segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

Susana Rosa: À Margem

Gostei bastante mais deste segundo poema de Susana Rosa do que do primeiro. Talvez em parte porque o que ela pretendeu dizer neste À Margem seja menos óbvio do que com Mar e Tu, deixando mais espaço de interpretação, talvez porque o ritmo deste texto me agrade muito mais que o do primeiro, talvez, simplesmente, porque o tema principal, que interpreto como a frustração do manipulador de palavras com a imperfeição do que manipula para expressar o que sente, seja algo que está muito mais próximo de sentimentos que sinto com regularidade e compreendo bem, talvez porque encontre nele mais qualidade puramente literária, talvez por alguma espécie de mistura de tudo isto. Talvez. O facto é que gostei deste poema.

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sábado, 29 de janeiro de 2022

Leiturtugas #138

Pois. Não consegui. Passou-se uma semana inteira entre a nota anterior sobre as Leiturtugas e esta. Devia ter-se passado menos, devia ter publicado isto lá pela quarta ou quinta-feira, mas não deu. Mas sou teimoso, portanto aqui, de novo, está só o material correspondente à semana antes da última, não à última. Esse ficará para a nota 139, que sairá...

Hm...

Pois...

Sairá quando der para sair. Para já, vamos a isto.

E foi uma semana bastante movimentada, a que levou de 17 a 23 de janeiro. Tivemos Artur Coelho em dose dupla, por exemplo, primeiro com mais uma das suas opiniões curtas sobre BD, desenvolvidas melhor noutro lugar, desta feita sobre mais um número da Apocriphus, esta sob o tema de Monstro! É uma revista (fanzine?) sob edição de Miguel Jorge e do seu selo Mighell Publishing, e saiu ainda no ano passado. A outra opinião que o Artur publicou nessa semana debruçou-se sobre mais uma obra clássica do fantástico português, datada de 1944 mas lida por ele na reedição de 1976 da Livraria Popular de Francisco Franco. Trata-se do romance Kurica, de Henrique Galvão, uma espécie de fábula política que esteve durante décadas proibida pela censura salazarista. Nada de FCs. E o Artur arranca o ano com 0c2s.

E não tivemos também dose dupla de Carla Ribeiro porque a tivemos tripla. Começa a Carla também opinando sobre uma BD publicada no ano passado, o álbum Sapiens Imperium, de Sam Timel e Jorge Miguel, uma edição da Arte de Autor. Depois, a Carla opiniou sobre uma coletânea de Paulo Moreiras que já apareceu por aqui: O Caminho do Burro. É uma edição também do ano passado, mas da Visgarolho. A rematar a semana, a Carla voltou à BD e opinou sobre uma edição da G. Floy Studio datada de 2018. Chama-se o álbum Dragomante: Fogo de Dragão, e é da autoria de Manuel Morgado e Filipe Faria. A Carla parece apostada em despachar os mínimos logo no inverno e já vai com 0c4s.

Mas nem só de participantes oficiais se fez a semana, e nem só os oficiais apareceram com posts múltiplos. Houve outra Carla que também nos trouxe duas opiniões, ambas sobre representantes da fantasia infantil portuguesa e da obra de Sophia de Mello Breyner Andresen. A primeira foi sobre O Rapaz de Bronze, um original de 1966 que a Carla parece ter lido na edição da Porto Editora de 2013. A segunda debruçou-se sobre A Menina do Mar, original ainda mais antigo, de 1958, que a Carla parece ter lido na edição de 2012, também da Porto Editora. Nada de FC por aqui, claro.

Curiosamente, a opinião que fechou a semana também foi sobre uma leitura de fantasia infantil escrita por Sophia de Mello Breyner Andresen. Ter-se-ão combinado? Esta esteve a cargo da Ana Rute Primo e o livro lido é A Fada Oriana, um original também de 1958 que a Ana leu na edição de 2020 da Porto Editora. De FC, claro, nem sinal.

E é tudo. Siga para a próxima. Acho que já posso garantir que será mais curta. Mas será.

sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

Irmãos Grimm: O Aprendiz de Moleiro Pobre e a Gatinha

É bem sabido que pessoas diferentes, com ideias diferentes sobre a natureza das coisas, gostam de ler, ver ou ouvir histórias diferentes. É esse um dos motivos por que é uma patetice achar-se que alguém tem a opinião definitiva sobre seja o que for, pois a subjetividade que emana do que cada um é irá sempre influenciar as opiniões que tem sobre qualquer forma de expressão artística. Isto das artes não é matemática: aqui não existem verdades universais. O que é bom para Fulano pode ser mau para Beltrano sem que Fulano seja menos que Beltrano ou vice-versa (desde que ambos saibam justificar decentemente as respetivas opiniões). Mas divago.

É bem sabido, dizia eu, que pessoas diferentes gostam de ser recetoras de obras diferentes. Não sei se é igualmente bem sabido que pessoas diferentes também gostam de ser emissoras de obras diferentes, mas devia ser. E esta história que os Irmãos Grimm ouviram numa aldeola no centro da Alemanha faz disso prova, quando comparada com outras histórias que os irmãos incluíram no mesmo volume.

É, de novo, a história de um tolo. O tolo é O Aprendiz de Moleiro Pobre e a Gatinha será uma criatura encantada que ele vai encontrar quando parte à aventura junto com os outros dois aprendizes (que depressa o abandonam), pois o velho moleiro, que pensa reformar-se, prometera deixar o moinho àquele que lhe trouxesse o melhor cavalo. Sem saber bem como (afinal de contas, é tolo), é este que acaba por ganhar a contenda. Na verdade, acaba por ganhar muito mais do que estaria nos seus sonhos mais extravagantes.

As duas ou três pessoas que têm seguido esta série de opiniões decerto saberão que a figura do tolo costuma funcionar nestes contos populares como bombo da festa, prodígio de cretinice, bufão ridículo cujas trapalhadas só podem realmente fazer rir. Imagino que as pessoas que contam tais histórias sejam diferentes das que contam histórias como esta, nas quais a bondade dos parvos acaba por se sobrepor à canalhice dos espertalhões. É como em tudo: uns deixam-se atrair por umas coisas, outros por outras.

E é boa, a história? Não é má, digamos assim. Não fica na memória, mas pelo menos não se acaba a leitura com um nó de repugnância na boca do estômago.

Contos anteriores deste livro:

quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

M. D. Amado: Adam

Não é impossível escrever boa ficção em infodump puro. Se houver um domínio apurado da língua e boa qualidade na técnica narrativa, além de uma grande inteligência e/ou sensibilidade literária para saber que informações fornecer e quando, que informações esconder e até quando, que informações sugerir ou deixar subentendidas, e até, em certos casos, que informações errar, o resultado pode ser até bastante bom. Não, não é impossível. Mas é bastante difícil. E torna-se ainda mais raro encontrar um bom conto em infodump puro por serem quase sempre os autores mais inexperientes e/ou fracos que se aventuram a fazê-los. E os resultados mais comuns são...

Enfim...

Olhem, são como este conto.

Adam é uma espécie de Adão neste infodump de ficção científica de M. D. Amado, e por aí já ficam com uma boa noção do nível de subtileza atingido pelo autor. Potencial único sobrevivente de um armagedão tecnológico acontecido em finais do século XXII, Adam escreve uma carta a explicar a outros sobreviventes eventuais o que aconteceu, mas o autor não parece perceber que uma coisa é uma carta escrita para ser lida por contemporâneos, outra bem diferente é uma carta escrita para ser lida por gente do princípio do século XXI, pelo que ao escrever para estes falha redondamente em torná-la credível como missiva para aqueles.

Quando a isso se junta aquele catastrofismo à filme de Roland Emmerich, no qual ninguém que saiba um pouco de ciência é capaz de acreditar (quando não passa o tempo todo a revirar os olhos), e um tratamento da língua não só pouco inspirado mas até com algumas falhas mais ou menos crassas, o resultado só pode ser um conto bastante fraco. O pior deste fanzine até ao momento.

Contos anteriores desta publicação:

quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

Luiz Bras: Mecanismos Precários

É sempre arriscado brincar com os géneros. Quando sai mal raramente sai só malzinho; tende a sair mesmo muito mal, gerando nacos de prosa (quando se trata de literatura; acontece mais ou menos o mesmo noutras artes) ridículas e por vezes quase ilegíveis. Mas os riscos têm uma característica curiosa: se é certo que é muito possível, ou até bastante provável, resultarem em catástrofe, não é menos certo que quando a coisa corre bem os resultados atingem lugares que sem se correr o risco nunca seriam atingidos.

(Na verdade, e agora que penso nisso, isto não se aplica só à arte, mas à vida em geral.)

Luiz Bras é daqueles escritores que gostam de correr riscos. Começa logo pelo risco básico que é a sua existência: Bras é o pseudónimo FC de um autor já com carreira nas letras extra-FC que um belo dia decidiu mandar os preconceitos do meio literário às urtigas e escrever ficção científica. E este Mecanismos Precários é o resultado de mais um desses riscos.

Como o anterior, também este conto vai mudando de feição à medida que vai progredindo. A princípio parece uma simples história de desavença conjugal, ainda que entrecortada por referências bélicas cada vez mais steampunk. Estas vão ganhando preponderância, chegando quase a transformar o conto numa narrativa steampunk convencional, até que de repente se estilhaçam numa narrativa metaficcional quando as personagens se dão conta de que estão a ser manipuladas pelo autor. Segue-se uma incómoda conversa na qual o autor explica às personagens parte da sua conceção da literatura, acabando por lhes propor que sejam elas a escolher o desenlace da história, ainda que de entre um conjunto limitado de opções.

Mas as personagens, parecendo aceitar uma das opções, levam sozinhas a história para outros lados, culminando-a de uma forma que não estava nos planos. E, como diz o Sérgio Godinho, veio-me à cabeça uma frase batida. Não a do Sérgio, outra: "Make love, not war".

Este conto não é para todos? Não, não é. Mas é para mim. Gostei muito dele.

Conto anterior deste livro:

segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

Susana Rosa: Mar e Tu

É um poema de amor, este texto de Susana Rosa, provavelmente dedicado a alguém em concreto como tantas vezes acontece. De resto, um título como Mar e Tu logo o indica, e não mente. Mas não é texto que tenha ressoado em mim. Falha minha, certamente, até porque eu, como digo com frequência, pouco percebo de poesia.

Textos anteriores desta publicação:

sábado, 22 de janeiro de 2022

Leiturtugas #137

Ora viva. Como têm passado?

Pois por aqui as coisas têm estado más. Passei uma semana de molho (não, não foi o bicho), só com visitas esporádicas ao computador, e tudo atrasou. Bué.

Incluindo, claro, estas notas sobre Leiturtugas.

Agora que estou de volta ainda pensei em juntar duas notas numa só, mas é muito RSS a passar a pente fino e não conseguiria publicar este post hoje. Por conseguinte, aqui vai só o que apareceu por aí não na semana que acaba agora mas na outra anterior. Talvez a meio da semana consiga pôr-me em dia com o material mais recente. Logo verão. Por agora...

... por agora começo por uns esquecimentos que fui descobrir agora que tive de ir vasculhar os RSS atrasados. Sim, mais que um, por coincidência (ou talvez não) todos referentes à última semana de 2021.

O primeiro é uma opinião da Rita da Nova sobre os Casos do Beco das Sardinheiras, um livro de contos de Mário de Carvalho que eu também li no ano passado, e na mesma edição da Porto Editora que ela leu, a de 2013 (se bem que qual das reimpressões seja mistério insolúvel sem o livro na mão). Há um levíssimo cheirinho a FC num dos contos deste livro, mas é tão leve que conta como não-FC.

O segundo é uma opinião encontrada no Instagram (aquele site onde só se encontra alguma coisa por milagre... ou porque alguém a divulga cá fora na internet decente, como foi o caso). Fala aí a Rita sobre Elysion, uma fantasia que D. D. Maio autoeditou no ano passado via Bubok. Nada de FC.

O terceiro é um apanhado crítico sobre as melhores leituras de 2021, publicado pelo Artur Coelho não no lugar habitual mas noutro dos sites para os quais colabora. Aí, o Artur fala sobre Seis Drones, o livro de contos de FC de António Ladeira publicado pela On-y-Va, e sobre A Dança dos Ossos, uma antologia de conto gótico lusófono organizada por Ricardo Lourenço e publicada pela E-Primatur. Duas opiniões pelo preço de uma, uma com FC e a outra sem.

E siga para o material menos atrasado.

Não houve participações oficiais na penúltima semana, mas houve várias oficiosas.

O Gonçalo Martins de Matos fala sobre Uma Casa na Escuridão, de José Luís Peixoto, um livro que não li mas que pela descrição dele parece conter daquele fantástico à Saramago, pelo que conta. Embora o livro seja de 2002, ele parece ter lido a edição da Quetzal de 2009.

No balanço que faz do ano passado, João Morales dá a sua breve opinião sobre o romance de Fernando Ribeiro Bairro Sem Saída, publicado pela Suma de Letras, entre outras obras não relevantes para aqui.

Por fim, e por seu lado, a Ana Rute Primo opina sobre A Febre das Almas Sensíveis, um romance de Isabel Rio Novo que eu à partida julgaria não se enquadrar aqui mas sobre o qual a Ana realça uma "toada fantástica", pelo que seja bem-vindo. Edição da Dom Quixote de 2017.

E é tudo e não é pouco. Venha a próxima.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

Ana Cristina Rodrigues: Ouvir Estrelas

Às vezes encontramos contos cuja inspiração é bastante óbvia, ainda que não assumida. Por vezes deparamos com outros com inspiração igualmente óbvia mas assumida. Ouvir Estrelas é destes últimos: parte de um célebre poema do brasileiro Olavo Bilac (há que explicitar a nacionalidade para que não se confunda com o nosso Olavo Bilac, que pelo menos letras de canções também terá feito), que cita em epígrafe, para desenvolver uma história de ficção científica razoavelmente contaminada de fantasia e também razoavelmente interessante.

A ideia não será totalmente original — tenho nos recôncavos das circunvalações cefálicas (calma: eu sei que o termo certo é circunvoluções cerebrais) a memória de uma história com enredo muito semelhante ao desta, mas por mais que puxe pelos fiozinhos dos axónios (calma: só puxo figurativamente) não me consigo recordar de título e autor... embora tenha ideia de que é americano. E atenção que não posso falar do conto sem spoilers. Se forem alérgicos a tal coisa, saltem já para outro ponto da internet.

Ora nesta história de Ana Cristina Rodrigues estamos num mundo futuro cheio de problemas, violência e guerra, e conhecemos um miúdo que começa a ouvir vozes, que associa às estrelas. Eis explícito o que resultou da inspiração, da epígrafe e do título. Num estilo muito descritivo mas com bom ritmo e sem cair no infodump puro e duro, a autora vai fornecendo a informação necessária, explicando como o miúdo se deixa envolver pelas vozes ou as canções vindas das estrelas, nas quais encontra um refúgio da distopia que o rodeia. Até que, numa reviravolta final, se entrega, se funde numa espécie de mente-colmeia interstelar e, juntamemte com outras crianças também dominadas da mesma forma, vai funcionar como quinta coluna para uma peculiar invasão telepática. Peculiar e bem sucedida.

O que este conto tem de melhor é a mensagem subjacente: cuidado com os falsos paraísos, cuidado com o que escolhes como escapismo, cuidado com cantos de sereia. Podes cair em armadilhas muito piores do que aquilo de que estás a tentar fugir. Basta isso para fazer com que esta história se torne interessante.

Contos anteriores desta publicação:

domingo, 9 de janeiro de 2022

Leiturtugas #136

Ora bem: agora já estamos mesmo em 2022. E como começam as Leiturtugas o novo ano?

A princípio parecia que não muito bem, pois a semana foi-se arrastando só com uma opinião a um livro português. Uma opinião que nos chegou pela mão da Cris, que assim se estreia nestas andanças, e se refere a um livro que já por cá apareceu no ano passado, o seu ano de edição: Palavra do Senhor, romance fantástico de Ana Bárbara Pedrosa publicado pela Bertrand. Nenhuma FC à vista.

Mas depois bateu-nos domingo à porta e com ele vieram mais duas opiniões, um de uma participante oficial no projeto e outra de mais uma oficiosa.

A paticipante oficial é a Carla Ribeiro, que nos traz um texto sobre um álbum de BD. Publicado em novembro do ano passado pel'A Seita, é uma história de Filipe Duarte Pina e Osvaldo Medina com o estranho título de Macho-Alfa (parte 1 de 4). Os habitués já sabem como isto é: BD conta como "sem FC", pelo que a Carla arranca com 0c1s.

A oficiosa é a Katrina, que nos traz mais uma opinião trazida do Goodreads sobre uma ficção de D. D. Maio. De novo, a ficção em causa é Solstício, uma noveleta de fantasia sombria publicada em 2019 via Bubok, e o opinador é um tal Afonso Robles. Também não há nada de FC por aqui.

E por esta semana estamos conversados. Haverá mais na próxima? Voltem cá para saber. Até lá.

sábado, 8 de janeiro de 2022

Cory Doctorow: I, Robot

Há quem tenha uma espécie de fetiche com a absoluta originalidade, o qual começa logo por acreditar que tal coisa é possível e os autores são capazes de se desligar de toda a cultura que lhes está subjacente para produzirem algo de novo e totalmente autónomo. Imagino que para essas pessoas histórias como este I, Robot, uma noveleta de Cory Doctorow com robôs positrónicos e um estado de guerra aparentemente permanente entre a Oceânia e a Eurásia, tenham pouco valor. Afinal, os robôs positrónicos são uma criação de Isaac Asimov e só quem nunca tenha lido Orwell não percebe de imediato de onde veio o resto da ideia. E no entanto, esta noveleta venceu um prémio Locus. Oh diabo! Em que ficamos?

Ficamos, claro, na compreensão de que toda a arte (aliás, toda a cultura) é um diálogo permanente entre quem a produz e aqueles que chegaram antes e fizeram coisas antes. Neste caso, Doctorow imaginou como seria um mundo em que os estados totalitários em permanente estado de guerra de Orwell possuíssem os robôs positrónicos de Asimov. Um mundo em que os de um lado respeitassem as Três Leis (com exceções, no entanto), e nutrissem a desconfiança contra os robôs que Asimov introduziu nas suas sociedades, mas os do outro lado preferissem não só não usar as Três Leis, deixando aos próprios robôs a decisão livre sobre como agir e o que fazer, mas apostassem mesmo em ir mais além.

E ao fazê-lo escreveu uma história bastante mais profunda do que poderá parecer à primeira vista. Porque esta decisão sobre que tipo de restrições devemos impor aos nossos robôs quando chegar o momento das suas capacidades ultrapaassarem as nossas, e se devemos impor algumas restrições, é uma decisão fulcral que teremos de tomar daqui a não muito tempo, atendendo à velocidade a que a robótica e a inteligência artificial têm vindo a desenvolver-se nas últimas décadas. E convém que pensemos nisso com alguma antecedência, para ver se, por uma vez, não somos atropelados pelo futuro como tem sido hábito.

É também para isso que serve a ficção científica.

Quanto a esta história, Doctorow criou um polícia canadiano (a situação geopolítica segue aqui de perto a do 1984 orwelliano, pelo que o Canadá faz parte da Oceania), que tenta criar sozinho uma filha adolescente, depois da mulher, uma roboticista brilhante (mas muito diferente da Susan Calvin de Asimov), ter desertado para a Eurásia. Mas os adolescentes do futuro são tão incontroláveis como os do presente, mesmo os que têm pais polícias, e a rapariga vai meter-se em sarilhos e vai acabar também por meter o pai em sarilhos. O enredo superficial é algo banal, mas é muito eficaz naquilo que interessa: em servir de instrumento para a apresentação da situação, dos problemas e dos dilemas em que o autor quer pensar.

No fim fica a sensação de uma leitura com bom ritmo e cheia de sumo, cheia de matéria para reflexão. Uma leitura que não destoa numa lista de obras premiadas. Esta noveleta é realmente boa.

Este livro foi obtido no site Freedbooks, onde foi publicado com a capa da coletânea em que está incluído (Overclocked), mas onde parece já não estar disponível.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

Irmãos Grimm: Contos da Cobra

E eis que de repente não temos direito a um conto, mas a três.

Lendo-os percebe-se bem por que motivo os Irmãos Grimm fizeram com eles um grupo e os intitularam coletivamente como Contos da Cobra. Não só têm todos como personagem por uma cobra, são também todos protagonizados por uma criança. E são todos fábulas. E são todos bastante curtos.

A sequência parece ter sido escolhida para apresentar primeiro o conto mais elaborado, deixando para o fim aquele que está mais reduzido à sua expressão mais simples. O primeiro, com uma página de extensão, conta a história de uma criança pequena que partilha com uma cobra o leite que a mãe lhe deixa, bondade que o réptil paga trazendo à criança tesouros. Mas tudo é estragado pela mãe, que se assusta e mata a cobra, o que tem consequências trágicas.

A segunda é um só parágrafo e conta a história de uma órfã que recebe de uma cobra uma coroa de filigrana dourada, após o que o réptil regressa e, não encontrando a coroa, mata-se. Não tem grande lógica? Pois não. Dá a sensação de que falta qualquer coisa a esta história, isto é, que se trata apenas de uma parte de uma história maior.

A terceira são três linhas e nem me parece que se possa chamar-lhe com propriedade história. É só um diálogo entre uma cobra e uma criança, e a sensação de que há qualquer coisa em falta (muita coisa em falta, na verdade) é ainda maior do que na segunda.

Nenhuma destas histórias é particularmente interessante.

Contos anteriores deste livro:

Luiz Bras: O Índio no Abismo Sou Eu

É pena que em Portugal se leia tão pouca ficção científica brasileira, tal como pena é que no Brasil haja tanta gente que teima em ignorar a portuguesa. Sim, é verdade que de um lado e do outro do Atlântico há que desbastar bastante palha para chegar às pepitas, mas que nem se leiam as pepitas, por puro preconceito (por vezes, reconheça-se, temperado a xenofobia), é uma tolice gigantesca.

E querem saber? Este conto de Luiz Bras é uma pepita.

Não se limita a estar muito bem escrito, o que não surpreende conhecendo Bras e sabendo que entre os escritores brasileiros que se dedicam à FC ele pertence ao grupo dos que melhor usam a língua portuguesa. Está também muito bem concebido, podendo ser usado como lição de como ir entregando ao leitor a informação necessária a pouco e pouco, de forma natural e sem necessidade de infodumps. Mais: de como usar essa entrega gradual como motor da narrativa, sustentando-a em boa parte com a curiosidade sobre o que ao certo estará a passar-se ali, e usando-a para criar surpresas e reviravoltas. É o que a pessoa que protagoniza o conto não sabe, e portanto o leitor também não, que mantém boa parte da leitura em andamento, e é aquilo que ambos vão descobrindo que vai fornecendo as pistas para o bocado de informação seguinte.

O conto começa no vazio. Alguém desperta em amnésia total, sem saber quem é, onde está ou sequer o que é. Vai analisando as cercanias, as pessoas que se aproximam e afastam, e tirando conclusões, nem sempre inteiramente corretas. E no fim, quando o conto termina, o leitor apercebe-se de que acabou de ler uma história de muito boa ficção científica, sobre identidade, sobre desigualdade e sobre futuros possíveis.

Não sei bem é qual a origem do título. O Índio no Abismo Sou Eu é daqueles títulos crípticos que geram a suspeita de uma relação qualquer com outras obras literárias. Haverá algures na literatura brasileira um índio no abismo a que Bras decidiu fazer referência ou prestar homenagem? Não sei; não conheço. Mas lendo o conto o título até se torna adequado.

Este conto é ótimo.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

Miguel Carqueija: Aquela Garota de Olhos Brilhantes

O grande problema do material escrito por autores ultraconservadores não é estar mal escrito ou até o conservadorismo que esse material tenta sempre (sim, sempre, mesmo quando não parece) inculcar nos leitores. O grande problema é que os autores ultraconservadores não gostam do que é novo, não se sentem confortáveis com o novo, e por isso não inovam. E por isso o que escrevem vem quase invariavelmente cheio de uma pesada carga de já visto, já lido, já mastigado, já ruminado até à exaustão.

Ora este conto de Miguel Carqueija é um excelente exemplo disso mesmo.

Pretensamente de ficção científica, o conto na verdade de FC não tem quase nada. Passa-se fora da Terra, num futuro indeterminado, como se poderia passar numa casa aristocrática qualquer do século XIX. Nenhuma das personagens é realmente futurista; são todas anacrónicas, gente da "alta sociedade", obviamente, porque é a única que interessa. Doutores disto e daquilo, um coronel, uma duquesa... Só a maquineta holográfica (que não destoaria num qualquer Star Wars) que permite desvendar o assassinato justifica realmente a sua inclusão no domínio da FC.

Sim, que a história é um whodunnit. Com detetive e tudo, embora não seja o detetive a resolver o crime.

E quando a isto se juntam uns diálogos quase ridiculamente melodramáticos, um deus ex machina absolutamente literal a apressar um desenlace que sem esse deus ex machina talvez nem chegasse a existir, pois a presença de uma entidade sobrenatural (Aquela Garota de Olhos Brilhantes, precisamente, uma espécie de anjo) faz com que uma dada personagem aja de forma que nunca agiria se a história obedecesse à lógica, e uma citação bíblica a abrir que desvenda todo o enredo antes mesmo do conto começar, o resultado é um conto completamente derivativo, cheio de mofo, desinteressante do princípio ao fim e muito, muito chato.

Este conto é mau.

Contos anteriores desta publicação:

Escrita de dezembro


Bom, e lá se acabou mais um ano. Um ano que começou fraquinho, prosseguiu fraquinho e fraquinho terminou.

É um ano para riscar dos anais, este. Sob quase todos os aspetos.

Mas aqui o que interessa é a produção de ficção nova, e nisso o curioso é este dezembro ter tido uma produção praticamente idêntica ao último dezembro (e sim, é por isso que a imagem é a mesma). Cerca de 3400 palavras, à volta de 10 páginas. Pior que alguns dos outros meses do ano, melhor que outros. Ou menos má, vá. Há malta, os malucos do NaNoWriMo, que escreve 50 mil palavras num mês; eu escrevi um pouco menos que 38500 em doze, o que mesmo assim dá à volta de 110 páginas. Mas fica muito, muito aquém da produção de 2020 ou 2021.

Já disse que o ano tinha sido fraco? Pois.

Quanto a coisas acabadas, o saldo ficou-se por um conto e uma noveleta, que a parte final do ano foi dedicada a dar avanço a um romance. Este, que já passa das 40 mil palavras (já ultrapassou as 100 páginas de manuscrito, que tipicamente têm mais texto que as de um livro), vai ser também a minha principal (ou única) produção ficcional do ano que agora começa. A ver se o levo até ao fim; já o interrompi uma vez, durante demasiados anos. Espero não voltar a fazê-lo.

E como planeio continuar a dar-vos conta mensal do andamento da coisa, se os planos mudarem saberão. Voltamos a falar dentro de um mês.

terça-feira, 4 de janeiro de 2022

Irmãos Grimm: Gente Esperta

Já aqui falei várias vezes, num tom não propriamente abonatório, das farsas incluídas neste livro, quase invariavelmente protagonizadas por prodígios de estupidez e pelos canalhas que se aproveitam dessa estupidez para proveito próprio. Não sei bem se é por alguma predileção que os Irmãos Grimm pudessem ter tido por histórias dessas, se é mesmo qualquer característica da cultura alemã, mas o facto é que há várias nestes livros, e este Gente Esperta, como o título desde logo deixa entrever, é mais uma.

Camponeses, claro, e a fazer negócios, acabando endrominados por gente sem vestígio de escrúpulos. Supostamente a ideia é fazer rir os ouvintes ou leitores, mas comigo não funciona. No entanto, esta história é um pouco melhor do que as outras histórias destas que já ficaram para trás, uma vez que há um volte-face razoavelmente inesperado na trama. Mas só um pouco melhor, até porque a moral que nela se entrevê, a de que num mundo de canalhas há que ser canalha e meio, me é francamente repugnante.

Contos anteriores deste livro:

Ângelo Brea: Um Planeta Remoto

Na ficção científica, como em outros géneros literários, as definições tendem a ser vagas e a dar bastante espaço para interpretações, o que não impede muita gente de as tratar (ou pelo menos à sua versão delas) como verdades absolutas e incontestáveis. Isso tem como consequência inevitável que para não gerar incompreensões convém explicar-se concretamente o que se entende pelo termo x. Termos como space opera, por exemplo, ou romance planetário.

Neste Um Planeta Remoto, Ângelo Brea não faz uma space opera mas o ambiente está lá. Não existe a aventura melodramática nem o romantismo cavalheiresco, mas existe, em pano de fundo, a guerra interplanetária, sob a forma de uma Federação Terrestre, composta por centenas de planetas-colónia e colónias mineiras espalhadas pelas estrelas, que está sob ataque (e a ser derrotada) por uma coligação de piratas espaciais e rebeldes de todos os tipos.

O conto está mais próximo do romance planetário, ainda que também não seja bem isso. É uma história híbrida. Os escassos habitantes de uma colónia mineira que se vê na iminência de ser atacada e/ou destruída pelos piratas conseguem convencer o capitão de uma nave cargueira a transportá-los para um planeta distante onde terão possibilidade de sobrevivência e para onde tinha partido algum tempo antes uma família conhecida do capitão. E lá vão eles.

O ambiente é bem estabelecido por Brea e a situação é bastante interessante. Pelo menos para mim, que não gosto de space opera propriamente dita mas tendo a gostar bastante de histórias que subvertem esse subgénero e de muitos romances planetários. Esta é daquelas histórias que me prendem desde o início, e Brea até é mais competente do que é hábito no equilíbrio entre a explicação dos elementos de construção de mundo e o avanço do enredo.

Mas depois, a história acaba sem chegar propriamente a fechar o seu arco narrativo. O grupo chega ao tal planeta e vai deparar com a família de pioneiros toda morta, sem que se perceba porquê, e não há tempo nem espaço para se investigar as mortes e perceber se a nova colónia será mais bem sucedida que a anterior ou que desafios terá de enfrentar.

Ou seja, esta história daria um início de romance bastante bom. Mas tal como está termina de uma forma muito frustrante.

Contos anteriores deste livro:

segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

Leiturtugas #135

Bem-vindos às Leiturtugas de 2022! De novo um dia atrasadas! Viva!

Bem... mais ou menos. Isto que aqui vão ler ainda se refere a Leiturtugas de 2021, pois nos dois dias de 22 que encerram a semana a que este post diz respeito a malta esteve a divertir-se e a emborrachar-se (e se calhar a contaminar-se... vamos ver daqui a dias), não a escrever posts sobre livros.

Portanto vamos ver como encerrámos o ano.

A resposta é que o encerrámos com duas opiniões de participantes oficiais e uma de um oficioso.

O primeiro dos oficiais foi o tal Jorge Candeias que ninguém sabe bem quem é, muito menos eu. Pois esse tipo publicou a sua última opinião tuga do ano, dedicando-a a mais um dos contos publicados pelo Fantasy & Co. Este é um conto de Carlos Silva publicado em 2013, e intitula-se É Só uma Piada. Com FC, pois o Batman tem FC. Não que isso importe muito: os objetivos estão cumpridos.

O outro é o Artur Coelho, que continua a esgravatar nos alfarrabistas e opina agora sobre outro livro sem nada de FC nem de fantástico: um livro de memórias publicado pela Bertrand em 1997, intitulado O Fim dos Séculos e escrito por António Lima.

O oficioso, ou melhor, a oficiosa, é a Anónima de Vidro (alcunha minha para a distinguir de outros anonimatos; espero que não se chateie), que opina sobre um livro de fantasia publicado pela Chiado em 2017. Com o título de Annwn, é de autoria de Célia Maria, e não tem, obviamente nem sombra de FC.

E pronto, é assim que termina o ano. Além dos participantes oficiais, que na sua maioria cumpriram os mínimos (as exceções foram a Carla Ribeiro e o Marco Lopes; a Carla porque das 12 obras comentadas só 3 tinham FC, e o Marco porque só comentou 9 obras, todas elas sem FC), foram aqui divulgadas 53 opiniões sobre obras com FC e 86 sobre obras sem FC vindas daqueles a que chamo participantes oficiosos. Não está mal. Podia ser melhor, se mais malta se afastasse dos jardins murados dos Goodreads e Instagrams e Facebooks e por aí fora e comentasse sobre as suas leituras na internet aberta ao mundo (ou pelo menos se o fizesse lá e também cá fora), mas não está mal.

Para 2022, esperem mais do mesmo. Todos os participantes oficiais continuam a sê-lo, pois nenhum ficou em branco (a menos que algum me diga que quer deixar de o ser) e quanto aos oficiosos, quem quiser juntar-se ao grupo dos oficiais é bem-vindo.

Começa já para a semana. Provavelmente.

sábado, 1 de janeiro de 2022

Bruce Sterling: Ivory Tower

A ficção científica sempre olhou acima de tudo para o presente. Sempre foram as questões contemporâneas a inspirar os autores e a despertar o interesse dos leitores, mesmo que por vezes elas cheguem recobertas de uma camada de aparente escapismo, e as histórias resultantes sempre estiveram imbuídas de pontos de vista e perspetivas existentes no momento em que foram escritas. Por outras palavras, sempre foi fundamentalmente uma ficção política, e muitas vezes foi também profundamente ideológica. E não, política e ideologia não são a mesma coisa. Trata-se de conceitos relacionados mas diferentes.

E a ficção científica de Bruce Sterling nunca destoou, claro. Bem pelo contrário. Sterling, que como se sabe é um dos criadores do ciberpunk, sempre encheu as suas histórias de reflexões completamente políticas sobre as formas como os computadores e as redes informáticas poderiam influenciar sociedades futuras, extrapolando as tendências que encontra no mundo que o rodeia.

Neste Ivory Tower, publicado em 2005, parte de uma perspetiva otimista sobre as redes, perspetiva essa que ainda era dominante nessa época. Lembremo-nos de que em 2005 o Facebook tinha um ano de idade, o Twitter ainda não existia e, embora já houvesse redes sociais, estas estavam ainda bastante mais próximas do espírito dos fóruns e mailing-lists que as precederam do que dos monstros estupidificantes e promotores de ódio em que acabaram por se transformar. No entanto, Sterling já utiliza o conceito de bolha, ainda que o trate de forma benigna.

O conto é um infodump, basicamente, ainda que o autor tenha a capacidade de o tornar interessante (ajuda que seja tão curto — uma vinheta). Um infodump em que se explica a génese de uma peculiar comunidade de pessoas sem instrução formal que no entanto souberam servir-se da informação encontrada na internet para aprender física (sobretudo) de nível superior. E para se encontrarem umas às outras e criarem uma espécie de torre de marfim de geniozinhos informais, uma sociedade autónoma e utópica para geeks externos ao sistema. Há ironia na ideia e na concretização, evidentemente, mas há também uma exploração muito interessante do que a grande auto-estrada da informação (lembram-se do termo? Esteve na moda durante uns tempos) poderia propiciar, e há também um olhar muito lúcido sobre as desigualdades económicas e as consequências que elas têm.

Ler este conto hoje, nos anos sombrios da sociedade pós-facebookiana, é bastante diferente de lê-lo em 2005. Deixa ficar um sabor a oportunidades perdidas, a deprimente interrogação sobre como deixámos que nos enfiassem neste buraco em que estamos metidos. Quem quiser lê-lo, pode encontrá-lo no site da Nature, aqui.