaspar, nem com a Maria Luís Albuquerque, essas máquinas de orçamentos retificativos. Em contraste, a Geringonça vai chegar ao fim sem um único retificativo, mesmo com todo o dinheiro enterrado (ainda) nos bancos e as outras insuficiências. Pudera: todo o projeto económico daquelas nulidades era destruir a economia, causar desemprego, comprimir os rendimentos, levar empresas à falência, e etc. Depois faziam enormes aumentos de impostos que não geravam o dinheiro que esperavam gerar, porque pura e simplesmente não compreendiam, e continuam sem compreender, que por mais que espremam laranjas secas elas não vão dar sumo.

Pode-se acusar o governo do Costa de muitas coisas, do investimento muitíssimo insuficiente para reparar o estrago feito nos anos anteriores, de casmurrice quase indecente em questões como a do tempo de serviço dos professores, de continuar a alimentar os tubarões da banca com dinheiro que devia ser investido no país, de achar mais importante que o Centeno faça brilharetes com o défice em Bruxelas do que arranjar médico de família para todas as famílias portuguesas (de novo não vamos mais longe: eu, que sempre tive médico de família, deixei de ter há quase um ano) ou resolver os milhentos outros problemas que este país continua a ter. Pode-se achar que teria sido melhor se os impostos tivessem descido mais do que desceram, mesmo que isso fizesse o défice descer mais devagar. Mas não se pode acusá-lo de ser o oceano de ignorância económica que a direita deu mostras de ser ao longo de quatro anos e continua ainda hoje a dar mostras de ser.

E por que raio escrevi eu isto?

Porque estou farto de tanta treta. A partir de agora, posso mandar para aqui sempre que me vierem com certas conversas. E sim, há aqui imprecisões e explicações incompletas, e sim, ficou nesta explicação muita coisa pela rama, e sim, preocupei-me mais em explicar em linhas gerais o funcionamento das coisas do que ir buscar dados sólidos, e não, isto não é um post técnico, com toda a precisão técnica e patati, e patata. Querem disso, vão procurar a outro sítio, a algum lugar com gente mais preparada do que eu. Vão ao Ladrões de Bicicletas, por exemplo, ou ao Vento Sueste.

Escusam é de ir ler os direitolos, incluindo os que escrevem nos jornais, que aí não se aprende nada que preste.

Leiturtugas da semana

Mais uma semana de leiturtugas, esta abriu mais uma vez com uma opinião do Marco Lopes, a última que se debruça sobre os contos da Proxy. Coube a vez ao conto Bastet, de Mário de Seabra Coelho, e o Marco passa assim a 7c0s.

Mas não esteve sozinho. A Cristina Alves também começou a opinar sobre contos, no caso dela os da antologia Winepunk, da Divergência. Esta semana publicou duas opiniões (só colocando a etiqueta numa delas, mas como não vejo nenhum motivo para ser só essa a integrar-se no nosso projeto vou supor que foi esquecimento), debruçando-se primeiro sobre A Companhia Zero de Joel Puga e depois sobre A Ira da Ferreirinha, de Carlos Eduardo Silva. O cenário da Winepunk é história alternativa, o que liga todos os contos que a compõem à FC, pelo que a Cristina passa a 2c1s.

E não sei se foi só: é que uma das integrantes do projeto me fez perguntas sobre se uma certa obra era passível de integração nele e depois publicou uma opinião sobre essa obra sem referir em nenhum sítio que se tratava de uma leiturtuga, o que me deixou sem saber se se terá esquecido ou decidiu que no fim de contas não queria integrá-la. Como não sei, não a divulgo ainda. Se for para integrar no Leiturtugas, logo falo disso para a semana.

Até lá.

sábado, 6 de abril de 2019

Lido: Rei Barba-de-Tordo

Com o conto Rei Barba-de-Tordo regressamos pela mão dos Irmãos Grimm ao recorrente mote do rei que tem uma filha casadoira e muito pretendida. Mas, como muitas vezes acontece, a princesa tem vontade própria. Ou falta de vontade, pois nenhum dos múltiplos pretendentes lhe agrada. O rei, claro, irrita-se, e a princesa vai acabar por pagar as favas por essa irritação, que isto de princesas (e príncipes também, mas desses as histórias tradicionais, com o seu habitual machismo, pouco falam) é gente muito sujeita a conveniências políticas e/ou aos capricos dos reis seus pais.

Chegado aqui, quem conheça as histórias tradicionais já deve estar a adivinhar o que se segue. Pois. A princesinha acaba, por capricho do pai, casada com um músico mais ou menos mendicante. Este põe-na a viver na pobreza e a trabalhar, ensinando-lhe o que a vida custa, e a rapariga, entre privações e humilhações, lá acaba por se arrepender da anterior soberba. E aí tudo muda, revela-se que o músico mendicante era na realidade um rei (o do título) disfarçado e o conto acaba com o inevitável viveram felizes para sempre, sem que de fantasia contenha mais que disfarces tão perfeitos que a rapariga encontra várias vezes o marido disfarçado e não suspeita de nada.

Trata-se, claro, de uma história cautelar para meninas, destinada a inculcar nelas a ideia de que a soberba, o orgulho e a desobediência são maus conselheiros. E também é mais uma das histórias construídas pelos Grimm a partir de vários contos diferentes. Neste caso são três, e o trabalho de fusão é bem sucedido, pois a história resultante é coesa e lógica. Não muito boa — não foi uma das que se transformaram em clássicos — mas funciona.

Contos anteriores deste livro:

quarta-feira, 3 de abril de 2019

Escrita de março


Pois é. Já se previa, e eu em fevereiro já o anunciava, e de facto não só se concretizou a complicação de março como ela foi ainda pior do que eu esperava. Além de tudo o que estava previsto, as obras, o início da tradução, as consultas e as análises, ainda apanhei com uma avaria no computador que me forçou a um upgrade, seguido pelo inevitável e muito demorado (e chatíssimo!) processo de reinstalar software até deixar tudo funcional. O qual, de resto, ainda prossegue.

Com tudo isto, a escrita, que já normalmente seria pouco abundante, reduziu-se ainda mais. Mas houve. Trabalhei mais um pouco na tal novela, fazendo-a crescer umas sete páginas. Ou seja, escrevi mais ou menos tanto quanto tinha escrito em dezembro, cerca de 2 mil palavras, todas do mesmo capítulo. O total do ano vai numas 9500. Começo é a achar que ela não vai ficar pronta antes do verão como era meu objetivo. Com 21600 palavras, é já o segundo texto mais longo que tenho incompleto (e está muito perto do primeiro), mas ainda falta acabar este capítulo e escrever mais três. Desconfio que só se acelerar significativamente conseguirei escrever tudo até julho. E duvido que acelere assim tanto.

Mas veremos. Daqui a um mês dir-vos-ei como foi. Até lá.

Lido: A.K.A.

É frequente surgir a ideia, explícita ou implícita, de que a influência de uma obra de arte está diretamente dependente da sua qualidade, mas a existência de numerosos casos de obras de qualidade bastante reduzida que no entanto tiveram um impacto imenso em obras posteriores sugere que não será bem assim. Um exemplo óbvio são os contos populares, muitos dos quais só ganham alguma qualidade literária quando um escritor competente pega neles e lhes dá algum corpo. Poder-se-á pensar que, pelo contrário, se trata mais de uma questão de popularidade, mas a existência de numerosas obras praticamente esquecidas que no entanto tiveram um impacto significativo em obras subsequentes é uma pista de que também talvez não seja bem assim. Como exemplo, pouco se fala hoje do Lorde Dunsany, e no entanto este autor teve forte influência numa série de outros autores, alguns bem famosos (Lovecraft e Tolkien são apenas dois deles), que por sua vez influenciaram gerações de autores mais recentes. O próprio Tolkien começou por influenciar outros autores numa época em que era apenas um autor de nicho, não o clássico que é hoje.

Isto não vem a propósito de nada, propriamente. É uma série de ideias que me vieram à mente depois de ler este livro, quando me pus a pensar nos que o poderiam ter influenciado. Ou melhor, num em particular, cuja influência me parece evidente: Um Estranho numa Terra Estranha, do Heinlein.

A.K.A. é, tal como o romance de Heinlein, uma história ancorada na ficção científica mas que integra no enredo uma série de coisas mais ou menos místicas, diferenciando-se do Estranho no menor interesse em explicar o que vai acontecendo de uma forma razoavelmente racional. Tal como no romance de Heinlein, este romance de Rob Swigart tem como principal protagonista um milionário excêntrico que viaja pelo espaço — ou que simula fazê-lo, pelo menos — embora esse protagonista, no caso de A.K.A. esteja basicamente ausente ao longo de quase toda a narrativa. Ambos os livros têm boa parte do enredo a girar à volta da criação de uma nova seita, do sexo mais ou menos desenfreado, e da relação entre uma coisa e a outra. Em ambos, as autoridades não acham grande graça à brincadeira e tentam exercer os seus poderes repressivos, sem grande sucesso. E há uma série de outros detalhes que me levam a crer que Swigart foi fortemente influenciado por Heinlein, pelo menos para escrever esta obra — publicada em 1978, 17 anos depois de Um Estranho numa Terra Estranha.

Claro, está longe de ser uma cópia. Para começar, a abordagem é algo diferente. Ao passo que Heinlein tinha sobretudo a política em mente, pretendendo com o seu romance divulgar uma série de ideias sobre a organização da sociedade humana, Swigart parece pretender sobretudo divertir-se, servindo-se para isso profusamente do grotesco de situações e personagens. O livro começa com a partida de um multimilionário, Avery Krupp Agenblaue (estão a ver de onde vem o título? Não? Olhem para as iniciais) para o espaço "intergalático", a bordo de uma nave propulsionada por "orgones", e se acham que esta palavra se parece com orgasmo não andam longe porque aparentemente são estas as partículas que insuflam as coisas de apetite sexual. O que tem consequências, pois com a expulsão para o ambiente de tantos orgones na altura do lançamento da nave, as pessoas que a ele assistem, sobretudo mas não só, ficam de tal forma contaminadas de desejo que passam o livro inteiro na queca com tudo o que mexe. Bem, não será bem assim mas é quase.

E o livro é todo assim: sexo e paródia, entretecidos com vários mistérios em volta do Avery Krupp Agenblaue, que não só parte para o espaço a bordo de uma nave propulsionada por um motor no mínimo insólito, como desaparece assim que regressa. Entretanto, a seita que se desenvolve em volta dele, a qual, como todas as seitas, promete a Verdade, maiúscula e itálica, que na sua variação gira em volta de A Luz Azul, seja lá o que isso quer dizer, promete também que Agenblaue reaparecerá na convenção mundial marcada para tantos do tal, onde responderá a todos os mistérios. E não há LSD, propriamente, mas há uns fungos com propriedades alucinogénicas, e umas térmitas que exalam feromonas priápicas, tudo muito peace and love and mushrooms. Hippy-ki-yay, onmifuckers!

Assim se vai caminhando para o clímax, que acaba por chegar, devidamente orgásmico, pois a tal convenção degenera num grande bacanal. As respostas acabam por chegar, algumas, deixando outras questões no seu lugar. E fim, que já se faz tarde e o autor já se divertiu o suficiente. O livro não é lá muito bom, mas diverte qb, embora convenha ter em mente que foi escrito por um homem branco WASP nos anos 70 do século XX e isso acaba sempre por vir ao de cima, especialmente quando há sexo metido ao barulho.

Venha o próximo.

Não faço ideia de como este livro me veio parar às mãos, mas já o tenho há pelo menos duas décadas. É dos tais livros que vão sendo eternamente preteridos por outros, por um motivo ou por outro, até que um dia se diz "é hoje!"

terça-feira, 2 de abril de 2019

Lido: Pássaro-Enjeitado

O principal problema de ler muitas histórias tradicionais em sequência é o facto de elas terem com grande frequência elementos em comum umas com as outras, repetindo personagens-tipo, enredos e dilemas. Essa repetição, como todas as outras, ao fim de algum tempo leva ao aborrecimento. E eu, depois de um livro de contos tradicionais portugueses e deste livro dos Irmãos Grimm quase completo (as opiniões vão mais atrasadas, mas à leitura faltam seis contos para o fim), já estou a precisar de uma pausa.

Foi em parte por isso, imagino, que torci tanto o nariz a este Pássaro-Enjeitado. É um conto bastante curto, não para o que é hábito nas histórias tradicionais em geral (as portuguesas recolhidas pelo Adolfo Coelho costumam ser mais curtas) mas para o que costuma sair das reformulações dos Grimm. Nele, vamos mais uma vez encontrar uma megera que quer assassinar uma criança e nele, mais uma vez, é outra criança, aqui uma irmã adotiva, que salva a primeira da morte. De três mortes, mais precisamente. Ou não fosse o número três omnipresente nestas histórias.

Como nota de originalidade, a megera aqui não é a segunda (ou terceira, ou quarta) mulher do pai da criança que corre perigo. É apenas a cozinheira de um caçador, embora pareça desempenhar o papel de mulher. De resto, a criança em perigo nem sequer é filha do caçador; foi por ele encontrada no topo de uma árvore, levada para lá por uma águia que a arrancou aos braços da verdadeira mãe (e sugere-se que esta estava simplesmente debaixo da árvore, não se percebendo como foi que deixou o caçador ficar-lhe com o filho).

Sim, o argumento tem buracos, o que se está longe de ser inaudito em histórias tradicionais (que muitas vezes soam como versões abreviadas de histórias mais ou menos mitológicas e bastante mais extensas), não é muito comum nestas histórias retrabalhadas pelos Grimm. E isso também contribuiu para o pouco agrado com que eu li este conto, mas não creio que o principal motivo seja esse. Certo é que o agrado foi escasso.

Contos anteriores deste livro:

segunda-feira, 1 de abril de 2019

Lido: As Saudades que Tenho de Inácia

Mais um ebook da coleção de contos portugueses publicados há uns anos pelo DN e pela Ecritório, e mais um livro de um autor que se a memória me não falha nunca tinha lido: Manuel Jorge Marmelo.

E saí da leitura deste As Saudades que Tenho de Inácia com uma opinião pouco sólida e bastante ambivalente. Na verdade, a minha opinião deste texto depende de uma avaliação sobre o que o autor queria alcançar com ele, avaliação essa que é bastante mais instável do que é hábito.

Mas comecemos pelos factos.

O conto é, basicamente, uma ruminação de um homem de meia-idade, por acaso cabo-verdeano mas até podia não o ser, a propósito de Inácia, uma mulher que aparentemente era e sempre tinha sido muito, muito feia e com quem ele tinha tido anos antes alguns encontros sexuais secretos. E tem saudades dela, como o título indica e o texto repete várias vezes.

E pode-se encará-lo de várias formas. Pode-se olhá-lo de forma literal, por exemplo, caso em que se trata de uma história superficial e misógina com muito pouco interesse. Também se pode vê-lo como um estudo de personagem, não a personagem Inácia, mas a personagem do narrador, caso em que julgo ter um âmbito demasiado restrito (o desejo, a saudade e o arrependimento) para ser realmente eficaz, resultando num protagonista algo unidimensional. Por fim, pode-se encará-lo como uma história sobretudo alegórica, sobre a relação que as pessoas já com alguma vida para trás das costas têm com as ideias, opções e embaraços das pessoas que foram em jovens.

Vendo-a sob esta perspetiva, a história até resulta, se não a cem por cento, pelo menos melhor do que olhando-a sob qualquer outro ponto de vista. O protagonista lamenta o jovem que foi, os complexos, o dar mais valor à opinião dos outros do que à sua própria vontade. Que o faça de uma forma tão superficial, através da beleza ou feiura e do bom ou mau desempenho na cama, ajuda a caracterizá-lo e de certa forma a universalizar a ideia; é como quem diz que não, não é preciso ser-se particularmente introspetivo para se sentir arrependimento por certos caminhos que se escolhem na vida. Mas essa universalização pode não ser o que o autor pretende, caso contrário teria provavelmente deixado o cenário vago, sem o localizar tão claramente em Cabo Verde.

É em parte essa a origem da instabilidade na minha avaliação deste texto. Apetece-me encará-lo da forma mais interessante porque é... bem... mais interessante. Mas há alguns detalhes que não se encaixam bem nessa hipótese. Portanto se me perguntarem se gostei deste conto, não vos saberei responder com mais que um talvez.

Lido: História do Alquimista que Vendeu a Alma

«Hm...», poderão pensar vocês. «Um alquimista que vendeu a alma? Poderá ser que esta é mais uma história relacionada com o mito de... hm... Fausto?»

E não é que acertaram em cheio? Malta esperta, pá.

Sim, Italo Calvino encontrou Fausto nas suas cartas de tarot, e é precisamente isso o que conta nesta História do Alquimista que Vendeu a Alma. De novo, e mais que provavelmente assim será até ao fim deste livro, é o artifício narrativo que tem honras de holofote nesta história, ficando o enredo um pouco para trás. Na verdade, teria sempre de assim ser, pois esta forma de contar histórias, através de cartas de tarot postas na mesa e do modo como elas são interpretadas pelo narrador e, imagina ele, as outras pessoas presentes aquando da narração não se presta muito a grandes novidades em termos de enredo e personagens.

De resto, estas são basicamente apenas o contador mudo e o diabo e, secundariamente, aquele que interpreta as cartas e reconstrói a história por escrito, e o enredo limita-se ao momento em que o alquimista/Fausto vende a alma ao diabo, seguido por um momento que depende de uma carta de difícil interpretação e por isso permanece vago. Retirando da equação a perícia narrativa e o artifício que está na sua base, portanto, é uma história escassa. Mas esta forma de contar histórias tem interesse em si mesma; é sempre interessante ver como Calvino se desenrasca com as cartas que lhe calham em sorte.

E isso chega? Bem... eu não sou grande fã de textos em que a forma se sobrepõe ao conteúdo, como quem me lê regularmente já sabe, mas neste caso até sou capaz de abrir uma exceção.

Contos anteriores deste livro: